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Língua e Literatura Grega: origens

ORIGENS E ATUAIS LINHAS DE PESQUISA

HUMANIDADES

Língua e Literatura Grega: origens

Gilda Maria Reale Starzynsli

A antiga Faculdade de Philosofia, Sciencias e Letras foi criada ao mesmo tempo que a Universidade de São Paulo, em 1934. A faculdade subdividia-se em vários cursos, agrupados em seções e subseções. O ensino de grego inseria-se na seção de Letras, subseção de Letras Clássicas e Português.

A primeira fase

No primeiro qüinqüênio — de 1934 a 1939 — ocorreu, no curso de Letras Clássicas, uma sucessão de professores, todos eles estrangeiros, que acumularam de início as funções de professores de grego e de latim, cujos cursos se reuniam sob o título de Cadeira de Filologia Grega e Latina.

O primeiro deles foi o professor Michel Berveiller, que em 1934 já realizava, a par de suas aulas, um curso público sobre Literatura Grega, promovido pela USP no mesmo ano de sua fundação. Dessas conferências, resultou o livro A tradição religiosa na tragédia grECA, publicado em 1935. No fim desse ano, o professor Berveiller apresenta-nos um diagnóstico da situação do ensino de letras clássicas, especialmente do grego: os alunos, na maioria, eram autodidatas, ex-seminaristas ou sacerdotes evangélicos e professores secundários, que pouco ou nada sabiam dos elementos básicos da língua grECA. Nessas condições, era impraticável a realização de pesquisas, pois a própria heterogeneidade das classes o impedia. Cabe aqui observar que, infelizmente, essa situação perdurou por muito tempo.

Em 1937, assumiu a regência da Cadeira de Filologia Grega e Latina o professor Rebelo Gonçalves, da Universidade de Lisboa. Coube-lhe a primeira proposta de introduzir um Programa de Estudos Clássicos, orientado para os estudos filológicos e histórico-comparativos (gramática histórica, lexicografia, sintaxe histórica), conforme consta dos termos de sua Aula Inaugural de 21 de março de 1937. O professor Rebelo Gonçalves deixou-nos como lembrança de sua atuação o livro Filolofia e Literatura, publicado nesse mesmo ano.

No ano seguinte, houve a separação dos estudos de grego e de latim, e os cursos de Língua e Literatura Grega passaram à responsabilidade do professor Attílio Venturi, na época diretor do antigo Instituto Médio Dante Alighieri.

Desde 1935, já funcionava junto às várias Faculdades da USP, o antigo Colégio Universitário (dois anos) que devia habilitar os vestibulandos da Universidade. O Curso de Grego esteve inicialmente a cargo do professor Alexandre Corrêa e, depois, do professor Francisco Isoldi. Começaram, então, a ingressar no Curso de Letras Clássicas alunos já conhecedores dos rudimentos da língua grECA. Entretanto, a heterogeneidade das classes ainda persistia. De acordo com a legislação da época, era permitido que alunos recém-egressos do curso ginasial de cinco anos prestassem, diretamente, os vestibulares da Faculdade. Além disso, era comum o comissionamento de professores normalistas, para apressar a sua formação como professores secundários para o ensino oficial e particular.

Em 1939, foi contratado o professor Vittorio de Falco, da Universidade de Nápoles, cuja meta era permanecer à frente da Cadeira de Língua e Literatura Grega por vários anos. Infelizmente, em abril de 1942, foi obrigado a retornar à Itália em decorrência da entrada do Brasil na Segunda Guerra Mundial.

Já a partir de 1940, houve a possibilidade de contratar-se um assistente, como colaborador do professor regente, o qual se encarregaria das aulas de Línguas Grega e Latina. Em 1940 o professor Theodoro Henrique Maurer Jr. encarregou-se desses cursos e, em 1941, optou pela assistência aos cursos de latim e o professor Aluísio de Faria Coimbra foi admitido como assistente do curso de grego. Da intensa colaboração dos professores De Falco e Coimbra resultou a publicação do I volume dos Elegíacos gregos, com o texto original (uma façanha para a época!), aparato crítico, tradução e notas, nos inícios de 1942. A partida do professor De Falco encerra a primeira fase dos cursos de grego.

A heterogeneidade

Nos depoimentos desses professores estrangeiros, apesar das palavras amáveis que dirigem aos seus alunos brasileiros, é possível notar um certo desaponto, diante da dificuldade de conviver com alunos semi-alfabetizados nos conhecimentos da língua grECA. De fato, era corrente os professores darem seus cursos em tom de conferências, em evidente descompasso com a capacidade dos alunos.

Em maio de 1942, o professor Coimbra assumiu as aulas de Língua e Literatura Grega, permanecendo como professor contratado até a sua morte, em 1951. Entre 1942 e 1952, o curso já pôde contar com a colaboração de assistente e auxiliares de ensino — professores Hilda Penteado de Barros, José Lazzarini Jr. e Gilda Maria Reale. Conforme a tendência predominante naquela época, os estudos de letras clássicas orientaram-se para os campos da filologia, da gramática histórica e comparada e da glotologia. Tal preocupação historicista transparece na obra esparsa do professor Coimbra, publicada em alguns Boletins da FFCL e Letras e nos Boletins de Estudos Filológicos, órgão oficial da Sociedade de Estudos Filológicos, fundada em 1941.

Após o falecimento do professor Coimbra, o professor Maurer Jr. assumiu interinamente a regência dos cursos de grego, enquanto o professor Eurípedes Simões de Paula, diretor da FFCL se empenhava na contratação de um professor estrangeiro que se comprometesse a ficar na Regência da Cadeira de Grego, dedicando-se às aulas e, principalmente, à formação e qualificação de seus sucessores brasileiros.

A reformulação dos cursos

No início de 1952, chegou ao Brasil o professor Robert Henri Aubreton, aluno titular da École des Hautes Études de Paris. Coube ao professor Aubreton a completa reformulação dos métodos, objetivos e programas dos cursos de grego.

O ensino da língua grega deveria subdividir-se nos três anos do curso de bacharelado, partindo dos ensinamentos básicos (1° ano) indispensáveis a alunos que sequer conheciam o alfabeto grego. O ensino teórico da gramática passou a ser acompanhado de textos fáceis (1l° ano), leitura de autores gregos — prosadores — e intensificação dos exercícios de tradução e versão (2° ano). Só no 3° ano haveria algumas aulas subsidiárias de gramática histórica.

Os cursos de literatura grega deviam realizar-se em dois níveis: um curso monográfico, paralelo à leitura dos textos indicados nos programas (que variavam anualmente) e um curso extensivo, cujo objetivo era dar um panorama da literatura grECA, desde os primórdios até a época helenística.

No relatório de fins de 1952, o professor Aubreton nos apresenta objetivos claros e traça um retrato da situação do ensino do grego na FFCL. Desde logo, professor Aubreton ressentiu-se das dificuldades dos alunos, que, além da heterogeneidade das classes, não dispunham de livros didáticos, biblioteca, coleções de revistas, mapas etc. Faltava tudo! Contando com o apoio de instâncias superiores, o professor Aubreton iniciou um intenso trabalho para aquisição de livros essenciais, assinatura de revistas, aquisição de mapas e aparelhos necessários para edição de textos gregos, que até então eram escritos à mão em estênceis de mimeógrafos. Ao mesmo tempo, iniciou-se um trabalho de importação direta da França de livros didáticos, textos de autores, dicionários etc. Os assistentes encarregavam-se, além das aulas, da tradução para o português das aulas de literatura, inicialmente proferidas em francês, a fim de se editarem apostilas, a pedido dos alunos.

Por assim dizer, das aulas proferidas nos cursos extensivos de literatura, nasceram dois livros: Introdução a Homero (1953-54 e 1968-2. ed.) e Introdução a Hesíodo inicialmente publicados na Série dos Boletins de Letras da FFCL.

No campo da Língua, desde logo pensou-se em aperfeiçoar os métodos de ensino, adequando-os à condição dos alunos, os chamados grandes iniciantes. Das pesquisas de vários projetos para as aulas do I ano, nasceu o livro Propedêutica ao grego, publicado em 1962 e de autoria da professora. Hilda Penteado de Barros. Paralelamente, a professora Gilda Maria Reale Starzynsli encarregou-se da tradução portuguesa da Grammaire de Ragon-Dain, obra que, infelizmente, não foi publicada por falta de condições materiais diante das exigências do autor francês.

Desde o início, o professor Aubreton planejou transformar a antiga Cadeira de Grego em verdadeiro centro de estudos helênicos. Dentre os alunos mais aptos e dedicados, escolheu futuros especialistas para os quais se empenhou na obtenção de bolsas de estudos dos governos francês e brasileiro. O governo francês atendeu com prodigalidade aos intensos pedidos do incansável professor Aubreton e muitos ex-alunos foram encaminhados às universidades francesas, como bolsistas ou como leitores de cultura brasileira. Estes últimos, ao mesmo tempo que lecionavam como verdadeiros adidos culturais do Brasil, dedicavam-se a seus estudos de aperfeiçoamento de grego e também de latim. Foi assim que se formaram na França futuros pesquisadores e professores de Letras Clássicas, em várias áreas, como língua, literatura, lingüística, história antiga, filosofia, arqueologia e grego moderno. Ainda hoje, vários desses antigos bolsistas, que conservaram o simpático nome de aubretonianos, são atuantes na atual Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, na Unicamp e na Unesp.

Dissertações e teses

Em 1956, com a exoneração do professor Lazzarini Jr., foi contratado o professor José Cavalcante de Souza, que, em 1961, defendeu o primeiro doutoramento de Língua e Literatura Grega, com uma tese sobre Platão, o banquete, introdução, tradução e notas.

Em 1963, a professora Gilda defendeu a sua tese de doutoramento sobre Aristófanes — as nuvens: introdução, tradução e notas.

Em 1964, o professor Aubreton, gravemente enfermo, decidiu regressar à França, onde deveria também completar a sua carreira de professor universitário. Todavia, comprometeu-se a voltar periodicamente ao Brasil para ministrar cursos de especialização e prosseguir na orientação de teses; e assim o fez, até praticamente a sua morte, em 1980.

Antes de regressar à França, o professor Aubreton teve o prazer de presidir a Banca para o provimento da Cátedra da Língua e Literatura Grega, quando foi aprovado o professor Cavalcante de Souza, que apresentou a tese A caracterização dos sofistas nos primeiros diálogos de Platão.

Em razão das sucessivas reformas que atingiram a FFCL, e os cursos de Letras, em particular, houve expressivo aumento de aulas e conseqüente necessidade de se contratarem novos assistentes para a disciplina de Língua e Literatura Grega. Pelas exigências da Lei de Diretrizes e Bases, foram criados os cursos básicos (quatro semestres) e mais dois anos (8 semestres) de curso fundamental. Foram também implantados os cursos de especialização (4 semestres), o curso noturno, que praticamente duplicou o número de aulas e o curso de pós-graduação, em fase experimental. A escolha dos novos auxiliares, como não podia deixar de ser, recaiu sobre antigos alunos da USP, bolsistas que já haviam regressado de seus estudos no exterior. Além desses, foram também convocados alguns antigos alunos que haviam cumprido os créditos nos cursos de especialização e pós-graduação e já preparavam suas monografias de mestrado ou teses de doutoramento.

Durante a gestão do professor Cavalcante de Souza e até a sua aposentadoria em fins da década de oitenta, prosseguiram as pesquisas visando à melhoria do ensino básico da língua grECA, testando-se métodos modernos, mais rápidos em seus resultados e mais eficientes. O objetivo principal, agora, tornava-se a leitura de autores gregos no menor tempo possível. Houve também necessidade de se adaptarem esses métodos a novas classes especiais, que surgiram com a abertura do ensino de grego a alunos de Filosofia e História Antiga.

Após a reforma dos currículos (1969-1970), ocorreu a criação dos cursos optativos de Língua e de Literatura, que tiveram, desde logo, grande procura, pois estavam abertos a todas as áreas da USP, particularmente aos alunos de Letras, Filosofia e Ciências Humanas.

A reestruturação do pós-graduação

Em 1971, com a reestruturação dos cursos de pós-graduação, a disciplina de Língua e Literatura Grega, integrada no Departamento de Letras Clássicas e Vernáculas, obteve credenciamento para os níveis de mestrado e doutorado. A partir daí, ampliou-se bastante o número de pessoas qualificadas para o exercício da carreira universitária. Realizaram-se vários concursos de mestrado e doutoramento e concursos de ingresso aos cargos de mestre ou assistente de Língua e Literatura Grega.

As pesquisas orientaram-se para a Historiografia (Heródoto, Tucídides), Retórica (Demóstenes), Teatro (Tragédia e Comédia), Poesia Didática (Hesíodo), Poesia Lírica e Grego Moderno.

O professor titular Cavalcante de Souza prosseguiu as pesquisas no campo de seu maior interesse: a Filosofia Grega (fase pré-socrática e Platão). Em 1973, foi publicado o livro Os pré-socráticos v. I da coleção Os Pensadores (Editora Abril Cultural), obra conjunta de vários colaboradores da assim chamada Cadeira de Grego.

Com a aposentadoria do professor Cavalcante de Souza, a professora Anna Lia de Almeida Prado foi escolhida, pela totalidade dos auxiliares e assistentes, para assumir a responsabilidade da disciplina e permaneceu com esse encargo até sua aposentadoria em 1989.

Neste breve retrospecto do que tem sido o ensino do grego na atual FFLCH da USP, propositalmente demos ênfase especial aos primeiros quarenta e cinco anos (1934-1980) de seu funcionamento.

As causas dessa preferência foram várias, mas desejamos ressaltar apenas duas. Em primeiro lugar, quisemos marcar os primeiros tempos em que se fundamentaram as bases daquilo que hoje é a Disciplina de Língua e Literatura Grega, criando-se as condições indispensáveis para melhor aproveitamento dos alunos em geral e, em especial, para a formação de pós-graduados, mestres e doutores que atualmente respondem pela grandeza desta Universidade. Além disso, consideramos que, transcendendo a frieza dos relatórios, programas e estatísticas, valeria a pena o depoimento de quem vem acompanhando, quase que desde os inícios, a difícil estruturação dos estudos do grego, numa época em que no Brasil a tradição clássica era mínima.

Gilda Maria Reale Starzynsli é professora do Departamento de Letras Clássicas e Vernáculas da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    22 Nov 2005
  • Data do Fascículo
    Dez 1994
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