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Língua e Literatura Latina

ORIGENS E ATUAIS LINHAS DE PESQUISA

HUMANIDADES

Língua e Literatura Latina

A. A. Peterlini

No dia 25 de janeiro de 1937, no anfiteatro da Faculdade de Medicina da USP, formava-se a primeira turma de licenciados da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras, que fora fundada em 25 de janeiro de 1934 pelo decreto estadual n° 6.283. Dos 26 alunos que colaram grau nessa solenidade, apenas dois pertenciam à subseção de Letras Clássicas e Português —, remanescentes dos cinco matriculados em 1934. O problema da malsinada evasão parece congênito à Faculdade. E a preocupação em justificar perante a sociedade brasileira disciplinas de cunho formativo humanístico não é menos antiga: o Dr. Antônio de Almeida Prado, no discurso com que abriu a cerimônia de formatura, escudava-se em Macauly, para asseverar "que os homens que se ocupam até os vinte anos de idade em estudos que não se correlacionam, de maneira imediata, com o exercício ou com o interesse de nenhuma profissão, sobrepujam na prática aos que, em condições idênticas, se dedicam a assuntos de caráter profissional..." No comedimento das palavras em que desenvolve suas idéias, Dr. Almeida Prado — e o sonho deve ter sido comum aos fundadores da Faculdade — não alcança disfarçar a esperança de que a nova Instituição possa oferecer, um dia, quem sabe, ao Brasil, um "corpo de cidadãos doutos e impolutos, colaboradores permanentes dos políticos..., sobranceiros às mudanças ministeriais e às crises governamentais, acima da corrupção e da venalidade partidárias..." Sonho apenas?! O porte atual das três universidades paulistas não seria uma atualização daquele anseio?!...

Entre as disciplinas não imediatamente ligadas ao profissional, estava Língua e Literatura Latina.

Os professores estrangeiros

Um dos mestres europeus que o professor Teodoro Ramos, por incumbência do governo do estado, trouxe em 1934, para lecionar na FFCL, o professor Michel Berveiller, veio para Latim — Cátedras de Língua e Literatura Latina e Literatura Grega. Nascido em Sommedieue (Meuse-França), em 16 de julho de 1910; bacharel em Letras (latim e grego) em 1925; em Filosofia, em 1926; aluno da Escola Normal Superior de 1928 a 1931; licenciado em Letras em 1929. Percorreu em viagens de estudo a Inglaterra, a Itália, a Grécia e a Turquia. Agregé da Universidade de Paris, em 1931, professor de Letras em Dijon, de 1932 a 1934.

Iniciava-se, pois, a disciplina de Língua e Literatura Latina na FFCL da USP — um professor de excelente cabedal de conhecimentos e cinco alunos — em 1934.

Professor Berveiller ficou conosco até 1937, secundado algum tempo pelo renome do professor de Filologia Portuguesa, Rebelo Gonçalves, em cujas mãos ficaram o grego e o latim em 1937, quando Berveiller nos deixou, retornando à Europa.

Na aula inaugural das Cadeiras de Filologia Grega e Latina e Literatura Grega e Latina, em 21 de março de 1937, o professor Rebelo Gonçalves declarava: "Volto, afinal, aonde sempre deveria estar, e donde só poderia afastar-me, com generosos auspícios, a magnânima fidalguia de São Paulo... retorno ao grego e ao latim, as disciplinas a cujo ensino ascendi por concurso na Faculdade de Letras de Lisboa, em cuja vigilância e defesa recebi a herança de Antonio José Viale, Epifânio Dias, José Maria Rodrigues, José Joaquim Nunes, e cuja matéria, para mais dobrado exercício, ainda preenche a maior parte dos meus deveres noutro baluarte de estudos filológicos, a secular Academia de Portugal."

O professor Rebelo Gonçalves, uma das honras do latim e do grego na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP, ficou um ano apenas nessa cadeira, o suficiente para que a Faculdade pudesse, para seu próprio desvanecimiento, pôr-lhe o busto no átrio de suas gratas lembranças.

Sucederam-no, e também por um ano, os professores Atílio Venturini para Filologia Grega e Latina, e George Readers, contratados em 1938 e 1937, respectivamente, este último como auxiliar de ensino de Literatura Francesa, ajudou em Filologia e Literatura Latina em 1938.

Chegava de Portugal, em 1939, o professor Urbano Canuto Soares, doutor em Letras, contratado para Latim, a partir de 1° de março. Aqui permaneceu até o final de 1954, quando retornou à sua pátria.

A orientação dada ao latim

O Anuário da FFCL dos anos de 1939 a 1949 traz algumas linhas sobre a orientação dada à disciplina pelo professor Canuto: "Desde o princípio preocupou-se o professor Urbano Soares com imprimir ao ensino superior da Cadeira de Língua e Literatura Latina, uma orientação moderna, seguindo sempre o critério histórico-comparativo no estudo dos fatos da língua e fundamentando o conhecimento das questões de História da Literatura nos textos literários..."

Mil novecentos e quarenta abre o caminho para os brasileiros, na área de Língua e Literatura Latina. Professor Theodoro Henrique Maurer Jr. foi assistente do professor Canuto até 31 de dezembro de 1946. Em 1944, entra como auxiliar de ensino o professor Armando Tonioli, que passaria a primeiro assistente em 1948, em 1955 assumiria como catedrático interno e, em 1962, como contratado. Ficou à frente da disciplina de Língua e Literatura Latina até 2 de março de 1970, quando faleceu. Foi o primeiro brasileiro contratado como catedrático de Língua e Literatura Latina na FFLCH da USP.

A herança principal que nos legou o professor Tonioli está no interesse pelos estudos da história da língua latina, mormente no que tange à fonética e à morfologia, área em que foi professor exímio. Também não vai esquecer nunca, nós que lhe assistiram às aulas, o grande amor à precisão no traduzir os textos latinos — era quase de ourives o cuidado com que buscava o exato correspondente do termo latino em português.

A partir daí, sob a coordenação orientadora de outros professores, ainda vivos, os estudos de língua latina e, até certo ponto, os de literatura latina tiveram de ajustar-se, de força, ao crescente desconhecimento do latim dos novos universitários, legítimo presente de grego dos programas oficiais aos futuros alunos de Letras.

Mas, com o desenvolvimento da pós-graduação, é hoje possível à disciplina conduzir pesquisas e trabalhos de bom nível, que pós-graduandos, alguns de outros estados do Brasil, têm levado a bom termo, já em dissertações de mestrado, já em teses de doutoramento, que se transformam, às vezes, em publicações excelentes. Com uma média de 35 alunos, a pós-graduação em Língua e Literatura Latina da FFLCH vem conseguindo formar bons professores e pesquisadores sérios.

A área de Latim conta hoje com 11 professores: um titular, cinco doutores, quatro mestres e dois auxiliares de ensino, todos formados na FFLCH da USP.

Os cursos atuais

Os trabalhos docentes da graduação dividem-se atualmente por numerosíssimas classes de currículo-mínimo, esse maltrapilho equivalente para letras, das biológicas para medicina e das exatas para engenharia. Mas sempre vale como espertador de vocações para os estudos clássicos greco-latinos.

O curso básico de Língua e Literatura Latina estende-se por quatro anos, com uma média de seis a oito aulas semanais. Bons alunos têm alcançado ótimos níveis para o ingresso na pós-graduação.

As experiências metodológicas no ensino da língua latina, deixadas à livre escolha dos professores, permitiram que a área de Latim possa agora opinar sobre várias iniciativas assim européias como norte-americanas. Merece ser lembrada, pelo longo uso, uma adaptação do Método de Sweet: Latin - a structural approach.

A tradução e análise do texto a várias luzes distribui-se entre passagens mais significativas da poesia e da prosa latina, apoiando de alguma forma os estudos de Literatura Latina.

A pesquisa

É, porém, na pós-graduação que se desenvolve a pesquisa já de docentes, já de orientandos. Sem requintes classifícatórios, mas visando apenas a informar, relatam-se aqui algumas linhas e trabalhos dessa pesquisa, completos ou em andamento. Assim, nas linhas de:

  • estrutura da frase latina, há estudos sobre as subordinadas completivas, sobre as formas nominais do verbo latino, sobre os nexos transfrásicos na prosa latina clássica, sobre a interrogação e sobre a correlação em latim;

  • pensamento filosófico greco-latino, desenvolveram-se ou se desenvolvem estudos a respeito da poesia didática e o epicurismo em Lucrecio; sobre o quarto canto das

    Geórgicas; o

    De fato de Cícero; o

    De dementia, as

    Cartas a Lucillo e

    As consolações de Sêneca;

  • do teatro greco-latino, há trabalhos sobre

    Teatro clássico e modernidade, sobre o teatro de Sêneca:

    As troianas, Tiestes, Fedra, Édipo rei e

    Otávia (Pseudo Sêneca); do teatro de Terêncio, foi estudada a peça Hecyra e, do de Plauto, a dos

    Menaeckmi;

  • lírica greco-latina, foram objeto de pesquisa, ou ainda o são, Catulo, sob vários aspectos; Tibulo, Propércio, Horacio e

    As bucólicas de Vergilio;

  • narrativa greco-latina desenvolve ou desenvolveu pesquisas sobre Salústio, César, Tácito e Tito Lívio;

  • sátira latina, foram estudados o humor latino no

    Satyricon, e

    A Ceia de Trimalquião; está em andamento um trabalho sobre

    As sátiras de Juvenal;

  • retórica greco-latina, há pesquisas sobre a

    Rhetorica ad herennium, sobre a retórica em Cícero e a

    Arte Poética de Horacio.

Dessas pesquisas, algumas se tornaram cursos; algumas, dissertações de mestrado; outras, teses de doutoramento. Há as que foram publicadas e estão nas livrarias em livros ou em revistas de divulgação científica.

As publicações

Um projeto de publicação de textos — Antologia bilingüe de escritores latinos — já logrou editar a Lírica latina, uma antologia que permite ao leitor conhecimento razoável nesse âmbito da poesia latina. Encontra-se no prelo a terceira edição de textos de História e, em andamento, a Antologia da épica latina.

Na tentativa de prestar ajuda à comunidade, a área de Língua e Literatura Latina mantém ainda um curso de extensão universitária, consagrado ao ensino do latim, em seis semestres, para os interessados que não podem cursar o básico de latim em Letras. A freqüência sancionou o valor desse trabalho.

Os contatos culturais

Para manter contato com o Primeiro Mundo e com as próprias origens, professores europeus, italianos e franceses principalmente, têm sido convidados para cursos e conferências, o que permite, além do proveito científico, uma avaliação do que temos conseguido na FFLCH.

Encontros culturais com colegas da área de todo o Brasil e de alguns países da América Latina, em especial da Argentina, nas reuniões anuais da Sociedade Brasileira de Estudos Clássicos, são em extremo úteis. Não menor proveito tem advindo das participações dos professores de Língua e Literatura Latina da USP em congressos de Letras Clássicas em outros países, como Argentina, Cuba, Venezuela, Uruguai e Canadá.

Não obstante o sem-número de obstáculos que sobrevieram ao ensino no Brasil, nas últimas décadas, a área de Língua e Literatura Latina da FFLCH da USP poderia hoje, sem dúvida, apresentar-se pelos poderes da imaginação naquela primeira classe de cinco alunos do professor Berveiiler, de 1934, na modesta sala tomada de empréstimo à Faculdade de Medicina, e responder em medido orgulho e gratidão: ADSUM!

A. A. Peterlini é professor do Departamento de Letras Clássicas e Vernáculas da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    22 Nov 2005
  • Data do Fascículo
    Dez 1994
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