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Lingüística

ORIGENS E ATUAIS LINHAS DE PESQUISA

HUMANIDADES

Lingüística

Irenilde Pereira dos Santos

A 16 de dezembro de 1986, o Diário Oficial do Estado de São Paulo publica a Resolução n° 3310, que cria o Departamento de Lingüística. A área de Lingüística do antigo Departamento de Lingüística e Línguas Orientais se constitui no Departamento de Lingüística, enquanto as outras dez áreas passam a integrar o novo Departamento de Línguas Orientais.

Ao observar a data, um primeiro pensamento parece indicar a presença de um departamento novo, cujo referencial acadêmico e científico aí se inicia. Entretanto, um olhar mais atento e o exame dos fatos situam o nascedouro da Lingüística na Universidade de São Paulo junto com a criação da própria Universidade, bem como com o percurso da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas.

A Lingüística é o estudo científico da linguagem e das línguas naturais e seus discursos. Enquanto ciência, cuida da constante elaboração e reelaboração de modelos teóricos. Como "estudo das línguas naturais, a lingüística se interessa pelo conjunto estruturado dos recursos lingüísticos que expressam as relações, funções e categorias relevantes para a interpretação dos enunciados (dimensão sintática); pelos modos de representação da realidade, tomados como sistema de referência para essa interpretação (dimensão semântica); pelos mecanismos que relacionam essa interpretação a determinados estados de fato, nas coordenadas espaço-temporal e interpessoal (dimensão dêitico-referencial), e a determinadas situações de uso, inclusive para avaliar os enunciado, do ponto de vista de sua adequação a determinadas ações e propósitos (dimensão pragmático-discursiva) ou do ponto de vista de sua verdade ou falsidade (dimensão lógica)" (Franchi, 1990: 80).

A essas dimensões, inscritas no processo de funcionamento/estruturação dos sistemas lingüísticos, podem ser acrescentadas outras, que espelham o processo histórico de formação de línguas ou a relação da Lingüística com outros campos do conhecimento.

No fazer lingüístico, dadas a diversidade e a complexidade subjacentes aos objetos e às práticas da comunicação lingüística, as diferentes dimensões se refletem numa hierarquia, que vai do nível fonético ao textual. Estes últimos constituem os níveis de análise e articulação lingüísticas.

É a dimensão que se reporta aos processos históricos de formação das línguas naturais, que assinala o início da Lingüística na Universidade de São Paulo. Em 1934, é criada a disciplina Lingüística Indo-Européia, por iniciativa do professor Theodoro Henrique Maurer Júnior.

Em 1961, a Congregação da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas autoriza a criação da Lingüística como curso autônomo, passando o professor Maurer a dirigi-lo. No ano seguinte, é criada a disciplina Introdução à Lingüística, que integra o rol do Currículo Mínimo Federal de Letras, estabelecido pelo Conselho Federal de Educação. Imediatamente após — 1963 — o professor Maurer cria também o curso de pós-graduação em Lingüística, que funcionaria nestes moldes até 1970. O curso levou à defesa mais de dez dissertações de mestrado. Esse primeiro período — 1934-1970 — é marcado pela predominância de estudos de natureza histórica e filológica, ao lado de alguns estudos indígenas. Em todo o período, sobressai-se a dedicação de pesquisadores, maduros e jovens, aos estudos da linguagem. Os primeiros — liderados pelo professor Maurer e seu discípulo — o professor Isaac Nicolau Salum -, são responsáveis por profícua atividade de pesquisa. Aos segundos, que fazem seu primeiro aprendizado com os primeiros e deles recebem o gosto pela pesquisa lingüística, cabe a tarefa de dar continuidade à Lingüística na Universidade de São Paulo nas próximas duas décadas.

No final dos anos sessenta esses jovens, que tinham estagiado ou feito titulação no exterior, mais especificamente na França, voltam dispostos a implantar os mais recentes avanços da área bem como nova atitude frente aos estudos da linguagem. A década de setenta tem início com este ambiente favorável ao desenvolvimento da pesquisa lingüística. Em função da Reforma Universitária realizada em 1969 e do Estatuto da Universidade de São Paulo que entrava em vigor, é criado o Departamento de Lingüística e Línguas Orientais, instalado em fevereiro de 1970, que passa a congregar áreas ou conjuntos de áreas que não possuem ainda a chamada massa crítica. A Lingüística, que possui um livre-docente, transforma-se em área no recém-criado Departamento de Lingüística e Línguas Orientais, ao lado de Teoria Literária, Lingüística e Filologia românicas, Línguas Indígenas do Brasil, Árabe, Armênio, Chinês, Hebraico, Japonês, Russo e Sânscrito. Apesar da extrema heterogeneidade do Departamento e dos inúmeros problemas que enfrenta, a nascente área de Lingüística, não apenas começa a despontar, como cresce significativamente até 1986, quando se torna o Departamento de Lingüística.

A criação do bacharelado de Lingüística em 1970, que passaria a funcionar a partir de 1972, favorece a difusão das novas idéias e do avanço científico. Tratava-se do primeiro e único curso do gênero no Brasil. O currículo, voltado para os diversos níveis de articulação e várias dimensões lingüísticas, esboça as tendências vigentes. Também o curso de pós-graduação, pelo regime novo — criado também em 1970 e que passaria a funcionar a partir de 1971, em nível de mestrado e doutorado, ao lado do bacharelado de Lingüística — seria elemento catalisador das novas idéias e tendências. Assim, o bacharelado de Lingüística, constituído de cursos, inicialmente anuais, posteriormente semestrais, designados pelos algarismos romanos de I a IV e, depois, de I a VIII, cobre disciplinas como a Lingüística Indo-Européia, a Lingüística Geral, a Lexicologia, a Semântica e a Fonética. Há outras que se reportam à relação da Lingüística com outros campos do conhecimento, como a Sociolingüística e a Psicolingüística. A primeira se ocupa do estudo da variação lingüística em todos os níveis — dialetos e registros; enquanto a segunda se volta para os processos de aquisição/aprendizagem de língua materna, bem como segunda língua/língua estrangeira. Por último, cumpre destacar as dimensões que se reportam ao estudo dos sistemas de significação verbais e não verbais — a Semiótica.

A partir de 1976, a área de Lingüística passa a oferecer seis disciplinas para o currículo básico do curso de Fonoaudiologia da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. A cada ano, cresce o número de ingressantes nesta habilitação do Vestibular. O corpo docente, constituído de dois professores em 1968, passa para quatro em 1972, sete em 1977, dez em 1981, treze em 1985 e dezesseis em 1986. Até 1985, data em que o Regime de Dedicação Integral à Docência e à Pesquisa é estendido a todos os docentes que o pleiteam, apenas três deles o possuem. Ainda no início e nos meados dos anos setenta, muitos dos docentes, pós-graduandos da instituição, embora exerçam a docência em várias instituições de ensino superior, não deixam de fazer carreira e não hesitam em buscar um estágio no exterior. Alguns se tornam leitores em universidades estrangeiras.

Se o final dos anos setenta assinala a extinção do auxiliar voluntário, iniciação praticamente obrigatória pela qual havia passado a grande parte dos docentes da equipe, marca também a saída de vários deles em busca de melhores condições de trabalho. Na maioria das vezes, o destino é outro departamento da Universidade ou outra instituição pública. Apesar da sobrecarga de trabalho e saída de não poucos docentes, os que permanecem conseguem manter, à custa da diminuição de estágios no exterior e aumento de carga didática, padrão de qualidade que permite a continuidade da habilitação e das atividades de pesquisa. Ao final deste último período, o novo currículo retira a seriação e reflete nos nomes das disciplinas as várias áreas da Lingüística e da Semiótica. Para uns, representa excessiva fragmentação e forte marca de um momento do Estruturalismo; para outros, uma apresentação necessária das várias tendências da Lingüística a serem aprofundadas em nível de pós-graduação.

No curso de pós-graduação, a mesma situação com respeito à ausência de massa crítica se coloca. Dessa maneira, as áreas de Semiótica e Lingüística Geral, Filologia e Lingüística Românica e Línguas Indígenas passam a integrar o curso de pós-graduação em Lingüística, que funciona dessa forma até 1982. A essa época, há docentes de outros departamentos e de outras Unidades da Universidade dele participando. Essa união, extremamente benéfica e fecunda, não só contribui decisivamente para a difusão das novas idéias e tendências, já assinaladas em nível de graduação, como influi decisivamente na formação dos quadros de docentes e pesquisadores do país. Levantamento realizado nos arquivos da pós-graduação revela que foram defendidas, de 1971 a 1986, 91 dissertações de mestrado e 61 teses de doutorado. Número expressivo dos trabalhos pertence a docentes e orientadores de pós-graduação nas áreas de Lingüística, Letras, Comunicações e Fonoaudiologia, não apenas da Universidade de São Paulo mas também da Universidade Estadual de Campinas, da Universidade Estadual "Júlio de Mesquita Filho", das universidades federais e das particulares. A grande maioria dos primeiros coordenadores de cursos de pós-graduação de Lingüística das universidades brasileiras é egressa da área de pós-graduação de Lingüística da USP. Em 1971, o curso contava com três professores orientadores permanentes e em 1986, com 20. No período, houve pouco mais de 40 professores visitantes e conferencistas de outras universidades do país e do exterior.

Em 1983, por determinação da Comissão Verificadora da Capes, que vem para o primeiro recredenciamento, o curso de pós-graduação é dividido em três áreas de concentração — Semiótica e Lingüística Geral; Filologia e Lingüística românicas; e Etnolingüística e Línguas Indígenas do Brasil. Ao todo, conta com 25 orientadores permanentes, 48 disciplinas de pós-graduação e 178 alunos. O credenciamento da área de Lingüística, em nível de mestrado e doutorado, sai publicado em março de 1986. No parecer, há uma observação para que as três áreas de concentração se tornem autônomas para o recredenciamento.

A partir de 1986, paulatinamente, alguns fatores vão permitir a instauração de uma nova ordem. Um primeiro impulso e talvez o mais importante nesta fase é dado pelas novas titulações. Três defesas de livre-docência, que teriam saído ainda antes da criação do Departamento, não fossem os encargos didáticos, permitem não só o aumento da massa crítica da graduação como a mudança nos rumos do Departamento.

A este primeiro dado, acrescenta-se a vinda de cinco docentes da área de Lingüistica Românica do Departamento de Letras Clássicas e Vernáculas para o Departamento de Lingüística. Dois deles já haviam sido professores da área de Lingüística do antigo Departamento de Lingüística e Línguas Orientais. Neste momento, todos vêm para o recém-criado departamento para desenvolver um projeto didático e de pesquisa, que os docentes de ambos os segmentos mostravam-se desejosos de efetivar. Além disso, não faz sentido a área de Lingüística Românica estar fora do Departamento de Lingüística. Dessa forma, é possível enunciar um terceiro fator — um novo currículo — que está sendo implantado. Espera-se que ele espelhe não apenas esses desejos de trabalho conjunto como também os mais recentes avanços da Lingüística.

Em nível de pós-graduação, os docentes das áreas de Filologia e Lingüística românicas, à exceção de um, bem como os de Etnolingüística e Línguas Indígenas, também desejosos de desenvolver trabalho conjunto com os professores de Semiótica e Lingüística Geral, como já acontecera em nível de graduação, vieram a integrar esta última. Hoje, o curso de pós-graduação em Lingüística — área de concentração em Semiótica e Lingüística Geral — conta com 28 docentes e pouco mais de 200 alunos. Nos últimos três anos tem havido não apenas aumento do número de orientadores permanentes que dele participam como de titulações, geralmente passagem a livre-docente e professor titular. Tem sido elevada a produção docente revelada em publicações e apresentação de trabalhos em congressos nacionais e internacionais. Da mesma forma que no período anterior, os docentes continuam participando da diretoria das associações estaduais e nacionais na área de Lingüística.

Nos últimos cinco anos, o curso levou à defesa 24 dissertações de mestrado e 34 de doutorado. Tem sido elevado o número de alunos com bolsas de estudo de várias agências financiadoras, inclusive bolsa-sanduíche nos últimos dois anos. Também há que se ressaltar os convênios nacionais e internacionais de que professores e alunos continuam participando. Dada a diversidade de formação e atuação dos docentes, não poucas são as linhas de pesquisa que cobrem quase todos os campos da Lingüística e da Semiótica.

O Departamento de Lingüística e o curso de pós-graduação têm desenvolvido algumas atividades conjuntas. Além dessas atividades, no momento, há dois professores visitantes que atuam em atividades didáticas e de pesquisa. Também tem-se tentado enviar, com freqüência, professores da equipe para estágio no exterior.

Nos últimos anos, tem-se intensificado a colaboração com outros departamentos da Faculdade, com outras unidades da Universidade e com outros centros. Nesse sentido, docentes da Lingüística têm participado do Projeto Nurc e do Convênio Vitae-USP, para professores de segundo grau, juntamente com vários docentes do Departamento de Letras Clássicas e Vernáculas. Diversos projetos vêm sendo desenvolvidos por pesquisadores de Lingüística com colegas do curso de Fonoaudiologia da Faculdade de Medicina, do Departamento de Engenharia Eletrônica da Escola Politécnica e de outras universidades. Com relação a este último aspecto, cumpre destacar as pesquisas sobre reconhecimento de sinal de voz.

Como se pode observar, não poucas vezes, o percurso da Lingüística, tanto em nível de graduação como de pós-graduação na Universidade de São Paulo, reflete não apenas o percurso da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas como também o da maioria dos cursos de Letras e Lingüística no Brasil. Neste percurso de 60 anos da Lingüística na USP, destaca-se a elevada produção de seus docentes, seja em publicações, em apresentações de trabalhos em congressos nacionais e internacionais ou em projetos de pesquisa. Há que se acrescentar, ainda, a seriedade, competência e tenacidade de seus docentes, apesar das inúmeras dificuldades encontradas (algumas a serem ainda superadas). Esses elementos têm permitido que a Lingüística goze de um padrão de excelência, reconhecido pela comunidade acadêmica. Entretanto, há grande potencial a ser explorado. Diante disso, torna-se necessário que lhe sejam dadas condições de crescimento para que, em vários setores que ainda se iniciam, ela possa crescer e colocar-se como um dos mais importantes centros de pesquisa, ensino e extensão do país.

Referência bibliográfica

FRANCHI, Carlos. A Lingüística no currículo de Letras. Anais da Primeira Semana de Letras. São Paulo, Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, 1990.

Irenilde Pereira dos Santos é professora do Departamento de Lingüística da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    23 Nov 2005
  • Data do Fascículo
    Dez 1994
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