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Quaternions: sucessos e insucessos de um projeto de pesquisa

Resumos

Neste artigo, são examinadas as investigações do matemático William Rowan Hamilton que conduziram à caracterização de certos objetos matemáticos chamados Quaternions, entre 1843 e 1866. Embora tais objetos tenham gerado muitas expectativas de utilização, sobretudo no que se refere à síntese sugerida entre grandezas escalares e vetoriais, quase todas resultaram frustradas em relativamente pouco tempo, tendo entrado em cena outros instrumentos que se revelaram mais fecundos, como os tensores, por exemplo. As investigações de Hamilton, no entanto, contribuíram significativamente para o desenvolvimento da Álgebra e a leitura de seus textos originais pode evidenciar a importância do recurso à História da Ciência para instrumentar a prática pedagógica, especialmente no que tange à Matemática e à Física.


This article examines the mathematical works of William Rowan Hamilton that led him to characterize certain mathematical objects named Quaternions, in the years between 1843 and 1866. Many expectations about practical applications of the Quaternions were posed, specially the challenge of synthesize the representation of scalar and vector magnitudes; howewer, few years later, these expectations were frustated, and new kinds of powerful instruments came out in mathematical scene, like tensors, for instance. Hamilton's researches, nevertheless, contributed vividly to Algebra's development, underlining the meaning of several algebrical themes. There is another reason to read Hamilton's works in their original form: exploring life and death of the Quaternions, the importance of History of Science becomes evident, in order to instruct and guide pedagogical actions, specially in mathematical and physical themes.


HISTÓRIA DA CIÊNCIA

Quaternions: sucessos e insucessos de um projeto de pesquisa

Sonia Maria Dion; Jesuína Lopes de Almeida Pacca; Nilson José Machado

RESUMO

Neste artigo, são examinadas as investigações do matemático William Rowan Hamilton que conduziram à caracterização de certos objetos matemáticos chamados Quaternions, entre 1843 e 1866. Embora tais objetos tenham gerado muitas expectativas de utilização, sobretudo no que se refere à síntese sugerida entre grandezas escalares e vetoriais, quase todas resultaram frustradas em relativamente pouco tempo, tendo entrado em cena outros instrumentos que se revelaram mais fecundos, como os tensores, por exemplo. As investigações de Hamilton, no entanto, contribuíram significativamente para o desenvolvimento da Álgebra e a leitura de seus textos originais pode evidenciar a importância do recurso à História da Ciência para instrumentar a prática pedagógica, especialmente no que tange à Matemática e à Física.

ABSTRACT

This article examines the mathematical works of William Rowan Hamilton that led him to characterize certain mathematical objects named Quaternions, in the years between 1843 and 1866. Many expectations about practical applications of the Quaternions were posed, specially the challenge of synthesize the representation of scalar and vector magnitudes; howewer, few years later, these expectations were frustated, and new kinds of powerful instruments came out in mathematical scene, like tensors, for instance. Hamilton's researches, nevertheless, contributed vividly to Algebra's development, underlining the meaning of several algebrical themes. There is another reason to read Hamilton's works in their original form: exploring life and death of the Quaternions, the importance of History of Science becomes evident, in order to instruct and guide pedagogical actions, specially in mathematical and physical themes.

NO QUE SE SEGUE serão examinadas as investigações do matemático William Rowan Hamilton (1805-1865), que conduziram à caracterização de certos objetos matemáticos chamados Quaternions. Embora tais objetos tenham, inicialmente, gerado muitas expectativas de aplicações, sobretudo pelas possibilidades de síntese que representavam, no tratamento de grandezas escalares e vetoriais, em pouco tempo as investigações em Matemática conduziram a outros rumos e outros objetos revelaram-se mais fecundos, aproximando o estudo dos Quaternions da análise de um desvio, ou de mera curiosidade histórica. Não obstante o aparente insucesso, as investigações de Hamilton constituíram contribuição significativa para o estudo dos números complexos e, em geral, para o desenvolvimento da Álgebra. A análise dos textos originais de Hamilton constitui ainda singular exemplo de como a História da Ciência pode fornecer subsídios para a estruturação da prática pedagógica, especialmente com relação à Matemática e à Física. Tais textos constituem excelente material para a análise da trajetória de um pesquisador em busca de solução para um problema, com suas dúvidas e incertezas, ao mesmo tempo em que delineiam uma lógica para a investigação que nem de longe pode ser identificada com a lógica da exposição de um conhecimento já sistematizado. Sua forma de pensar, sucessos e insucessos, as novidades introduzidas ampliando teorias existentes, concessões e violações a regras estabelecidas, feitas de modo extremamente criterioso, estão clara e didaticamente explícitas nesses textos.

Tomando como ponto de partida algumas preocupações de sua época Hamilton desenvolve pesquisas que o conduzem à elaboração de uma teoria cujos elementos centrais são expressões algébricas formadas por quatro elementos numéricos - os Quaternions -, sendo três termos imaginários e um real. Sua obra contém um relato vivo dessas pesquisas, dando conta de suas conquistas e de suas hesitações na criação de novos conceitos. Ao mesmo tempo em que mergulha na abstração matemática para articular estruturas com os novos elementos imaginados, procura inseri-los em teorias já estabelecidas. Ao longo desse percurso, parece apelar constantemente para a realidade física na busca de sugestões para progredir.

Nossa leitura do trabalho de Hamilton permitiu a compreensão mais nítida do significado de suas investigações durante a realização do próprio projeto, além de mostrar sua efetiva contribuição à Álgebra e ao estudo dos números complexos. Aproveitamos também para perscrutar sua obra em seu conteúdo epistemológico e pedagógico, procurando encontrar, a partir dessa leitura, subsídios para o ensino tanto da Matemática como da Física.

A Teoria dos Quaternions foi comunicada pela primeira vez durante uma reunião da Academia Irlandesa, realizada em 16 de outubro de 1843. Desse extenso trabalho Hamilton fez duas apresentações adicionais, uma publicada em 1853 e outra em 1866. Essas apresentações contêm diferentes interpretações para os Quaternions; neste trabalho vamos nos ater à segunda, na qual são vistos como produto de linhas orientadas.

Propomo-nos aqui a acompanhar um trecho das pesquisas de Hamilton, tendo como preocupação temática identificar alguns passos que levaram especificamente à concepção de um produto de dois vetores (o produto vetorial). Visando a contextualizar algumas preocupações que deram origem às suas pesquisas nesse campo, começamos por levantar alguns aspectos relativos às origens históricas do conceito de vetor. Em função deste objetivo, em vez de fazer um relato linear de tal desenvolvimento, preocupamo-nos em levantar algumas das barreiras conceituais que marcaram sua história.

Mais do que a preocupação de retratar a evolução do conceito de vetor, este artigo pretende fornecer um exemplo da possibilidade de se extrair da História da Ciência subsídios tanto para o aprofundamento da compreensão de um conteúdo, em termos de significados e dificuldades, quanto para a estruturação da própria prática pedagógica.

A evolução do conceito de vetor:

algumas dificuldades e progressos

em seu desenvolvimento

Uma primeira barreira no caminho seguido até a criação das entidades vetoriais esteve relacionada à dificuldade de aceitação de números negativos e de suas raízes. Nesse sentido, a crítica de Busset ao emprego desse tipo de número em um cálculo, numa data tão próxima como 1843, quando afirma sentir-se ainda chocado com a "existência de quantidades menores do que nada", pode revelar as dimensões das dificuldades envolvidas e também indicar alguma pista quanto à sua natureza.

Por trás dessas dificuldades está a concepção substancialista de número, ou seja, a idéia de número ligada à de grandezas mensuráveis; uma das evidências para isso é o fato de a palavra nada aparecer em lugar de zero em argumentos associados ao tema.

Em sua origem, remontando ao pensamento grego, a palavra número dizia respeito aos hoje chamados números naturais, os quais, de fato, permitem ligação intuitiva e imediata com a idéia de medida. Os números podiam ser representados como segmentos de reta, seus quadrados como áreas, seus cubos como volumes. De acordo com esse tipo de pensamento, números negativos realmente não fariam sentido e menos ainda suas raízes. Se a raiz quadrada de um número representa o comprimento do lado de um quadrado cuja área é igual ao número, que significado teria a raiz quadrada de um número negativo?

É apenas em 1545, com o aparecimento do método de Cardano, relacionado à solução de equações de terceiro e quarto graus, que os números negativos e suas raízes passam, pela primeira vez, a fazer parte do corpo de uma teoria. No entanto, permaneciam as dificuldades de compreensão: o próprio Cardano chamava-os de numeri ficti e às suas raízes de sofísticas.

A representação dos números reais através de pontos sobre uma reta, que se tornou comum a partir do trabalho de Girard (1590-1635), contribuiu para dar um sentido aos negativos na medida que torna possível um tipo de visualização para tais números: nesta forma de representação, números negativos são vistos como comprimentos de segmentos localizados no lado oposto àquele no qual se representam os positivos. Já no caso de suas raízes quadradas, que constituiriam os números imaginários, mesmo a obtenção de uma forma de representação encontrou enormes barreiras, só definitivamente vencidas ao longo do século XIX.

Uma maneira de se representar os imaginários puros foi proposta por Wallis (1616-1703), mas passou desapercebida. Wessel, em 1798, incorpora essa representação, segundo a qual imaginários são localizados em pontos sobre uma reta perpendicular à que contém os reais, mas introduz também uma idéia inovadora: conjugando reais e imaginários, os números chamados complexos passam a ser vistos como coordenadas de um ponto no plano. Outra contribuição visando a conferir certa realidade aos números imaginários foi dada por Argand (1768-1822). Adotando a mesma proposta de representação, Argand preocupa-se em dar-lhe um significado geométrico, interpretando a raiz quadrada de -1 como uma média de posição, ao dividir pela metade a distância que os números +1 e -1 representam sobre a reta dos reais.

Que a procura de um significado para tais números constituía, ainda nessa época, preocupação muito forte, revela-se a partir de um comentário do próprio Argand, feito em 1806, a propósito dessa forma de representação: "as quantidades imaginárias são, então, tão reais quanto as quantidades positivas e as quantidades negativas, não diferindo destas a não ser pela posição, que é perpendicular à destas últimas" (Lounis, 1990).

Por outro lado, um comentário feito pelo editor dos Annales de Mathématiques de Gergonne a propósito do trabalho de Argand, revela a grande contribuição que essa forma de representação deu ao entendimento dos números complexos: "as pesquisas de Argand esclareceram de uma forma inesperada os mistérios que reinavam há longo tempo a respeito da verdadeira natureza das quantidades negativas e das quantidades imaginárias ... a partir dessa representação sensível aos olhos, percebe-se que a impossibilidade das quantidades negativas e imaginárias é apenas aparente" (Lounis, 1990).

Vejamos a seguir, em que a criação dessa forma de representação significou também uma contribuição para a elaboração histórica do conceito de vetor.

Interpretando-se números complexos como pontos num plano, o segmento que leva da origem dos eixos até esse ponto consegue representar uma informação quanto a um comprimento, ao mesmo tempo em que especifica uma direção. A partir daí, a utilização das regras para operação com tais números, associada a essa forma de representação geométrica, torna possível a operação algébrica com direções. Incorporar a direção no cálculo com números era um outro problema, ainda não completamente resolvido, ainda que Stevin, já no século XVI, tivesse criado uma operação de caráter geométrico envolvendo direções, precursora do que hoje se conhece como regra do paralelogramo, e que permitia a obtenção da soma de segmentos orientados.

Consideremos agora o caso da multiplicação de números complexos e uma interpretação que ela permite, a partir da representação geométrica para esses números.

A representação geométrica de números reais como pontos numa reta orientada, associando-se a cada número um segmento com origem no zero e extremidade no ponto que o representa, permite a descrição de rotações de 180°. Multiplicar um número real por -1, por exemplo, representa uma inversão da posição do mesmo na reta numerada, o que equivale a girar de meia circunferência o segmento que o representa.

Já com os complexos é possível descrever uma rotação qualquer no plano. Multiplicar um número real por por exemplo, pode ser interpretado como conferir ao segmento original uma rotação de 90º. Associando-se a números complexos quaisquer pontos no plano, é possível associar a diferentes números, diferentes direções; a partir daí, multiplicar dois números conduz a um terceiro perfeitamente definido, tanto em módulo como em direção, sendo possível, dessa forma, atribuir ao produto o significado de uma rotação no plano, composta pelas rotações parciais dos dois primeiros e representada no mesmo plano.

Construída essa forma de representação para os números complexos, operações com direção já podiam ser realizadas e interpretadas: multiplicar podia significar também girar. É nesse sentido, de possibilidade de operacionalização para entidades de natureza mista, envolvendo simultaneamente número e direção, que reside talvez a maior contribuição dessa forma de representação para a evolução do conceito de vetor, embora restrita ainda a duas dimensões.

Segundo o próprio Hamilton, "inventar uma álgebra que fizesse pelas rotações em espaço de três dimensões o que os números complexos, ou seus pares fazem pelas rotações em espaço de duas dimensões ..." era agora um problema a ser resolvido; tal meta tornou-se, de acordo com Bell (1937), o objetivo principal de toda a investigação de Hamilton.

Os trabalhos de Hamilton desenvolvem-se em época na qual uma modificação na caracterização dos objetos da Matemática estava em andamento. Rompendo com a vinculação do número à grandeza, a Álgebra muda também suas preocupações: seu objeto passa a ser as propriedades, as leis de combinação entre os elementos. É nesse contexto de mudança que a noção de vetor vem a se estabelecer definitivamente, tornando-se, na Matemática, o índice e o instrumento de um estilo, a que Granger (1974) chama "estilo vetorial".

Um exame dos traços que, segundo Granger, caracterizam o estilo vetorial, revela completa inversão com relação ao modo matemático de pensar, que partia da realidade empírica para a construção de seus objetos: objetos matemáticos são agora constituídos por feixes de relações. A partir dessa perspectiva, o que determina a natureza de um elemento são as regras de combinação daqueles tomados como base de construção. E, tendo natureza simbólica, a intuição matemática liberta-se um pouco mais da realidade empírica; segundo Granger (1974), "a intuição certamente continua a desempenhar um papel na manipulação efetiva dos seres matemáticos mas é, a partir daí, dissociada de seu elemento métrico".

Dentro desse espírito, é Hamilton quem propõe "a primeira grande teoria de caráter vetorial" (Lounis, 1990). No item seguinte, examinaremos alguns passos dessa elaboração, a partir do recorte correspondente à criação do produto vetorial.

A invenção dos Quaternions:

à procura de um caminho

de extensão do plano para o espaço

"As dificuldades que muitas pessoas têm sentido em relação à doutrina das Quantidades Negativas e Imaginárias em Álgebra fizeram com que eu, desde há muito, concentrasse minha atenção nelas ..." (Hamilton, 1967:117). É dessa forma que Hamilton expõe seu problema de partida, no prefácio às Lectures on Quaternions. Trechos como este revelam que ele partilhava das preocupações da época com respeito à atribuição de um significado aos números imaginários.

Representando os números complexos como de pares de números reais, mas preservando as mesmas regras que regiam seu produto quando expressos na forma de soma de dois termos, propõe a seguinte equação:

(0,1)2 = (0,1)(0,1) = (-1,0) = -1

Empregando o que vê como "uma extensão natural" de regras já estabelecidas para operações com números ou pelo menos "uma conseqüência destas regras, ou das concepções que as sugeriram", ele toma o par (0,1) como representando , o que significa expressar a unidade imaginária em termos de números reais.

Esse resultado revela-se para Hamilton (1967:122) como "uma clara interpretação ... sem que nada de obscuro, impossível ou imaginário estivesse de alguma forma envolvido em sua concepção".

Outra preocupação que dirige suas pesquisas é expressa da seguinte forma: "havia, entretanto um motivo que me induziu a atribuir uma importância especial à consideração de tripletos ... Este era o desejo de conectar, de uma forma nova e útil (ou pelo menos interessante), cálculo com geometria, através de uma extensão ainda não descoberta, ao espaço de três dimensões, de um método de construção ou representação, que foi empregado com sucesso por Mr. Warren ... para operações com linhas retas num plano ..." (p. 135).

Hamilton refere-se essencialmente à representação geométrica dos números complexos; numa nota ao pé da página faz referência específica ao trabalho de Argand, já citado neste artigo. Ele salta das duplas para tripletos com um objetivo claro e definido. Usando de uma analogia, começa vendo o espaço como uma extensão do plano definido pelos números complexos: "seria natural conceber que deva existir um outro tipo de raiz de -1, perpendicular ao plano" (p. 103).

No plano, uma linha podia ser descrita como a + bi, com a e b reais; analogamente, no espaço seria representada como a + bi + cj, onde j indicaria um segundo eixo imaginário. Hamilton propõe-se, então, a investigar o significado do produto dessas linhas, e ao fazê-lo, procura ser coerente com as regras para multiplicação até então aceitas.

De acordo com essas regras, tem-se como resultado da multiplicação de duas linhas, indicadas por a + bi + cj e x + yi + zj, a seguinte expressão:

(ax - by - cz) + i(ay + bx) + j(az + cx) + ij(bz + cy)

Coerentemente com a forma por ele proposta inicialmente, os três primeiros termos deveriam estar associados às coordenadas espaciais desta nova linha resultante do produto. Qual seria, então, o significado do quarto termo, em ij ? Nas palavras do próprio Hamilton, "eu não percebi de imediato, o que fazer com esse produto ij" (p. 142).

Procurando resolver esse problema, ele parte de um caso particular, aquele em que as coordenadas b,c são proporcionais a y,z, de tal forma que as linhas fatores encontrem-se em um mesmo plano, contendo o eixo x o que, na verdade, significa uma espécie de redução ao caso do plano complexo. Essa escolha permitiu a comparação com resultados já conhecidos, referentes à multiplicação no plano, que o levaram à seguinte conclusão: "aqui, o quarto termo ij(bz + cy), pareceu-me ser simplesmente supérfluo: o que me induziu por um momento a pensar que talvez o produto ij devesse ser visto como igual a zero" (p. 143).

Ele percebeu, porém, que havia outra possibilidade de se chegar ao mesmo resultado: "... esta soma desapareceria, sob a presente condição bz = cy, se fizéssemos o que pareceu uma suposição menos radical, ou seja, a suposição (para a qual minhas anteriores especulações sobre conjuntos haviam me preparado) de que ij = -ji ..." (p. 143).

O abandono da propriedade comutativa caracteriza um momento decisivo de seu trabalho. De certa forma, em suas pesquisas anteriores, ao trabalhar com pares de números, Hamilton já havia se deparado com a possibilidade de um tipo de não- comutatividade, pois multiplicar um par (a,b) pela unidade primária, o par (1,0), ou pela unidade secundária, o par (0,1) conduzia a diferentes resultados.

Prosseguindo em suas pesquisas, passa a investigar o caso mais geral do produto de duas linhas que não satisfaçam à condição b/y = c/z; nesse caso, diferentemente do anterior, não há possibilidade de a diferença bz - cy se anular. Fazendo já uso da não-comutatividade e atribuindo um nome ao produto ij, ele chega, então, à seguinte expressão:

(ax - by - cz) + i(ay + bx) + j(az + cx) + k(bz - cy)

Seria este quarto termo, que contraria a notação inicialmente escolhida, realmente essencial?

Empregando o princípio que estabelece que o módulo do produto de dois fatores deve ser igual ao produto dos módulos desses fatores, Hamilton testa e conclui pela efetiva necessidade da presença do quarto termo na expressão acima. Qual seria então a natureza deste novo coeficiente, k ? "Isto levou-me a conceber que, em vez de procurar nos confinar a tripletos ... deveríamos encará-los apenas como formas imperfeitas de Quaternions, como a + ib + jc + kd, ou (a, b, c, d), o símbolo k indicando um novo tipo de operador unitário ..." (p. 144).

Por necessidade de coerência com o princípio relativo aos módulos, esse novo termo deveria ser unitário; quanto a sua natureza, poderia ser revelada a partir de pesquisas quanto ao valor de seu quadrado que, conforme fosse 1 ou -1, colocaria esse coeficiente na categoria de real ou imaginário. Hamilton deduz, então, o seguinte valor para k2:

k2 = ij.ij = -ii.jj = -i2.j2 = -(-1). (-1) = -1

Tendo mesma natureza que os termos i e j, o coeficiente k assume, então, o papel de indicador da direção de um terceiro eixo, conduzindo à passagem do plano ao espaço.

A partir daí, Hamilton propõe nova representação para linhas no espaço: "Eu percebi que, se em vez de representar uma linha por um tripleto da forma x + iy + jz, concordássemos em representá-la por esta outra forma trinomial, ix + jy + kz nós poderíamos então expressar o desejado produto de duas linhas no espaço por um Quaternion, cujos componentes possuem interpretações geométricas muito simples ..." (p. 144).

Com essa representação, o produto de duas linhas no espaço conduz a um elemento, de quatro termos, sendo um deles real e os outros três imaginários, aos quais estão associados os três eixos espaciais i, j e k. É a este novo elemento, produto de duas linhas, que ele atribui o nome de Quaternion.

Trata-se, portanto, de um produto misto, a parte real representando um número e a imaginária sendo interpretada como uma linha no espaço tridimensional; a parte espacial, tomada separadamente, foi chamada de produto vetorial (Lanczos, 1967).

Conclusões

Os textos originais de Hamilton constituem material de pesquisa muito rico pois a forma como ele se expõe permite que se compreenda quais eram suas preocupações iniciais, quais os seus objetivos e qual o método de investigação que utilizava. Acompanhando seu percurso à medida que os problemas surgiam e eram resolvidos pudemos perceber, por exemplo, as circunstâncias em que decide transgredir as regras estabelecidas e a grande tentativa de síntese que seu trabalho representou, no esforço feito para incorporar um objeto misto, número e vetor, nas teorias algébricas associadas às concepções vigentes.

O próprio estabelecimento do conceito de vetor deu-se através de um caminho bastante longo e de um processo que exigiu a superação de enormes barreiras conceituais. Dentre estas, a ultrapassagem da concepção substancialista de número, refletida nas dificuldades de aceitação de quantidades negativas e imaginárias, parece ter sido um passo decisivo.

O novo conceito foi acompanhado da criação de uma representação geométrica para os números complexos. Tal representação, além de proporcionar uma forma de visualização para quantidades antes vistas como misteriosas, fornece também uma base que permite atribuir significado às operações com esses números. A partir de sua invenção, a multiplicação de números complexos dá conta do produto de segmentos orientados, cujo resultado pode ser interpretado como uma rotação no plano. Essa possibilidade de operacionalização, por sua vez, contribuiu para que entidades de natureza mista, número-direção, se estabelecessem definitivamente, embora ainda restritas a uma natureza bidimensional.

Por outro lado, o esforço na procura de ampliação desse formalismo para o espaço, refletido no trabalho de Hamilton, embora envolvesse o abandono de uma propriedade estabelecida, a comutatividade do produto, ocorreu, basicamente às custas de tentativas de aproximações que procuravam preservar, no espaço, as regras para as correspondentes operações no plano. Suas pesquisas revelam claramente a disposição de não perder uma base segura de elementos já conhecidos, buscando, ao mesmo tempo, uma extensão suave para domínios mais amplos.

Embora possa ser visto como exemplo de um projeto que não atingiu seus objetivos, pois aquilo que Hamilton considerava como um produto maior, a Teoria dos Quaternions, não teve continuidade e foi ofuscada por outros desenvolvimentos, como o do cálculo tensorial, alguns de seus resultados intermediários passaram a integrar o conjunto das ferramentas da Matemática e da Física, como é o caso dos produtos de vetores - escalar e vetorial. Tratam-se de contribuições singelas, que passaram a impregnar tão decisivamente a álgebra dos vetores que, muitas vezes, sequer são associadas aos trabalhos de Hamilton.

Independentemente da teoria dos Quaternions ter ou não sido bem-sucedida, a leitura dos textos originais de Hamilton, com seu estilo marcante, despojado, humilde, sincero, revela o quanto é possível extrair do recurso à História da Ciência, na medida que ela possibilita um contato com o conhecimento em fase de produção, o que pode proporcionar tanto uma compreensão mais nítida do mesmo, quanto dos elementos fundamentais para seu ensino.

Exemplo importante de tal dimensão pedagógica das investigações de Hamilton é o reconhecimento, em seu percurso, de muitas das dificuldades epistemológicas presentes nos desenvolvimentos escolares do conceito de vetor., um conceito que é amplamente utilizado no ensino da Física nos cursos secundários. Conhecer esses elementos, que constituíram conteúdos significativos da teoria na utrapassagem de barreiras epistemológicas, parece ser de fundamental relevância no planejamento de atividades e seqüências pedagógicas.

Pesquisas atuais na área de ensino da Física revelam que os indivíduos efetivamente têm dificuldades em compreender conceitos de natureza vetorial; tais dificuldades podem, muitas vezes, ser associadas aos nós que precisaram ser desatados na concepção da teoria hamiltoniana. Lounis, por exemplo, cita "as dificuldades que os alunos encontram para se desfazerem de uma leitura numérica, ultrapassando largamente seu domínio de validade, a qual indica uma conotação substancialista", dificuldade que, por sua vez, esteve também por trás do estabelecimento do conceito de vetor na História. Também Argand, por exemplo, discute a respeito do "mal entendido que ... consiste em confundir as retas dotadas de grandeza e posição ... com sua grandeza absoluta ou comprimento" (Lounis, 1990).

A identificação e a obtenção de clareza quanto à natureza das dificuldades envolvidas na própria criação do conceito que o acesso à sua produção histórica proporciona pode, por sua vez, influenciar a maneira como são encaradas as dificuldades experimentadas pelos estudantes na aprendizagem do conteúdo escolar correspondente.

Poderíamos citar, como exemplo, o fato de que, numa situação de ensino escolar, nem sempre aparece a preocupação em atribuir um significado ao formalismo empregado, em termos de ligação com a realidade ou com conhecimentos anteriores mais próximos do aluno. Pudemos perceber, entretanto, que, na construção histórica desse conhecimento, Hamilton revela continuamente sua preocupação em atribuir um sentido às grandezas com as quais trabalhava, recorrendo para isso à correspondência com elementos físicos e analogias com conhecimentos já estabelecidos.

Vimos também que o formalismo só adquiriu seu pleno sentido quando passou a dar conta dos fenômenos em três dimensões. Isso sugere-nos, neste caso particular, que seria função da Escola, tanto no que diz respeito aos conteúdos da Física como aos da Matemática, estimular uma aproximação plano-espaço, tratando os conteúdos escolares de forma a permitir uma transição constante entre dimensões e valorizando melhor o papel das relações entre os diferentes conceitos no plano e no espaço.

Especialmente no que diz respeito às concepções inadequadas que os alunos apresentam, certamente será mais fácil, para um professor atento e bem-informado a respeito do conteúdo específico e de seu significado, lidar com essas concepções de forma a contribuir para que ocorra uma mudança conceitual na direção da teoria cientificamente aceita.

Nesse sentido, a leitura de textos originais, com atenção para os novos conceitos em construção, os sucessos e insucessos ao longo dos tortuosos caminhos da investigação - caminhos que certamente se fazem ao caminhar -, abre valiosas perspectivas para uma intervenção pedagógica que respeita as concepções do senso comum e que é capaz de planejar situações que facilitam a aprendizagem significativa do conteúdo em questão, na medida que se tem mais clareza dos objetivos perseguidos e se dá conta da natureza das dificuldades conceituais a serem enfrentadas.

Sonia Maria Dion é doutoranda no Programa de Pós-Graduação em Educação da Faculdade de Educação da USP na área de Ensino de Ciências e Matemática.

Jesuína Lopes de Almeida Pacca é professora do Instituto de Física da USP.

Nílson José Machado é professor da Faculdade de Educação da USP e professor colaborador pleno no Programa Educação para a Cidadania do IEA-USP.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    14 Jun 2005
  • Data do Fascículo
    Dez 1995
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