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Homenageando Florestan Fernandes

PRESENÇA DE FLORESTAN FERNANDES

Homenageando Florestan Fernandes

Alfredo Bosi

CUMPRE-ME DIZER QUE, mal chegou ao Instituto a notícia da morte de Florestan Fernandes, no dia 10 de agosto último, já se concebeu a idéia de prestar-lhe, no mais breve tempo possível, a homenagem pública que lhe devemos todos como professores da Universidade de São Paulo.

Desde a primeira hora, tivemos o propósito de reunir os seus familiares e amigos, os seus companheiros de faculdade e de luta política, os seus discípulos e admiradores para ouvi-los e registrar a sua palavra compondo um dossiê para a revista ESTUDOS AVANÇADOS.

O encontro de hoje responde a esse projeto de dar voz a testemunhas ilustres e privilegiadas, certamente não as únicas, pois os seus leitores formam legião, mas algumas dentre as mais representativas e capazes de nos transmitir o seu sentimento e o seu pensamento sobre a pessoa e a obra de Florestan Fernandes.

Sei que, formalmente falando, o meu papel aqui é de ouvir, fazer falar e pouco ou nada dizer. E a praxe dos apresentadores. Mas, tratando-se de Florestan, a praxe é romper com toda praxe. Mas prometo ser breve.

Entre os homens e as suas instituições dá-se um jogo de mútua dependência e mútua transcendência.

Hoje, passados 60 anos da fundação da USP e, particularmente, da sua alma mater, a Faculdade de Filosofia, não podemos conceber Florestan sem a sua universidade, nem a USP sem a palavra e a ação de Florestan. A universidade formou o núcleo essencial da sua cultura sociológica e antropológica; mas, em compensação dele recebeu o selo dos valores éticos e políticos de independência e resistência. Quando já cassado, isto é, aposentado compulsoriamente, Florestan cobrava da USP uma posição mais radical com relação à ditadura, era o militante que parecia transcender à instituição; mas, fosse alguém acercar-se do professor Florestan para atacar ou denegrir a sua universidade, dele recebia um enérgico contra-vapor, e o crítico temerário tinha que ouvir uma das afirmações prediletas do mestre: "A fundação da Faculdade de Filosofia como coração da USP foi um fato muito mais importante para o Brasil do que a semana de Arte Moderna de 22". Nesse momento e na sua perspectiva histórica, a universidade o transcendia.

Essa gangorra de altos e baixos em que se balançava o seu conceito de universidade compreende-se melhor quando se analisa a sua figura de intelectual que quis e conseguiu ser militante e estudioso em tempo integral; e que assumiu o papel de Dom Quixote da sociologia crítica em tempos, adversos tanto às ciências sociais quanto à resistência política. Conformar-se era para ele cair no conformismo que é, como se sabe, um efeito corrente da lei da gravidade no campo moral; mas o seu realismo, porque era visceralmente dialético, não podia renunciar a uma boa dose de idealismo. Assim, ele pretendeu perfazer a quadratura do círculo e fazer com que a instituição universitária servisse, como ele, em tempo integral, não aos intelectuais que dela vivem ou nela vegetam, mas àqueles que, sabidamente, não tiveram nem têm acesso aos seus bens; aqueles que ele gostava de nomear, com uma forte expressão latinoamericana, los de abajo, título de um belo romance social do mexicano Arzuela.

Essa coerência inquebrantável deu-lhe uma fisionomia que não se esquece. "A partir dos trinta anos somos responsáveis pelo nosso rosto", disse Albert Camus. Lembrando essa palavra terrível não é sem angústia que a gente se olha ao espelho.

No caso de Florestan, os ideais defendidos com intransigente pureza fariam supor, aos que não o tratavam de perto, uma fisionomia contraída e endurecida pelos embates e pelas não raras derrotas. Puro engano. Chegando perto, via-se que os traços predominantes eram doces, o sorriso jovial, próprio dos que lutam sem aspirar a qualquer recompensa pessoal; e o brilho dos olhos revelava o caráter animoso voltado antes para as esperanças do futuro do que para as decepções do passado. E o futuro tinha para ele um belo nome: Socialismo com Liberdade.

É esse o homem e é essa a obra que os nossos convidados homenageiam neste encontro.

Alfredo Bosi é professor de Literatura Brasileira na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP e editor da revista Estudos Avançados. É autor de Dialética da colonização (Companhia das Letras, 1994), entre outros livros.

Discurso feito pelo autor na abertura do Ato Presença de Florestan Fernandes, organizado pelo Instituto de Estudos Avançados na Sala do Conselho Universitário da USP em 5 de outubro de 1995. Compuseram a mesa o reitor da USP, Flávio Fava de Moraes, o reitor da Unicamp, José Martins Filho, o ministro da Cultura, Francisco Weffort, o secretário estadual da Cultura de São Paulo, Marcos Mendonça e os professores Antônio Candido e Boaventura de Souza Santos.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    06 Jun 2005
  • Data do Fascículo
    Abr 1996
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