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Auto-retrato num espelho convexo

CRIAÇÃO / POESIA

Auto-retrato num espelho convexo

Tradução de Viviana Bosi Concagh

Como fez Parmigianino, a mão direita

Maior do que a cabeça, lançada contra o espectador

E desviando-se suavemente, como a proteger

O que anuncia. Alguns caixilhos de chumbo, velhas vigas,

Peliça, musselina pregueada, um anel de coral, convergem

Num movimento apoiando o rosto, que flutua

Para cá e para lá tal qual a mão

Salvo por estar em repouso. É o que está

Sequestrado. Diz Vasari: "Francesco um dia resolveu

10

Pintar seu próprio retrato, mirando a si mesmo para esse fim,

Num espelho convexo, como os que usam os barbeiros...

Então mandou um torneador fazer

Uma esfera de madeira e, tendo-a dividido ao meio e

Reduzido ao tamanho do espelho, pôs-se

Com grande arte a copiar tudo o que via no vidro",

Principalmente seu reflexo, do qual o retrato

É o reflexo em segundo grau.

O espelho escolheu refletir apenas o que ele via

O que bastou ao seu desígnio: a sua imagem

20

Vitrificada, embalsamada, projetada num ângulo de 180 graus.

A hora do dia ou a densidade da luz

Aderindo à face conserva-a

Vívida e intacta em onda recorrente

De chegada. A alma se instala.

Mas até onde ela pode nadar para fora através dos olhos

E ainda retornar ao ninho a salvo? A superfície

Do espelho sendo convexa, a distância aumenta

Significativamente; isto é, o bastante para demonstrar

Que a alma é um cativo, tratado com humanidade, mantido

30

Em suspenso, incapaz de avançar muito além

Do teu olhar quando ele intercepta o quadro.

O papa Clemente e sua corte ficaram "estupefatos",

Segundo Vasari, e prometeram uma encomenda

Que nunca se materializou. A alma tem de ficar onde está,

Embora inquieta, ouvindo pingos de chuva na vidraça,

O suspirar das folhas de outono açoitadas pelo vento,

Ansiando por ser livre, lá fora, mas deve ficar

Posando neste lugar. Deve mover-se

O mínimo possível. Isto é o que diz o retrato.

40

Mas há naquele olhar intenso um misto

De ternura, divertimento e pesar, tão poderoso

Em sua contenção que não se pode olhar por muito tempo.

O segredo é óbvio demais. Faz pungir de compaixão,

E lágrimas quentes jorrarem: que a alma não é uma alma,

Não tem segredo, é pequena, e cabe

Em seu oco perfeitamente: seu lugar, nosso momento de atenção.

Essa é a melodia mas não há palavras.

As palavras são apenas especulação

(Do latim speculum, espelho):

50

Procuram e não conseguem encontrar o sentido da música.

Vemos apenas posturas do sonho,

Cavalgando o movimento que impulsiona o rosto

À vista sob os céus noturnos, sem

Falso desalinho como prova de autenticidade.

Mas é vida englobada.

Seria bom estender a mão

Para fora do globo, porém sua dimensão,

O que o sustenta, não o permite.

Sem dúvida é isto, não o reflexo

60

De esconder algo, que faz a mão avultar enorme

Enquanto recua ligeiramente. Não há maneira

De fazê-la plana como parte de um muro:

Tem de ajustar-se ao segmento de um círculo,

Vagando lentamente de volta ao corpo do qual parece

Uma parte tão improvável, para cercar e escorar o rosto

Onde o esforço dessa condição se lê

Como pontinha de um sorriso, faísca

Ou estrela que não se está certo de ter visto

Conforme a escuridão avança. Uma luz perversa cujo

70

Imperativo de sutileza condena de antemão sua

Presunção de iluminar: insignificante porém intencional.

Francesco, tua mão é grande o bastante

Para destroçar a esfera, e grande demais,

Ao que parece, para tecer redes delicadas

Que apenas atestam seu maior encarceramento.

(Grande, mas não grosseira, simplesmente em outra escala,

Como uma baleia cochilando no fundo do mar

Em relação ao diminuto, arrogante navio

Na superfície.) Mas teus olhos proclamam

80

Que tudo é superfície. A superfície é o que está ali

E nada pode existir exceto o que está ali.

Não há recessos na sala, somente nichos,

E a janela não importa muito, ou aquela

Fenda de janela ou espelho à direita, nem sequer

Como indicador da temperatura, que em francês é

Le temps, a palavra para tempo, e que

Segue um curso onde as mudanças são meros

Traços do todo. O todo é estável dentro da

Instabilidade, um globo como o nosso, pousado

90

Sobre um pedestal de vácuo, uma bola de pingue-pongue

Segura sobre seu repuxo de água.

E assim como não há palavras para a superfície, isto é,

Nenhuma palavra para dizer o que ela realmente é, que ela não é

Superficial mas um âmago visível, então não há

Saída para o problema de pathos vs. experiência.

Permanecerás, rebelde, sereno, em

Teu gesto que não é abraço nem advertência

Mas que contém algo de ambos em pura

Afirmação que nada afirma.

100

O balão estoura, a atenção

Desvia-se, lenta. Nuvens

na poça d'água revolvem-se em fragmentos serrilhados.

Penso nos amigos

Que vieram me ver, em como foi

Ontem. Uma inclinação peculiar

Da memória que se intromete no modelo sonhador

No silêncio do estúdio enquanto ele pensa

Em erguer o lápis até o auto-retrato.

Quantas pessoas vieram e ficaram um certo tempo,

110

Pronunciaram falas claras ou obscuras que se tornaram parte de ti

Como a luz atrás da névoa e da areia levadas pelo vento,

Filtrada e alterada por elas, até que já não resta

Nenhuma parte que sejas tu com certeza. Estas vozes ao anoitecer

Contaram-te tudo e ainda a estória continua

Na forma de memórias depositadas em blocos

Irregulares de cristal. De quem é a mão curvada que controla,

Francesco, a roda das estações e os pensamentos

Que descascam e se evolam rápidos arfantes

Como as últimas folhas teimosas arrancadas

120

De galhos úmidos? Eu vejo nisso apenas o caos

De teu espelho redondo que organiza tudo

À volta da estrela guia de teus olhos que estão vazios,

Nada sabem, sonham mas nada revelam.

Eu sinto o carrossel começando lento

E indo cada vez mais rápido: mesa, papéis, livros,

Fotografias de amigos, a janela e as árvores

Fundindo-se numa faixa neutra que me envolve

Por todos os lados, em toda parte onde eu olhe.

E não posso explicar a ação de nivelamento,

130

Por que tudo haveria de reduzir-se até virar uma

Substância uniforme, um magma de interiores.

Meu guia nesses assuntos é teu eu,

Firme, oblíquo, aceitando tudo com o mesmo

Espectro de sorriso, e ao acelerar-se o tempo, de forma que logo é

Muito tarde, eu consigo apenas ver a saída reta,

A distância entre nós. Tempos atrás,

Os sinais disseminados diziam alguma coisa,

Os pequenos acidentes e prazeres

Do dia à medida que passava sem graça,

140

Uma dona de casa fazendo suas tarefas. Impossível agora

Restaurar estas propriedades no borrão prateado que é

O registro do que realizaste ao te sentares

"Com grande arte para copiar tudo o que vias no espelho"

A fim de aperfeiçoar e podar o extrínseco

Para sempre. No círculo de tuas intenções alguns esteios

Permanecem que perpetuam o encanto do eu pelo eu:

Brilhos nos olhos, musselina, coral. Não importa,

Porque essas coisas são tal como ainda hoje

Antes que a nossa sombra se espraiasse

150

De seu campo em pensamentos de amanhã.

Amanhã é fácil, mas hoje é inexplorado,

Desolado, relutante como toda paisagem

Em ceder as leis de perspectiva que existem

Afinal, apenas para a profunda desconfiança

Do pintor, um fraco instrumento, embora

Necessário. É claro que algumas coisas

São possíveis, é o que sabe, mas não sabe

Quais. Algum dia tentaremos

Fazer tantas coisas quanto possível

160

E talvez tenhamos êxito num punhado

Delas, mas isso não terá nada

A ver com o que está prometido hoje, essa

Paisagem arrebatada de nós até desaparecer

No horizonte. Hoje basta uma capa lustrosa

Para manter a suposição de promessas juntas

Num só pedaço de superfície, deixando-nos ir embora

Para casa de forma que possibilidades

Até mais fortes possam continuar

Intactas sem serem testadas. Na verdade,

170

A pele do quarto-bolha é tão resistente quanto

Ovos de réptil; tudo é "programado" ali

Na ordem prevista: mais e mais vai sendo incluído

Sem alterar a soma, e assim como nos

Acostumamos a um ruído que nos

Mantinha acordados mas agora já não mais,

Também o quarto contém este fluxo como uma ampulheta

Sem variar em clima ou qualidade

(Exceto talvez para iluminar-se fria e quase

Invisívelmente, num foco que se aguça rumo à morte – voltaremos

180 A isso depois). O que deveria ser o vácuo de um sonho
Torna-se continuamente repleto, enquanto a fonte dos sonhos
É esgotada de forma que este sonho único
Possa crescer, florescer como uma rosa-de-cem-folhas,
Desafiando leis suntuárias, deixando-nos
Para despertar e tentar viver de novo no que
Agora tornou-se um cortiço. Sydney Freedberg em seu
Parmigianino diz: "O realismo neste retrato
Não mais produz uma verdade objetiva, mas uma bizarria....
No entanto sua distorção não gera 190 Um sentimento de desarmonia. ... As formas conservam
Uma forte proporção de beleza ideal," porque são
Alimentadas pelos nossos sonhos, tão inconsequentes, até que um dia,
Percebemos o buraco que deixaram. Agora a importância delas,
Se não seu significado, é evidente. Deveriam alimentar
Um sonho que as incluísse todas, à medida que são
Finalmente invertidas no espelho acumulador.
Pareciam estranhas porque não conseguíamos vê-las de fato
E nos damos conta disso só no ponto em que se esvaem
Como a onda a quebrar na rocha, abandonando 200

Sua forma num gesto que expressa aquela forma.

As figuras conservam uma forte proporção de beleza ideal

Ao alimentar-se em segredo de nossa idéia de distorção.

Por que sentir-se infeliz com essa situação, se

Os sonhos nos prolongam ao serem absorvidos?

Alguma coisa como viver acontece, um movimento

Do sonho para sua codificação.

Quando começo a esquecê-lo

Apresenta de novo seu estereótipo

Mas não é um estereótipo familiar, o rosto

210 Ancorado, livre dos riscos, pronto
Para abordar outros, "mais anjo do que homem" (Vasari).
Talvez um anjo se assemelhe a tudo
Que esquecemos, quero dizer, coisas
Esquecidas que não parecem familiares
Quando as encontramos de novo, indizivelmente perdidas,
E que uma vez foram nossas. Este seria o motivo
De se invadir a privacidade desse homem
"Dado à alquimia, mas cujo desejo
Aqui não foi examinar as sutilezas da arte 220 Com espírito distanciado, científico: desejava, através delas,
Partilhar a sensação de novidade e assombro com o espectador"
(Freedberg). Retratos posteriores, tais como o "Cavalheiro"
Nos Uffizi, o "Jovem Prelado" da Borghese e
A "Antea" de Nápoles resultam de tensões
Maneiristas, mas aqui, como assinala Freedberg,
A surpresa, a tensão, estão no conceito
Mais do que na sua realização.
A consonância da Alta Renascença
Está presente, embora distorcida pelo espelho. 230 A novidade é o extremo cuidado em representar
As veleidades da superfície refletora arredondada
(É o primeiro retrato em espelho),
De modo que poderias ser enganado por um momento
Antes de perceber que o reflexo
Não é o teu. Te sentes então como uma dessas
Personagens de Hoffmann que foram privadas
De reflexo, exceto que todo o meu eu
Parece estar suplantado pela estrita
Alteridade do pintor em seu 240 Outro aposento. Nós o surpreendemos
Ao trabalho, mas não, é ele quem nos surpreendeu
Enquanto trabalha. O quadro está quase terminado,
A surpresa quase no fim, como quando olhamos para fora,
Sobressaltados por uma nevada que ainda agora vai
Terminando em salpicos e brilhos de neve.
Aconteceu enquanto estavas dentro, adormecido,
E não há razão por que deverias ter
Ficado acordado, exceto que o dia
Está acabando e será difícil para ti 250

Conseguir dormir esta noite, ao menos até bem tarde.

A sombra da cidade injeta sua própria

Urgência: Roma onde Francesco

Trabalhava durante o Saque: suas invenções

Assombraram os soldados que invadiram sua casa;

Decidiram poupar sua vida, mas ele saiu de lá logo depois;

Viena, onde hoje está o quadro, onde

Eu o vi com Pierre no verão de 1959; Nova York

Onde estou agora, que é um logaritmo

De outras cidades. Nossa paisagem

260 Vibra com filiações, vaivéns:
Os negócios são conduzidos por olhares, gestos,
Rumores. É uma outra vida para a cidade,
O suporte do espelho de um
Estúdio não identificado mas desenhado com precisão. Quer
Sugar a vida do estúdio, reduzir
Seu espaço mapeado a decretos, insulá-lo.
Essa operação foi temporariamente protelada
Mas algo novo está a caminho, um novo preciosismo
No vento. Podes suportá-lo, 270 Francesco? És forte o bastante para isso?
Esse vento traz o que não conhece, é
Autopropulsor, cego, não tem noção
De si mesmo. É a inércia que, uma vez
Reconhecida, solapa toda atividade, pública ou secreta:
Sussurros da palavra que não pode ser compreendida
Mas sim sentida, um calafrio, um miasma
Expandindo-se ao longo dos cabos e penínsulas
De tuas nervuras e daí para os arquipélagos
E para o aéreo, lavado silêncio do mar aberto. 280 Este é o seu lado negativo. Seu lado positivo é
Fazer-te perceber a vida e as tensões
Que apenas pareciam ter-se ido, mas agora,
Com este novo estilo a questionar, vê-se que estão
Depressa saindo de moda. Se hão de tornar-se clássicos,
Precisam decidir de que lado estão.
Suas reticências têm minado
O cenário urbano, feito suas ambiguidades
Parecerem caprichosas e cansadas, passatempos de velho.
O que precisamos agora é este improvável 290 Provocador golpeando com os punhos as portas de um castelo
Atônito. Teu argumento, Francesco,
Começara a criar bolor visto que nenhuma resposta
Ou respostas lhe eram dadas. Se ele agora se dissolve
Em pó, isso significa apenas que seu tempo acabou
Faz já algum tempo, mas agora olha e escuta:
Pode ser que outra vida esteja armazenada aí
Em recessos que ninguém conhecia; que ela,
Não nós, seja a mudança; que na verdade sejamos ela
Se pudermos voltar a ela, reviver algo do jeito 300 Que parecia ser, volver nossos rostos para o globo quando ele se põe
E ainda nos sairmos bem:
Nervos normais, respiração normal. Já que é uma metáfora
Composta para nos incluir, somos parte dela e
Podemos viver nela como de fato temos feito,
Só que deixando nossas mentes abertas para um questionamento que
Vemos agora, não acontecerá por acaso
Mas de forma ordenada que não traz ameaça
A ninguém – o modo normal de fazer as coisas,
Como o crescer concêntrico dos dias 310

À volta de uma vida: corretamente, se pensares nisso.

Uma brisa como o virar de uma página

Traz de volta teu rosto: o momento

Tira um grande bocado da névoa

De agradável intuição que vem depois.

Trancar-se em seu lugar é "a própria morte",

Como disse Berg de uma frase na Nona de Mahler;

Ou, para citar Imogênia em Cimbelino, "Não pode

Haver na morte, pinçada mais pungente do que esta", pois,

Ainda que apenas exercício ou tática, carrega

320 O ímpeto de uma convicção que vinha crescendo.
O mero esquecimento não consegue removê-lo
Nem trazê-lo de volta o desejo, enquanto ele continuar sendo
O precipitado branco de seu sonho
No clima de suspiros lançados através de nosso mundo,
Um pano sobre uma gaiola. Mas com certeza
O que é belo assim o parece somente em relação a uma vida
Específica, experimentada ou não, canalizada em alguma forma
Embebida na nostalgia de um passado coletivo.
A luz submerge hoje com um entusiasmo 330 Que já conheci noutro lugar, e sabia por quê
Parecia significativo, e que outros se sentiram assim
Anos atrás. Continuo consultando
Este espelho que já não é meu
Em busca do máximo de vívido espaço vazio que
Me caiba neste momento. E o vaso está sempre cheio
Porque há apenas espaço suficiente
E nele se acomoda tudo. A amostra
Que se vê não deve ser tomada como sendo
Meramente isso, mas como tudo o que 340 Pode ser imaginado fora do tempo – não como um gesto
E sim como tudo, em estado assimilável, refinado.
Mas é pórtico de que, este universo
A voltear para dentro e para fora, para trás e para frente
Recusando-se a nos envolver e, ainda assim, a única
Coisa que podemos ver? O amor uma vez
Fez pender a balança, mas agora anda na sombra, invisível,
Embora misteriosamente presente, em algum lugar por aí.
Sabemos, porém, que ele não pode ser intercalado
Entre dois momentos adjacentes, que seus meandros 350 Não conduzem a lugar algum senão a afluentes além
E que estes desaguam numa vaga
Sensação de algo que não pode ser conhecido jamais
Ainda que pareça provável que cada um de nós
Saiba o que é e seja capaz de
Comunicá-lo ao outro. Mas o olhar
Que alguns exibem como sinal dá vontade de
Avançar ignorando a ingenuidade
Aparente da tentativa, sem se importar
Que ninguém esteja escutando, pois que a luz 360 Foi acesa de uma vez para sempre nos olhos deles
E está presente, inalterada, uma anomalia permanente,
Desperta e silenciosa. À primeira vista,
Não há razão especial para que essa luz
Seja focalizada pelo amor, ou para que
A cidade caindo com seus belos subúrbios
No espaço cada vez menos claro, menos definido,
Seja lida como o suporte de seu progresso,
O cavalete sobre o qual se desenrolou o drama
Até sua própria satisfação e até o fim 370 De nosso sonho, como nunca havíamos imaginado
Que acabaria, na luz exausta do dia com a promessa
Pintada apresentando-se como um penhor, uma garantia.
Esse tempo diurno anódino, para sempre indefinido, é
O segredo do lugar em que ele ocorre
E não podemos mais retornar às várias
Afirmações conflitantes reunidas, lapsos de memória
Das testemunhas principais. Tudo o que sabemos
É que chegamos um pouco cedo, que
Hoje tem aquela especial e lapidar 380 Hojidade que a luz solar reproduz
Fielmente ao lançar sombras de ramos em jubilosas
Calçadas. Nenhum dia anterior poderia ter sido como este.
Antes eu achava que eles eram todos iguais,
Que o presente parecia sempre o mesmo para todo mundo
Mas esta confusão esgota-se uma vez que cada um
Está sempre a galgar a crista de seu presente.
Porém, o espaço "poético", cor de palha
Do longo corredor que leva de volta ao quadro,
Seu oposto obscurecedor – é ele 390 Alguma ficção da "arte", que não deva ser considerada
Como real, e menos ainda, especial? Acaso não tem ele também seu refúgio
No presente de que estamos sempre escapando
E no qual tornamos a cair, enquanto a roda dos dias
Segue o curso rotineiro, e até sereno?
Creio que ele está tentando dizer que é hoje,
E precisamos deixá-lo assim como o público
Que agora se acotovela ao sair do museu
Para estar lá fora na hora de fechar. Não podes viver ali.
O brilho cinzento do passado corrói todo saber: 400 Segredos de demão e acabamento que levaram uma vida inteira
Para se aprender e se reduzem à condição de
Ilustrações em preto e branco num livro em que as figuras coloridas
São raras. Isto é, todo o tempo
Se reduz a nenhum tempo especial. Ninguém
Alude à mudança; fazê-lo poderia
Implicar chamar atenção sobre si mesmo
O que aumentaria o temor de não sair
Antes de ter visto toda a coleção
(Com exceção das esculturas no porão: 410 Elas estão onde deviam.)
Nosso tempo chega a velar-se, comprometido
Pela vontade de durar do retrato. Evoca
A nossa, que esperávamos manter oculta.
Não precisamos de pinturas ou
Versalhada escrita por poetas maduros quando
A explosão é tão precisa, tão perfeita.
Valerá a pena sequer reconhecer
A existência de tudo isso? Será que
Existe? Certamente o tempo livre para 420 Comprazer-se em passatempos aristocráticos não mais,
Já não. Hoje não tem margens, o evento chega
Transbordando suas beiras, é da mesma substância,
Indistinguível. "Jogar" é uma outra coisa;
Existe, numa sociedade especificamente
Organizada como demonstração de si mesma.
Não há outro modo, e aqueles babacas
Que gostam de confundir tudo com seus jogos de espelho
Os quais parecem multiplicar apostas e possibilidades, ou
Pelo menos confundir as questões por meio de uma aura 430

Envolvente que poderia corroer a arquitetura

Do todo numa névoa de zombaria contida,

Passam ao largo do sentido. Estão fora do jogo,

Que não existe até eles saírem dele.

Parece um universo muito hostil

Mas como o princípio de cada coisa individual é

Hostil a todas as outras, e existe em detrimento delas

Como os filósofos já salientaram muitas vezes, ao menos

Esta coisa, o presente, mudo, indiviso,

Tem a justificativa da lógica, a qual

440 Neste caso, não é uma coisa má
Ou não seria, se a maneira de contar
Não se intrometesse de algum modo, deformando o resultado final
Numa caricatura de si mesmo. Isto sempre
Acontece, como no jogo em que
Uma frase sussurrada corre à volta da sala
E termina em algo completamente diverso.
É o princípio que faz as obras de arte tão distintas
Do que o artista pretendia. Com frequência ele descobre
Que omitiu o assunto sobre o qual principiara a falar 450 De início. Seduzido por flores,
Prazeres explícitos, ele se censura (embora
Secretamente satisfeito com o resultado), imaginando
Que teve algo a dizer na questão e exerceu
Uma opção de que mal teve consciência,
Sem perceber que a necessidade burla tais resoluções
Para criar algo novo
Por si mesma, que não há outra maneira,
Que a história da criação prossegue de acordo com
Leis rigorosas, e que as coisas 460 São feitas dessa forma, mas nunca as coisas
Que pretendíamos realizar e tão desesperadamente queríamos
Ver, passam a existir. Parmigianino
Deve ter percebido isto quando trabalhava em sua
Tarefa obstruidora de vida. Somos obrigados a ver
A realização perfeitamente plausível de um propósito
No suave, até mesmo brando (mas tão
Enigmático) acabamento. Acaso há algo que
Mereça ser levado a sério, para além dessa alteridade
Que se imiscui nas formas mais 470 Comuns da atividade cotidiana, modificando tudo
Ligeira e profundamente, e arrancando a matéria
Da criação, qualquer criação, não apenas a artística
De nossas mãos, para instalá-la em algum pico monstruoso,
Próximo, perto demais para ser ignorado, longe demais
Para se intervir? Essa alteridade, esse
"Não-ser-nós" é tudo o que há para olhar
No espelho, embora ninguém possa dizer
Como isso se tornou assim. Um navio
Desfraldando cores desconhecidas entrou no porto. 480 Estás permitindo que assuntos externos
Fragmentem teu dia, empanem o foco
Da bola de cristal. Sua paisagem vai à deriva
Como vapor dispersado no vento. As férteis
Associações mentais que até agora vinham
Com facilidade, não aparecem mais, ou só raramente. Suas
Cores são menos intensas, desbotadas
Pelas chuvas e ventos de outono, deterioradas, enlameadas,
Devolvidas a ti porque são imprestáveis.
Apesar disso, somos de tal forma criaturas de hábitos, que suas 490 Implicações ainda rondam en permanence, confundindo
As questões. Levar a sério somente o sexo
Talvez seja um caminho, mas as areias sibilam
Ao aproximar-se do começo do grande deslizamento
Que leva ao que aconteceu. Esse passado
Está aqui agora: a face refletida
Do pintor, na qual nos demoramos, recebendo
Sonhos e inspirações numa frequência
Indeterminada, mas os matizes tornaram-se metálicos,
As curvas e bordas não são tão ricas. Cada pessoa 500 Tem uma grande teoria para explicar o universo,
Mas esta não conta a história inteira
E, no fim, é o que está fora de cada um
Que importa, para ele e sobretudo para nós
A quem não foi dado nenhum tipo de ajuda
Para decifrar nosso próprio quociente de escala humana e temos de recorrer
A conhecimento de segunda mão. No entanto eu sei
Que o gosto de mais ninguém vai ter
Qualquer utilidade, e poderia tranquilamente ser ignorado.
Antes parecia tão perfeito – brilho sobre a delicada 510 Pele sardenta, lábios umedecidos como prestes a abrir-se
Liberando a fala, e o aspecto familiar
De roupas e móveis de que esquecemos.
Este podia ter sido nosso paraíso: exótico
Refúgio no interior de um mundo exausto, mas isso não estava
Nas cartas, porque tal não podia ter sido
O ponto principal. Arremedar naturalidade pode ser o primeiro passo
Para alcançar a calma interior
Mas é apenas o primeiro passo, e frequentemente
Permanece um gesto congelado de boas-vindas esboçado 520 No ar materializando-se atrás dele,
Uma convenção. E não temos realmente
Tempo para eles, salvo se os utilizarmos
Para acender o fogo. Quanto antes se queimarem,
Tanto melhor para os papéis que temos de representar.
Por isso eu te suplico, retira essa mão,
Não a ofereças mais como escudo ou saudação,
O escudo de uma saudação, Francesco:
Há espaço para uma bala na câmara:
Nosso olhar pela ponta errada 530 Do telescópio enquanto recuas em velocidade
Mais rápida do que a luz para afinal te confundires
Entre os traços do quarto, um convite
Nunca postado, a síndrome de
"Era tudo um sonho", embora o "tudo" bastante
Lacônico diga o quanto não era. Sua existência
Era real, embora atormentada, e a dor
Deste sonho acordado nunca poderá sufocar
O diagrama ainda esboçado no vento,
Escolhido, destinado a mim e materializado 540 Na claridade dissimulada de meu quarto.
Nós vimos a cidade; é o bojudo
Olho espelhado de um inseto. Todas as coisas acontecem
Na sacada e recomeçam lá dentro,
Mas a ação é o fluxo xaroposo e frio
De um cortejo. Sentimo-nos confinados demais,
Peneirando a luz solar de abril atrás de pistas,
Na mera tranquilidade cômoda de seu
Parâmetro. A mão não segura giz algum
E cada parte do todo se desprende 550 E não pode saber que sabia, exceto
Aqui e ali, em bolsos frios
De lembrança, sussurros fora do tempo.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    06 Jun 2005
  • Data do Fascículo
    Ago 1997
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