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Sociologia e militância

ENTREVISTA

Sociologia e militância

Entrevista com José de Souza Martins

JOSÉ DE SOUZA MARTINS nasceu em São Caetano do Sul (SP) em 1938. Licenciou-se em Ciências Sociais pela Faculdade de Filosofia) Ciências e Letras da USP (1964), onde fez o mestrado e o doutorado em Sociologia. É professor associado junto ao Departamento de Sociologia da USP. Foi visiting scholar do Center of Latin American Studies da Universidade de Cambridge (1976). Em 1992 foi eleito fellow de Trinity Hall e titular da Cátedra Simón Bolívar da mesma universidade. Em 1996, o Secretário Geral das Nações Unidas nomeou-o membro, pelas Américas, da Comissão de Curadores do Fundo Voluntário da ONU sobre Formas Contemporâneas de Escravidão.

Entre outras obras, publicou: Conde Matarazzo. O empresário e a empresa (1967), A imigração e a crise do Brasil agrário (1973), Capitalismo e tradicionalismo (1975), Sobre o modo capitalista de pensar (1978), O cativeiro da terra (1979), Expropriação e violência (1980), Os camponeses e a política no Brasil (1981), A militarização da questão agrária no Brasil (1984), Não há terra para plantar neste verão (1986; tradução italiana, 1988), A reforma agrária e os limites da democracia na Nova República (1986), Caminhada no chão da noite (1989), Subúrbio (1992), A chegada do estranho (1993), O poder do atraso (1994), Exclusão social e nova desigualdade (1997), Fronteira (1997).

O texto que aqui se publica - transcrição de entrevistas dadas ao editor de ESTUDOS AVANÇADOS, Alfredo Bosi, em 20 e 27 de maio e em 10 de junho de 1997-foi revisto pelo entrevistado.

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ESTUDOS AVANÇADOS - Qual sua formação, sua biografia intelectual, tanto dentro da universidade como fora dela?

José de Souza Martins - Venho do subúrbio de São Paulo e lá tive a oportunidade de fazer o Curso de Formação de Professores, o chamado Curso Normal, numa excelente escola pública, o Instituto de Educação "Dr. Américo Brasiliense", de Santo André (que faz 50 anos em 1997). Foi lá no "Américo Brasiliense" que tive contato indireto com a Faculdade de Filosofia da USP.

Quase todos os professores da velha escola pública de ótima qualidade daquela época eram professores concursados, e vinham da USP, em particular da Faculdade de Filosofia. Durante o curso, apesar de motivado pela idéia de ir para a roça, me senti muito atraído pela sociologia - uma das disciplinas do curso - e resolvi tentar a universidade. Passei no vestibular, na turma de 1961, e acabei me dando muito bem no curso de Ciências Sociais.

Na Faculdade fiz o bacharelado e a licenciatura em Ciências Sociais, que concluí em 1964. Em 1966, fiz o mestrado em Sociologia. E, em 1970, o doutorado em Sociologia. Em 1973, recebi uma bolsa de estudos do British Council para participar de um seminário de estudos, de quase dois meses, na Universidade de Sussex, na Inglaterra. Em 1976, voltei à Inglaterra por um período de sete meses a convite do Center of Latin American Studies da Universidade de Cambridge, como Visiting Scholar. A Universidade da Flórida convidou-me para ser professor-visitante (Mellon Visiting Professor) no Amazon Research and Training Program, do Center for Latin American Studies, em Gainesville (EUA), em 1983.

Em 1992, fui distinguido com minha eleição como professor-titular da Cátedra Simón Bolivar, da Universidade de Cambridge, para o ano académico de 1993-94. Fui o terceiro brasileiro a ocupar essa Cátedra, ocupada antes por Celso Furtado e por Fernando Henrique Cardoso. E fui o terceiro sociólogo. Além de Cardoso, Pablo González Casanova também a ocupara. Essa Cátedra constitui a mais alta distinção que a Universidade de Cambridge concede a intelectuais latinoamericanos, e vem acompanhada do título de Master of Arts, que ela concede exclusivamente a quem tenha sido seu aluno. Nomes ilustres me antecederam: Octavio Paz, Carlos Fuentes, Mario Vargas Llosa, Gustavo Gutiérrez, Beatriz Sarlo, além dos ja mencionados.

Como é tradição em Cambridge, ao ser anunciada minha eleição aos colleges, fui imediatamente eleito fellow de Trinity Hall. Trata-se de um dos colleges mais antigos e seguramente um dos mais acolhedores. Sir John Lyons, o famoso lingüista, recebeu o meu juramento ao pé do altar na capela medieval do College, no dia 12 de outubro de 1993. Minha posse foi solene, na presença de todos os fellows, revestidos de seus paramentos e insígnias, e dos alunos do doutorado, que depois me conduziram em procissão ao hall para o banquete de recepção. Essa honraria representa um privilégio até o fim da vida, pois me permite hospedar-me no College e ali trabalhar todas as vezes que vou a Cambridge. Tenho feito isso ao menos uma vez por ano, durante períodos variáveis, geralmente de um mês. Com isso, tenho acesso fácil aos recursos da Universidade, especialmente suas notáveis bibliotecas. Cambridge tem duas Cátedras desse tipo: além da Simón Bolivar, a Cátedra Pitt, para intelectuais norte-americanos. Meu College recebeu no passado um titular da Cátedra Pitt, também sociólogo: Talcott Parsons.

Em 1992, pouco antes de ir para Cambridge, fiz minha livre-docência no Departamento de Sociologia e dele me tornei professor-associado.

Tenho feito parte do conselho editorial de várias revistas científicas. Nessa área, o trabalho mais importante foi na revista Debate & Crítica, cujo nome, mais tarde, foi mudado para Contexto, por causa dá censura da Polícia Federal. Éramos três diretores: Jaime Pinsky, Florestan Fernandes e eu. Um ano depois, integrou-se ao grupo Tamas Szmercsányi. A revista tinha forte presença de professores da Faculdade de Filosofia da USP, especialmente de professores cassados em 1969. Ela funcionou de 1973 a 1978.

Vida universitária

No tempo do curso de graduação na Universidade, trabalhava durante o dia e estudava à noite. Fui aluno de curso noturno. Mesmo assim, foi uma experiência interessante, um deslumbramento, porque eu vinha da periferia, da fábrica, de uma família pobre, da escola pública que estava começando a entrar em crise.

Florestan Fernandes, Fernando Henrique Cardoso e Octavio Ianni haviam estado na escola em que eu estudava na época da Campanha da Escola Pública. Foi a época do grande debate sobre o assunto. Desse modo, quando entrei na Universidade, em 1961, foi uma descoberta fascinante a de reencontrá-los na sala de aula. Fui aluno de Fernando Henrique logo no primeiro ano e, depois, de Octavio Ianni, Florestan Fernandes, Paula Beiguelman, Marialice Mencarini Foracchi, Maria Sylvia de Carvalho Franco, Gioconda Mussolini. Estudei e tive contato com o pessoal da origem, os herdeiros do primeiro momento da Faculdade de Filosofia da USP.

Entrei na Universidade muito motivado pela idéia do compromisso social que ela propunha e realizava. Havia um projeto para o Brasil, que vinha desde sua fundação. No caso da sociologia, esse projeto ganhou fisionomia própria e sintética no projeto de pesquisa de Florestan Fernandes que teve o título de Economia e sociedade no Brasil (Analise sociológica do subdesenvolvimento), escrito com a colaboração de seus vários assistentes. No meu modo de ver, Fernando Henrique Cardoso deu dimensionamento político a idéias fundamentais desse projeto em seu governo. Já havia um projeto social na cadeira de Sociologia I: a preocupação com a escola pública gratuita, a preocupação com a modernização das relações sociais no Brasil, a modernização do empresariado, do Estado, da classe operária, a extensão dos direitos sociais a todas as pessoas. Dessa forma, para mim foi um fascínio descobrir que o mundo do qual eu vinha era também objeto de inquietação, de preocupação e de propostas por parte da Universidade, em geral tida como desvinculada, desenraizada e desinteressada em relação a essa realidade.

ESTUDOS AVANÇADOS -Nesse período da universidade você fez algum tipo de trabalho prático, algum trabalho de campo que o despertou para os estudos que viria a fazer depois, particularmente ligados à sociologia rural?

J. S. M. - Como era aluno de curso noturno, a chance de participar em qualquer projeto na Faculdade era muito pequena, praticamente nenhuma, pois eu tinha que trabalhar para sobreviver e estudar. Não dispunha, portanto, de tempo e liberdade para me envolver em algum projeto de pesquisa da escola. Quando estava terminando o 2° ano do curso, Fernando Henrique Cardoso me procurou. Era a época em que ele estava ampliando as equipes do antigo Cesit (Centro de Sociologia Industrial e do Trabalho), que Carvalho Pinto havia criado na cadeira de Florestan Fernandes, Sociologia I. Naquele momento, era o único núcleo que oferecia oportunidades de trabalho em projetos de pesquisa na área de Ciências Sociais.

Fernando Henrique me procurou, sabia que eu continuava morando no subúrbio, trabalhando o dia inteiro, indo e voltando, e perguntou se não me interessaria por uma bolsa de estudos para trabalhar no projeto de pesquisa de Luiz Pereira, que estava vindo de Araraquara para São Paulo para desenvolver uma pesquisa sobre qualificação da mão-de-obra operária. Dessa pesquisa resultaria o livro Trabalho e desenvolvimento no Brasil.

Luiz Pereira precisava de um auxiliar de pesquisa, uma pessoa que fizesse as entrevistas, organizasse o trabalho para ele. Aceitei, e para mim foi um ônus. Naquela época, trabalhava na Nestle, no setor de pesquisa de mercado, e ganhava um salário bastante razoável. Não era um grande salário, mas me mantinha. Eu era "arrimo de família" e a bolsa representava um quinto do que eu ganhava. Era uma verba conseguida por meio de bolsas que a Cadeira de Sociologia I e o Cesit, do qual Fernando Henrique era o diretor, recebiam de instituições diversas, inclusive internacionais.

Pesquisa e participação

Aceitei porque era a única forma de me dedicar integralmente à vida escolar e ao trabalho intelectual. Eu queria essa oportunidade, e deixei a Nestlé para ir trabalhar com Luiz Pereira. Curiosamente, a pesquisa era sobre operários, não tinha nenhuma relação com o mundo rural. A chamada realidade rural não era objeto de interesse específico na cadeira de Florestan Fernandes. Havia duas cadeiras de sociologia e entre elas uma espécie de divisão de trabalho, da seguinte forma: operários, indústria, empresários e Estado ficavam na cadeira de Sociologia I; questões rurais ficavam na Sociologia II, onde estava Maria Isaura Pereira de Queiroz, embora Azis Simão estudasse a história do movimento operário.

Não fui aluno de Maria Isaura, pois ela não estava no Brasil na época em que, na seqüência do curso, eu poderia ter assistido a suas aulas. Em todo caso, foi fácil me engajar no projeto de Luiz Pereira sobre qualificação de mão-de-obra. Fui operário desde criança, comecei a trabalhar com 11 anos de idade. Conhecia os bairros operários de São Paulo, me movia com extrema facilidade tanto dentro das fábricas quanto na conversação com a população operária. Essa foi uma pesquisa enorme que acabei fazendo sozinho; o próprio Luiz Pereira pouco se envolveu na execução do projeto. No começo, havia outros participantes na pesquisa, mas eles acabaram se marginalizando por desinteresse pelo tema e, sobretudo, pela pouca disposição de ir todas as noites aos bairros operários da periferia fazer as entrevistas. Mas, recebiam o dinheiro da bolsa todos os meses. Portanto, trabalhei por mim e pelos demais. De certo modo, Luiz Pereira acabou reconhecendo a minha dedicação numa nota de rodapé de seu livro. Apesar das facilidades que tinha para lidar com o assunto, esse trabalho foi de execução difícil. Quase sempre era necessário ir a bairros distantes e ainda andar um bocado depois do ponto de ônibus. Lembro-me de que, num dos casos, cheguei no começo da noite na casa do operário que ia entrevistar. A entrevista terminou mais de dez horas da noite. Aí ele me disse que, naquele horário só havia ônibus num ponto do outro lado do imenso Cemitério da Vila Formosa, sem muros e sem iluminação, que era necessário atravessar por dentro, pois era o único caminho. Aquela noite foi um sufoco para chegar ao Parque Dom Pedro e, depois, a São Caetano onde eu ainda morava.

Enfim, os outros não se adaptaram e acabei fazendo sozinho a pesquisa para o Luiz Pereira. O próprio Luiz não tinha muita mobilidade; havia sido professor primário mas não sabia se movimentar nessa área da indústria. Fiz os contatos nas fábricas, os levantamentos dos processos de trabalho, as listagens de operários, o que foi ótimo para mim. O que os outros achavam ruim foi para mim um benefício, porque revivi as coisas que conhecia bem e, ao mesmo tempo, na perspectiva do trabalho sociológico. Além disso, diariamente me encontrava com o Luiz Pereira, antes das aulas da tarde, para informar-lhe sobre o trabalho da véspera. Era uma boa oportunidade de ouvir comentários e aprender com ele um pouco do muito que sabia, sobretudo num momento em que ele estava se submetendo a uma ampla revisão de formação. Almoçávamos juntos num restaurante italiano que havia num casarão antigo na rua da Consolação, "Tarantella" se não me engano. Luiz era muito pão-duro. Pedíamos um prato para dois e dividíamos a despesa, o que consumia boa parte de minha modesta bolsa.

Dediquei-me basicamente a esse projeto. Quando o trabalho de Luiz Pereira terminou, houve uma seleção das pessoas que haviam participado das várias equipes de pesquisa do projeto de Fernando Henrique, do qual o de Luiz Pereira fazia parte. Alguns ficaram, outros não. Fui um dos escolhidos para ficar e precisei apresentar um projeto para fazer mestrado, que, hoje, equivale à especialização. Apresentei o projeto e escolhi Octavio Ianni como orientador.

Meu projeto era sobre modernização no campo e, obviamente, Ianni era a pessoa que estava mais próxima disso. Mas a escolha desse tema foi um pouco problemática no grupo. Em 1964, Fernando Henrique havia saído do Brasil, pois estava sendo procurado pela polícia política. Depois dele, Luiz Pereira assumiu a direção do Cesit, seguido por Leôncio Martins Rodrigues. Este último ficou bastante incomodado com algumas coisas que encontrou, porque queria um Cesit de sociologia industrial e do trabalho, como era, aliás, o projeto original. Ora, eu havia sido contratado pelo Cesit e meu projeto não tinha nenhuma relação com trabalho urbano. Leôncio criou um problema, falou com Florestan Fernandes. Florestan me chamou em sua casa; enquanto fazia a barba, às 7h da manhã, me disse: "Você tem de decidir o que quer da sua vida, se quer estudar operário ou trabalhador rural".

Respondi ao professor Florestan: "Sempre quis estudar trabalhador rural. Fui estudar operário porque foi a oportunidade que vocês me ofereceram, mas nunca escondi que estava interessado em fazer pesquisas sobre populações camponesas". No fim, nos acertamos. Acabei sendo transferido para a cadeira de Sociologia I, um pouco antes da aposentadoria compulsória de Florestan Fernandes, e continuei meu trabalho. Mas tive várias dificuldades por causa dessa opção, que não estava na opção central da Sociologia I. Fui contra a maré do grupo e parece que estou nela até hoje.

Trabalhadores no campo

Fiz minha pesquisa sozinho. Possuía uma certa experiência de trabalho de campo, que desenvolvi quando estive na Nestlé, onde trabalhava no setor de pesquisa de mercado. Não era exatamente a mesma coisa, mas alguns procedimentos são muito parecidos. Fiz uma pesquisa exploratória e comparativa, em 1965, em três regiões do Estado de São Paulo: Alta Sorocabana, Baixa Mogiana e Alto Paraíba.

Foi no campo que fiz algumas observações que depois marcariam muito meu trabalho: o fato de que ser caipira, e vivenciar a cultura caipira, não estava em conflito com a modernização tecnológica e o desenvolvimento capitalista, suposição comum nos estudos sobre o campesinato latinoamericano. Por meio desse estudo comparativo de áreas com diferentes níveis de modernização, ficou visível, por exemplo, que os caipiras do Alto Paraíba - autenticamente caipiras no sentido de Antonio Candido, de "membros e participantes de uma cultura caipira" - não eram avessos à modernização nem estavam em conflito com ela, nem impediam o desenvolvimento capitalista. Poderia haver modernização e eles continuarem caipiras, continuarem vinculados à tradição do bairro rural, da família camponesa de tipo tradicional, da cultura rústica. Uma coisa não caminhava necessariamente no sentido de destruir, de imediato, a outra. É claro que haveria uma interação que, reciprocamente, teria conseqüências, mas não da forma como se dizia naquela época.

Minhas preocupações com este tema não foram, evidentemente, tiradas do "bolso do colete". Tudo tinha muita relação com as próprias características e orientações intelectuais do grupo de Florestan Fernandes naquela época. Havia o projeto Economia e sociedade, de 1962, que era referência dos projetos desenvolvidos na cadeira de Sociologia I. O centro das preocupações desse projeto era a questão da resistência às mudanças, um tema muito forte em sua sociologia quando tratava das dificuldades para transformar o país em um país democrático, moderno. Essas questões vinham também das preocupações de Fernando de Azevedo, da velha tradição da Faculdade de Filosofia.

Em 1968, Florestan publicou Sociedade de Classes e Subdesenvolvimento, para mim um de seus trabalhos mais importantes. De certo modo, é a contribuição da "escola sociológica de São Paulo" ao debate sobre feudalismo e capitalismo na América Latina, que ganhara uma exagerada importância em certos meios intelectuais. As úteis provocações de André Gunder Frank, negando a existência de um feudalismo latinoamericano e, ao mesmo tempo, desenvolvendo uma tese de certo modo simplista e mecanicista sobre o desenvolvimento capitalista na região, sugeriam a conveniência de uma ampla retomada e revisão de idéias e interpretações, revisão que o grupo de São Paulo já estava fazendo, muito antes de que Frank chegasse à cena. Na verdade, desde os anos 50, a sociologia brasileira estava debatendo o problema do atraso em termos de bloqueios e obstáculos ao desenvolvimento econômico e social. O grupo da USP incorporara o problema em vários de seus projetos - no estudo da formação do empresariado industrial, da classe operária, do Estado. Numa perspectiva, portanto, muito mais rica do que a adotada por Gunder Frank, que a partir de um artigo publicado na Revista Brasiliense, polemizava com os marxistas vulgares a respeito do padrão estrutural do desenvolvimento latinoamericano. Frank chegava tardiamente a uma discussão que já estava produzindo trabalhos de grande consistência na Faculdade de Filosofia, em grande parte mediante a incorporação crítica do que se poderia chamar de uma sociologia marxista a uma visão sociológica abrangente e, de certo modo, ecumênica dos impasses históricos. A diferença de qualidade do trabalho do grupo de São Paulo estava sobretudo na grande atenção dada à questão do método e nas contribuições originais que daí surgiram para o uso da dialética na sociologia. Em Sociedade de Classes e Subdesenvolvimento, Florestan mostra que o atraso e as relações atrasadas constituem uma necessidade do capital e do desenvolvimento capitalista.

Já em 1965 eu desenvolvera minha pesquisa comparativa sobre a modernização e os obstáculos à modernização no campo, tomando como referência três regiões paulistas em que as condições da modernização agrária eram substancialmente diferentes entre si. A surpresa da pesquisa foi a constatação de que na região mais caracteristicamente tradicionalista e caipira, o Alto Paraíba, o tradicionalismo era justamente um ingrediente essencial e uma condição do padrão altamente moderno, capitalista e eficiente da agropecuária regional, especialmente no Médio Paraíba, que ganhava corpo numa moderníssima cooperativa regional de leite e seus derivados. O tradicionalismo era, naquelas condições, e certamente não seria em outras, um dos meios da acumulação capitalista. Não havia, portanto, uma incompatibilidade necessária entre capitalismo e tradicionalismo. Entreguei ao professor Florestan dois pequenos estudos preliminares com os resultados da pesquisa de 1965, um deles um relatório para a Fapesp. O professor Florestan achou que mereciam publicação e enviou-os para a Revista do Instituto de Estudos Brasileiros, da Universidade de São Paulo, e para a revista América Latina, do Centro Latinoamericano de Pesquisas em Ciências Sociais, do Rio de Janeiro, nas quais foram publicados nos primeiros meses de 1969. Por ter usado numa passagem de um deles a palavra "função" para me referir à relação do tradicionalismo com a acumulação, logo diferentes autores começaram a falar em "funcionalidade da agricultura atrasada", uma definição imprópria e imprecisa. Mas, essa constatação foi a base de referência da chamada crítica da razão dualista, que, trabalhada por outros autores, fez famas e prestígios. Foi, também, base de estudos sobre o lugar da pequena produção agrícola no desenvolvimento capitalista. De fato, a idéia reaparece quase que literalmente, embora curiosamente sem citação de fonte, em trabalhos que depois se tornaram muito conhecidos e citados, publicados somente três anos mais tarde, em 1972 e depois.

No começo da década de 70, Florestan Fernandes, Fernando Henrique Cardoso, Octavio Ianni, Maria Sylvia de Carvalho Franco estavam fazendo pesquisas e estudos para, no fundo, determinar o padrão do desenvolvimento histórico e capitalista da sociedade brasileira. Tratava-se de descobrir e trabalhar as nossas singularidades nas características universais do capitalismo e, ao mesmo tempo, investigar suas tendências e possibilidades. Creio que quase tudo que fizeram nesse período está profundamente marcado por essas preocupações. Minha primeira pesquisa, e outras que fiz depois, partia dessas orientações e das contribuições teóricas c interpretativas consistentes que vinham desses trabalhos e lhes dava continuidade. Km particular, enfatizo a importância dessa marca da "escola sociológica de São Paulo" que foi a de tomar como referência metodológica da pesquisa científica não necessariamente o que está no centro do processo histórico, mas aquilo que está num plano secundário ou marginal, uma mediação. Mesmo quando se tratou de estudar a burguesia (e o empresariado), Fernando Henrique não foi estudá-la em seu apogeu e em sua dominância, mas começou por estudá-la em sua origem, nas contradições do escravismo, num momento de impasses históricos e de incertezas, um momento de gênese e de definições estruturais. O meu trabalho procurava seguir esse padrão. Fui estudar o pólo atrasado do desenvolvimento capitalista, tendo como referência, porém, os resultados sociais mais elaborados desse desenvolvimento. Não se tratava de retomar polarizações e dualismos, como ocorrera com o estudo da Jacques Lambert sobre Os Dois Brasis, nos anos 50. Tratava-se de reconhecer no atrasado, no anômalo, no marginal a mediação que oferece a compreensão mais rica do processo histórico e também indica o lugar histórico de bloqueios e resistências ao desenvolvimento social.

Crítica ao dualismo

Tratava-se, portanto, da crítica do dualismo e ela, no grupo de Florestan Fernandes, foi esboçada e ganhou corpo em trabalhos dele e dos pesquisadores a sua volta. Foi a primeira recusa de uma tipificação que ganhava sua formulação mais elaborada em polarizações de tipo weberiano, um Weber empobrecido e simplificado. No mais das vezes, o dualismo dos anos 50 e 60 combinava a tipologia weberiana com as formulações estruturais de Parsons e assumia a forma de um modelo sociológico weberianizado nas interpretações de Gino Germani. Esse questionamento das grandes tipologias do desenvolvimento estava sendo feito também por Fernando Henrique Cardoso e Octavio Ianni.

Quando eu era aluno do curso de graduação em Ciências Sociais, Fernando Henrique propusera que lêssemos Lukács. O livro História e Consciência de Classe acabara de ser publicado em francês, e nós lemos essa edição. Lukács, apesar de marxista, sofrerá algumas influências de Weber na concepção de consciência possível, de consciência adequada, baseada na categoria de possibilidade objetiva de Max Weber.

Ainda quando eu era aluno do curso de graduação, os cursos ministrados por Fernando Henrique Cardoso, Octavio Ianni, Marialice Mencarini Foracchi e Maria Sylvia de Carvalho Franco, para ficar só no grupo da Sociologia I, expressavam o caloroso debate intelectual que parecia ocorrer no chamado seminário d'O Capital, que organizaram e de que faziam parte. A leitura desse livro de Lukács nos punha diante de um marxismo aberto a interpretações sociológicas de extração diversa, uma tentativa inteligente, embora discutível, de lidar com os problemas da consciência de classe. Menos pela orientação interpretativa de Lukács e mais pela centralidade da problemática da consciência no processo histórico, algo oposto aos determinismos estruturais do marxismo vulgar. De algum modo, as complexidades do método dialético compareciam a um debate que era de fundo metodológico.

A partir do início dos anos 60, e da politização mais intensa do debate acadêmico, com a participação de uma intelectualidade universitária de esquerda, à qual de algum modo pertenciam os professores mencionados, houve necessidade de maior precisão e rigor quanto à relação entre sociologia e marxismo. Nos anos 50, Florestan Fernandes publicara trabalhos fundamentais sobre os métodos de explicação na sociologia. Reunidos em Fundamentos Empíricos da Explicação Sociológica, esses trabalhos já sugeriam a especificidade das orientações teóricas e dos procedimentos interpretativos de cada um dos grandes métodos de explicação: o funcionalismo de Durkheim, a compreensão de Weber e a dialética de Marx.

O fato de que Florestan pusesse lado a lado os três métodos era interpretado, não raro, em meados dos anos 60, como sinal de uma equivocada equivalência dos métodos e da possibilidade de sua eclética mixagem. Alguns, menos precisos, viam aí um hibridismo comprometedor, um ecletismo redutor das possibilidades e alcance dos diferentes métodos. Florestan na verdade sugeria que para cada modalidade de tema e problema há um método apropriado. Alguns podem ser tratados na perspectiva dialética; outros não. E assim por diante. Mas, os métodos não são intercambiáveis ao gosto de quem os utiliza. A definição de um problema de investigação sociológica já pressupõe o método de sua explicação. Em outros termos, a opção por um método já supõe uma visão de mundo, uma modalidade de consciência social.

A preocupação com a "pureza" de um método e com os limites teóricos à incorporação de interpretações de orientação a ele estranhas tinha sentido no ambiente acadêmico de esquerda dos anos 60, marcado por preocupações fundas com as possibilidades históricas do capitalismo subdesenvolvido; embora não tivesse sentido no clima do desenvolvimentismo híbrido dos anos 50, no ambiente político das composições de convivência pacífica entre as oligarquias e os empresários industriais próprias do juscelinismo. A necessidade de pensar sociologicamente um momento histórico aberto sobre possibilidades polares e antagônicas (Fernando Henrique Cardoso termina sua tese de livre-docência sobre Empresário Industrial e Desenvolvimento Econômico perguntando: subcapitalismo ou socialismo?) não permitia hibridismos conceituais, muito comuns na época. Florestan Fernandes não era, obviamente, um eclético. Basta ver o tratamento que dá a diferentes temas em diferentes momentos de sua obra: os procedimentos interpretativos adotados em Sociedade de Classes e Subdesenvolvimento são substancialmente diferentes dos que foram adotados em A Função Social da Guerra na Sociedade Tupinambá.

É o que explica que os assistentes de Florestan Fernandes tenham organizado seu seminário sobre O Capital sem convidá-lo e tenham feito uma leitura metodológica do livro numa linha bem diversa da que ele percorrera em Fundamentos Empíricos. Eles, de certo modo, propunham que se escapasse do Marx interpretado e codificado, fortemente capturado por dogmatismos políticos ou, no caso da sociologia, um Marx de certo modo reduzido a um diálogo forçado com as sociologias, como autor de um sistema sociológico a mais. Sua proposta era, no meu modo de ver, a de uma volta ao Marx marxiano e, portanto, o Marx do diálogo crítico e criador com os autores de sua época. Um Marx criticamente aberto à tarefa sociológica de situar historicamente diferentes interpretações para poder dialogar com elas e superá-las.

Aquele foi um momento de purificação de idéias, pois havia muita imprecisão interpretativa na análise da sociedade brasileira, uma sociedade que claramente se encontrava numa encruzilhada histórica. Para mim, ter esse debate ao meu alcance em aulas, artigos e livros foi fundamental. Eu estava começando a trabalhar com um mundo que os equivocados diziam ser feudal, o arcaico a ser inevitavelmente superado pelo capitalismo puro da teoria, que muitos supunham ser o capitalismo das relações sociais reais. O que havia, mesmo, era uma realidade brasileira rica de indagações, contradições e exigências de interpretação. O debate na USP criava o quadro de referência para discutir essas questões. Meu trabalho foi, portanto, não apenas um trabalho de pesquisa, mas uma experiência de pesquisa fundada em um debate teórico. Quando estava no campo, por exemplo, pensava teoricamente aquilo que observava, o que foi muito importante para mim.

Teoria da dependência e teoria da globalização

ESTUDOS AVANÇADOS - A teoria da dependência, formulada pela sociologia latino-americana no final dos anos 60, foi, segundo certa perspectiva, um desdobramento das teorias do imperialismo. Como estas, o seu ethos político teria sido o da denúncia da onipotência do mercado nas relações internacionais. Até que ponto a teoria da globalização, vigente nos últimos anos, significaria uma atitude de aceitação, uma atitude de conformismo em relação à mesma realidade que os teóricos da dependência diagnosticavam como um desequilíbrio, uma injustiça, um mal a ser reparado? Em outros termos: não terá havido uma direitização conformista e oportunista no modo de apreciar o fenômeno da dependência?

J. S. M. - Tenho a impressão de que a preocupação com a dependência, que tem vários focos de origem na América Latina, teve um de seus focos mais importantes na Faculdade de Filosofia da USP, no grupo de Florestan Fernandes. Ele mesmo se considerava de certo modo um dos precursores do interesse pelo tema da dependência. Claro que a pessoa que mais contribuiu de forma sistemática na sua formulação, como se sabe, foi Fernando Henrique Cardoso. Mas para entender essa preocupação com a questão da dependência, o modo como ela se desenvolveu na USP, é preciso levar em conta as linhas básicas de compreensão da realidade latino-americana e brasileira, sobretudo por parte desse grupo.

Pode-se dizer que há uma tendência nacionalista e antiimperialista clara e presente no conjunto da obra dos autores da Faculdade de Filosofia da USP nessa época. Não sei se era necessariamente uma preocupação de esquerda, no sentido que a palavra possa ter hoje. Naquele momento ser esquerdista ainda não tinha assumido a dimensão mística e "religiosa" que acabou assumindo durante a ditadura e persiste até hoje. Se, de um lado, era um antiimperialismo próximo das posições dos dois partidos comunistas, embora difuso, de outro lado, era também um nacionalismo que ganhava seu melhor sentido nas posições da Cepal (Comissão Econômica para a América Latina, das Nações Unidas), especialmente na obra de Celso Furtado, e não nas posições do nacionalismo do Partido Comunista, porque antiimperialista e, portanto, porque pró-soviético. Era nesse âmbito cepalino que se situavam as posições de Fernando Henrique Cardoso, no meu modo de ver. Por outro lado, havia, também, uma postura crítica de esquerda em relação ao Partido Comunista Brasileiro e ao marxismo vulgar, o que aparecerá mais tarde, em 1968, na revista de curta duração Teoria e Prática, editada por um pequeno grupo de jovens professores da Faculdade de Filosofia. No período imediatamente anterior à ditadura, havia no grupo de Florestan Fernandes uma clara preocupação com um projeto nacional de desenvolvimento. Mas, essa preocupação não tinha coloração ideológica. Ela decorria das possibilidades de transformação social que o próprio conhecimento científico abria. Por isso, insisto sempre, o projeto Economia, e sociedade no Brasil (Análise sociológica do subdesenvolvimento) sintetizou essas preocupações de implicação política. Esse foi o primeiro texto em que o grupo da Faculdade de Filosofia disse sociologicamente o que poderia acontecer com a sociedade brasileira se a situação se mantivesse aquela. Tratava-se de um projeto que pretendia articular as pesquisas desenvolvidas pela Cadeira de Sociologia I. Nele, os problemas nacionais são problematizados sociologicamente. Mas para onde estava indo essa sociologia?

Era a proposta de uma sociologia enraizada. Nesse documento fica clara a implícita oposição à idéia de uma sociologia colonizada, de importação, sem diálogo com os problemas nacionais, que acabou se difundindo depois das aposentadorias compulsórias e repressivas. Hoje, a sociologia brasileira, com algumas exceções, é uma sociologia colonizada e desenraizada; portanto, descaracterizada. Poderia ser aplicada aqui, na China, em qualquer outro lugar: o resultado seria exatamente o mesmo. Mas naquela época, por volta de 1962, o grupo de Florestan procurava decifrar as possibilidades e limitações daquilo que já se afigurava como inserção dependente do Brasil no mundo capitalista. Examinava as outras alternativas, mas não descuidava dessa que ia ganhando visibilidade. Justamente por isso, o projeto Economia e Sociedade no Brasil pressupunha uma certa coalisão dos diferentes grupos e classes sociais, um certo ecumenismo no diálogo da sociologia com as diferentes classes sociais, uma democrática proclamação do direito à diferença no interior de um projeto histórico unificador. Dessas preocupações resultou uma doação em dinheiro da Confederação Nacional da Indústria para fundação do Cesit (Centro de Sociologia Industrial e do Trabalho). E o próprio governador Carvalho Pinto apoiou a proposta criando o Cesit por decreto numa audiência em que recebeu o professor Florestan Fernandes. Uma leitura esquerdista e radical da história do grupo da USP certamente a deformaria e dificultaria compreender a riqueza de possibilidades históricas presentes nas idéias e atuações da "escola sociológica de São Paulo" e no momento histórico em que essas coisas estavam acontecendo. Justamente por isso é que considero completamente equivocada a suposição de "direitização" quando se passa da teoria da dependência para a teoria da globalização. A lógica da globalização já estava lá naquelas preocupações de esquerda e claramente presentes nas idéias de Fernando Henrique.

No fundo, parece que a questão era a de saber qual a oportunidade do Brasil se transformar num país moderno, democrático e desenvolvido, com justiça social, no quadro da dependência e da globalização.

Uma boa indicação do que digo é que, como afirmei antes, o projeto Economia e sociedade é, de certo modo, o quadro sociológico mais amplo de referencia do governo de Fernando Henrique Cardoso, um projeto de Florestan Fernandes que Fernando Henrique e os outros assistentes de Florestan ajudaram a conceber e escrever. Os tempos e transformações históricos envolvidos nos processos sociais não podem e não devem ser reduzidos a uma temporalidade única e evolucionista, como acontece na polarização simplificadora direita-esquerda. No processo real, os tempos históricos são vários e desencontrados. Há necessidades sociais e históricas que se situam numa temporalidade determinada que não é a temporalidade da política partidária. São necessidades que só se resolvem acima das facções, dos partidos e das polarizações partidárias e ideológicas. A modernização da sociedade e do Estado brasileiros, considerados no projeto mencionado do grupo de Florestan, é uma necessidade "de esquerda", no sentido de que é uma necessidade histórica que quebra o poder das oligarquias e da dominação patrimonial em favor da sociedade, da emancipação do povo dos vínculos clientelistas e populistas, em favor da participação democrática de todos. É um projeto urgente e em execução.

Ao mesmo tempo, a sociologia como ciência não pode ceder aos voluntarismos. Se o fizesse deixaria de ser ciência. Nesse sentido, como gostava de reconhecer Florestan, ela constitui a autoconsciência científica da sociedade. Por isso, digo eu, ela também se situa numa das temporalidades do processo histórico, que não é a temporalidade dos partidos e dos confrontos eleitorais. Ela se situa no âmbito da consciência social que vislumbra obstáculos históricos e se situa, também, no âmbito da consciência das possibilidades da História, mediação da práxis transformadora que abre caminho entre os obstáculos sociais para que o Homem se emancipe de suas necessidades, de sua miséria. O voluntarismo político pode se equivocar e freqüentemente se equivoca, como vemos nestes nossos dias. Nesse caso, a ideologia pode ser de "esquerda", mas a ação é de "direita", pois acaba viabilizando a realização do projeto político dos que se opõem à emancipação humana a que me referi.

A globalização já estava pressuposta e pressentida no projeto de pesquisa de Karl Marx no século XIX, quando ele diz que a mundialização do mercado será um dos momentos de sua análise. Em diversos momentos, ela está claramente presente na obra marxiana. E não se trata da proposta de uma teoria do que mais tarde os marxistas definiram como imperialismo. Para Marx já estava claro que era impossível explicar sociologiamente o desenvolvimento do capitalismo inglês sem referência à mediação do arrendatário irlandês ou do escravo negro nos Estados Unidos. A concepção metodológica de totalidade, que pressupõe contradição e diversidade, em Marx pressupõe também a mundialidade dos processos históricos investigados. Embora, evidentemente, o singular e diferente tenha sua própria força histórica, sua dinâmica e sua presença na ação e nos movimentos sociais.

Na década de 60, Florestan e seu grupo incluíam em seus estudos a preocupação com os desdobramentos possíveis do processo histórico, do desenvolvimento brasileiro. Isso tinha muito a ver com o reconhecimento da necessidade de que a sociedade brasileira desvendasse a situação social em que se movia e as condições históricas dos diferentes modos de intervenção em seus rumos. Tratava-se de encarar a sociologia como um serviço à sociedade. Falava-se em burguesia nacional. Havia na sociedade uma difusa esperança política de que talvez existisse uma burguesia disposta a fazer e executar uma proposta alternativa ao modo como o Brasil vinha se situando em face do capital internacional, da penetração e dominação do capital estrangeiro. Como contrapartida preocupavam-se os cientistas sociais com o atraso social e econômico como um problema nacional urgente. Tanto a pesquisa que Fernando Henrique fez sobre os empresários industriais quanto a pesquisa nacional sobre os grupos econômicos multibilionários, que Maurício Vinhas de Queiroz coordenou na antiga Universidade do Brasil, ambas mais ou menos na mesma época, mostraram que a burguesia nacional era uma ficção, e, por implicação, uma esperança vã das esquerdas. Nos termos de hoje, a inserção do Brasil na globalização já era evidente. Esse era o dado político.

Fernando Henrique retornou a esse tema mais tarde numa entrevista que deu a Lourenço Dantas Mota, publicada depois pelo Senado Federal, na qual faz uma pequena revisão dessa história. Entre outras coisas, sua pesquisa procurava identificar objetivamente o que era a burguesia nacional no Brasil. Naquele momento, havia dois empresários que com certeza poderiam se comprometer com um projeto alternativo, e mais ninguém. Todos os outros estavam envolvidos em um projeto de inserção no capital internacional.

Desenvolvimento nacional

versus desenvolvimento global

Nessa fase, eu estava realizando em São Paulo uma parte da mencionada pesquisa de Maurício Vinhas de Queiroz sobre os grupos econômicos multibilionários. Coube-me entrevistar, juntamente com Antônio Carlos de Godoy, o empresário Luís Dumont Villares, o patriarca do Grupo Villares. Isso foi logo após o golpe de 1964. Uma das perguntas que lhe fizemos foi justamente sobre a burguesia nacional, já que ele era considerado um de seus membros. Ele afirmou claramente que a burguesia nacional era uma idiotice (usou essa palavra). Na perspectiva de um capitalismo autônomo, se quisesse tecnologia para sua empresa, teria que montar um laboratório de pesquisas e de criação tecnológica, com custos altíssimos que não teria condições de assumir sozinho. Dessa forma, preferia ir à Suécia ou à Alemanha, por exemplo, e comprar a tecnologia da Siemens, pagando 1% de seu lucro total com toda assistência, tecnologia e inovação necessárias, sem ter que recorrer a mais ninguém. Villares afirmou, ainda, que, para um empresário capitalista como ele, não seria racional aventurar-se a criar laboratórios e centros autônomos de produção de tecnologia para enfrentar a concorrência internacional.

Amadurecia a constatação de que o imperialismo também sofrerá transformações profundas como dominação econômica e política, aprendera com as resistências nacionais e de classe, desenvolvera estratégias globalizantes, abria espaços de parceria subalterna. Já não era necessariamente um inimigo do desenvolvimento nacional, mas um sócio compulsório desse desenvolvimento. Nessa perspectiva, oferecia aos países subdesenvolvidos a alternativa de tornarem-se sócios-menores do desenvolvimento capitalista. Lembro bem dessa expressão porque era freqüentemente usada por membros do grupo de São Paulo: ia ficando claro que o capitalismo abria um espaço de integração e participação aos países subdesenvolvidos (ou em vias de desenvolvimento, como se começava a dizer) o espaço de sócios-menores do desenvolvimento capitalista globalizado e internacional. Fernando Henrique foi um dos primeiros cientistas sociais a perceber a mudança que estava ocorrendo.

No fundo, a concepção de dependência que se gestava naquele momento não se ligava à categoria de imperialismo. Ela representava outra coisa e outra concepção do relacionamento entre as nações do mundo capitalista. Ela implicava num certo projeto de reinserção lateral na economia capitalista e, sobretudo, num projeto de exploração de nossas vantagens comparativas num mundo globalizado na condição que nos restava, a de economia dependente. A alternativa representada por essa inserção, que a ditadura militar, afinal, acelerou, dava-se no plano histórico. Bloqueadas as outras possibilidades, a do socialismo ou a do capitalismo autônomo, era essa a alternativa historicamente mais plausível. O que, afinal, se confirmou na própria história dos países de socialismo de Estado.

No caso brasileiro, discutia-se a experiência do governo Campos Sales, na virada do século. Fernando Henrique chegou até mesmo a escrever um trabalho sobre o assunto. O governo Campos Sales, entrando na política liberal exportada pelo colonialismo da época, acabou levando o país à falência: teve que empenhar em favor dos credores as rendas da alfândega do Rio de Janeiro. Ao simplesmente copiar a política econômica liberal dos países dominantes, o país produziu aqui efeitos econômicos contrários ao que ocorria nas economias metropolitanas. O caso do governo Campos Sales sugeria a importância de uma outra modalidade de orientação econômica a um país como o Brasil, por se tratar, justamente, de uma economia dependente.

No meu modo de ver, com a passagem da teoria da dependência para a teoria da globalização não houve uma ida para a direita, porque aquela não era, necessariamente, uma perspectiva de esquerda, e nem a atual perspectiva é, necessariamente, uma perspectiva de direita. O que há é a tentativa de ajustar o desenvolvimento do país a possibilidades reguladas fora dele, no plano internacional, pelos grandes conglomerados econômicos, pelos governos estrangeiros dos países ricos. Tenho muita resistência à idéia de colocar os rótulos direita/esquerda na questão.

Naquela época, a crítica à situação de dependência era uma crítica de esquerda, mas, ao mesmo tempo, era uma proposta de adesão estratégica. Um país como o Brasil teria condições de fazer exigências, de cobrar tratamentos preferenciais, agindo simultaneamente no plano da economia e da política internacionais. Era a esquerda que falava em dependência imaginando que estava falando de imperialismo, e na verdade não estava falando de imperialismo mas do ajustamento da economia nacional na economia globalizada, que era uma coisa diferente.

Hoje, na minha opinião, não se trata exatamente de uma questão de direita. Trata-se de uma questão política que, de qualquer modo, se inspira em um debate que vem da esquerda. Mas afirmar isso seria reduzir excessivamente o que está acontecendo. Aliás, Fernando Henrique Cardoso foi um dos primeiros a falar sobre globalização. Ele estava no Chile quando escreveu um trabalho sobre o assunto, e sempre teve uma percepção mais rica do que Florestan Fernandes a respeito dessas questões, talvez devido à sua inserção e mobilidade internacionais.

Essas questões estavam, portanto, presentes no grupo de São Paulo. Não eram pura e simplesmente idéias. Não se tratava de um debate de produção de doutrinas, mas de investigar a realidade brasileira, o que ela oferecia ou não, quais suas possibilidades históricas. A pergunta que Fernando Henrique Cardoso fez no fim de sua tese de livre-docência, "subcapitalismo ou socialismo?", propôs claramente as alternativas que estavam diante de nossos olhos. As pesquisas que o grupo estava desenvolvendo mostravam que estávamos indo na direção do subcapitalismo, isto é, do capitalismo dependente. O golpe de Estado, aliás, selou politicamente essa alternativa e esse destino. Depois de tanto tempo e tantas transformações, seria um completo absurdo político e econômico tentar rever e anular a História feita e consumada, como muitos ingenuamente pretendem. Antes de tudo é preciso retomar a preocupação com a praxis, voltar ao sentido das propostas teóricas e interpretativas que a "escola sociológica de São Paulo" havia feito, tendo em conta o novo contexto histórico, o fechamento de algumas possibilidades e a abertura de outras, mas sobretudo retornar ao paradigma do reconhecimento das necessidades sociais e históricas como fundamento de uma sociologia enraizada.

Leis trabalhistas e populismo

ESTUDOS AVANÇADOS - O caráter antioligárquico da revolução de 30 foi, até certo ponto, favorável a um início de proteção do trabalhador em face do capitalismo selvagem, primeiro o trabalhador urbano e, muito mais tarde, o rural. As recentes tendências neoliberais não estariam desestruturando o que se começou a arquitetar a partir dos anos 30? Como explicar que as esquerdas brasileiras, independentes e heterodoxas na década de 80, tiveram de, nos anos 90, voltar às propostas trabalhistas que há muito tempo estigmatizavam como "populistas"? Você tem sido severo para com esse abuso do uso do termo populismo, que lhe parece infiltração udenista oligárquica no pensamento de esquerda, sobretudo nos anos 70. Por que esse termo lhe parece infeliz como julgamento político?

J. S. M. -Acredito que haja um equívoco sério no antigetulismo das esquerdas, e na crítica ao populismo de origem getulista. Venho de uma família operária que foi amplamente protegida, nos limites estreitos dessa proteção, pelos direitos trabalhistas que Getúlio Vargas reconheceu e impôs já no Estado Novo. Para mim essa não é uma questão teórica ou doutrinária, ou não é apenas isso.

Pode-se chamar a isso de populismo, não tenho nada contra a palavra populista. Tenho é contra a idéia de condenar o populismo e adotar práticas populistas, o que me incomoda profundamente. O populismo getulista, não o populismo de Ademar ou Jânio, teve um importante sentido social, como meio de conquista de direitos sociais. Foi seguramente o meio de incorporar ao processo histórico a grande massa operária do país. Muita gente diz que se não fosse o populismo de Getúlio os trabalhadores teriam se tornado socialistas ou anarquistas. Quem diz isso comete o equívoco de extrapolar condensações da historia operária brasileira que destacaram as orientações de esquerda de grupos minoritários do operariado. Um grande defeito dessa historiografia é o de não examinar objetivamente a diversidade da classe operária entre o fim da escravidão e a Revolução de 30. Sobretudo porque a pesquisa de seus historiadores limitou-se aos arquivos de militantes e grupos de esquerda. Quando se examina outros documentos, como os das missões religiosas cujos arquivos estão no exterior, ou se recorre à tradição oral nos bairros operários, então a história que vem para fora é completamente outra. Os socialistas e anarquistas tinham uma extração social bem definida; não raro vinham das profissões artesanais, as mais atingidas pela industrialização. A grande massa operária era indiferente às polarizações da política. E a partir dos anos 20, nos bairros operários de maior concentração de imigrantes italianos, como o Brás, a Moóca, São Caetano, Santo André, Lapa, havia núcleos organizados do Fascio. Além disso, em 1930, a greve de 1917 - o momento mais revolucionário da história operária de São Paulo - estava bem longe. Sem contar que a cidade passara pela dramática experiência da Revolução de 1924, com severos bombardeios nos bairros operários, sem que o operariado tenha feito pouco mais do que saquear fábricas e depósitos de mercadorias.

Não podemos esquecer que a Revolução de 30, apesar de antioligárquica, foi composta com as oligarquias. O grande acordo político que Getúlio Vargas estabeleceu com as oligarquias foi no sentido de modernizar as relações de trabalho na cidade sem mexer nas relações de trabalho no campo, o que fez com que relações arcaicas persistissem durante um tempo larguíssimo. Não cometeria a ingenuidade de dizer que isso ocorreu porque Getúlio foi oportunista; de fato, ele não tinha condições de fazer outra coisa. Nos primeiros meses do Governo Provisório, foram feitas prisões de coronéis políticos do sertão, especialmente no Nordeste. Depois, a Revolução descobriu que não poderia governar o país sem a intermediação desses coronéis sertanejos. Nesse momento inaugura-se uma política de composição que teve seus momentos fortes nos governos de Getúlio Vargas e no governo de Juscelino Kubistchek. E tem um curioso desdobramento no governo de Fernando Henrique Cardoso, que precisou se compor com as oligarquias para desencadear a modernização do Estado, para transformar o Estado num Estado antioligárquico. Algo que numa escala mais modesta Juscelino também tentara.

A Coluna, Prestes se defrontou com esse problema, o de uma população rural que estava alheia, efetivamente excluída de qualquer processo de decisão. O que se fez foi uma composição para viabilizar um Estado iluminista e modernizador. Nesse sentido, o governo atual é a continuação dessa proposta, uma proposta de composição com as oligarquias como forma de viabilizar alguns atos de modernização do Estado. Ou seja, trata-se de continuar fazendo composições para avançar lentamente no processo de modernização do Estado, um Estado efetivamente oligárquico.

As concessões foram obtidas por meio de negociações, de grandes renúncias por parte da massa da população, dos pobres. Atualmente, a CUT está tentando entender esse processo, tentando perceber que mais do que o confronto, numa circunstância como esta, é importante a negociação. Ou seja, a mesma lógica está se estendendo até a classe trabalhadora.

Quando falo da concepção de populismo, costumo dizer o seguinte: no PT, quem usa a concepção de populismo o faz numa perspectiva udenista, ou seja, é a crítica burguesa ao populismo. Mas o populismo representou efetivamente um avanço para a massa trabalhadora, o máximo de avanço possível naquelas circunstâncias. Considerado nessa perspectiva, o populismo getulista não foi um instrumento de manipulação da classe operária contra os interesses da classe operária.

Muitos tem dificuldades para distinguir em Getúlio Vargas várias e diferentes pessoas, dependendo do momento histórico. O que fez dele um estadista foi a competência para personificar plenamente, e corajosamente, esses diferentes momentos, no limite, até a morte. O Dr. Getúlio da Revolução de 30 é um; o Dr. Getúlio do golpe de 1937 é outro; o Dr. Getúlio de 1954, do apelo à revolução e da decisão pelo sacrifício é completamente outro. No entanto, Getúlio Vargas é mesmo essa diversidade, no fundo a diversidade do país, os desencontros de sua história nem sempre lógica. Ele é demonizado por causa do Estado Novo, do Estado repressivo, da tortura - que, evidentemente, atingiu também a classe trabalhadora -, de tudo

aquilo que foi característico da ditadura getulista, e é bom que assinalemos esse momento negativo e trágico da história do país. Mas é importante ter presente que a perspectiva da recusa em reconhecer os aspectos positivos dos governos Vargas não é necessariamente uma perspectiva operária. Ela ainda é a perspectiva de quem perdeu a Revolução de 1932, e a perspectiva que depois resultou na formação da UDN, no golpe de Lacerda contra Getúlio Vargas, levando Getúlio ao suicídio. Quando o Partido dos Trabalhadores faz a crítica e a recusa de Vargas, faz a crítica udenista de Getúlio, a crítica burguesa e imperialista. É significativo que o petismo tenha nascido e florescido na região do ABC uma das mais densas regiões getulistas do país. Muitos trabalhadores chegaram ao PT por meio da herança do populismo getulista.

Por uma sociologia da vida cotidiana

ESTUDOS AVANÇADOS -Vamos passar a um temário que tem caracterizado sua carreira intelectual. A partir de um certo momento desse percurso, você passa a se dedicar a estudos que se poderiam subordinar, lato sensu, à expressão "sociologia do cotidiano". Gostaria que você dissesse alguma coisa sobre esta verdadeira vocação de estudos: quando começa, quais suas motivações, que relações tem com a tradição sociológica da USP ou em que medida inova essa mesma tradição e, sobretudo, que relações tem com todo um movimento de história nova, história das mentalidades, que a partir dos anos 70 tende a substituir a história das estruturas impessoais?

J. S. M. - Minha preocupação com a vida cotidiana e com a possibilidade de uma sociologia da vida cotidiana está diretamente ligada a uma característica importante da sociologia na USP, em especial no grupo de Florestan Fernandes, que é de fazer uma sociologia de preferência não-amarrada em questões estruturais, institucionais.

O livro de Florestan sobre a A Integração do Negro na Sociedade de Classes, sua tese de cátedra, é um trabalho que solicita, amplamente, que se lide de maneira mais sistemática com a questão do cotidiano, do imediato, do fenomênico. De certa maneira, esse tema já estava proposto ali, e em vários outros trabalhos de diferentes autores. Os trabalhos de Marialice Mencarini Foracchi e de Octavio Ianni, e até um pequeno trabalho de Fernando Henrique Cardoso sobre Os Parceiros do Rio Bonito, de Antônio Cândido, posterior a sua saída da universidade, já indicam a importância de começar a refletir sobre esse problema.

Em 1975, comecei a dar um curso de Sociologia da Vida Cotidiana, na USP. Lembro claramente que, naquela época, Luiz Pereira, que estava bastante longe dessas preocupações, disse: "Esta é uma proposta impertinente". Foi o comentário que ele fez quando apresentei a proposta do curso ao conselho departamental. Mas a verdade é que justamente nos anos 70, não só no Brasil mas em outros países, o cotidiano começou a dominar o processo histórico. Os mecanismos de reprodução das relações sociais, mecanismos de escamoteamento das possibilidades históricas da sociedade, passaram a dominar os processos de produção do novo e das possibilidades de ruptura inovadora da vida social. A rebelião juvenil de 1968, em vários lugares, nos colocou em face da nova importância histórica da vida cotidiana e suas contradições.

Essa importância aparece nos trabalhos de diferentes autores, em diferentes lugares, com enfoques variados, como por exemplo os meios de comunicação de massa, os modernos mecanismos de manipulação da opinião pública, entre outros. Na verdade, o problema era mais complicado porque não se limitava ao âmbito da formação da sociedade de massas, mas interferia efetivamente nos mecanismos miúdos de vida de amplas parcelas da população que não estavam propriamente mergulhadas nesse mundo novo, manipulado pela engenharia da comunicação.

Resolvi organizar minhas idéias em torno desse tema. Li vários autores, os poucos e disponíveis que haviam dado alguma contribuição ao conhecimento do assunto. O mais importante deles, sem dúvida, foi Henri Lefebvre. Foi ele quem, pouco depois do fim da Segunda Guerra, propôs que os marxistas começassem a se preocupar com a questão da vida cotidiana porque a vida cotidiana estava se transformando no instrumento de bloqueio das possibilidades de transformação da sociedade em uma sociedade nova e justa. Comecei a trabalhar a partir dessas motivações: de um lado, a própria tradição do grupo de Florestan Fernandes, que não havia lidado sistematicamente com esse tema, mas havia se aproximado dele várias vezes. De outro, a preocupação com a vida cotidiana como aparecia em diferentes autores de outros lugares do mundo, especialmente nos Estados Unidos e na Europa.

Nos Estados Unidos também houve essa preocupação em grupos de esquerda, mas não foi uma preocupação eficaz. Os americanos não produziram grandes e fundamentais trabalhos sobre o assunto. Em compensação, havia a tradição fenomenológica, sobretudo do interacionismo simbólico de Blumer, dos descendentes teóricos de George Mead, pessoas que estavam fazendo uma sociologia que trabalhava com o cotidiano embora não pretendesse ser uma sociologia da vida cotidiana. A figura mais importante nesse movimento foi Erving Goffman, com os trabalhos da chamada dramaturgia social. Mais recentemente, destacou-se Harold Garfinkel e a engenharia manipulativa da sua etnometodologia, que tem sugestões metodológicas importantes.

Tentei reunir essas questões - aquilo que poderia ser reunido - numa perspectiva dialética, tentando trazer para uma reflexão dialética a preocupação com a vida cotidiana, perspectiva de Henri Lefebvre, de Agnes Heller. Ao contrário do que muitas pessoas pensam, por esse caminho não me aproximo da história das mentalidades, mas me afasto dela. Recentemente, escrevi um comentário crítico a um texto de Vainfas, para publicação na Revista do Museu Paulista, em que digo que ele se equivocou ao tratar como expressões de um mesmo fenômeno a vida privada e a vida cotidiana. Nos termos da história das mentalidades esses "conceitos" são considerados equivalentes e intercambiáveis. Na perspectiva de uma sociologia da vida cotidiana, são distintos e expressões de realidades substantivamente diversas.

A vida cotidiana é, num certo sentido, a negação da vida privada, e não se restringe a aspectos que Lê Goff e Duby enumeraram a respeito de usos e costumes dos povos. Eles lidaram com a questão do cotidiano a longo termo. A vida cotidiana, na perspectiva sociológica, é um fenômeno muito recente, que ganha corpo de maneira assim dramática após a Segunda Guerra Mundial. Está ligada ao aparecimento da cotidianidade, que não se confunde com a vida cotidiana. Quer dizer, o aparecimento da cotidianidade é a transformação da realidade social numa realidade de manipulação, de escamoteamento, de alienação moderna, alienação levada ao extremo de suas possibilidades, de mistificação da vida. Estou trabalhando com isso porque esses mecanismos também estão muito presentes na sociedade brasileira há algum tempo.

Vida privada e vida cotidiana: diferenciações

ESTUDOS AVANÇADOS - Voltemos à distinção que você faz entre história da vida privada e sociologia do cotidiano. Gostaria que ela pudesse ser amplificada, porque há um pressuposto de que uma coisa implica na outra. Você poderia formalizar, de outra maneira, essas relações? Não seria válida uma história da vida privada?

J. S. M. - Ela é válida na perspectiva que os historiadores estão adotando. Acho menos válida a proposta de uma história da vida cotidiana, um fenômeno essencialmente moderno, especialmente quando se projeta essa história no tempo do Brasil Colônia ou da Europa anterior à Revolução Francesa. A vida cotidiana começa a aparecer, com as características que lhe são próprias - alienação, manipulação -, neste século, em função da industrialização, da mundialização do mercado, do domínio da mercadoria como mediação na vida das pessoas, da coisificação da pessoa, características muito próprias desta época.

Os historiadores trabalham com a idéia de vida cotidiana enquanto rotina diária. Mas a vida cotidiana, a cotidianidade no sentido sociológico, não é apenas isso, e nem é fundamentalmente isso. Tomo como referência o famoso texto de Philippe Ariès no primeiro volume da História da Vida Privada, que desencadeia a preocupação com a história da vida privada. Não temos em todas as classes sociais nem em todas as sociedades aquelas características sociológicas da organização da família que levam ao aparecimento de um estilo de vida que possa ser chamado de vida privada.

Além disso, a vida cotidiana, sem dúvida, passa pela rotina, mas não necessariamente pelos ambientes íntimos da casa. Ao contrário, se as preocupações de Aries forem levadas ao extremo, desdobrando-se no trabalho de alguns seguidores, o quarto, por exemplo, lugar da intimidade, é o lugar menos cotidiano da vida moderna. Ali não há nada de cotidiano. O quarto é lugar do que? O prazer, o desejo, a alegria, todos eles realidades anticotidianas por excelência.

A vida cotidiana é amarga, reprodutiva, mecânica, sem rupturas. Ela tende à instrumentalização da pessoa. Além disso, a vida cotidiana passa pela esfera do trabalho, do qual não se pode falar como vida privada a menos que seja reduzido à idéia de contrato. A vida cotidiana está na fábrica, no trabalho, na rua, na casa, mas não está inteiramente na casa, na rua, no trabalho, nos lugares onde a contradição se faz mais viva e o desafio à transgressão se torna mais significativo. A vida cotidiana se quebra na transgressão. A vida cotidiana se quebra na revolução. A vida cotidiana se quebra no rompimento daquilo que é propriamente rotineiro. Onde existe desejo e alegria não há vida cotidiana no sentido sociológico com que é possível trabalhar essa questão.

Vejo um enorme desencontro entre vida cotidiana e vida privada. É necessário separar as duas coisas. Na verdade, a vida cotidiana pensada a partir da cotidianidade - numa era, como esta, dominada pela vida cotidiana - nega a vida privada. É exatamente o oposto da vida privada no sentido de que a vida privada implica no reconhecimento do indivíduo, da individualidade, dos direitos pessoais, do cidadão. A vida cotidiana é a negação de absolutamente tudo isso. Ela homogeneiza, manipula, coisifica, e assim por diante.

História e memória dos excluídos

ESTUDOS AVANÇADOS - Entre seus interesses, há uma forte inclinação para recuperar a memória de segmentos da população, de grupos, de espaços ou de tempos que normalmente não aparecem em uma história institucional, ou em uma história política, no sentido convencional da palavra. Um de seus estudos, que parece particularmente rico em implicações teóricas apesar de ser fortemente enraizado na observação, é Subúrbio, escrito sobre a memória de São Caetano. Você poderia dizer alguma coisa sobre o livro, sua gênese, se ele integra um projeto maior, e a relação entre "memória dos esquecidos", paradoxalmente, e memória do subúrbio e a história?

J. S. M. - O conjunto dos meus trabalhos é marcado por uma preocupação de natureza metodológica com aqueles que estão à margem, os quais eu costumo chamar de vítimas, aquelas pessoas que não estão no centro da percepção dos acontecimentos dominantes, que aparentemente não estão envolvidas neles embora de fato estejam, pessoas que normalmente não são consideradas como informantes validos do acontecer histórico, testemunhas dos acontecimentos históricos que possam merecer uma atenção especial por parte dos pesquisadores. Essa preocupação é própria do grupo de sociologia da USP. Vários dos estudos do grupo de Florestan Fernandes foram feitos com quem estava à margem: o negro, o jovem, enfim, populações que normalmente não merecem atenção de um pesquisador convencional, a menos que se tornem um problema social.

Minha preocupação com o subúrbio está relacionada ao fato de que eu acreditava ser importante e necessário fazer um recorte em um espaço muito rico de experiências históricas, apesar de irrelevante do ponto-de-vista da consciência dominante, inclusive da consciência dominante dos intelectuais. Achava importante observar como o processo histórico se dá em um determinado espaço, historicamente irrelevante. Saint-Hilaire teve uma curiosidade parecida quando passava pelo Vale do Paraíba, na época da Independência: ele queria saber como é que as pessoas daquela região estavam vendo a Independência do país, que havia acabado de ser proclamada. Aparentemente, as pessoas não estavam vendo nada, porque a Independência não havia sido feita nem por elas e nem para elas.

Queria trabalhar com essa população tomando como referência um longo período de tempo num mesmo espaço. Não queria fazer uma colagem, entre espaços, que fosse artificial. Dessa forma, nasceu um projeto, ainda em execução, de estudar o subúrbio. Comecei pelo segundo volume, o qual eu tinha possibilidade de escrever mais imediatamente. Mas há também um primeiro e um terceiro volumes, parcialmente escritos.

A idéia é ver como a história atravessa a vida de pessoas bem concretas. Pessoas como eu, como as pessoas que conheci quando trabalhava na fábrica. O que é história para essas pessoas? Evidentemente, há neste ponto uma insurgência contra uma tese, muito cara a certos grupos de esquerda, de que o povo faz sua própria história mas não sabe que a está fazendo, e que, portanto, alguém tem de tomar as decisões a respeito do processo histórico em nome dele. Minha idéia era verificar o quanto o povo é, de fato, omisso em relação ao processo histórico, o quanto o processo histórico é abrangente para essa massa de população condenada ao trabalho, a viver a rotina da vida cotidiana, mas que os teóricos baniram do fazer História.

Essa preocupação nasceu, evidentemente, de uma experiência pessoal, como muitas vezes acontece em Ciências Sociais. Como já falei no início, nasci no subúrbio, cresci dentro de uma fábrica, tornei-me adulto dentro de uma fábrica. Para mim, portanto, a classe operária não é uma ficção teórica. A classe operária é um povo real, vivo, com necessidades, paixões, sonhos, erros e acertos.

Memória

e vida cotidiana

Algo que marcou muito minha infância foi uma história que minha mãe sempre contava. Minha mãe, uma mulher muito religiosa - primeiro católica, depois convertida ao protestantismo -, sempre teve medo de que eu me tornasse um subversivo, um comunista; de que eu, eventualmente, me envolvesse com grupos que poderiam ser eliminados pela polícia por razões políticas. Aquilo sempre me inquietou demais, porque não tinha muito sentido. Eu não conseguia ver os perigos que ela via. Sou de uma geração que viveu a chegada, na região do ABC, de dom Jorge Marcos de Oliveira, um bispo politizador por excelência. Apesar de não estar vinculado diretamente à Igreja Católica, pois eu era membro da Igreja Presbhiteriana e, portanto, calvinista, aproximei-me de dom Jorge várias vezes. Desenvolvi atividades com ele, aprendi muitas coisas. Minha mãe se preocupava demais com essa aproximação.

Depois fui descobrindo que por trás do medo de minha mãe havia uma memória: a memória da repressão policial do Estado Novo, na região do ABC, contra os trabalhadores daquela área. O ABC foi a região mais esquerdista do Brasil, dos anos 30 aos anos 50, e São Caetano, em particular - meu foco de interesse -, teve o maior reduto de comunistas de toda a América do Sul, formado por trabalhadores imigrantes, geralmente espanhóis, operários das fábricas. Muitos foram presos no rastro da chamada Intentona de 1935. Houve grande repressão em Santos e no ABC, mortes, desaparecimentos, deportações. O medo de minha mãe era a forma assumida pela memória dessa violência, uma memória de silêncios e recriminações. Em 1947, o Partido Comunista elegeu, sob uma outra sigla, um prefeito e a maioria dos vereadores da Câmara Municipal de Santo André, que abrangia toda a região, menos São Bernardo. Foi o único município do Brasil em que isso aconteceu, e todos foram cassados no dia da posse. No ato da posse, a polícia já estava esperando para que eles não assumissem seus cargos.

Essa região é um lugar onde o escamoteamento do fazer história é muito nítido. Não é que as pessoas não saibam o que estão fazendo: elas têm medo de dizer o que fazem, o que são, o que querem. Foi por essa razão que resolvi investigar intensamente esse tema. Fui descobrindo que, justamente por ser uma região à margem, é o subúrbio da cidade, ali se desenrolava, num mesmo espaço e em diferentes épocas, não uma mesma história, mas várias histórias. Há uma história durante o período colonial, uma história de escravos, de caipiras mestiçados, de quilombos, de revoltas, na época em que todo o bairro antigo estava centralizado na Fazenda de São Caetano, dos monges de São Bento, que se estende pelo período imperial até a criação do núcleo colonial de São Caetano. O núcleo trouxe para a localidade os imigrantes italianos, dos primeiros a chegarem a São Paulo, os colonos para a lavoura de jardinagem que as elites queriam implantar à beira da ferrovia. Posteriormente, há esse período mais recente, da industrialização, da classe operária, dominado essencialmente pelo medo, algo muito diferente do que nas regiões mais centrais da cidade, nos bairros ricos.

A partir dessa perspectiva - perspectiva de quem está à margem do que é dominante, à margem de quem decide -, estou tentando observar o conjunto da sociedade. Subúrbio é o primeiro volume desse trabalho. Em seguida, será lançado o terceiro volume, com vários episódios sobre o tema do medo, decorrente de um clima de repressão muito acentuado. A cultura do subúrbio é repressiva. Ela é politicamente repressiva. As pessoas pagaram altíssimo preço para viver, trabalhar e sobreviver nessas regiões. O que minha mãe me contava era a memória de quem sobreviveu à repressão, mas não ao medo. Ela própria não estava envolvida, mas outras pessoas estavam, amigos, vizinhos, conhecidos.

Estou estudando até mesmo aspectos rituais desse medo, sempre em relação a São Caetano. O medo produziu, no limite, ritos sacrificiais no seio da população, em episódios trágicos, como um parricídio ocorrido num dia de Natal. Escolhi São Caetano porque havia uma boa diversidade de ocorrências sociologicamente ricas e boas informações disponíveis nos arquivos e na tradição oral. A documentação é pouca, mas muito rica. Resolvi fazer este recorte espacial e acompanhar o processo de constituição da sociedade moderna, urbana, cotidiana, a partir desse ponto de referência. Desde o período colonial, o lugar já apresentava uma situação extraordinária, por ser uma fazenda e um bairro dependente da fazenda, não uma fazenda de tipo clássico, estereotipada, mas uma fazenda de uma ordem monástica.

Os beneditinos tinham preocupações humanísticas, inclusive em relação aos escravos. E é entre os escravos da Fazenda de São Caetano que por volta de 1863 há uma pequena revolta que motiva os monges a reverem a escravidão no interior da Ordem, em todo o Brasil. Um monge visitador do Rio de Janeiro vem para São Caetano fazer uma inspeção a propósito do que aconteceu. O problema é levado ao Capítulo Geral em Salvador, que se reunia uma vez a cada dois ou três anos, e é lá que a Ordem de São Bento decide por aquele que será o modelo de extinção da escravidão no Brasil, adotado posteriormente pelo governo, um modelo de extinção gradual. Primeiro, seriam libertadas as mães que tivessem um determinado número de filhos, depois as crianças, e assim por diante.

No dia seguinte à promulgação da Lei do Ventre Livre, a Ordem de São Bento promove a abolição da escravidão em suas fazendas em todo o Brasil, libertando, num ato súbito, quatro mil escravos em todas as suas fazendas. Esse movimento foi decorrência de um gesto de rebeldia, uma revolta simples em que os escravos chegaram para os monges e disseram que não iriam mais trabalhar no que os monges queriam que eles trabalhassem, uma fábrica que havia na região. Essa fábrica, que existia desde 1730, está sendo objeto de um programa de escavação arqueológica do Museu Paulista. Os escravos disseram aos monges que queriam ter sua própria casa no campo, trabalhar na roça, e assim fizeram. Em seguida, o governo imperial desapropriou a fazenda e transformou-a em um núcleo colonial, e um dos primeiros acontecimentos deste período foi uma revolta de colonos contra a proposta do regime de assentamento proposto.

Medos e rupturas,

memória do subúrbio

Esses episódios, que aparentemente não se conectam entre si, vão descrevendo um cenário de tensão, de medo, de descontinuidade, de rupturas e de desafio, que é o cenário do subúrbio. É na periferia que se consegue observar melhor esse processo, o que reforça exatamente o contrário do que Marx disse, de que era preciso estar em Londres para observar o que era o capitalismo no mundo. Eu diria: é preciso estar na periferia para observar efetivamente o que ele é. Esta, aliás, é uma sugestão do próprio Marx em um trabalho que pouca gente lê, seu estudo sobre a Irlanda. Vê-se melhor a Inglaterra estudando a Irlanda do que estudando Londres, idéia que desfaz um pouco o que Marx disse em O Capital.

A idéia, no caso de Subúrbio, foi a de recuperar como referência metodológica a perspectiva de quem está à margem dos cenários dominantes e dos processos dominantes. A industrialização no cenário rural, que foi o que ocorreu na atual região do ABC, trazia para esse mundo bucólico os ritmos próprios da fábrica e, portanto, um dos ingredientes básicos da vida cotidiana. E aí a vida cotidiana revela melhor o que ela é, no contraste com os componentes da cena: a vivência do medo, do que não tem sentido aparente.

Todos os anos vou a Paranapiacaba com meus alunos. Vamos de trem de subúrbio e tudo o mais, com direito a muita chuva e neblina, como é próprio daquela região. Paranapiacaba foi o primeiro posto avançado da sociedade moderna no planalto paulista, momento e parte da ferrovia, acampamento de operários. Foi o primeiro lugar de estabelecimento do que se poderia chamar de vida cotidiana em São Paulo. Hoje está praticamente em ruínas. Paranapiacaba foi concebida como uma vila operária, segundo o modelo do panóptico de Benthan, estudado por Foucault, de modo que os engenheiros pudessem, a qualquer hora do dia, inspecionar a vida de seus operários, tanto no trabalho quanto em casa. Quando se vai à casa em que morava o engenheiro-chefe e onde trabalhavam os engenheiros, de cada janela pode-se ver qualquer lugar de Paranapiacaba, incluindo até o pátio de manobras.

Os engenheiros podiam ver tanto a frente quanto o fundo das casas, tanto que a memória dos velhos operários, hoje aposentados, que ainda vivem em Paranapiacaba, é a memória de quando eles eram crianças, vigiados pelos engenheiros. Eles sabiam que estavam sendo vigiados quando à noite o pai chegava em casa e dizia que havia sido advertido porque as crianças tinham feito determinada malvadeza na rua, ou brigado, ou feito algo que não deviam.

Paranapiacaba é um lugar importante para compreender o surgimento da vida cotidiana no planalto paulista, no século XIX. A vila e a ferrovia são as referências fundamentais para compreender a difusão desse novo modo de viver e de pensar na vida dos paulistanos, um novo ritmo de vida, linear. Podemos examinar imensas coleções de documentos sobre o que presumimos ser os sinais do cotidiano na virada do século. Nenhum será mais eloqüente e mais documentativo do que a vila de Paranapiacaba. Ali se vê imediatamente o que foi a chegada da vida cotidiana em São Paulo. É lá que chegou o futebol como instrumento de manipulação, pois foi o primeiro lugar em que apareceu um campo de futebol. A idéia é usar o subúrbio como uma espécie de estação meteorológica do processo de modernização, para tentar observá-lo e vê-lo com mais riqueza. Mas e a memória? O que a memória tem a ver com isso?

A memória é o documento histórico dos que têm medo. É assim que aparece nesta pesquisa. A memória é exatamente a ausência daquilo que minha mãe tinha dificuldade em mencionar: que houve repressão, que as pessoas foram apanhadas dentro de casa numa noite de terror e desapareceram. Há vários desaparecidos dos anos 30 que foram apanhados pela polícia política, pessoas que não se chamavam "Olga" e sofreram uma repressão muito mais brutal do que Olga; os que foram deportados e fuzilados na Espanha, os operários do ABC que passaram por essa experiência, o que não está nos livros da esquerda, não está nos documentos, não está em lugar algum. Está na memória do povo.

A memória é o arquivo histórico do povo, dos pobres, e é assim que ela pode e deve ser tratada. O complicado é que a memória não é simplesmente a lembrança. A memória tem de ser interrogada. Ela tem de ser desafiada e descoberta, pois está escondida lá no fundo da vida dessas pessoas. É um pouco essa a proposta do trabalho que venho fazendo.

Releitura de Marx:

a multiplicidade do tempo presente

ESTUDOS AVANÇADOS - Você poderia historiar, um pouco, o momento em que sua atenção foi solicitada para a presença da escravidão ainda viva no Brasil contemporâneo?

J. S. M. - Comecei a me preocupar com a possibilidade de que isso podia estar acontecendo no momento em que, com a ditadura, tornou-se necessário refazer alguns caminhos no conhecimento do que é o Brasil. Muitos de nós passamos por esse desafio. As nossas certezas de 1963 se tornaram as nossas incertezas de 1964. Todos passamos por esse processo, de diferentes maneiras, em diferentes âmbitos da produção do conhecimento.

Era necessário rever os fundamentos das velhas certezas agora incerta. Havia muito de insuficiente, precário, no conhecimento que se tinha. Uma das coisas que fiz e promovi entre alunos de pós-graduação foi a releitura de Marx. Ficou evidente que a leitura das obras de Marx, que muitos alardeavam, era mais "cultura de corredor" da universidade do que de sala de aula. Tanto Florestan Fernandes quanto Octavio Ianni, Fernando Henrique Cardoso, Marialice Foracchi, e mesmo Maria Sylvia Franco, as pessoas que mais trabalharam com Marx, de maneira nenhuma sucumbiram às concessões de natureza ideológica e, por isso mesmo, nunca foram benquistos pelas esquerdas em geral. Alguns continuam não sendo, porque não estão perfilhando as concepções da esquerda institucional.

No caso do grupo de Florestan, a preocupação era com a questão metodológica na obra de Marx, o que continuou na minha geração. Os professores do seminário d'O Capital já estavam aposentados desde 1969. Em 1975, decidi que era hora de rever algumas certezas e de fato propor uma leitura séria de Marx a alunos de pós-graduação. Iniciei, então, um seminário sobre a obra de Marx, realizado todas as sextas-feiras, durante 13 anos, no departamento de sociologia da USP.

A leitura de Lefebvre veio na seqüência do seminário de Marx. Lemos praticamente toda a obra de Marx, inclusive relendo algumas coisas, e foi possível descobrir temas, questões, procedimentos e orientações que estavam totalmente esquecidos, que haviam sido deixados completamente de lado pelo discurso esquerdista dominante. Por exemplo, a enorme importância metodológica dos Grundrisse em relação a O Capital. Os Grundrisse, para um país subdesenvolvido, periférico, são muito mais importantes do que O Capital. O Capital é uma obra inacabada, e os Grundrisse são rascunhos que tocam em temas que são os nossos temas, temas da diversidade dos nossos tempos históricos, diferentes do que acontece na Europa, onde tudo tende para um tempo histórico relativamente homogeneizado, apesar dos monumentos e das evidências de uma temporalidade que não é a do presente.

No nosso caso, a mistificação é diferente, a impressão é a de que não existe história. Aqui, todos somos modernos. Todos tomamos coca-cola, comemos hambúrguer, pensamos do mesmo jeito, vemos as novelas da Globo. Quer dizer, essa é a suposição geral. Mas na verdade, as sociedades latino-americanas têm uma diversidade real de tempos históricos muito maior do que somos capazes, como intelectuais, de supor. Os Grundrisse de Marx ajudam a pensar essa diversidade de tempos históricos que não são residuais; o importante em Marx está nisso. Para ele, essa diversidade de tempos está ligada a uma certa concepção de história, de transformação, mas não se trata de tempos residuais. São tempos contemporâneos convivendo simultaneamente.

Há uma tese da maior importância na obra de Marx, especialmente no chamado Capítulo Inédito de O Capital, que Lefebvre retoma e transforma no fundamento de sua obra: trata-se da preocupação com o desencontro entre reprodução e produção de relações sociais. Ou seja, essa multiplicidade de tempos presentes, no processo histórico, implica em que a sociedade se reproduza continuamente, além de produzir o novo continuamente. Portanto, o processo histórico é um processo de desencontro entre o que se quer transformar e o que se quer preservar, é este o processo contemporâneo. O contemporâneo não é apenas a promessa do destino, da transformação, do futuro.

O fazer história não é optar utopicamente, ideologicamente, por um modelo de sociedade que seria a sociedade do futuro. É mergulhar fundo nesse conflito de tempos, descobrir nas relações reais e desencontradas as novas possibilidades sociais e realizá-las. Num país como o nosso, a própria idéia de conflito não é apenas de conflito entre classes. É conflito entre classes, entre etnias, entre grupos sociais que não estão configurados como classe, que estão mergulhados em tempos que se desencontram. Mesmo numa cidade como São Paulo, tem-se folia-de-reis, folia-do-divino. Resquícios? Recriações para dar sentido no urbano ao que o próprio urbano e o fabril não revestem de sentido. No caso da folia-do-divino, que existe na periferia, em São Bernardo e Osasco, há a presença de um forte elemento da utopia milenarista de Gioacchino da Fiore, base das concepções revolucionárias do tempo histórico.

É preciso, então, aprender a fazer uma etnografia dessa diversidade de tempos históricos. Descobrimos que a história se anuncia nesse desencontro, e não nas utopias gratuitas. Se aguçamos nossa sensibilidade para perceber essas coisas é possível ver que, ao contrário do que em geral se assume e se diz ideologicamente, o capitalismo não gesta apenas o futuro moderno, tecnologicamente avançado. Ele gera isso e, ao mesmo tempo, o seu contrário.

Quando fui desenvolver minha pesquisa na Amazônia, em 1977, já munido dessas informações e orientações, fui justamente numa área de fronteira em que, supostamente, o capital estava implantando sua racionalidade mais acabada e mais moderna. E de fato ele estava, mas a um preço humano e social tremendo, da devastação e da destruição de grupos sociais, de grupos indígenas e de grupos camponeses. Destruição de relações sociais e, ao mesmo tempo, gestação de trabalho escravo. Curiosamente, ninguém mencionou este aspecto, a não ser dom Pedro Casaldáliga, em sua famosa Carta Pastoral de 1971. Quando se começa a observar a realidade amazônica desse período (dois terços do território brasileiro), descobre-se que quase todos os grandes grupos nacionais e multinacionais mais sofisticados, grupos de ponta no processo de reprodução ampliada do capital em plano mundial, estavam profundamente envolvidos na prática da escravidão. Ou seja, essas duas coisas estavam juntas e não separadas como sugeria o marxismo vulgar.

Rosa Luxemburgo, no livro Acumulação de Capital, também observou essas questões. Marx havia prestado atenção nisso nos Grundrisse, mas não em O Capital. Em O Capital ele enxugou o modelo de capitalismo, transformou-o numa quase abstração. O desafio é, portanto, tentar entender como essas coisas rotuladas de modernas e arcaicas na verdade não são opostas, nem caminham separadas, mas caminham juntas, uma sendo necessidade da outra, numa tensão, numa luta, constante. Uma reproduz e recria a outra, e vice-versa, recriando, portanto, estilos de violência profundamente enraizados numa restauração nociva e negativa do arcaico.

A ONU e o trabalho escravo

ESTUDOS AVANÇADOS - Essas múltiplas situações de escravidão hoje são de domínio público. Pode-se lê-las nos jornais. Soube que, recentemente, você foi admitido a um grupo internacional cuja finalidade é a denúncia, o estudo da escravidão. De que grupo se trata?

J. S. M. - Em 1991, a Assembléia Geral das Nações Unidas criou a Comissão de Curadores do Fundo Voluntário da ONU contra as Formas Contemporâneas de Escravidão. Já faz uns 20 anos, aproximadamente, que a ONU reconhece que existe escravidão em vários países; em alguns, a escravidão era oficial e legal, como o caso do Sudão e da Mauritânia. Porém, conforme o problema foi se agravando, em vez de ser controlado e reduzido foi se tornando cada vez maior. Por essa razão, a Assembléia Geral decidiu criar um grupo que organizaria a pauta de trabalhos do chamado Grupo de Trabalho sobre o Trabalho Escravo, um grupo que envolve embaixadores, ONGs e outros grupos.

O grupo foi criado em 1992 pela Assembléia Geral, e é constituído por cinco pessoas, uma de cada continente, nomeadas pelo secretário-geral. Fui nomeado representante das Américas em 1996. Somos especialistas, pessoas que nos seus respectivos países e continentes têm algum trabalho relevante em relação ao tema. Nós devemos nos reunir em Genebra duas vezes por ano para examinar os casos, ocorrências, denúncias e pedidos de socorro.

Entre outras coisas, temos a tarefa de viabilizar que as vítimas possam se apresentar diretamente ao órgão da ONU que trata do assunto, que é o Grupo de Trabalho, que faça suas denúncias e peça interferência, podendo, inclusive, convocar os embaixadores e exigir dos respectivos governos o cumprimento dos tratados internacionais de 1926 e 1957, assinados por quase todos os países. Ao fazê-lo, esses países renunciaram à escravidão, comprometendo-se a combatê-la.

O grupo tem uma eficácia muito limitada por causa da falta de recursos. Quando nos reunimos em abril último, tínhamos umas duas dezenas de denúncias, vindas especialmente da África e da Ásia. Pedidos de socorro, de ajuda para projetos de intervenção para libertar pessoas, para reeducar pessoas, entre outros. Dispúnha-mos apenas de US$ 12.500 e o total dos pedidos chegava a US$ 700.000, ou seja: não tínhamos absolutamente nada.

Em nosso trabalho, tem sido difícil sensibilizar as pessoas, especialmente governos, para que contribuam para o Fundo da ONU para que esta possa interferir efetivamente no trabalho educativo, no trabalho de dissuasão, e, inclusive, quando for o caso, na libertação de pessoas vitimadas pela escravização. Como temos acesso direto ao plenário da Assembléia da ONU, tanto em Nova York como em Genebra, uma parte de nosso trabalho é ir aos plenários, já que os embaixadores não vêm a nós, e sentar ao lado de cada um, conversando com eles individualmente e pedindo que se interessem pelo problema. Para se ter uma idéia da gravidade do problema, durante anos, apenas um governo do continente americano - o qual eu represento - deu uma pequena contribuição: o governo do Chile, que doou US$ 2.500, e nenhum outro. Conversando com o embaixador de Cuba, a quem fui pedir que pelo menos comparecesse a nossa reunião para tomar conhecimento da gravidade do problema, fiquei muito decepcionado. Apesar de não ser esse o caso de Cuba, está aparecendo trabalho escravo nos Estados Unidos, por exemplo. Primeiro, o embaixador cubano tentou me descartar, e depois disse que iria à reunião - uma questão de dez minutos para ouvir um relato - e não foi. A mesma coisa aconteceu com outros governos. Fui atrás do embaixador da Itália, ele me recebeu muito formalmente e disse que a Itália, no momento, estava passando por grandes dificuldades e não poderia dar uma contribuição.

As contribuições solicitadas são ridículas. O que nós esperamos para o Fundo são contribuições governamentais de US$ 1.000. Quer dizer, se os governos derem o dinheiro, teremos recursos para fazer alguma coisa. Na conversa com o embaixador italiano, quase fiquei com vontade de dar dinheiro para ele salvar o governo de seu país. Tive que dizer para ele: "Não esqueça que a Itália foi uma grande exportadora de camponeses, que foram trabalhar em condições de servidão na América, especialmente no meu país". A Itália é emblemática, e precisa entrar num processo de ajuda desse tipo. Houve um cidadão italiano que doou ao Fundo US$ 500, e o governo italiano não deu nada. É algo muito complicado.

O governo brasileiro ainda não contribuiu, apesar de ter um programa bastante interessante de combate à escravidão; aliás, um programa eficiente, que está dando certo. Falei com o secretário da embaixada e pedi que o governo brasileiro se interessasse, para dar um exemplo nessa história. Nossa situação, enfim, é muito difícil, pois temos poucas doações. Cada um de nós está se esforçando para ver se convence esses governos a fazer alguma coisa.

Dos poucos representantes diplomáticos de organizações não-governamentais que atenderam nosso pedido, a embaixatriz da Índia compareceu a uma de nossas reuniões, pela primeira vez em oito anos, e fez uma manifestação vigorosa de apoio ao nosso trabalho. O presidente da comissão também é da índia. Compareceu também um jovem representante dos Estados Unidos, ligado aos direitos humanos, que esteve na reunião por dez minutos, e ele disse: "Os governos não contribuirão, não se iludam a respeito disso. Eles criam as comissões na Assembléia Geral para se desvencilhar da pressão da opinião pública nos seus respectivos países, mas depois, de fato, não dão dinheiro, não contribuem e não asseguram a execução dos projetos. Minha sugestão a vocês é que mobilizem a sociedade civil dos diferentes países para que ela se inquiete com a imoralidade da persistência da escravidão".

Trabalho escravo contemporâneo

Estamos trabalhando com a hipótese de que haja 200 milhões de escravos no mundo hoje, e 200 milhões é muita gente. A Organização Internacional do Trabalho (OIT), em seu relatório de 1993 reconhece a existência de seis milhões de escravos. Nós estamos incluindo crianças, que trabalham como prostitutas na Tailândia e são vendidas na índia, contraem Aids e depois são deportadas pelo governo da índia. Os pais não as aceitam de volta - foram eles que venderam as filhas -, e essas crianças precisam urgentemente de programas de recuperação e de reeducação para assegurar um mínimo de decência em suas vidas, enquanto elas sobreviverem.

O pedido mais dramático que recebemos em 1997 veio dos pigmeus do Camerum, que estão sendo escravizados pelos bantos, povo do qual sairam muitos escravos para o Brasil. Crianças pigméias estão sendo vendidas, compradas ou caçadas. No Sudão ainda se fazem expedições de caça para prender pessoas e vendê-las depois. Este é um quadro que desmente completamente essa enorme e desonesta fantasia a respeito do papel criador do capitalismo: inovador, modernizador, difusor da cidadania, uma mentalidade de classe dominante, de país rico. O que nós estamos observando é que a verdade não é essa.

Quando o secretário-geral nomeou a mim e à representante da Inglaterra como novos membros, ele mandou aos governos um apelo desesperado, chamando atenção para o fato de que o número de escravos no mundo estava crescendo muito rapidamente em função da globalização, com a difusão do modelo asiático de desenvolvimento capitalista, totalmente diferente do modelo clássico porque é baseado num esquema de transferência de todos os ônus sociais e econômicos para o próprio trabalhador.

Esse modelo cria diversas situações específicas. Primeiro, uma situação de extrema concorrência entre os próprios trabalhadores; em segundo lugar, o uso desta concorrência como técnica de rebaixamento de salário. As pessoas começam a aceitar trabalhar simplesmente pela comida e alguns, nesse limite, começam a vender os filhos. Existe comércio de filhos em vários lugares do mundo.

Na China socialista está surgindo um problema: ela está sendo atingida pelo modelo de compra de mulheres, por parte dos camponeses, devido a uma carência de mulheres para o matrimônio e para o trabalho. Em função da política de controle de natalidade, os pais mataram deliberadamente as meninas para que apenas os filhos do sexo masculino sobrevivessem, o que criou esta carência. O modelo de trabalho escravo, de compra e venda de pessoas, está se difundindo em toda a parte. Tanto na antiga Rússia, no Cáucaso, como nos Estados Unidos, há o aparecimento de casos de escravidão.

O quadro é absolutamente alarmante, mas a esquerda parece estar discutindo neoliberalismo e globalização da maneira mais fantasiosa que se possa imaginar. Não está fazendo pesquisas sobre as conseqüências mais dramáticas desse novo processo e não consegue desenvolver argumentos de natureza moral, caindo no nacionalismo, que não é um bom argumento para combater a escravidão.

É o que estamos vendo no Brasil. Seria necessário, justamente, abrir a consciência para o amplo processo de destroçamento moral das populações pobres do mundo inteiro, inclusive nos países desenvolvidos. Este é um fato muito grave.

ESTUDOS AVANÇADOS -Se um leitor da revista soubesse, por meio de pesquisas ou contatos, de casos de escravidão, o que deveria fazer, concretamente, em termos de denúncia e de processo?

J. S. M. - Em primeiro lugar, deve verificar a consistência e a procedência da denúncia. Têm havido denúncias em lugares de acesso remoto e difícil que, ao serem verificadas, não são verdadeiras. No Brasil, o presidente Fernando Henrique Cardoso reconheceu formalmente, em 1996, num pronunciamento pelo rádio, a persistência da escravidão no país. Foi a primeira vez que isso aconteceu desde 1888. Na mesma ocasião, ele criou um grupo interministerial, o Gertraf (Grupo de Repressão ao Trabalho Forçado), no Ministério do Trabalho.

É um grupo executivo com poderes acima de todos os delegados regionais de trabalho, que em geral não estavam combatendo a escravidão. Ele é subordinado diretamente ao presidente da República e mobiliza, ao mesmo tempo, todos os órgãos que, por lei, estão destinados ao combate desse tipo de situação, inclusive a Polícia Federal. Normalmente, eles são eficazes com relação a denúncias.

A denúncia também pode ser mandada à Comissão Pastoral da Terra, em Goiânia, local de funcionamento de seu secretariado nacional. Com relação a questões de trabalho escravo, a Comissão Pastoral da Terra tem trabalhado em colaboração com o Gertraf, e geralmente repassa a informação e colabora para que o caso seja apurado. O responsáveis são punidos e os trabalhadores libertados e indenizados.

Trabalho escravo:

do conceito de lucro ao de renda

ESTUDOS AVANÇADOS -Se passarmos dessas considerações, de fato tão terríveis, para uma enésima revisão das relações entre liberalismo e escravidão, poderíamos, talvez, remontar à própria teoria segundo a qual há uma incompatibilidade entre liberalismo e escravidão, e verificar o quanto esta teoria parece ter nascido de um resíduo de admiração do marxismo pela cultura burguesa. Quer dizer, parece que o marxismo, num modelo inicial de O Capital, dá à burguesia uma função extraordinária, de libertação. Criou-se uma cultura marxista, muito coerente, que certamente dura até hoje, que continua a fazer correlações muito fortes entre burguesia liberal e libertação do indivíduo. Entretanto, todas as evidências parecem desmentir a solidez dessa relação. Em que medida haveria a possibilidade de uma releitura de Marx, relativizando e às vezes contrastando diretamente essa vinculação entre burguesia liberal e libertação do indivíduo?

J. S. M. -Justamente aí há uma grande coincidência entre Marx e Weber. Os dois têm exatamente a mesma interpretação a respeito do papel redentor do capital na libertação da pessoa, no aparecimento do sujeito livre, capaz de contratar livremente, e de como ele é positivo para o desenvolvimento do capitalismo.

Marx já havia percebido que as coisas podiam não ser assim. Mesmo em O Capital há uma referência à questão da peonagem na América Latina, sobretudo no México, onde pessoas que não eram escravas eram, no entanto, endividadas e vendidas pela dívida a outras pessoas, e as dívidas eram herdadas pelos filhos dos trabalhadores, e assim sucessivamente.

Este tema é retomado por Rosa Luxemburgo com mais consistência. Ela estava concretamente preocupada em negar um pouco essas pressuposições iluministas que estão por trás da obra de Marx. Acredito que haja em Marx algumas pistas importantes para pensar esse assunto mas, infelizmente, O Capital é inacabado. Parece que a redação de O Capital foi interrompida exatamente no momento em que ele iria tocar mais de perto no assunto, e logo depois ele morreu. Mas há indicações para se repensar teoricamente essa questão. Marx faz pelo menos uma referência importante para se pensá-la, ao dizer expressamente, no tomo terceiro de O Capital, que o escravo era renda capitalizada.

Ao definir o escravo como renda capitalizada, exatamente como a terra também o é, Marx resgata a dimensão irracional do trabalho escravo não em termos de inviabilização da contabilidade de custos da empresa capitalista e, portanto, da reprodução ampliada do capital em termos racionais e modernos. Entretanto, ao remeter a questão do trabalho escravo à questão da renda, afirmando que este seria similar à renda fundiária porque seria também uma forma de renda antecipada no ato de compra do trabalhador, Marx nos remete ao campo teórico no qual se pode explorar o tema da escravidão, o território da renda e não o território do lucro.

Todo o equívoco dos intérpretes de Marx que aceitaram a idéia de um papel redentor do capital e do capitalismo em relação ao trabalho está baseado no fato de que eles pensam a questão do trabalho escravo no âmbito do lucro, enquanto o próprio Marx afirma ser mais conveniente pensar o problema do trabalho escravo no âmbito da renda territorial, sendo o trabalho escravo similar à renda da terra. Esta seria uma primeira pista.

Na minha opinião, uma segunda pista diz respeito à questão da composição orgânica do capital. Desenvolvo este tópico no segundo capítulo do livro Fronteira, no qual abordo expressamente a questão do trabalho escravo e, particularmente, as bases teóricas dessa escravidão recente. Marx já havia chamado a atenção para a questão da composição orgânica do capital e, sobretudo, para um aspecto importante desta composição que normalmente não é discutido: a fenomenologia da consciência do empresário quando ele organiza seu capital.

Nesse sentido, o empresário não pensa em termos de valor, no sentido marxista, mas em termos de lucro, ou seja: pensa no fenômeno do valor e não no valor stricto sensu, na expressão fenomênica do valor. Ao fazê-lo, estabelece o seguinte: em áreas extremamente atrasadas, como é o caso da Amazônia e de vários países da África e da Ásia, a taxa de lucro tem de ser "x". Ele raciocina de trás para frente, e não como o teórico faz, de frente para trás. Se a taxa de lucro tem de ser "x", o investimento de capital constante, equipamentos etc., tem de ser "y". O trabalho é remunerado com o resíduo dessa composição orgânica, ou seja, não entra contabilisticamente na composição orgânica do capital em termos das necessidades do trabalhador mas em termos da necessidades do capital, o que foi dito por Marx. Com isso, um capital de baixíssima composição orgânica, como é o caso nas remotas regiões de fronteira econômica, aparece e funciona como capital de alta composição orgânica, nos setores mais centrais e modernos da economia.

Quanto mais se desenvolve o capitalismo - e, portanto, mais importante se torna o capital constante -, para que não haja uma exacerbação quantitativa do capital variável - o trabalho - este vai sendo reduzido ao ponto de que chega um momento em que é preciso escravizar o trabalhador para que o capital continue se reproduzindo. E não é mais escravização no sentido clássico da palavra, porque não há um investimento prévio de capital no escravo. O escravo é reescravizado diariamente. Por isso, essa escravidão é muito mais repressiva, muito pior do que a escravidão negra que conhecemos, muito mais violenta e, ao mesmo tempo, ainda se trata de escravidão.

Para se repensar teoricamente essas questões a partir do próprio Marx, retirando o que de ideologicamente iluminista há nele em relação a esse tema, proponho o enfoque sobre esses dois pontos: a questão do escravo como renda e a questão da subordinação do capital variável ao conjunto da composição orgânica do capital.

Terceirização, baixa remumeração e desemprego

ESTUDOS AVANÇADOS - Entendo que essa seria uma teoria imanente do capitalismo na fronteira, nas regiões periféricas?

J. S. M. - Não só na fronteira, mas em todas as regiões em que ele tenha que apelar em proporção muito grande à mão-de-obra, em que não possa tecnificar o processo produtivo. Nessas áreas, então, a tendência seria justamente encolher a proporção da participação do trabalho na composição orgânica do capital, de maneira a dar falsamente a dimensão de uma composição orgânica alta e não de uma composição orgânica baixa. Ou seja, os setores atrasados da economia podem estar na fronteira, mas podem estar também na indústria e na cidade. É o que está acontecendo com a terceirização, por exemplo, que tende a funcionar como se os trabalhadores fossem capitais de alta composição orgânica quando, de fato, são capitais de baixa composição. É nesse sentido que o trabalho passa a ter sua remuneração crescentemente reduzida.

ESTUDOS AVANÇADOS - A variante dessa tendência, nos países desenvolvidos, seria o aumento do desemprego?

J. S. M. - O aumento da terceirização, já que o desemprego é um de seus componentes estratégicos. O trabalhador é despedido - e isto está acontecendo maciçamente no mundo inteiro -, e para se reempregar o faz como se fosse empregado de si mesmo, passando a vender sua força de trabalho não por aquilo que necessita para sobreviver, mas concorrendo com os meios de produção. Em outras palavras, ele não concorre com os outros trabalhadores mas com os meios de produção.

O desemprego é apenas um dos resultados desse processo, ou seja, cria-se maciçamente desemprego, substituindo o trabalhador por tecnologia, e a mão-de-obra ainda necessária para fazer funcionar a tecnologia tem de concorrer com a própria tecnologia. Recentemente, acompanhei uma reportagem na televisão na qual se afirmava estar havendo uma redução brutal de salários, inclusive de pessoal técnico altamente qualificado. Já há engenheiros se proletarizando, sendo tercerizados, indo às fábricas como se fossem empresários oferecendo uma mercadoria. Só que essa mercadoria é constituída pelos próprios serviços que podem executar e não mais sua força de trabalho, embora esta força esteja embutida na mercadoria que oferecem.

ESTUDOS AVANÇADOS - Nessa atual situação, como é que você vê as investidas contra a legislação trabalhista no meio rural?

J.S. M. - Ela não está acontecendo apenas no meio rural, mas também na cidade. Os empresários estão fazendo discursos de desregulamentação da legislação do trabalho, dos direitos sociais, dos direitos trabalhistas adquiridos, porque assim criam o trabalho puro. Ele se torna estritamente aquilo que eles necessitam em termos de força de trabalho, sem qualquer responsabilidade social da empresa.

É um argumento canalha, porque a idéia em relação aos trabalhadores é basicamente a seguinte: abram mão de seus direitos e concorram com a máquina. No meio rural, não se trata de uma volta ao passado. Não se quer voltar, por exemplo, ao tempo do colonato, em que não havia regulamentação da força de trabalho mas havia uma alta responsabilidade social dos fazendeiros porque eles eram os protetores daqueles trabalhadores, ofereciam terra, faziam favores e os ajudavam, mesmo com toda a violência existente nessa relação.

Agora é diferente. Agora os fazendeiros querem desregulamentar mas não querem, por exemplo, oferecer terra para as pessoas trabalharem gratuitamente, como compensação por essa desregulamentação. Eles não estão falando numa reforma agrária compensatória, realizada inteiramente nas mesmas fazendas, para absorver esta mão-de-obra. Aliás, essa proposta seria irrealista, porque no meio rural todo o trabalho já está fragmentado, não se trata mais do mesmo processo de trabalho de antigamente, em que o trabalhador tinha trabalho o ano inteiro. Agora se tem trabalho em épocas específicas, no corte da cana, na colheita do café.

O que se quer é desregulamentar aquilo que é puramente setorial, ou seja, aquilo em que é preciso que haja direitos trabalhistas. Quer-se, efetivamente, promover um retrocesso histórico e não a criação de formas mais humanizadas de relacionamento quanto ao que está acontecendo atualmente, não só no campo mas também na indústria, que está fazendo o discurso da desregulamentação. Aliás, esse discurso está sendo feito no mundo inteiro, em todas as áreas atingidas pela globalização.

ESTUDOS AVANÇADOS - Vamos acabar descobrindo que a escravidão é o horizonte do capitalismo...

J. S. M. -É o que já se tem na índia. Os pais vendem os filhos e se vendem, porque assim o patrão é obrigado pelo menos a sustentá-los. E isto é algo que não estava nas cogitações de ninguém quando discutíamos teoricamente o capitalismo, nem passava pelas nossas cabeças que isso iria acontecer. E não se trata do arcaico renascendo. É uma escravidão nova, é algo absolutamente novo.

Igreja e sociedade: a opção pelas minorias

ESTUDOS AVANÇADOS - Nas suas andanças pelo interior do Brasil, pelo Norte, você tem tido oportunidade de assessorar a Pastoral da Terra e tem conhecido por dentro o que é a posição da Igreja Católica, ou pelo menos de inúmeros bispos da Igreja Católica, em relação ao problema da escravidão, ao problema dos índios, enfim, das conseqüências todas do capitalismo no Brasil e no mundo. Gostaria que você, com toda liberdade, nos desse a sua interpretação dessa mudança que ocorreu, particularmente a partir dos anos 60, no interior da Igreja, e que perdura apesar do contravapor conservador dos últimos anos. Como você vê essa opção preferencial pelos pobres que vem sendo a marca coerente de parte da Igreja Católica?

J. S. M. - Sei que esse é um tema que tem sido objeto de muita preocupação por parte não só de católicos mas de protestantes também, porque algumas igrejas protestantes passaram por um processo parecido, e outras passaram por um processo parecido ao contrário, como é o caso da Igreja Presbiteriana, que se radicalizou na linha oposta nos anos 60, aderindo e justificando a ditadura.

Para que se entenda o que vou dizer a seguir, retomo algumas questões relacionadas às igrejas protestantes no Brasil. Com o golpe de Estado de 1964, houve uma "protestantização" do Estado brasileiro, antes impensável. Pela primeira vez na história do Brasil, protestantes, sobretudo das igrejas tradicionais calvinistas, tiveram acesso ao poder. Em Pernambuco e no Rio de Janeiro, foram eleitos governadores que eram presbiterianos. Em São Paulo, uma parte do governo Laudo Natel veio da Igreja Presbiteriana, por meio do colégio Mackenzie. Tivemos, finalmente, o presidente Geisel, de origem luterana. Não estou acusando as igrejas protestantes de serem coniventes com a ditadura, embora algumas tenham efetivamente sido. Mas esse fenômeno não foi ainda investigado e analisado como deveria.

No Brasil, onde os militares parecem ser, tradicionalmente, anticatólicos - em parte, por serem positivistas - parece ter havido um certo encontro de oposições religiosas nessa questão, o que não foi, em princípio, negativo. O mesmo aconteceu nos Estados Unidos, onde a Igreja Católica é muito avançada quanto à questão social. Quanto ao Brasil, parece que o Estado foi sendo "protestantizado" e que a Igreja Católica foi se transformando, institucionalmente, numa igreja de minorias e não de maiorias. Quando me refiro a minorias e maiorias, estou pensando em termos de poder, não em termos numéricos.

Nunca conversei com bispos sobre este assunto para saber se de fato eles perceberam esse processo. Se realmente aconteceu, foi um bem enorme para a Igreja Católica porque fez com que ela se desvencilhasse de um vínculo que possuía com o Estado e passasse a seguir sua vocação, seus princípios, suas concepções com muito mais liberdade, sem fazer concessões políticas ou se intimidar em face do poder.

Este é um ponto que tenho como referência ao refletir sobre o porquê da Igreja Católica ter dado passos tão importantes na direção em que deu. Evidentemente, esse processo já vinha acontecendo antes do golpe de 64. Venho de uma região que teve um dos chamados bispos progressistas, que me impressionou muito no período em que eu trabalhava na fábrica. Seu nome era dom Jorge Marcos de Oliveira. Era um homem que ia apoiar greve na porta da fábrica, para escândalo dos padres, que ficavam horrorizados com sua atitude.

Na minha cidade os padres eram extremamente conservadores, possivelmente velhos padres italianos fascistas. Eu inclusive colhi documentos na Itália sobre outras questões e descobri que alguns tinham até uma certa admiração por Mussolini, postura que também foi própria de uma certa época. É neste contexto que chega dom Jorge, aí pela segunda metade dos anos 50, para fazer as mudanças que achava que deveria fazer e para disputar espaço com o Partido Comunista na região. Ele não veio brigar com os comunistas; ao contrário, veio conviver com eles, reconhecendo a legitimidade da mediação ideológica e partidária deles. Dom Jorge deu uma grande lição de abertura nesse sentido, em fins dos anos 50 e começo dos 60. Nessa época já havia outros trabalhos desse tipo, como aquele realizado por dom Hélder no Rio de Janeiro, de onde também vinha dom Jorge.

Tenho lido essa questão da mudança de orientação na linha da Igreja não como uma simples mudança ou conversão, mas como um desbloqueio da coerência de sua opção ética e religiosa. Chego a ficar irritado quando as pessoas falam na conversão dos bispos por achar absolutamente desonesto pensar que até ontem eles agiam contra os pobres, contra o povo, e de repente alguma coisa aconteceu na vida deles e fez com que mudassem. É nesse sentido que não concordo com a idéia de conversão, pelo menos não entre os bispos que eu conheço.

Conheço muitos bispos no Brasil. Quando assessorei uma assembléia da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), fiquei muito impressionado com eles. Com exceção de dois ou três casos de bispos mais intransigentes e fechados, todos se mostraram muito abertos para discutir, conversar, mudar de opinião, apoiar os que estavam em mais dificuldades, como os bispos da Amazônia numa determinada época. Assim, não acho que tenha havido conversão mas uma mudança na visibilidade de sua ação, além de uma maior solicitação de seu empenho pessoal. Aquele bispo que ficava no palácio episcopal - que freqüentemente não era realmente um palácio -desaparece e dá lugar a um bispo que é como dom Jorge: vai para rua, para a porta das fábricas.

No Brasil, essa atitude está também relacionada ao fato de que boa parte dos bispos vêm de regiões camponesas tradicionais. Por isso, a dimensão afetiva da vida, da decência das pessoas, está muito presente neles. Os bispos estrangeiros também vem quase todos de famílias camponesas, geralmente italianas ou espanholas. Talvez essa questão possa ser explicada um pouco por esse clima sociológico da condição de origem, do recrutamento dos bispos.

Igreja e questão agrária

No caso específico da questão agrária, até os anos 50 a Igreja Católica tinha uma linha bastante clara: nunca havia falado em reforma agrária, nem tinha preocupações a esse respeito. É com o bispo dom Inocêncio, de Campanha, em 1950 -exatamente o mesmo ano em que o Partido Comunista está se dividindo por causa da questão agrária - que começam a aparecer dificuldades a esse respeito, quando ele faz um primeiro pronunciamento episcopal a favor de uma reforma agrária.

Dom Inocêncio não era a favor da reforma agrária na perspectiva que a Igreja tem hoje. Mas era evidente que havia um enorme problema social relacionado ao problema da terra, e também o temor de uma convulsão no campo que retirasse da Igreja suas bases religiosas, o que está dito explicitamente no documento de dom Inocêncio, um documento pioneiro em que ele anuncia uma tentativa de conversação entre fazendeiros e trabalhadores daquela região. Ele era bispo em Minas Gerais, e os grandes fazendeiros participaram de uma assembléia realizada em sua diocese para discutir o problema da reforma agrária. Nessa altura, começa a ficar evidente que os bispos estão tomando consciência de que a questão agrária iria eclodir. No Brasil, a primeira consciência se deu com o que se chamava na época de "questão do êxodo rural".

O que significava o êxodo rural? O trabalhador saía da sua vidinha de família no campo, porque não tinha mais alternativas. Ia para a cidade viver nas favelas, como relatou dom Inocêncio. Depois de um primeiro contato, os bispos começaram a perceber que esta situação envolvia algo mais do que um simples comprometimento das bases da Igreja Católica. Envolvia, também, um processo de desmoralização das pessoas, de desagregação das famílias, de comprometimento grave da dignidade humana. Surgiu, assim, além da preocupação religiosa, uma preocupação moral.

Parece que esse foi o fermento nos anos 60. Nas vésperas do golpe, a Igreja se declarou a favor da reforma agrária, mas respeitando o direito de propriedade. Ela estava fazendo claramente a opção por um capitalismo humanizado. Depois veio o golpe e, sobretudo, a política implantada na Amazônia, e é lá que se dá uma grande mudança na orientação pastoral dos bispos. É na Amazônia que apareceu dom Pedro Casaldáliga, que tomou posse na prelazia de São Félix do Araguaia em 1971. Dom Tomás Balduíno, que já estava fazendo um trabalho com os índios na região do Araguaia, foi para Goiás Velho.

Esses bispos descobriram uma coisa importante na Amazônia: o que estava acontecendo naquela região era justamente a expansão do capitalismo, mas não de um capitalismo que salvaria a condição, a decência, a dignidade e a sobrevivência das pessoas. Ao contrário, tratava-se de um capitalismo que brutalizava e escravizava. Dom Pedro Casaldáliga percebeu isso imediatamente, pois ao chegar em São Félix as primeiras pessoas que o procuraram foram escravos fugidos, alguns morrendo. Dom Pedro relatou esses e outros fatos em sua carta de 1971. Tenho inclusive uma fotografia dele enterrando um sujeito sendo carregado em uma rede, ainda vestido de batina, todo de branco, recém-chegado.

O capitalismo veio bater na porta dos bispos, e mostrou sua verdadeira face, não aquela que aparecia nos documentos e nas teorias, não aquela que aparecia na ilusória suposição de que com o desenvolvimento capitalista os problemas da população estariam resolvidos. Pensava-se que o que prejudicava o Brasil era o Brasil arcaico. Havia um debate polarizado em torno disso, e a Igreja Católica participou muito desse debate do Brasil moderno contra o Brasil arcaico. A pressão da Igreja foi muito importante para a criação da Sudene, com a perspectiva de modernizar o Brasil, criar empregos e alternativas de vida, melhorar as condições de vida da população em geral.

Na Amazônia, esse modelo da convivência com o capital, gestado pelos bispos do Nordeste, não funcionou, porque não se tratava disso. Na Amazônia também houve incentivo fiscal e grandes propostas de desenvolvimento. Os fazendeiros queriam cooptar a Igreja para a violência que estavam cometendo, uma violência óbvia em que as pessoas apanhavam, eram assassinadas, tentavam fugir e eram amarradas, trucidadas. Dom Pedro, e os padres que trabalhavam com ele, testemunharam tais fatos inúmeras vezes.

A esquerda e a Igreja Católica no Brasil

As primeiras reuniões de bispos para rediscutir a visão da Igreja foram feitas simultaneamente em três lugares: na Amazônia, no Nordeste e em São Paulo, com um grupo coordenado por dom Paulo. Estas reuniões foram realizadas por ocasião do aniversário da Declaração aos direitos humanos e produziram documentos, talvez os mais importantes já produzidos pela Igreja Católica no Brasil nesta segunda metade do século 20. Foi nesse momento que a Igreja tomou consciência e começou a denunciar que o capitalismo não era exatamente o que ele próprio anunciava. A partir daí ela decidiu se posicionar, dizendo que seu compromisso não era com o capitalismo, nunca havia sido, mas com a dignidade humana, com a sobrevivência do homem.

Esses documentos da Igreja Católica têm mais importância do que imaginamos, formando os elementos de referência crítica da Igreja em relação a sua própria experiência e ação pastoral. A Igreja se abre nesse momento a outras perspectivas. É preciso lembrar também que nessa época há muitos perseguidos políticos e religiosos que não são católicos. O fato de dom Paulo ter em São Paulo o presbiteriano Jaime Wright como um de seus assessores importantes é muito indicativo de uma abertura de mentalidade bastante relacionada ao Concilio Vaticano II, ao Papa João XXIII. A Igreja passa a mostrar muito mais tolerância e disponibilidade para conviver com o diferente, e numa escala que a esquerda não foi capaz de cultivar.

A esquerda não se tornou capaz de conviver com os grupos religiosos no Brasil, e continua sendo intolerante em relação a eles, subestimando-os e desdenhando-os. A Igreja Católica, por sua vez, foi capaz de conviver com a esquerda. Naquela época de perseguições, muita gente de esquerda perseguida foi abrigada pela Igreja, tanto na Amazônia como em São Paulo. E os descartados pelas igrejas protestantes, sobretudo pela Igreja Presbiteriana, foram abrigados pela Igreja Católica em vários lugares do Brasil. Encontrei presbiterianos trabalhando na Pastoral Social Católica, em Brasília, alguns eram até mesmo pastores. Aconteceu com eles o que aconteceu com todos que tinham uma posição mais à esquerda, mais humanista, mais ecumênica: eles foram postos para fora de suas igrejas.

A Igreja Presbiteriana depurou seus quadros, colocou efetivamente as pessoas para fora, tornando-se, informalmente, a Igreja do Estado. Pessoas como Rubem Alves e Jaime Wright, entre outras, tiveram sua permanência na Igreja inviabilizada. Muitas dessas pessoas foram absorvidas pela Igreja Católica, até mesmo pessoas de esquerda que eram materialistas, que não acreditavam em Deus, que não possuíam religião alguma. Até as pessoas que se diziam anticatólicas, que achavam que a Igreja era um instrumento de poder, foram abrigadas pela Igreja Católica e participaram ativamente de seu trabalho pastoral durante muito tempo.

Naquele momento, a Igreja sofreu uma grande transformação, em parte devido a características que ela já possuía, em parte devido ao tipo de educação que o episcopado recebia. A origem social do clero, em sua maioria vindo de regiões camponesas, também foi um fator importante. Além disso, a conjuntura favorecia essas mudanças, apontando claramente a necessidade de que alguém exercitasse a solidariedade e a generosidade numa escala não vista antes. As pessoas precisavam de abrigo, de apoio, de acolhimento e de proteção.

E neste contexto que a Igreja se ressocializa, principalmente os bispos, aqueles que sofriam as demandas mais contundentes dessa hora de sofrimento. Os bispos se ressocializaram, eles não se converteram; naquele momento, descobriram dimensões muito mais amplas da sua própria opção religiosa e da sua própria vocação. E minha tese é de que isso o Vaticano não teve e nem tem condições de mudar. A Cúria Romana, que é muito conservadora, burocrática e institucional, não conhece e, portanto, não pôde interferir nesse processo.

A participação das igrejas protestantes

e o surgimento das seitas

ESTUDOS AVANÇADOS - Você se refere a alguns grupos, algumas confissões protestantes que ficaram próximas da Igreja Católica naquele momento de repressão e que, de algum modo, ainda trabalham numa linha progressista. Você poderia particularizar um pouco quais seriam estas confissões protestantes que se abriram ao social a partir dos anos 60?

J. S. M. - Poderia responder a partir da minha experiência direta no trabalho da Comissão Pastoral da Terra (CPT). A Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil, por exemplo, tem sido membro oficial da Comissão Pastoral da Terra, apesar da CPT ser um órgão da CNBB. Durante muito tempo a vice-presidência da CPT foi ocupada por pastores luteranos, sucessivamente, e a presidência por bispos católicos. Em algumas regiões do Brasil, como Paraná e Rondônia, a CPT é sempre dirigida por um luterano e não por um católico, porque os católicos são minoria no trabalho da CPT nessas áreas. Há, portanto, uma convivência ecumênica muito importante.

Os presbiterianos descartados oficialmente pelas suas igrejas se recolheram para a Igreja Católica, continuando presbiterianos. Não se converteram nem foram solicitados à conversão, e se tornaram colaboradores importantes de bispos, em trabalhos pastorais. Foram efetivamente acolhidos, a palavra é essa. Como outro exemplo, posso dizer que ainda hoje encontro pastoras da Igreja Metodista em reuniões da CPT. No início do seminário metodista, em São Bernardo do Campo, o paraninfo da turma de pastores ali formados em 1964 foi dom Hélder Câmara, logo depois do golpe. Pelo menos estas três igrejas - os dissidentes e descartados da Igreja Presbiteriana, e os pastores e pastoras da Igreja Luterana e da Igreja Metodista - têm tido uma convivência com a Igreja Católica, até mesmo oficialmente, como é o caso da Igreja Luterana.

Há ainda os encontros de bispos no Conselho Nacional das Igrejas Cristãs (Conic), sobretudo no sul do Brasil, que reúnem protestantes e católicos. No ano em que assessorei a assembléia da CNBB havia um representante da Igreja Luterana, convidado por dom Ivo Lorscheider. Dom Ivo representava a Igreja Católica no Conic, e esse pastor era o representante dos luteranos naquele Conselho. Dessa forma, tem havido todo um trabalho de convivência, colaboração e apoio recíprocos, sobretudo na área das pastorais sociais, independente de restrições hierárquicas de pessoas que não estão familiarizadas com o que esteja acontecendo mais no chão.

ESTUDOS AVANÇADOS - Para encerrar esse tema da relação entre igrejas e sociedade, nós não podíamos omitir, tratando-se de uma visão de um sociólogo, o que está acontecendo com o que se chama a multiplicação das seitas. Estas seitas, que parecem não ter ligação nenhuma com as igrejas citadas, quer a Católica, quer as igrejas protestantes mais tradicionais, em geral são interpretadas como fenômenos da religião numa sociedade de massas, com forte componente conformista e conservador. Você vê que isto já tem um peso, no sentido ideológico, nos subúrbios da periferia?

J. S. M. - Sem dúvida tem. As seitas, que não são igrejas protestantes, é importante dizer isto, mas sim igrejas evangélicas, não têm nenhum vínculo com a doutrina, nem com as orientações teológicas da Reforma Protestante. São, digamos assim, uma espécie de resíduo extremo do que foi a Reforma, mas não têm nenhuma relação com ela.

As seitas estão crescendo muito, basicamente nesse território vazio de alguns possíveis equívocos do trabalho pastoral da Igreja Católica. Talvez a estratégia de redefinição da relação da Igreja Católica com as populações mais pobres, na periferia, em certas áreas rurais quase urbanizadas, seja um tanto quanto insuficiente, excessivamente ritual. Seria necessário rever criticamente certas coisas, o que vale para as igrejas protestantes tradicionais, que também estão perdendo pessoas para esses grupos.

As igrejas eletrônicas, as igrejas do espetáculo religioso, as seitas, estão cobrindo uma necessidade da população que não é uma necessidade religiosa stricto sensu. Estão cobrindo necessidades psicológicas dos que sentem a carência de ser parte de alguma coisa ampla, e não de algo pequeno como as comunidades de base, ou seja, de ser parte do espetáculo moderno. Mas isso não é o moderno, é apenas o espetáculo do moderno. Não tenho dúvida de que se fizermos uma pesquisa, descobriremos que elas têm a função de reintegrar as pessoas que estão à margem, recriando uma concepção administrada da esperança.

Há aspectos que poderiam ser avaliados positivamente mas, de qualquer modo, essas seitas criam uma massa manipulável, em todos os sentidos. Para mim, esse é seu aspecto mais complicado Essas seitas não se contentam em manipular em termos de crença, de religião, de estabelecer uma espécie de liderança carismática compulsória, se é que isto é possível. Buscam manipular também no âmbito da política, no âmbito de outras opções, e de fato estão crescendo como partidos políticos, não apenas como seitas religiosas.

Reforma agrária, governo e MST

ESTUDOS AVANÇADOS -Gostaríamos de ouvi-lo sobre a questão agrária e o que está acontecendo mais recentemente, inclusive em relações às iniciativas governamentais. Como é que você vê a atual situação dessa questão, e qual a perspectiva a curto e médio prazos sobre o problema dos assentamentos e do movimento dos sem-terra?

J. S. M. - Nas últimas semanas, algumas coisas importantes aconteceram em relação à questão agrária, importantes por revelarem as dificuldades de todos aqueles nela envolvidos, tanto do governo quanto dos próprios sem-terra e também da Igreja, que atua nessa área por meio da Comissão Pastoral da Terra.

Estamos vivendo um momento de impasses em relação à questão agrária. Em primeiro lugar, houve a marcha dos sem-terra, que foi louvada e acolhida, interpretada como uma manifestação criativa que ajudaria a desbloquear a questão agrária porque forçaria o Estado brasileiro a tomar medidas. Mas a verdade é que tudo indica que a marcha foi uma faca de dois gumes. Ela colocou o governo em face da realidade, da pressão dos movimento sociais por reforma agrária, mas, ao mesmo tempo, revelou a fragilidade do movimento social.

A marcha dos sem-terra, basicamente, funcionou como uma marcha de questionamento de legitimidades. Questionou a legitimidade da representação política, por meio da qual os sem-terra costumam falar no Congresso Nacional, porque foi preciso ir à Brasília, como sujeito específico de reivindicação política, sem a participação dos representantes políticos do movimento dos sem-terra. Os deputados e os senadores foram meros acólitos desse processo, o que fragilizou essa representação.

Fragilizou também a representação sindical, pois revelou as rupturas internas entre aqueles que falam a favor da reforma agrária. O confronto entre Contag e Movimento dos Sem-Terra, por exemplo, ficou claro naquele momento. Mas também ficou claro que no conjunto do movimento sindical a velha ideologia de esquerda de que a classe operária vai na frente e o trabalhador rural vai atrás não se confirmou, porque as coisas se inverteram. O movimento sindical brasileiro precisou dos trabalhadores rurais para poder se expressar politicamente no maior cenário político do país, Brasília e a Praça dos Três Poderes.

Fragilizou, ainda, o próprio Movimento dos Sem-Terra, porque o Movimento questionou não apenas as ambigüidades da política agrária do governo atual mas também a legitimidade política do governo. O MST não foi dialogar com o governo, mas questioná-lo em seu conjunto. Este fato leva às interpretações que estão sendo feitas de que, no fundo, o Movimento dos Sem-Terra virou partido político. Tenho algumas dúvidas sobre esta afirmação, mas acho que é uma hipótese a ser considerada. O movimento se fragilizou porque não percebeu que todo processo tem no mínimo dois lados, e o outro lado também é capaz de tomar iniciativas. Neste caso, o "outro lado" tomou uma iniciativa importante: abriu o Palácio e mandou as pessoas entrarem, dizerem qual era a reivindicação que estavam fazendo. E os manifestantes não tinham uma reivindicação para fazer. Fizeram muita ironia, mas não apresentaram um projeto, è isso ficou bastante claro.

Depois o Planalto convidou o Movimento dos Sem-Terra para estudar a possibilidade de uma comissão conjunta para definir as diretrizes do programa agrário do governo Fernando Henrique Cardoso. O Movimento dos Sem-Terra demorou para responder e, quando respondeu, disse não. Qual o sentido de fazer uma marcha à Brasília, com uma enorme mobilização da opinião pública, se de fato não se tem proposta nenhuma?

O governo, por sua vez, aparentemente percebeu essa fragilidade e está tomando medidas que obviamente não favorecem a luta pela terra, nem a política de reforma agrária. Acredito que o decreto recente do governo, em forma de medida provisória, que define como será feita a reforma agrária, tem um destinatário certo quando afirma que não vai desapropriar terras onde haja invasões, esperando a desocupação. Esse destinatário é o Movimento dos Sem-Terra. O MST está em face da urgentíssima necessidade de rever suas metas, suas estratégias, sua prática e sua luta, o que provavelmente será feito, mas implica em reconhecer que está diante de desafios poderosos.

Por outro lado, acredito que esse mesmo decreto remove, ainda que parcialmente, os obstáculos que a Constituição de 1988 criou para a reforma agrária. Em termos legais, ele agiliza os mecanismos de desapropriação e de imissão de posse, o que pode fazer com que surjam mudanças importantes.

De qualquer modo, um problema que permanece é que a reforma agrária continua sendo feita a partir de motivações de natureza econômica, e continuo insistindo que a reforma agrária deveria ser feita por motivações de natureza social. Ou seja, num país como o Brasil, ela tem de ser feita por razões de política social e não de política econômica. A reforma agrária como expressão de política econômica é uma herança da ditadura, e é uma reivindicação dos grandes proprietários de terra. Toda e qualquer iniciativa nessa área fica dependendo da priorização da questão da produtividade, ou seja, pôr o pequeno agricultor pobre competindo por padrões de produtividade que são os do grande proprietário, altamente beneficiado por uma política de incentivos fiscais e que pode utilizar, embora nem sempre utilize, padrões tecnológicos muito desenvolvidos.

Em suma, o quadro é um quadro de impasses. Os grupos de oposição a Fernando Henrique Cardoso, em geral grupos de esquerda, como a Igreja e o PT, por exemplo, estão instrumentalizando excessivamente a questão da reforma agrária para viabilizar seu próprio antagonismo. Acredito que seja um equívoco básico. Por que? Porque a questão agrária, como já foi dito, é similar, em termos de qualidade política, à questão da escravidão no século XIX, ou seja: é uma questão suprapartidária, não podendo ser objeto exclusivo de um programa partidário. Ela tem de ser programa de todos os partidos, e não apenas de um. Se não for tratada como questão suprapartidária não se viabilizará, e o Brasil continuará com esse grave problema, comprometendo a viabilidade da transformação do país num país democrático.

Reforma agrária:

possibilidade de ressocialização

ESTUDOS AVANÇADOS - Evidentemente, o tema da reforma agrária e a relação da questão agrária com o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra é algo extremamente candente e atual. Você tem pontos-de-vista muito elaborados sobre esse tema, dada sua longa familiaridade com trabalhos empíricos, sua assessoria à Comissão Pastoral da Terra; enfim, seu nome está, umbilicalmente, ligado ao problema agrário no Brasil. Gostaria que você pudesse desenvolver um de seus pontos-de-vista a respeito da reforma agrária, sobretudo a desvinculação com o que você chama agrarização do tema. Se bem entendo, você faz uma separação inicial para clarear o terreno.

J. S. M. - No Brasil, o tema da reforma agrária tem sido dominado por uma preocupação característica dos anos 50, ou seja, uma reforma agrária que resolva o problema de acomodar, no cenário social e político, grandes massas rurais da população que não conseguem se integrar no mundo urbano e moderno.

Sobretudo no Brasil, a reforma agrária tem sido tratada pelas esquerdas, mas também pela direita, como uma solução arcaica para os problemas de um país que pretende, quer e precisa se modernizar. Sempre entendi que há nisso um equívoco enorme. A reforma agrária é a condição da modernização no Brasil, não só porque desobstrui os caminhos da transformação do país num país moderno, mas também porque tem possibilidade de abrir um novo campo de atividade profissional. Desagrarizar a questão agrária é fundamental para que as atividades rurais possam ser encaradas como profissão, como qualquer profissão moderna. Isso está acontecendo em outros países.

A experiência dos kibutz,em Israel, fazendo um grande apelo a populações que não têm nenhuma origem rural, ressocializa as pessoas para uma nova perspectiva de vida ligada à natureza, ao trabalho no campo, e assim por diante; é algo que tem de ser feito no Brasil. Para um país que possui muita terra e baixa capacidade de geração de empregos, ou pelo menos capacidade insuficiente, a alternativa de reinserção de amplos contigentes da população no mundo rural - pessoas que têm uma origem ainda não muito remota no mundo rural - é uma forma de solução de problemas sociais que deveria ser considerada. A questão da reforma agrária deveria ser encaminhada por aí. Nesse sentido, o país tem condições, e tem necessidade, de fazer da reforma agrária um grande projeto de reforma social no campo.

Todos os grupos que têm lutado pela reforma agrária não estão se dando conta de que existe essa alternativa para ser incorporada nas respectivas bandeiras. Mesmo o Movimento dos Sem-Terra, que considero um movimento modernizador no campo, não encara a questão da reincorporação dos pobres da cidade no mundo rural como uma alternativa profissional tão boa como qualquer outra. Encaram apenas como uma forma de questionamento da problema da pobreza no país. É preciso questionar a pobreza, e vigorosamente. Mas, ao mesmo tempo, é preciso não fazer disso uma solução utópica do tipo "vamos resolver esse problema imediatamente porque as pessoas precisam comer". Acho que não se trata apenas da questão das pessoas poderem comer. Trata-se da questão delas terem uma inserção correta, e a melhor possível, nas atuais condições da economia e da sociedade.

Uma medida positiva recentemente implantada pelo governo foi a criação de um departamento de estudos no Ministério da Reforma Agrária. Esse departamento está colhendo subsídios para definir temas de pesquisa e de debate. Dependendo de como as coisas se encaminharem, acredito que as verdadeiras explicações sociais e políticas da reforma agrária poderão chegar à consciência dos funcionários do governo e dos altos funcionários responsáveis pela política agrária e, eventualmente, ganhar em termos de qualidade.

Como parte dessa tentativa de ter uma consciência mais abrangente do problema agrário, o Ministério convidou o sociólogo Juarez Brandão Lopes para organizar um departamento de estudos. Juarez, que foi professor na USP, está fazendo contato com a comunidade acadêmica, inclusive para estudar a viabilização de projetos de pesquisa, pedindo sugestões de temas, enfim, buscando a cooperação acadêmica, algo muito positivo.

Não sou excessivamente otimista em relação ao alcance de projetos como esse, mas acho que é necessário ampliar a informação que se tem sobre a questão agrária, sobretudo a informação que o Estado tem sobre ela. Há temas urgentes que precisam ser investigados. Onde é que estão os bloqueios da reforma agrária? Não há nenhuma informação consistente sobre o assunto.

Já existe uma certa literatura sociológica, pequena e de razoável qualidade, sobre os grupos que se opõem à reforma agrária. Mas, efetivamente, onde está o bloqueio, qual a qualidade dele, como é que ele se faz presente, por exemplo, no Congresso Nacional, nos tribunais, nas polícias, que acabam se envolvendo em esquemas de repressão contra aqueles que lutam pela reforma agrária? Esse bloqueio não está identificado e diagnosticado, e este é um tema que poderia ser investigado.

Minha tese é de que o Movimento dos Sem-Terra, ao contrário do que disse Fernando Henrique Cardoso há algum tempo, numa entrevista à Folha de S. Paulo, não representa o arcaico contra o moderno. Ao contrário, o Movimento dos Sem-Terra representa uma substancial modernização das relações sociais no campo.

Há, nos acampamentos dos sem-terra, um poderoso mecanismo de ressocialização, um mecanismo que reintegra a tradição familiar do mundo camponês na realidade econômica do mundo moderno, o que é precioso, pois há poucos países em que as lutas populares no campo se desenvolveram com essa dimensão modernizante, o que não pode ser subestimado.

Este é, portanto, um outro tema que sugiro que seja melhor estudado: o processo de ressocialização nos acampamentos e assentamentos, inclusive fazendo estudos comparativos entre assentamentos oficiais do Incra, assentamentos feitos por empresas privadas - o que aconteceu muito na região amazônica no período militar - e assentamentos espontâneos, promovidos pelo Movimento dos Sem-Terra, eventualmente com apoio da Igreja.

Acredito que esses estudos poderiam ajudar o governo a ter uma consciência menos dependente dos técnicos e dos economistas, que estão dando ó tom na questão da reforma agrária de maneira equivocada. Os elementos que têm sido apresentados prejudicam o diálogo, não ajudam na construção de um projeto para a sociedade brasileira que incorpore a questão agrária positivamente, uma questão que, se resolvida, colocará o país num caminho político e social parecido com o que aconteceu em outros lugares. Sugeriria, inclusive, que fosse feito um estudo comparativo sobre a questão agrária e suas soluções em vários países, como Estados Unidos, Brasil e Japão.

As Ciências Sociais no Brasil

ESTUDOS AVANÇADOS -Você fez parte do grupo que, sob a liderança de Florestan Fernandes, colocou a sociologia no centro mesmo dos estudos sociais lato sensu, desde os fins dos anos 50 e ao longo dos anos 60. Esse período foi extremamente fecundo para as Ciências Sociais no Brasil, dele nós recebemos obras fundamentais. Em parte, esta tradição foi seguida, mas em parte, provavelmente em grande parte, ela foi ou dispersada depois das aposentadorias compulsórias ou efetivamente substituída por outro tipo de estudo. Gostaríamos que você fizesse uma apreciação desse processo de conservação de temas, de preocupações, de projetos e de mudanças. Como é que você vê, atualmente, a situação da sociologia no campo dos estudos sociais, e seria possível fazer um prognóstico sobre o desenvolvimento das ciências sociais no Brasil?

J. S. M. -De fato, o período que se abre com o Ato Institucional nª 5, é um período de muita perda e pouco ganho para as Ciências Sociais, em particular para a sociologia. E essa minha visão não é tradicionalista, conservadora.

Acredito que o que aconteceu com nosso grupo na USP - um dos grupos mais dinâmicos e criativos da sociologia brasileira -, foi uma perda de substância. Essa perda de substância está, sem dúvida, ligada às cassações dos professores que foram afastados, mas já se anuncia, de certa maneira, um pouco antes, quando se pode notar uma certa resistência a uma liderança intelectual como aquela do professor Florestan Fernandes, que mantinha uma acentuada preocupação com as possibilidades de transformação do Brasil numa sociedade diferente, mais justa, mais democrática e mais rica, mas dentro dos marcos da ordem, entendida no sentido de que não era preciso criar uma convulsão social para conseguir atingir certas metas sociais e políticas.

A própria circunstância da ditadura e seus efeitos na vida de vários membros do grupo, acabou levando a um desdobramento da obra de Florestan Fernandes, que se enriqueceu com um tratamento mais incisivo e dialético dos impasses históricos a que o país se transformasse numa democracia social ou num país socialista.

Essa foi a grande marca dessa sociologia, na origem uma sociologia de inspiração positivista. O melhor de sociologia que se fez no Brasil foi inspirado por essa perspectiva. Claro que a ditadura, e sobretudo a violência do AI-5, questionou a idéia do compromisso básico com uma certa idéia de ordem social, que não era uma idéia de ordem política. Em conseqüência, e sobretudo pelo fato de que houve as cassações, se criou um vazio e, na verdade, esse vazio foi preenchido por uma outra mentalidade, não apenas por outros pesquisadores. A partir daquele momento, a sociologia na USP, com exceções óbvias, tendeu para o fragmentário, tendeu a fazer diagnósticos tópicos a respeito de problemas muito desencontrados entre si, e abriu mão da possibilidade de ter um diagnóstico de conjunto, característica da sociologia do professor Florestan Fernandes.

Havia um projeto para o Brasil na sociologia de Florestan Fernandes e de seu grupo. Com essa ruptura, houve algumas conseqüências curiosas. Em primeiro lugar, a sociologia se afastou da própria sociologia. Os sociólogos - especialmente os mais jovens, os que vieram depois, os que não tinham nenhum compromisso com as tradições da Faculdade de Filosofia da USP e, aparentemente, não queriam tê-lo -tenderam muito mais a fazer uma quase-filosofia do que propriamente sociologia. Em vários trabalhos assim surgidos, há muito mais ensaísmo, quase filosófico, do que propriamente sociologia.

A tradição da sociologia do professor Florestan Fernandes sempre foi a tradição da pesquisa empírica, da sociologia indutiva, exatamente porque ele também era herdeiro dessa tradição, não a inventou. A idéia era de uma sociologia que decifrasse o Brasil; a sociologia que vem depois de 1968 tentou, basicamente, tratar dos grandes temas e dos grandes debates que a sociologia estava travando em outros países mas sem nenhum enraizamento na sociedade brasileira, sem tratar dos grandes problemas que o Brasil enfrentava, sobretudo os novos grandes problemas criados exatamente pela ditadura, pelo recrudescimento da repressão, inclusive dentro da universidade.

Abriu-se o período de uma cultura de descompromisso com os destinos do país. Não quero dizer que as preocupações desses autores não sejam relevantes, mas não acho, por exemplo, que transformar Foucault em sociólogo resolva sequer os problemas que o próprio Foucault tratou nos seus trabalhos. Foucault é um interlocutor da maior importância, mas não podemos passar para nossos alunos a falsa suposição de que Foucault seja um sociólogo substitutivo e melhor do que os verdadeiros sociólogos. Ele é um interlocutor, uma referência enriquecedora..

O mesmo se fez com outros autores, com sociólogos e filósofos sociais alemães, que entraram na nossa discussão como se fossem grandes sociólogos e definissem grandes diretrizes do pensamento sociológico Ou seja, a ruptura de 1968 é uma ruptura do compromisso do intelectual com relação à realidade em que ele vive, o que foi muito grave. Aliás, estamos vivendo as conseqüências disso agora. O governo precisa de respostas, a sociedade precisa de respostas, precisa de indicações de pistas de como atuar, e as ciências sociais não estão dando essas respostas, não estão dizendo absolutamente nada. Elas estão numa fase de especulação interpretativa e ensaística, que deverá ter sua importância, ao menos residual, reconhecida no futuro. Porém, não atende, efetivamente, às questões que estão diante de nós. Estamos reduzidos a um esteticismo sociológico de fôlego curto.

É claro que não se trata de voltar aos temas daquela época. Os temas daquela época foram os temas que a época propunha. A época hoje propõe outros temas e problemas. Mas é lamentável que não haja ninguém na sociologia brasileira, e sobretudo na sociologia de São Paulo - ninguém como grupo, como sujeito de trabalho acadêmico -, preocupado com os problemas sociais, com aquilo que o próprio Florestan Fernandes definia como problemas sociais: a desagregação, a miséria, o desencontro, a dessocialização de imensos e problemáticos grupos sociais, a favelização do mundo urbano, a deterioração das condições de vida. Estes são temas para sociólogos e antropólogos trabalharem, e eles não estão fazendo isso.

A maioria de nós está preocupada com outras coisas, não com essas questões, e elas são substantivas para a sociedade brasileira. Outras questões pendentes dizem respeito às condições da democracia no Brasil, ao que vem a ser essa democracia que está aí hoje. Quanto tempo ela pode durar? Em que condições ela vai ser expressão de uma ansiedade progressista da população brasileira?

A própria questão agrária tem sido estudada de maneira equivocada, como já foi apontado anteriormente. Ela não tem sido estudada, na universidade, como ingrediente fundamental do processo de constituição de uma sociedade nova no Brasil, mas como um problema marginal. O próprio governo trata a questão agrária dessa maneira, não como uma questão básica mas como uma questão marginal que pode ser resolvida administrativamente; que não deve ser resolvida estruturalmente.

Enfim, o quadro é de desagregação, e se complica em conseqüência do corporativismo próprio de nossas instituições acadêmicas, incorporado na própria estrutura das entidades científicas que congregam os cientistas sociais.

Olhando esse panorama, não parece haver lugar para inovação temática, apenas para reforço do existente. Não há nenhum espaço para criação e formulação de novos temas e problemas de investigação, o que deveria estar sendo feito pelos departamentos universitários, já que as instituições não o fazem. E os departamentos também não estão fazendo, porque toda pressão sobre eles, vinda da Capes, do CNPq, das instituições de pesquisa e às vezes das próprias universidades, é no sentido de definir linhas de pesquisa.

Definir linhas de pesquisa significa estabelecer um trajeto pré-determinado para aquilo que se vai fazer, o que não deixa espaço aberto para a criatividade interpretativa e investigativa, marca da sociologia numa fase em que ela era menos organizada, menos estruturada aqui no Brasil. É preciso recuperar o terreno da liberdade de criação nas ciências sociais para que se possa inovar e retomar as possibilidades de trabalhos de boa qualidade que a sociologia brasileira já teve no passado.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    18 Maio 2005
  • Data do Fascículo
    Dez 1997
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