DOSSIÊ RÚSSIA
Sobre um desenho de Amedeo Modigliani
Nicolai Khárdjiev
QUERO DIZER algumas palavras sobre um desenho com o qual me extasiei a primeira vez há quase 35 anos. Na longa série de representações de Ana Akhmátova, pictóricas, gráficas e esculturais, o desenho de Modigliani, sem dúvida alguma, ocupa o primeiro lugar. Pela força e expressividade, só pode ser confrontado com ele o lacônico retrato em versos criado por Óssip Mandelstam.
Não deixa de ser interessante observar que a Akhmátova de Modigliani tem uma semelhança casual, mas quase retratística, com o seu desenho a bico de pena que está na coleção do Dr. Paul Alexander, Maud Abrantes écrivant au lit. Do ponto de vista estilístico, esses desenhos são distantes entre si e caracterizam diferentes etapas na evolução do pintor. Esboço ligeiro do natural, que obriga a lembrar os croquis geniais de Toulouse-Lautrec, o retrato de Maud Abrantes (1908) foi desenhado um ano antes do encontro de Modigliani com o escultor Constantin Brancusi.
Como se sabe, influenciado por Brancusi, Modigliani se apaixonou pela arte negra e se ocupou de escultura por alguns anos. O retrato de Akhmátova, que pertence a esse período, foi executado pelo artista como uma composição figural e extremamente parecida com um desenho preparatório para escultura. Aqui Modigliani atinge uma extraordinária expressividade do ritmo linear, lento e equilibrado. A ocorrência da forma artística do estilo monumental permite a esse pequeno desenho suportar quaisquer metamorfoses de proporção.
A amizade com Brancusi, um dos fundadores da arte abstrata, não levou Modigliani ao domínio do experimentalismo formal puro e simples. No período da hegemonia do cubismo, Modigliani, sem temer as censuras de tradicionalismo, permaneceu fiel à imagem humana e criou uma galeria admirável de retratos de seus contemporâneos. Em toda a extensão de seu caminho, ele não perdeu a ligação viva com a cultura artística do Renascimento italiano. Pode-se ler sobre isso, tanto nas reminiscências de amigos do artista quanto nos trabalhos dos estudiosos de sua obra.
Por conseguinte, não há nada de inesperado no fato de que a imagem de Akhmátova faça eco a uma das construções arquitetônico-esculturais mais famosas do século XVI. Tenho em vista a figura alegórica da Noite, na tampa do sarcófago de Giuliano Medici, essa talvez a mais significativa e misteriosa imagem feminina de Michelangelo (1 1 Michelangelo dedicou à sua Noite uma quadra, traduzida para o russo por Tiutchev. ). Liga-se com a Noite a própria construção composicional do desenho de Modigliani. À semelhança de a Noite, a figura de Akhmátova repousa inclinada. O pedestal, com que ela forma um todo construtivo, repete a linha em arco (fragmentada em duas) da tampa do sarcófago bigrífico de Medici. À diferença da pose tensa de a Noite, que parece deslizar de seu leito inclinado, a figura no desenho de Modigliani é estática e firme como uma esfinge egípcia. Mas isso se explica pela dessemelhança de princípio de dois sistemas heterocrônicos de construção arquitetônica (2 2 Ao ler estas linhas, A. A. Akhmátova, lembrou que numa das conversas com ela, Modigliani citou Michelangelo. "Os grandes homens não devem ter filhos - disse ele - C'est ridicule d'être le fils de Michel-Ange". ).
Segundo testemunho de Akhmátova, Modigliani tinha então uma idéia muito vaga sobre o dom de poeta de sua amiga, tanto mais que ela estava então apenas iniciando a atividade literária. E apesar de tudo, o artista conseguiu, com a penetração visionária que lhe era inerente, fixar a imagem interior de uma personalidade criadora.
Diante de nós não temos a representação de Ana Andriéievna Gumiliova em 1911, mas a imagem acrônica do poeta, que ausculta sua voz interior.
Assim dormita a 'Noite' de mármore no sarcófago florentino.
Ela dormita, mas é o cochilar de uma vidente.
4 de maio de 1964
Notas
Nicolai Khárdjiev, falecido recentemente, foi um estudioso importante das vanguardas russas. O texto sobre o retrato de Akhmátova por Modigliani apareceu no mesmo anuário em que saíram as reminiscências da poeta sobre o seu convívio com o pintor.
Tradução de Bóris Schnaiderman.
Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
16 Maio 2005 -
Data do Fascículo
Abr 1998