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Energia e desenvolvimento

DOSSIÊ RECURSOS NATURAIS

Energia e desenvolvimento

José Goldemberg

RESUMO

É APRESENTADA uma estimativa da energia necessária para dar à população brasileira dentro de 20 anos, um nível de vida comparável ao dos países da Europa. A seguir são analisados os recursos e reservas energéticas do país e as possibilidades que atendam às necessidades previstas bem como estendam sua duração. Finalmente são discutidas as políticas públicas que poderiam levar o país a um desenvolvimento sustentável na área de energia.

ABSTRACT

ESTIMATES ARE presented of the energy needed to give to the Brazilian population in 20 years a level comparable to the present one in European countries. Following the energy resources and reserves are analized and also the possibilities that will suffice to face the future demand as well as extend their life. Finally the public policies which could take the country to a sustainable development in the energy area are discussed.

ENERGIA É um ingrediente essencial para o desenvolvimento, que é uma das aspirações fundamentais da população dos países da América Latina, Ásia e África. O consumo de energia per capita pode ser usado como um indicador da importância dos problemas que afetam estes países, onde se encontram 70% da população mundial.

Nos países em desenvolvimento mais pobres:

  • a expectativa de vida é 30% menor;

  • a mortalidade infantil, superior a 60 por 1000 nascimentos, é inferior a 20 nos países industrializados;

  • analfabetismo supera a taxa de 20%;

  • número médio de filhos é maior do que dois em cada família e a população está crescendo rapidamente; nos países industrializados, ele é igual a dois, que é justamente o necessário para manter o equilíbrio populacional.

Na maioria dos países, nos quais o consumo de energia comercial per capita está abaixo de uma tonelada equivalente de petróleo (TEP) por ano, as taxas de analfabetismo, mortalidade infantil e fertilidade total são altas, enquanto a expectativa de vida é baixa. Ultrapassar a barreira 1 TEP/capita parece ser, portanto, essencial para o desenvolvimento. À medida em que o consumo de energia comercial per capita aumenta para valores acima de 2 TEP (ou mais), como é o caso dos países desenvolvidos, as condições sociais melhoram consideravelmente. O consumo médio per capita nos países industrializados da União Européia é de 3.22 TEP/capita; a média mundial é de 1.66 TEP/capita.

A importância da energia no desenvolvimento é ilustrada pela figura 1, na qual são mostrados quatro indicadores sociais para diversos países – taxa de analfabetismo, mortalidade infantil, expectativa de vida e taxa de fertilidade total – como uma função do consumo de energia comercial per capita.


O Brasil, com 1.3 TEP por habitante, encontra-se em posição razoável no cenário internacional. No entanto, o consumo de energia tem crescido 4.6% por ano desde 1970 – duplicando a cada 15 anos – acompanhando de perto o crescimento do produto interno bruto. No período de 1970 a 1996 o consumo de energia triplicou

O crescimento da população na década de 90, no Brasil, foi de 1.3% ao ano; o consumo de energia per capita, 3.3% ao ano. Por esse fato, é razoável esperar que esse consumo atinja um valor de 2.5 ou 3.0 TEP/capita dentro de 20 anos, aproximando-se do valor atual dos países da Europa, o que será perfeitamente satisfatório porque energia no Brasil não é necessária para o aquecimento de ambiente no inverno.

A pergunta a ser formulada, portanto, é se o país dispõe de recursos naturais – na área de energia – para sustentar tal crescimento nas próximas décadas. Como resposta, em linhas gerais, tem-se: 61% da energia usada no Brasil é de origem renovável, portanto, produzida localmente; energia hidroelétrica (37%); produtos de cana-de-açúcar, incluindo álcool (11%); lenha e outros 13%; o restante (39%) é derivado basicamente de petróleo e gás, metade do qual é importado.

O problema é saber se a contribuição da parte renovável poderá se manter e se a produção interna de petróleo (e gás natural) crescerá de modo a atender uma demanda crescente, ou se passaremos a depender de forma significativa da importação de mais petróleo e gás. Em outras palavras, conhecer quais as reservas energéticas disponíveis e quanto tempo poderão ainda durar. Essas reservas não poderiam ser usadas de forma mais eficiente do que o são atualmente, de modo a prolongar sua vida útil?

Produção de energia

Os recursos e reservas energéticas existentes no país são visualizados na tabela 1.

Hidroeletricidade é a principal fonte energética do país, correspondendo a 37% da oferta total de energia. A contribuição do petróleo reduziu-se de 39% em 1980 para 31% em 1995. Dois fatores explicam a redução. O aumento no preço internacional e a descoberta e o desenvolvimento das jazidas petrolíferas da bacia de Campos, que ampliaram a produção doméstica de petróleo de 165 mil barris por dia em 1979 para 550.000 barris por dia em 1985. Além disso, o etanol foi amplamente utilizado como combustível para automóveis, provocando uma redução da parcela da gasolina no consumo total. Desde 1975, o desenvolvimento do Programa do Álcool – para uso direto de álcool hidratado em automóveis – teve por resultado aumento da oferta de álcool em 3,5 vezes, passando de 3,5 bilhões de litros em 1979 para 12,4 bilhões de litros em 1994.

A estabilização do preço internacional do petróleo e o desenvolvimento da produção doméstica – atingindo 697 mil barris por dia em 1995 – têm mantido constantes as proporções de 55% para a produção doméstica e 45% para as importações de petróleo.

O carvão desempenha papel secundário no setor energético brasileiro. As reservas locais necessitam de processamento antes de sua utilização na indústria siderurgia. Desse modo, o uso industrial do carvão depende principalmente de importações, enquanto as usinas termelétricas a carvão têm menor importância.

O consumo de gás natural foi desprezível até a década de 80, quando suas reservas provadas mais do que duplicaram. O consumo ampliou-se em mais de seis vezes: a indústria é o principal setor consumidor; em nível residencial ainda é incipiente, mas tende a aumentar nos próximos anos.

As reservas internas de petróleo e gás natural deverão atender às necessidades nacionais apenas durante 20 a 30 anos.

A eficiência no uso de energia

É evidente, portanto, que são também necessárias medidas para reduzir o consumo sem prejudicar – se possível – o crescimento da economia brasileira. O consumo de energia no Brasil, pelos diferentes setores da economia, está distribuído na forma indicada na tabela 2.

O setor industrial é o maior consumidor, utilizando cerca de 40% do total de energia consumida. A indústria consome principalmente eletricidade, cuja parcela passou de 39% em 1980 para 48% em 1995.

Os transportes utilizaram aproximadamente 20% da energia consumida no país no período de 1980 a 1995, a maior parte para o transporte rodoviário. O óleo diesel tem sido a principal fonte de energia para os transportes, correspondendo a cerca de 50% da energia consumida pelo setor durante o período analisado. Por outro lado, a parcela da gasolina reduziu-se de 34% em 1980 para 27% em 1995, ao mesmo tempo em que o consumo de etanol cresceu de 5% em 1980 para 18,6% em 1995.

O consumo de combustível (gasolina para transporte) cresceu nos últimos três anos devido ao aumento da frota de automóveis.

O setor residencial utilizou 16% da energia consumida no país em 1995. No período de 1980 a 1995, reduziu gradualmente a sua parcela no consumo total, que era de 20% em 1980, devido à introdução de eletrodomésticos mais eficientes.

A pergunta que se faz é se energia está sendo utilizada eficientemente no país. O indicador usado como medida dessa eficiência é a intensidade energética definida como o consumo de energia (em TEPs) por US$ 1 mil de produto interno bruto. Na figura 2 é mostrada a evolução desse indicador nos últimos 20 anos


Como pode ser observado, ele se situa em torno do valor 0.4 TEP/US$1 mil, com leve crescimento, refletindo a crescente industrialização do país e os pesados investimentos em infra-estrutura, que são intensivos no uso de energia. Para comparação pode-se mencionar que a intensidade energética da União Européia como um todo é de 0.4 TEP/US$ 1 mil. O parque industrial brasileiro é bastante moderno, podendo contudo se tornar menos intensivo no uso de energia à medida que a economia se oriente para uma atividade maior em serviço, como já ocorreu em países altamente eficientes no uso de energia, como o Japão.

Existem dois programas governamentais cuja função é promover tal procedimento. O Procel (Programa de Conservação de Eletricidade da Eletrobrás) e o Compet, na área de petróleo, conduzido pela Petrobrás, de menor monta.

Estudo realizado em 1993 pelo Ministério de Ciência e Tecnologia indicou que esforços bem conduzidos na área poderiam reduzir em 1% a taxa de crescimento anual do consumo de energia, que passaria de 4.5%/ano para 3.5%/ano, isto é uma redução de cerca de 25%. Ainda assim, o consumo dobraria a cada 20 anos.

Perspectivas energéticas

As reservas brasileiras de combustíveis fósseis não são muito grandes mas deverão ser capazes de suprir as necessidades nacionais, como já referido, durante 20 a 30 anos; deve ainda ser considerado o potencial hidroelétrico ainda não utilizado de potencial hidroelétrico.

Decorrido esse período de tempo, o país terá de aumentar drasticamente suas importações de países vizinhos ou do Oriente Médio. No caso de hidroeletrecidade há boas possibilidades de interligar vários países da América Latina, principalmente Argentina e Venezuela, aumentando portando o suprimento nacional. A importação de gás da Bolívia e da Argentina é outra solução que está em execução e poderá ser ampliada.

Contudo, a única solução permanente que poderá manter um desenvolvimento sustentado, não durante 20 ou 30 anos, mas durante muitas décadas, é o uso de fontes renováveis de energia, das quais o Programa do Álcool é o melhor exemplo.

Usando cerca de quatro milhões de hectares – menos de 10% da área agricultável do país – o Programa do Álcool supre hoje 11% da energia consumida sob a forma de etanol – um combustível de alta qualidade – e de bagaço de cana, usado de várias formas como fonte de calor.

A expansão desse Programa é, pois, uma possibilidade real que garantirá talvez 20 ou 30% do consumo nacional de forma renovável porque a cana-de-açúcar é um produto agrícola.

Outra possibilidade ainda não explorada é o maior uso de biomassa – ou sob a forma de lenha, resíduos agrícolas ou lixo urbano – para a produção de energia. Lenha é hoje um setor importante do menu energético nacional, que representava 10,6% do total em 1996, decrescendo dos 21.8% ocorridos em 1981. O uso indiscriminado da lenha, que queimada com baixa eficiência para a produção de carvão, contribuiu para a devastação de florestas nacionais em Minas Gerais e em alguns outros estados não é de fato desejável. O indispensável, no caso, é o uso da biomassa com maior eficiência; para tanto existem diversas tecnologias em desenvolvimento como, por exemplo, a sua gaseificação e o uso do gás para acionar turbinas para a geração de eletricidade.

Desenvolvidas tais tecnologias, poder-se-ia estabelecer um extenso setor de florestas energéticas, isto é, florestas plantadas para corte e utilização, sendo continuamente restauradas. O Brasil, por sua localização geográfica e amplo território, presta-se magnificamente para esta solução, já praticada em pequena escala por empresas do setor de papel e celulose.

Outras possibilidades referem-se ao uso das tecnologias de vanguarda, como células fotovoltáicas entre outras formas de captação direta da energia solar. Entretanto, estão ainda em estágio incipiente, não impedindo, porém, que passem a ser consideradas importantes no futuro. Elas têm sido consideradas caras e pouco confiáveis, mas a experiência internacional demonstra que a situação está mudando e que seus custos estão próximos de valores considerados competitivos em muitas situações, sobretudo em sistemas isolados.

Tanto o Programa do Álcool quanto a utilização da biomassa têm vantagens adicionais sobre o uso de combustíveis fósseis pelas seguintes razões:

  • fontes renováveis de energia são inesgotáveis, ao passo que o esgotamento dos combustíveis fósseis é inevitável;

  • do ponto de vista ambiental, fontes renováveis de energia apresentam inúmeras vantagens por não conterem impurezas de enxofre e não contribuírem, portanto, para a poluição do ar das grandes cidades e

    chuva ácida. Além disso, não contribuem para aumentar a concentração de dióxido de carbono (CO

    2) – resultado inevitável da combustão de combustíveis fósseis e, por conseguinte, não contribuem para o aquecimento da Terra.

A energia nuclear para a produção de eletricidade – do ponto de vista técnico – poderia também constituir outra possibilidade, mas encontra sérias dificuldades de aceitação pela sociedade. Este não é apenas um problema nacional e qualquer decisão no sentido de aumentar substancialmente o uso de energia nuclear no Brasil requererá decisões políticas da maior importância, cujo resultado é impossível prever.

Políticas públicas na área de energia

O principal desafio do setor energético decorre da privatização do sistema de geração e distribuição de energia que, até recentemente, esteve a cargo de empresas estatais, começando agora a mudar.

O Brasil não deverá enfrentar problemas energéticos sérios nos próximos 20 anos, período em que deverá se preparar para enfrentar os desafios do futuro.

A privatização de empresas energéticas em vários países do mundo levou ao fortalecimento dos órgãos reguladores, os quais forçam as empresas a realizar investimentos ou a adotar medidas que não seriam tomadas sem a presença desses órgãos. Exemplos importantes destas ações são:

  • A NFFO (

    Non Fossil Fuel Obligation), o método usado pelo governo da Inglaterra, após a privatização, para encorajar a introdução de fontes renováveis no sistema (principalmente eólica e biomassa); por meio dela, o governo subvencionou as novas fontes de energia aplicando uma sobretaxa no preço das fontes convencionais.

  • A decisão da Comissão Reguladora do Estado da Califórnia – onde todo o sistema de fornecimento de eletricidade foi sempre privado – de forçar as empresas a incluírem 15% de energia de origem renovável no seu portofólio (

    Renewable Portfolio Standards).

  • A ação dos órgãos de controle ambiental que, ao autorizar ou proibir a construção ou operação de novas usinas, interfere no planejamento. Exemplo: a Usina de Piratininga, em São Paulo, que opera com óleo combustível e que foi praticamente desativada devido às limitações impostas pela Cetesb.

  • Estabelecimento de padrões mandatórios para os equipamentos de uso final como geladeiras, aparelhos de ar condicionado, lâmpadas, chuveiros elétricos etc. A fixação de níveis de consumo máximo toleráveis tem importantes reflexos no planejamento de novas unidades de geração ou distribuição. Essas medidas de

    conservação de energia correspondem a uma racionalização do seu uso.

É mediante a criação destes órgãos reguladores com amplos poderes e grande independência que se exercerá, no futuro, a ação do Estado protegendo o cidadão numa economia de livre mercado.

José Goldemberg, físico, é professor honorário do Instituto de Estudos Avançados da Universidade de São Paulo.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    11 Maio 2005
  • Data do Fascículo
    Ago 1998
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