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A questão da saúde no Brasil: entrevista com José Serra

DOSSIÊ SAÚDE PÚBLICA

A questão da saúde no Brasil

Entrevista com José Serra

NAS REUNIÕES que antecederam o fechamento da edição do dossiê Saúde, ESTUDOS AVANÇADOS decidiu ouvir o ministro de Estado da Saúde José Serra. Graças à colaboração de Marcela Meireles Aurelio e do professor José R. Carvalheiro foi possível conhecer a posição do Governo Federal sobre pontos importantes relacionados à questão da saúde no Brasil.

Apresentamos a seguir um resumo das declarações do economista e ministro José Serra, professor do Instituto de Economia da Unicamp e PhD em Economia pela Universidade de Cornell (EUA).

Saúde e economia

ESTUDOS AVANÇADOS – O World Development Report, 1993, do Banco Mundial, trata da saúde (investing in health) e a associa ao potencial de desenvolvimento econômico de uma nação. Do seu ponto de vista, como interpretar a questão da saúde sob a ótica econômica?

José Serra – É uma pergunta muito ampla. Vou limitar a resposta a um tópico apenas. Do ponto de vista macroeconômico, as despesas com serviços de saúde têm uma peculiaridade importante: tendem a crescer sempre mais do que o PIB. Isto acontece praticamente em todos os países. Nos Estados Unidos, essa relação tem sido de dois: para cada acréscimo de 1% no PIB, os gastos com saúde tendem a crescer 2%. Isso é o que os economistas chamam de elasticidade da demanda em relação à renda maior do que um. Trata-se de uma tendência que se repete no Brasil, somando o gasto público e o gasto privado em saúde. Por que essa tendência? Primeiro, porque os meios de prevenção e tratamento das doenças foram se tornando mais sofisticados e caros. Não apenas face aos custos crescentes da tecnologia, mas também porque, no passado, existiam mais doenças sem possibilidade de tratamento e estas possibilidades foram sendo abertas ao longo do tempo. Não haveria como e nem porque frear a introdução de novas técnicas, novos medicamentos, novas abordagens e novos esquemas de organização do setor. Em segundo lugar, voltando à elasticidade da demanda, observamos que, à medida que cresce a renda das famílias, tende a crescer a proporção de seus gastos que é dedicada à saúde, ao passo que decresce a proporção dedicada aos alimentos, devido à crescente saturação do consumo. Assim, se uma família tem renda mensal de R$ 1 mil por mês e esse valor passa a R$ 2 mil, o consumo de alimentos não vai aumentar na mesma proporção, mas vai aumentar o percentual dos gastos em saúde. Tal comportamento tem efeitos agregados, e é por isso que quando um país cresce também cresce a parcela da renda interna dedicada às despesas com saúde. Há também um aspecto interessante, de natureza social e política. Em qualquer país, por mais rico que seja e por melhor que seja o sistema de saúde, a população é insatisfeita com ele. Por que? Porque se considera que esse sistema sempre poderia ser melhor. As pessoas sempre querem viver mais e melhor e além disso não gostam de dedicar uma proporção crescente da sua renda a tratamentos de saúde, embora não hesitem em fazê-lo.

ESTUDOS AVANÇADOS – Isto vale em geral, qualquer que seja a orientação dos sistemas?

José Serra – Vale. Mesmo onde você não paga diretamente e o governo banca todas as despesas, a insatisfação, na margem, tende a existir. Aliás, este é um outro aspecto de natureza macroeconômica relevante: quem presta os serviços, em que proporção são públicos ou privados? Há várias versões no mundo a esse respeito. Existem países, principalmente os socialistas ou ex-socialistas, onde a medicina é essencialmente estatal. Esse esquema se reproduz em alguns países de economia capitalista, como é o caso do Canadá, onde o sistema de saúde é governamental, e dos países europeus, baseados na tradição do Estado do bem-estar social, nos quais é a medicina pública que predomina. Mesmo em países como a Inglaterra, com todo o furor privatizante da senhora Thatcher, o sistema continuou predominantemente público, ou seja, prevalecendo a prestação de serviços públicos gratuitos à população; a medicina privada ainda é pouco expressiva apesar da onda neoliberal que durou quase duas décadas. Isto não significa que não tenha havido melhoras positivas no sentido de crescer a preocupação com custos, desperdícios e falta de concorrência dentro do setor. Aliás, na Inglaterra, o sistema mudou pouco também em outro aspecto importante que é o do financiamento à aquisição de remédios, de um redistributivismo para ninguém botar defeito. Nesse país, qualquer remédio pode ser adquirido pelo indivíduo que está dentro do sistema público pagando no máximo £ 5, mesmo que o remédio custe £ 40, ficando o restante por conta do governo. Existem países onde o sistema de saúde, pelo menos na doutrina, tende a ser eminentemente privado, como é o caso dos Estados Unidos, mas aí se manifesta um fenômeno curioso, dado pela combinação de gastos elevados, desproteção social e participação elevada do governo nas suas três esferas – federal, estadual e municipal – nas ações de saúde. O gasto com saúde como proporção do PIB alcança cerca de 15% mas, como não há um seguro médico social, cerca de 40 milhões de pessoas permanecem fora do sistema de proteção. No entanto, embora inexista um sistema sequer próximo ao Sistema Único de Saúde (SUS) brasileiro, o dispêndio do governo norte-americano com saúde equivale à metade do gasto nacional total, situando-se entre 6 e 7% do PIB. Finalmente, temos casos como o brasileiro, que pode ser caracterizado como um sistema eminentemente misto, não no que se refere, naturalmente, à atenção básica preventiva, ou no combate a doenças infecto-contagiosas, que são tarefas claramente governamentais, mas no que concerne ao atendimento ambulatorial e hospitalar. A rede de hospitais do SUS tem elevada participação da área privada, mesmo não-filantrópica. E nos hospitais públicos, especialmente os universitários, como é o caso do Hospital das Clínicas de São Paulo, o maior do país, tende a expandir-se a combinação de atendimento simultâneo do SUS e de planos privados, numa proporção de cerca de 80 para 20%. Este sistema, nascido a partir do Incor e da Fundação Zerbini, vai generalizar-se no Brasil. Hoje, visita-se um hospital público em construção e percebe-se que existe um corredor destinado às pessoas filiadas a planos.

Público versus privado

ESTUDOS AVANÇADOS – Na sua opinião, a oferta de serviços de saúde públicos pode ser substituída pela oferta privada?

José Serra – Não. A discussão público versus privado pode ser também analisada segundo uma ótica microeconômica, na qual, normalmente, diz-se que o resultado das escolhas individuais, em um ambiente de livre mercado, é superior ao de um sistema com forte participação pública. No Brasil, em particular, a maior parte da elite considera que quando um serviço público social funciona mal deve ser extinto. É uma intenção exterminadora que prevalece sobre a idéia de reforma e manifesta-se de forma clara tanto no caso da previdência quanto da saúde. No caso da previdência, trata-se de uma bobagem repetida à saciedade. Lembro-me que, em 1991, escrevi um artigo publicado pelo Jornal do Brasil, mostrando a inexeqüibilidade do modelo chileno para o caso brasileiro. Por que? Veja bem: hoje, as receitas correntes da previdência destinam-se a pagar os atuais aposentados; se privatizarmos, os assalariados passarão a depositar esse dinheiro em um banco, que irá aplicá-lo. Como pagar, porém, os atuais aposentados? Ou, no futuro, como pagar também aquele que mudou de sistema mas tem um crédito na área pública? Com que dinheiro? Logicamente, criando-se déficit público. No Chile, depois da privatização, em poucos anos, o déficit previdenciário saltou de 1,5% do PIB para 7%; imagine-se o que seria fazer isso no Brasil nos tempos atuais. Por trás desse processo está a transferência de poupança pública para a área privada; a arrecadação precisaria aumentar para pagar essa transferência. Um outro problema, a longo prazo, é saber se um sistema como o chileno é exeqüível, pois depende da rentabilidade das aplicações dos depósitos dos assalariados que, em uma crise, podem virar pó, requerendo portanto salvaguardas, controles. Essa necessidade fez com que os custos operacionais do sistema de previdência chileno, agora privatizado, se elevasse a cerca de 14% do volume de depósitos. De fato, o que precisamos fazer é reformar o sistema previdenciário público, não extingui-lo. Em essência, terminar com os descabidos privilégios relativos dos aposentados do funcionalismo público, estabelecer idades mínimas maiores, estreitar a vinculação entre as contribuições individuais e os proventos etc. No caso da saúde não há o mesmo ímpeto privatizante, mas sempre há implícita na elite a idéia de que se não está funcionando, é melhor deixar os agentes privados operarem sozinhos: "hospital público é assim mesmo, é melhor fechar, privatizar".

ESTUDOS AVANÇADOS – O senhor se opõe, portanto, à idéia de que os agentes privados alocariam de forma mais eficiente – do ponto de vista do bem-estar da população – os recursos hoje destinados aos gastos públicos com saúde?

José Serra – Veja: não creio que os agentes privados sejam dispensáveis, pelo contrário. Mas minha resposta à sua pergunta é afirmativa pois o fundamento microeconômico do raciocínio é falho. Em primeiro lugar, por causa de uma peculiaridade nossa. No Brasil, 40% das famílias não recebem mais de três salários mínimos mensais e não têm demanda por serviços de saúde para exercer no mercado. Assim, se não houver serviço público, essas pessoas vão ter a sua expectativa de vida diminuída. Se a demanda é exercida, volta-se para enganosos planos de saúde do tipo aspirina e copo d'água, pelos quais se paga R$ 10 por mês e o maior tratamento possível é para uma dor de cabeça. Assim, em razão do problema social, a área pública tem de exercer o seu papel relevante no atendimento à saúde. Mas há outras questões. Kenneth Arrow – um economista que ganhou um Prêmio Nobel – escreveu um artigo seminal sobre saúde e mercado, mostrando porque o mercado opera imperfeitamente nesse setor. Segundo o autor, existem duas suposições da teoria da concorrência perfeita que não são cumpridas. Em primeiro lugar, a suposição de que os agentes econômicos dispõem de um mesmo conjunto de informações. Ora, na relação entre o prestador de serviço de saúde e paciente, a informação se distribui com acentuada assimetria, pois o médico detém o monopólio da informação. Por mais que os jornais expandam suas seções de saúde, das quais muitos são assíduos leitores, não há como o indivíduo ter certeza se o tratamento prescrito é o mais adequado para a satisfação das suas necessidades, ou se vale a remuneração que está sendo pedida. Em segundo lugar, há o problema da mobilidade, que também é escassa. Romper um tratamento, ou sair de um hospital e ir para outro, é algo que dificilmente pode ser feito, até porque é difícil avaliar se o serviço médico recebido produziu ou não o melhor resultado. Além disso, o custo de oportunidade de receber um tratamento que não é o mais adequado corresponde ao potencial agravamento da saúde do paciente, o que limita as possibilidades de trânsito de um serviço para outro. Portanto, se a informação e a mobilidade não são perfeitas, existirão elementos de rigidez na formação de preços; a escolha individual em um contexto de livre mercado não garantirá a satisfação do consumidor. A não observância dessas premissas da concorrência perfeita soma-se ao problema macroeconômico que já mencionei, referente a insuficiência de renda de boa parte da população para a efetivação do gasto. Note-se que mesmo aqueles que têm poder aquisitivo enfrentam distorções de mercado de natureza microeconômica, que já apontei. O mercado não opera como se imagina, e não se sustenta a tese de que o Estado deve deixá-lo operar livremente. Isto significa que o mercado não tem papel algum? Não, mas implica que o setor privado não pode ser o único a participar da área da saúde, nem se situar acima ou fora de qualquer controle.

Regulamentação governamental

ESTUDOS AVANÇADOS – Além de prestador de serviços de saúde, como o senhor avalia o papel do governo na regulação do segmento privado que atua nessa área?

José Serra – A importância do papel regulatório do governo é reforçada pela existência de algumas externalidades negativas que se manifestam no setor saúde. Externalidades ocorrem quando atividades privadas causam efeitos sobre outras atividades, efeitos que o mercado não mede, no sentido de atribuir valores financeiros aos custos e benefícios que tais atividades podem impor à coletividade. O exemplo típico é a fumaça de uma fábrica. Mesmo que sua produção gere empregos, e até atraia outras formas de atividade econômica para a região onde se localiza, a fumaça pode trazer prejuízos para todos os habitantes, mas esse custo não está medido no mercado. Aliás, é por isso que surgem propostas para que haja impostos sobre a poluição. Trata-se de uma forma de criar um preço para ela, em função das falhas do mercado. Então, no caso da saúde, há pelo menos duas externalidades negativas: uma refere-se a produtos que afetam a saúde da população, como o cigarro; ao provocar danos à saúde da parcela da população que fuma, o cigarro aumenta as despesas públicas e privadas com o tratamento das doenças decorrentes do fumo, diminuindo, para toda a coletividade, o montante de recursos disponível para outros serviços; há outra externalidade negativa que é um pouco mais sofisticada, e da qual me dei conta pela primeira vez quando estudava na Universidade de Cornell, a qual possuía um plano de saúde, o que para mim era novidade, porque no Brasil praticamente não existiam esses planos. Ali eu recebia os serviços médicos que necessitasse, pagando uma prestação fixa pequena (aliás, por conta da Universidade). Mas os médicos de Ithaca, onde está Cornell, como queriam aumentar a produção dos seus serviços, não se preocupavam em limitar suas intervenções nem lutavam para conter custos; os pacientes e a Universidade tampouco, pois o plano cobria as despesas quaisquer que fossem. Isto criava uma óbvia tendência estrutural à elevação das despesas do sistema, um pouco fora de controle. Um aspecto importante da atuação do governo com relação ao setor da medicina suplementar passa a ser, portanto, estimular o controle dos seus custos, além, naturalmente, de: estimular mais concorrência dentro do setor; fazer com que a relação desigual entre as operadoras de serviços e os consumidores, face às imperfeições microeconômicas já citadas, não leve a abusos em matéria de preços, qualidade e extensão do atendimento às pessoas.

ESTUDOS AVANÇADOS – Como o senhor vê a atuação dos planos de saúde?

José Serra – O sistema de medicina suplementar (planos de saúde, cooperativas e afins) é uma área que hoje envolve mais de 40 milhões de pessoas. O governo passou a intervir nessa área recentemente, porque em geral ela não funciona bem. Uma exceção se observa nas empresas de autogestão, como a do Banco do Brasil, ou mesmo de algumas montadoras de automóveis. Nessas empresas os custos são mais baixos, o que permite que um atendimento de excelente nível, inclusive aids, custe por mês cerca de R$ 60. Note-se que no esquema de autogestão não tem sentido excluir uma doença, ou doença preexistente, nem fazer uma série de outras salvaguardas que existem nos casos de seguros e planos individuais. Outro problema, aliás, ocorre na área dos seguros de saúde. Um seguro convencional é pago quando há um sinistro, mas, no Brasil, as seguradoras de saúde viraram planos de saúde, mesmo dizendo que operam como seguradoras. Nos Estados Unidos, por exemplo, uma seguradora só faz seguro pagando a posteriori. Se ela tem um plano de saúde, com hospital e médicos contratados, cria-se uma empresa separada. No Brasil, seguradora e plano de saúde se confundem. Esta é uma situação inconveniente que terá de ser resolvida ao longo do tempo. Até porque a Susepe, sem nenhum interesse em cuidar da saúde, é quem acaba tendo um papel predominante no controle (ou não-controle) do setor, pelo simples fato de operadoras de planos de saúde serem chamadas de seguradoras. Na verdade, o problema econômico número um da medicina suplementar no Brasil é o fato de que boa parte dela funcionou, durante muito tempo, como corrente da felicidade. Cobra-se barato das pessoas mais jovens, que exigem desembolsos pequenos. Com o tempo, porém, as pessoas vão envelhecendo e sua demanda por serviços médicos aumenta. Tudo bem enquanto o fluxo de jovens é crescente; mas quando desacelera, a pressão de custos torna-se mais difícil de absorver. O resultado vem sob a forma de aumentos desproporcionais das prestações dos mais velhos.

ESTUDOS AVANÇADOS – Ainda no caso dos planos de saúde, a adoção de planos mais abrangentes não é o principal determinante do aumento das mensalidades?

José Serra – Não. Primeiro a obrigatoriedade dos planos mais abrangentes ainda não se materializou. Isto acontecerá somente no final deste ano. Segundo, as simulações baseadas nas operadoras de autogestão mostram aumentos potenciais em torno de 4%. Ao mesmo tempo, devido aos novos requisitos da lei, a existência de planos de referência facilitará o controle, a comparação e a concorrência entre as diferentes operadoras. A inexistência de procedimentos para a avaliação de custos contribui para obscurecer o problema: sempre que solicitamos às empresas estimativas de custos e dos impactos desta ou daquela mudança, face ao terrorismo que alguns dos seus diretores transmitem pela imprensa, nunca obtemos respostas técnicas sérias. Alega-se, por exemplo, que a inclusão de doenças infecto-contagiosas na cobertura dos planos fará os custos explodirem. Como? Imagine-se o caso da meningite. No Brasil, há algum tempo, houve 60 mil casos de meningite num ano. Foi o pico. Ora, existem hoje 40 milhões de pessoas nos planos de saúde. Suponha-se que 40 mil destas pessoas contraíssem meningite (o que nem seria o caso, porque quem está em plano de saúde tem um nível de renda mais alto, e provavelmente não é atingido por ela com a mesma facilidade). Mesmo com este cenário pessimista, isto eqüivaleria a 0,1% da população coberta por planos. É evidente que não seria esse impacto que iria estourar as prestações dos planos. Os 4% citados são, naturalmente, um valor de referência que pode variar para cima, especialmente no caso dos planos e seguros individuais mais sujeitos a uma seleção perversa de clientes. Mas em nenhum caso aumentariam em mais da metade, por exemplo. O importante é ressaltar que estamos procurando estimular a disseminação de procedimentos econômico-financeiros sadios, e que os atendimentos decentes na saúde passem a ser o padrão de funcionamento normal da área da medicina suplementar.

ESTUDOS AVANÇADOS – Existe quem prefira a extinção da medicina suplementar?

José Serra – Sim. Tal postura é erradíssima. Se materializada, além de privar a população da alternativa dos planos de saúde, enfrentaria uma poderosa restrição orçamentária, uma vez que o dinheiro gasto com o pagamento de planos não se transformaria automaticamente em receita para financiar o gasto público no setor.

Sistema Único de Saúde (SUS)

ESTUDOS AVANÇADOS – Afora a limitação dos recursos, que outro tipo de problema é enfrentado por um sistema público com as características do SUS?

José Serra – Na área pública, além das restrições de natureza orçamentária, existe ainda o problema do conceito que a população forma sobre o atendimento à saúde no Brasil. Tal conceito é regulado pelo pior atendimento, assemelhando-se à teoria da renda da terra ricardiana. David Ricardo – grande economista clássico – constatou que na agricultura, quanto pior fosse a terra maior era seu custo de exploração e concluiu que o fator que definia o lucro do setor era a terra pior, ou seja, seu custo marginal, e quem tinha o custo mais baixo ganhava na diferença.

No caso da saúde, poderíamos ter 95% de todo o sistema de maternidade funcionando impecavelmente, mas quando uma mulher tem seu filho na calçada, em razão de estupidez da equipe médica de algum hospital, é este evento que determina o conceito que a população fará do atendimento às gestantes no Brasil. Ou seja, o sistema que, na média, pode não ser tão ruim, termina sendo julgado pelo que acontece na margem. O prejuízo é de todos. Quanto mais não seja por esse motivo a saúde tem de funcionar na base da qualidade total. Do contrário, viverá sempre um problema de credibilidade que acaba tendo repercussões sobre a questão orçamentária, fomentando a idéia de que os recursos públicos são desperdiçados. Para o setor reivindicar com eficácia tem de funcionar bem no seu conjunto, senão perderá a legitimidade diante do bombardeio das elites que, no fundo, têm preconceito contra os serviços públicos sociais e desejam a sua extinção, ao invés da sua reforma. Esses problemas de legitimidade devem acontecer em qualquer lugar do mundo, só que, entre nós, são agravados por uma peculiaridade: no Brasil, governo é o governo federal; o governo estadual é mais ou menos; o município é entidade beneficente. No Congresso brasileiro, na Câmara principalmente, existem alguns entes sagrados: velhinhos, mulheres, criancinhas, Jesus Cristo e municípios. Basta apenas olhar nos anais para ver que não existe nenhuma referência áspera a qualquer desses cinco entes.

O município desfruta dessa benevolência, quando, na verdade, tem uma enorme responsabilidade na área da saúde. Tome-se, por exemplo, o caso da dengue, problema sério, no Brasil, e ao mesmo tempo origem de tantas paranóias. Recentemente, um jornal fez uma análise da questão da dengue, e descobriu que o dinheiro para o seu combate não estava chegando a um determinado município. De quem era a culpa? O prefeito, evidentemente, acusava o governo federal. Investigando-se a situação, porém, descobriu-se que o prefeito não havia prestado contas do dinheiro recebido anteriormente e, como as verbas são liberadas por parcelas, não pôde receber a seguinte. Esclareci pelo rádio à população do município: "está faltando dinheiro da dengue porque o prefeito é incompetente. Vocês tem um prefeito que não está defendendo a saúde da população". Como não é possível adotar esse procedimento de forma generalizada, há que haver um controle local, e é por isso que a descentralização é essencial no Brasil. Mas, para tanto, temos de promover uma mudança de cultura e perceber que governo existe nas três esferas, a fim de que as pressões sociais possam ser exercidas na direção correta.

ESTUDOS AVANÇADOS – E a esfera federal?

José Serra – A esfera federal pode, certamente, contribuir para mudanças de cultura, sobretudo no que diz respeito ao problema do controle dos gastos. Em poucos meses, diminuímos em 10% as despesas dos 14 hospitais federais do Rio de Janeiro, com serviços de vigilância. O controle estrito de compras de insumos, de prédios, de manutenção, entre outras coisas, é perfeitamente possível de se realizar na área pública, usando até mesmo a Internet, por meio da qual todos os preços podem ser registrados e a imprensa pode controlar. É claro que às vezes é difícil comparar, porque os produtos não são homogêneos, mas em qualquer caso a transparência é a principal adversária da corrupção, da administração incompetente, do desperdício. Há muito o que avançar nessa direção, e isto só vai acontecer mudando o sistema de gestão, que não pode ser uma gestão governamental tradicional. Por exemplo, não há sentido na estabilidade de funcionário público em hospital. Com essa diretriz, o Instituto do Câncer, no Rio de Janeiro foi transformado em Organização Social, que utiliza critérios de gestão privada, como a ausência de estabilidade de funcionários novos (não se revogou direito adquirido de ninguém) e o pagamento por produtividade. Planeja-se ainda reformular a forma de gestão dos 14 hospitais federais do Rio de Janeiro e criar um consórcio que os reuna num conjunto. O importante é perceber que não se trata de decidir pela privatização ou pela não-privatização de empresa estatal, mas para se ter um serviço público de qualidade, e sem discriminação de acesso, o que é fundamental, são necessárias melhores formas de gestão, que obrigatoriamente exigirão maior controle tanto do governo quanto da sociedade.

ESTUDOS AVANÇADOS – Como está hoje, sendo ministro da área, sua posição quanto à polêmica da vinculação de percentuais do orçamento destinados à saúde?

José Serra – No Ministério da Educação, 80% das despesas são feitas com salários, não sujeitos a cortes. No caso da saúde, apenas 20% do orçamento vão para salários diretos, pois os salários pagos nos hospitais conveniados do SUS não são computados como obrigação do governo federal. Seria como se os gastos de salários das universidades não fossem contabilizados como tais pelo Ministério da Educação. Então, é lógico que sempre haja uma maior parte livre no orçamento da saúde. Mas isso é só aparência. Aqui surge a questão da vinculação. Na Constituinte fui o principal adversário de todas as vinculações, inclusive a da educação. Qual era meu argumento? A vinculação era fruto da época da ditadura. A democratização permitiu que o Congresso passasse a participar do orçamento, que seria elaborado democraticamente, sem a necessidade de que fosse criada qualquer tipo de rigidez. Eu próprio fui o relator do capítulo orçamentário da Constituinte que fez a abertura para a participação do Congresso no Orçamento. No entanto, ao longo da Constituinte, foi sendo aprovado um conjunto de vinculações, e então acabei incluindo um dispositivo promovendo a vinculação provisória para a saúde, até que fosse estabelecida por lei. Isto porque pensei: a saúde vai virar o colchão amortecedor dos apertos orçamentários, pois uma coisa é não ter nada vinculado, outra é ter tudo vinculado menos a saúde. O que acontece numa crise? Vai cair todo o peso em cima da saúde. Aliás, foi o que aconteceu em 1992 e em 1993. Eis o porquê da minha emenda, que não foi contraditória com o que eu pensava a respeito dos problemas das vinculações. Ou se vincula tudo, ou se desvincula tudo; o que não convém é ficar no meio do caminho, criando-se desequilíbrios poderosos. Registro que essa lei, posteriormente, não fez a vinculação que se reclamava. Mais ainda, a vinculação da saúde não pode se limitar à esfera federal, tem de se estender, também, às esferas estaduais e municipais. No Brasil, quando o governo federal aumenta despesa num setor, os estados e municípios tendem a diminuir, e vice versa. Há estados que, hoje, gastam 3 ou 4% de seus orçamentos em saúde, enquanto outros gastam 10%; quem cobre a diferença é o governo federal que, hoje, no Brasil, realiza dois terços dos gastos públicos na saúde, recebendo, no entanto, metade da receita tributária total. Os estados e municípios recebem a outra metade, mas gastam um terço dela.

ESTUDOS AVANÇADOS – Como a sociedade brasileira deve contribuir para a melhoria dos serviços de saúde?

José Serra – A participação social é uma questão extremamente importante. O professor Albert Hirschman – um economista que também fez incursões em outras esferas – escreveu um livro chamado Saída, protesto e lealdade (Exit, voice and loyalty), em que faz uma análise do comportamento das pessoas diante de organizações, sindicatos, serviços públicos, entre outros. Hirschman descreve a atitude que o consumidor assume quando não gosta do serviço: uma possibilidade é o exit, ou seja, ele muda para outro. Por que acabaram com os trens de transporte de passageiros, no Brasil? Porque eram muito ruins e os usuários passaram a utilizar o ônibus. Com isso, os trens passaram a dar mais prejuízo, o que gerou uma maior deterioração do serviço e instaurou um círculo vicioso, até que ninguém mais quisesse andar de trem. Isso é típico do exit, ou seja, o consumidor resolve o problema mediante o abandono. Mas quando não há substitutos para o serviço, o abandono não resolve. Mesmo que o hospital público não esteja funcionando como deveria, não se pode simplesmente abandoná-lo, pois para a maioria da população não há alternativa. Qual é a atitude recomendável? É o voice, ou o protesto. O protesto é um recurso legítimo dos consumidores em uma economia de mercado diante de monopólios. É um recurso para melhorar o funcionamento do sistema, pois reclamar é complementar as condições e os requisitos para uma economia de mercado funcionar bem. A conclusão, em um nível disciplinar da sociologia e da saúde, é que o protesto constitui a forma de ajudar a melhorar as condições de atendimento da saúde da população, tanto pública quanto privadas.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    10 Maio 2005
  • Data do Fascículo
    Abr 1999
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