EDITORIAL
DA MEMÓRIA disse Santo Agostinho (o primeiro memorialista do Ocidente) que é o ventre da alma. A metáfora tem força, pois abraça matéria e espírito numa só expressão. E a sua verdade resiste. Não é por acaso que dedicamos à Memória este número final de 1999.
Quase findo o milênio que assistiu às mais extraordinárias invenções de toda a história dos homens, e tendo já entrado no turbocapitalismo, parece que já não nos seria concedido mais tempo sequer para sentir o tempo passar e, menos ainda, para habitá-lo e vivê-lo plenamente. No entanto, por força de um movimento dialético saído das entranhas mesmas da cultura pós-moderna, irrompe neste último quarto de século, e vem crescendo por toda a parte, a necessidade de lembrar.
"A memória que os homens desenterra" nasce como desejo indestrutível de reviver o tempo: aquela duração da existência que não é mercadoria nem tem valor de troca, mas penetra e envolve toda experiência humana; tempo denso que está fora e dentro de nós, enquanto História, enquanto Memória.
O leitor de ESTUDOS AVANÇADOS é convidado a percorrer os escritos do Dossiê Memória. Ouvirá então as vozes de um passado que ressoam aqui e agora. Vozes de judeus compelidos a representar no campo de Theresienstadt a farsa trágica de um cotidiano tranqüilo que seria, na verdade, a antecâmera de gás de Auschwitz. Vozes brasileiras (e mineiras) de um militante comunista preso e torturado pela repressão nos anos finais da ditadura militar. Vozes de um índio "aculturado", mas lúcido, rememorando a sua infância. Vozes pernambucanas de um operário que romanceou a própria biografia chamando-a (sem conhecer Victor Hugo) de Os miseráveis. E outras lembranças baianas (que remontam à Revolução dos Alfaiates!), alagoanas, cariocas ou paulistas que compõem o coro de contrastes de um Brasil sofrido mas capaz de esperança.
No meio da travessia pode acender-se a luz que mostra o sentido do futuro: é a mensagem de Walter Benjamin de que fala o texto de uma pensadora suiço-brasileira... Nem é outro o horizonte da ópera Café, cuja letra inacabada de Mário de Andrade foi posta em música por um compositor teuto-brasileiro: obra aberta como a história do nosso povo.
Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
05 Maio 2005 -
Data do Fascículo
Dez 1999