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O campo de Terezin

DOSSIÊ MEMÓRIA

O campo de Terezin

Ecléa Bosi

ABSTRACT

THE CAMP of Theresienstadt was settled by the Nazis in order to gather outstanding Jewish men and women who were deported to that "Lager" from 1940 until the end of the war. Its main objective was to serve as propaganda, by showing Hitler's "good intentions" in dealing with the Jewish question. Therefore many artists, musicians and professors were forced to live there. In spite of this oppressive condition, they produced remarkable works of art. When the "final solution" was decreed by Hitler, most of them were sent to Auschwitz and put to death.

Bedrich Fritta-Theresienstadt

© Memorial de Terezin

QUANDO ASSISTIMOS ao filme O Führer oferece uma cidade aos judeus, o sentimento que nos colhe é de surpresa diante da singularidade do que foi o campo de Theresienstadt.

A mesma surpresa devem ter sentido os membros da Cruz Vermelha Internacional na visita de inspeção às condições dos prisioneiros em 23 de junho de 1944. Encontraram uma cidade administrada por judeus onde corriam notas de dinheiro impressas com a efígie de Moisés e as Tábuas da Lei.

Naquele dia, os membros da Cruz Vermelha ouviram um magnífico Requiem de Verdi cantado pelo coral de Theresienstadt. Os teatros representavam duas peças de Shakespeare. Nos programas de ópera, a Carmen, a Tosca, a Flauta Mágica e uma ópera para crianças composta por um autor do gueto.

A cidade abrigava velhos do Reich, cientistas reconhecidos, artistas famosos. Judeus mutilados durante a guerra de 14 e condecorados pelo exército alemão. Enfim, personalidades cujo desaparecimento inquietaria o mundo civilizado.

As diversas orquestras, os conjuntos de jazz e de música de câmara impressionaram bem os visitantes. Os esportes eram muito praticados, sobretudo o voleibol e o futebol. (Assisti no filme a uma partida de futebol acompanhada por vibrante torcida.)

A equipe de visitantes notou a aparência das pessoas bem vestidas, a vasta e agradável biblioteca, as instalações sanitárias, os 400 médicos (diversos eram professores célebres). Concluiu observando a unidade e harmonia que parecia alcançada entre povos e línguas diferentes.

"Theresienstadt é uma sociedade comunista", verificam, dirigida por um comunista "de alto valor", o Dr. Paul Eppstein, à frente de um Conselho de Anciãos (Ältestenrat) da comunidade judaica; 150 policiais tchecos fazem a guarda permanente do gueto e 12 oficiais nazistas (Lager Kommandantur) ficam sediados na Pequena Fortaleza.

O pessoal de ensino pareceu "extremamente qualificado" e o jardim da infância (criado especialmente para essa visita), adequado e moderno. A escola parece bem equipada, embora um cartaz assinalasse que as crianças "estavam em férias". O relatório da Cruz Vermelha observa que uma cozinha especializada prepara o alimento dos pequeninos.

Ao começar a visita, os membros da inspeção escutam do dirigente Eppstein, o comunista "de alto valor": — Vocês irão visitar uma cidade normal de província. (O Dr. Paul Eppstein será assassinado pelos nazistas em 1944 na Pequena Fortaleza.)

O filme documentário sobre o campo é obra de um internado, ator e cineasta de renome, Kurt Gerron (depois deportado para Birkenau). Hitler muito se serviu desse filme como propaganda de como eram felizes os judeus sob a tutela do Reich. E, contradizendo a corrente anti-semita, curiosamente, os judeus aparecem criando obras excepcionais, dando de si uma imagem oposta à veiculada pelo Reich.

Escutamos, num trecho do filme, o Concerto para Cordas de Pavel Haas, compositor amado pela juventude da época ("Pavel Haas, meu compositor adorado", diz Milan Kundera). Quem rege a orquestra é Karel Ancerl, que sobreviveu e dirigiu mais tarde a Orquestra Filarmônica Tcheca.

* * *

Desde que Eichmann anunciara essa visita, a transformação do campo se acelera. Aparecem jardineiras e balanços de crianças. Um coreto para música. No itinerário a ser percorrido, as calçadas são lavadas e as casas pintadas. Cada um dos figurantes ganha roupa nova e é instruído sobre como deve se comportar e os riscos de desobediência.

No dia 23 de junho os visitantes tiram fotos, ganham um álbum de aquarelas pitorescas sobre essa "cidade normal de província".

Escutei o depoimento registrado do médico da Cruz Vermelha, Dr. Maurice Rossel, confessando para a humanidade o engano em que incorrera: não observara nenhum ríctus nos rostos, não encontrara no seu bolso sequer um bilhetinho enfiado as pressas, os internos nada fizeram que despertasse suspeita...

No entanto, Theresienstadt, cidade artificial criada para propaganda, foi aparelho de extermínio, fosse ela habitada por artistas ou sábios ou rabinos ou velhos soldados ou crianças.

* * *

O campo de Terezin (assim chamado pelos que nele viveram) não existiu para ser esquecido. O centro de História da Resistência e da Deportação de Lyon dedicou-lhe uma exposição temporária que visitei em abril de 1999. Entre o grande conjunto de obras e documentos cedidos pela Tchecoslováquia, pude ver roupas de suas crianças, pinturas, desenhos infantis, entre eles um Mickey desenhado numa lasca de madeira que fora ali deixado. Ninguém passaria incólume por esses vestígios.

Sendo professora de Psicologia Social, lera dezenas de depoimentos recolhidos por meus alunos, de avós que sobreviveram ao gueto de Varsóvia e a campos de concentração. Mas nada vira de semelhante à propaganda de Terezin, ao artifício que divergia em tal grau da realidade.

Partindo com essas imagens impressas no espírito, obtive mais tarde, documentação dos organizadores daquela exposição do Centro de Lyon. Vou me ater somente à documentação que recebi (Le masque de la barbarie — Le ghetto de Theresienstadt 1941-1945) e às impressões pessoais sobre o filme — propaganda, entrevistas filmadas e, sobretudo, à exposição.

Embora Terezin merecesse longos anos de estudo, visitas repetidas aos museus e arquivos tchecos, penso que será preciso testemunhar o que ele foi, sem demora. Não só do que entrevimos ao longe, mas daquela intimidade que pode se formar e se formou entre as paredes de papel de um simples depoimento. Intimidade precária, bem sei, mas intensa como se o papel guardasse ainda o calor do sopro de tantas bocas

A história de Terezin

Theresienstadt tem a forma geométrica de uma estrela de muitas pontas. Antiga cidadela fundada pelo Imperador da Áustria em 1780, é rodeada por altos bastiões; suas muralhas, o alinhamento de suas ruas e casernas, a praça central onde fica a igreja, toda essa disposição racional de fortaleza possibilitou sua transformação num gueto isolado, num "campo para casos especiais".

Judeus proeminentes (cientistas, heróis de guerra, artistas com fama internacional) são convidados a habitar uma cidade aprazível como alguma estação de águas, Marienbad por exemplo, sob a proteção do Führer. Terão ali bons alojamentos, alimentação, cuidados médicos, desde que assinem um contrato cedendo seus bens ao Reich (que assim ganhou em torno de 400 milhões de marcos).

As velhas damas, mediante um acréscimo razoável, poderiam obter apartamentos com face para o sol.

E assim eles foram chegando a Theresienstadt, carregados de valises e preparados para um longo séjour. Devem passar de início por uma caserna isolada que serve de entrada ao gueto. As famílias exibem logo seus contratos que irão assegurar-lhes proteção e bem-estar.

Os SS se apoderam de sua bagagem, pilhando tudo o que possa ter algum valor. Homens respeitáveis, mulheres finamente vestidas, crianças delicadas são despojados do que possuíam e obrigados a dormir no solo. Após noites e dias de brutal aprendizado, saem da caserna amarrotados e sujos, olhos dilatados de espanto. Os membros da família são separados e começam a trabalhar para a indústria alemã.

Desde que houvera a ocupação que transformou a Boêmia-Morávia num Protetorado do Reich (Reichsprotektorat) as medidas anti-semitas se tornaram opressivas, uma vez que Eichmann resolveu "purificar" racialmente o Protetorado.

Os líderes judeus haviam entregue aos nazistas (6 de novembro de 1941) um projeto de "guetos industriais" para oferecer às fábricas mão-de-obra mais barata. Isso, pouco depois da obrigação do porte de estrelas amarelas no vestuário. Não é difícil imaginar o móvel dos líderes judeus: a sobrevivência.

Após vários encontros entre Goebbels, Heydrich e Eichmann, Theresienstadt é escolhida como local para o campo de trânsito dos judeus do Protetorado e de moradia para os velhos, entre eles os judeus heróis de guerra pela Alemanha. O Reich teria assim um cartão de visita a exibir para o Ocidente.

Terezin era um município tcheco com 3.498 habitantes que foram evacuados por Heydrich para a implantação do gueto.

Desde 1941 começam a chegar comboios repletos. Para se ter uma idéia dessa implantação nos defrontamos com cifras assustadoras: com o tempo são encerradas no campo 139.654 pessoas. Dessas, 33.430 vão morrer ali, 86.934 são deportadas para o leste onde 83.500 perecem.

Numa caserna que abrigara outrora 20 soldados são alojadas de 100 a 400 pessoas desde os porões até o sótão. Uma casa onde moravam oito pessoas tem que abrigar mais de 50. Alguns Prominenten poderão morar em casas com suas famílias, mas a grande maioria é alojada nas casernas onde os homens são separados das mulheres.

A disparidade não é só social ou cultural porque existiu no gueto também uma pluralidade religiosa: fora os judeus agnósticos pouco mais de 2.000 internos são cristãos sendo 1.130 católicos e 830 protestantes.

Com o tempo a superpopulação engendrou penúria e doenças em grau extremo. A ração quotidiana média é insuficiente, se bem que os trabalhadores braçais e as crianças recebam porções suplementares. Aos velhos são dadas quantidades menores e eles rondam as latas de lixo em busca de comida.

Na tela de Leo Haas vemos numerosos velhos cegos tentando caminhar com os braços estendidos numa coorte inerme e trágica. Sempre me pareceu que esses anciãos (que morrem às centenas de fome, desgosto e doenças) são os profetas do campo. Apalpando as trevas com seus membros descarnados, vão à frente perscrutando o futuro comum.

A administração do gueto

Eichmann mostrou-se satisfeito com a administração judaica que "vê as coisas de maneira realista e coopera até o presente de forma leal". "Caso as insuficiências apareçam, o descontentamento dos judeus se orienta em primeiro lugar contra a administração judia e não contra a supervisão alemã".

O relatório da Cruz Vermelha assinala o restrito número de oficiais nazistas sediados na Pequena Fortaleza, nomeados por Eichmann. (Nessa Pequena Fortaleza foram encerrados milhares de antinazistas tchecos e alemães, prisioneiros de guerra soviéticos e agentes ingleses; destes, a maioria foi eliminada.)

E a administração judaica? À testa esteve o Dr. Paul Eppstein, comunista, assistido por um Conselho de Anciãos (Ältestenrat) que se encarrega da Justiça, Policiamento, Economia, Abastecimento, Saúde, Trabalho, Lazer... Há responsáveis por quarteirões, por dormitórios. O contingente de funcionários é assombroso (17 mil) porque a ele pertencendo, esperava-se escapar à deportação.

Ao Conselho Judaico incumbía a tarefa de fazer a lista dos que seriam deportados. O horror da deportação acompanha os prisioneiros noite e dia. Quem não tivesse alguma proteção (buscada com desespero) poderia estar na próxima lista dos comboios para o leste.

Quando a lista é publicada com a data, muitos se escondem mas são capturados. Outros se fazem inocular com tifo para escapar, mas não conseguem; o médico e a enfermeira que os ajudaram são executados na Pequena Fortaleza.

O limite extremo do medo vem da operação de escolha para as câmaras de gás (Selektion).

Agamben nos fala do vórtice anônimo que atrai obsessivamente toda a população do campo cujo pensamento gira em torno da pergunta: — Quem irá desta vez? "Por isso a preocupação mais assídua do deportado é esconder suas doenças e suas prostrações..." (O que resta de Auschwitz). Ele gostaria que sua debilidade agravada a cada dia se tornasse invisível.

Quando da visita da Cruz Vermelha a Theresienstadt, 7.503 pessoas cujo aspecto mísero "estragava a paisagem" foram retiradas do gueto.

Segundo Hannah Arendt "o horrível processo de redução ocorria, regularmente, nesse paraíso" e Eichmann o considerava necessário — "porque nunca havia espaço suficiente para todos aqueles privilegiados".

Hannah Arendt analisa tão apaixonada quanto lucidamente os mecanismos internos do julgamento de Eichmann no livro Um relato sobre a banalidade do mal: Eichmann em Jerusalém. E diz: "Para um judeu, este papel do líder judaico na destruição de seu próprio povo é, indubitavelmente, o capítulo mais sombrio de toda uma história escura".

"Em Amsterdam, assim como em Varsóvia, em Berlim como em Budapest podia-se confiar nos funcionários judeus para fazerem a lista das pessoas e de suas propriedades, para apanharem o dinheiro dos deportados, para calcularem as despesas de sua deportação e extermínio, para seguirem a pista de apartamentos vagos, para ajudarem as forças policiais a agarrar os judeus e pô-los em trens (...) Eles distribuíam os distintivos das estrelas amarelas e às vezes, como em Varsóvia, a venda das braçadeiras tornou-se um negócio regular". E continua a autora: "em Theresienstadt a autonomia judaica foi levada tão longe que até o carrasco era um judeu".

Citando depoimento de Eichmann "tomava-se cuidado especial em não deportar judeus bem relacionados e com amizades importantes no mundo exterior".

O destino desses judeus eminentes ainda hoje é deplorado na Alemanha; muitos se lastimam por terem mandado Einstein embora, sem perceber, conclui Hannah Arendt, "que é um crime ainda maior, matar o pequeno Hans Cohn ali da esquina, apesar de ele não ter sido um gênio".

Sempre com Arendt, o que o julgamento de Eichmann em Jerusalém poderia ter mostrado ao mundo, seria uma visão da totalidade do colapso moral que o nazismo causou na respeitável sociedade européia, tanto nos algozes como em suas vítimas.

Se é que podemos emitir algum juízo — e creio que não podemos — ele deve alcançar os princípios de uma sociedade criminosa que expandiu sua ideologia como o ar que o cidadão comum respirava. Uma pergunta cabível teria sido: — Como eu agiria se estivesse lá? Ou mesmo: — Como ajo agora quando a mentira social afirma sua existência?

A infância no campo

Milhares de crianças (aproximadamente 11 mil) viveram em Theresienstadt; algumas chegaram com suas famílias, outras sós. Aos poucos vão sendo tiradas das casernas superlotadas e vão sendo alojadas em blocos de moradia, separadas conforme a idade e o idioma que falam.

A administração judaica preocupou-se com este grande contingente infantil que desde logo foi rodeado por mestres devotados. Muitos deles, militantes comunistas ou sionistas, acreditavam numa sociedade fraternal a ser construída no futuro. Os alunos assimilaram suas utopias conforme os testemunhos que nos deixaram.

Os SS requerem o trabalho das crianças maiores de 14 anos na produção de guerra e só permitem o ensino do trabalho manual. O ensino da história, ciências, línguas e literatura é clandestino; dele se ocupam pedagogos de conceituados centros de Viena, alguns da linha de Pestalozzi. A noite, nos saraus, as crianças assistem à leitura de poesias, a corais, marionetes, e até a óperas escritas para elas. São visitadas por filósofos, cientistas, escritores como o grande humorista tcheco Karel Polácek com quem conversam.

São levadas a visitar os anciãos, a ajudá-los com pequenos presentes e a cantar para alegrá-los. Os velhos transmitem o seu saber e suas utopias: desejam preparar as crianças para um futuro coletivo nos kibutzim de Israel ou numa sociedade comunista logo que o nazismo for derrotado.

Estas crianças, contudo, assistem às cenas de deportação dos próprios pais, vêem mortos nas ruas, roubam alimentos e carvão para se aquecer. Os aspectos mais cruéis do gueto não lhes são poupados.

Pude ver seus desenhos, seus textos e nada me comoveu tanto como ver algumas peças de suas roupas.

Os desenhos se inspiram nas aulas da admirável professora que foi Frederieke Brandeis. Esta jovem, nascida em Viena, foi aluna da Bauhaus, em Weimar, onde seguiu cursos com Paul Klee e outros mestres. Renomada arquiteta de interiores em Berlim, Viena e Praga, acabou caindo nas mãos dos nazistas. Em Terezin levou as crianças a estudar as cores e a luz, a fazer colagens sobre desenhos. Os formulários da antiga guarnição da fortaleza, ali abandonados, vão ser recortados e vão aparecer sob uma nova luz. Com meios tão pobres a arte se faz e o seu amor pela liberdade de criação se expressa num texto (Sobre a arte das crianças) onde ela se interroga: "Dirigir os lampejos de inspiração das crianças, suas súbitas iluminações é criminoso. Por que os adultos se apressam tanto em fazer com que as crianças se assemelhem a eles? Somos a tal ponto felizes e satisfeitos com nós mesmos?"

Suas lições eram também um meio de reconstrução psicológica dos pequenos prisioneiros. Os desenhos são povoados de imagens do lar perdido, da cidade amada para onde um dia querem retornar.

Frederiecke Brandeis morreu em Auschwitz em 1944.

Diversas revistas são preparadas nos lares de adolescentes como Kamarád (22 números), Rim-rim-rim (sinal de reunião da turma, chegou a 21 números), Vedem (Avante!, órgão da "República Skid", que chegou a mais de 50 números), Noviny...

São revistas em geral manuscritas, muito ilustradas por lápis de cor e aquarela. Seus exemplares, únicos, passam à noite de mão em mão. Revelam o que foi o quotidiano no campo, mas também se desenha história em quadrinhos, se escrevem aventuras em capítulos: viagens na estratosfera, explorações polares, descobertas, piratas e far-west...

Eles vêem tudo, sabem tudo e observam com aquela justiça insubornável das crianças. Até a administração judaica é criticada: "sem proteção não se pode obter coisa alguma no gueto, ou mesmo permanecer vivo".

Alguns professores se inspiravam em modelos de pedagogia soviética adaptados de comunidades de crianças abandonadas durante a guerra. Em Leningrado havia um orfanato que recolheu meninos abandonados de guerra; era a "Escola (Shkola) de educação social e individual Dostoievski". Em 1943, com as iniciais desse orfanato, os adolescentes do Bloco L 417 proclamavam em Terezin uma república de jovens que denominam República Skid.

Pelo trabalho e disciplina, pela responsabilidade entre os "camaradas" querem transformar seu destino numa "realidade alegre e consciente", conforme as palavras de seu presidente eleito, o jovem Walter Roth. Enfim, um "sentimento coletivo elevado" anima os jovens e seus pedagogos.

Enquanto a República Skid afirma seus princípios esperançosos na revista Vedem (Avante!) uma nuvem sombria avança sobre a Europa. Ao Conselho dos Anciãos Judeus cabe a amarga tarefa de selecionar os que devem partir nos comboios da morte. O conselho tenta reter as crianças até o fim. Mas em 1943 parte um comboio de crianças para o campo de Birkenau.

Egon Redlich, responsável pela organização infantil do campo, tinha seu braço direito no alemão Freddy Hirsch, jovem esportivo e muito ligado aos alunos. Ele os acompanhará no comboio e em Birkenau, cria no campo o Bloco das Crianças onde continua sua obra de educação com esforços heróicos. Este jovem imaginativo inventa histórias, jogos e canções para entretê-los e cria uma ilha de humanidade e de esperança dentro do sinistro espaço de Birkenau. (Quando em 1944 os meninos são conduzidos à câmara de gás, ele se suicida.)

Para o administrador Redlich, que participara da seleção dos que iriam partir para o leste, chega a vez de partir também no último comboio para Auschwitz, com sua esposa Grete e o bebê de seis meses. Eles não voltarão.

No outono de 1944 os comboios para Auschwitz levam a maioria das crianças do gueto. A revista Kamarád ainda publica seu último número onde os amiguinhos prometem se reencontrar depois da guerra numa certa rua de Praga. Mas das 8.764 crianças e jovens, deportadas entre 1942 e 1944 para os campos do leste, só sobreviverá uma centena.

Os jovens redatores de Kamarád nunca mais se verão numa certa rua de Praga. Nem a valorosa República Skid virá cumprir suas promessas.

Babel ao reverso: a arte de Terezin

No entanto, Terezin concentrou em si uma terrível beleza. A resistência à "banalidade do mal" se apresentou em formas expressivas na música, na pintura, no teatro, na poesia... A concentração rara de talentos, rara na história da cultura ocidental, servirá aos nazistas de propaganda. Mas também houve uma arte subterrânea, de denúncia.

À noite, os prisioneiros improvisam pequenas peças clandestinas em diferentes línguas. Sem cenário, jogam com a luz e sombra dos dormitórios. Criava-se uma atmosfera mágica de compreensão, Babel ao reverso.

Com papel, com palha, com sacos vão criando costumes. Aos poucos vêm à cena Gogol, Tchékov, Molière, Cocteau... Muitos prisioneiros foram atores. Os tchecos ousam peças engajadas politicamente, pois os SS não entendem sua língua: numa delas a Imperatriz Maria Teresa observa com telescópio o mundo moderno, especialmente Terezin criado em sua homenagem.

Karel Svenk em O último ciclista conta a história de um ditador que acusa os ciclistas de serem culpados por todos os males do país, bem como seus descendentes e os vai deportando para a Ilha dos Horrores. Só um ciclista foge e é salvo porque o ditador não pode subsistir sem um bode expiatório. Durante as sucessivas representações da peça, que faz um enorme sucesso, os atores vão desaparecendo nos comboios para o leste. Novas representações aparecem: Pigmalião de Bernard Shaw, Ifigênia em Tauride de Goethe...

Há saraus dedicados às crianças com leituras de histórias, marionetes, canções compostas no campo. Para os velhos são festejados cerimoniosamente os aniversários de Goethe, Schiller, Kafka... e outros autores, com leituras e debates sobre suas obras.

Desde que foram criadas oficinas de produção artística, os internos exercem ali seu próprio metier, fazendo projetos, desenhos técnicos, gráficos para firmas alemãs. Alegram com pinturas os espaços superlotados dos dormitórios. O arquiteto Norbert Troller tem que imaginar o décor da cantina dos SS. Fazem painéis de decoração para teatro e desenham refinados convites. Praticam cerâmica, escultura e devem confeccionar objetos para os SS: portraits de família a partir de fotos, bibelôs, cartões festivos, abajures... E também álbuns de propaganda do nazismo para o mundo exterior. Mas, clandestinamente, representam o mundo que vêem e escondem suas melhores obras nos grandes port-folios da biblioteca ou nos desvãos dos sótãos.

O atelier de desenho é dirigido por um artista extraordinário, Bedrich Fritta, gráfico e caricaturista em Praga, interno em 1941. Seu nome verdadeiro era Fritz Taussig. Pude ver o álbum encantador que preparou para o 3º aniversário de seu filho Thomas (Tomíckovi). Seu discípulo e amigo Leo Haas, que sobreviveu, nos deixou um belo retrato de Fritta e outro do menino Thomas.

Bedrich expressou sua cólera em duzentos desenhos secretos que enterrou no solo dentro de um cofre de ferro. As obras desse atormentado artista nos causam consternação e dor porque narram a verdade que os nazistas escondem: filas de deportados fustigados pelas chuvas, telhados com olhos que nos enviam mensagens aflitivas... Pode-se comparar o Café-concerto pintado para propaganda e aquele pintado por Fritta onde os músicos tocam para rostos vazios que aguardam a morte.

No atelier trabalhavam uma vintena de pintores da altura de Otto Ungar, Leo Haas, Charlotta Beresová, Hilda Zadiková. Evocá-los, rever suas obras, escrever seus difíceis nomes tchecos, é mais que um labor memorativo, é uma necessidade de justiça.

As crianças tiveram em Friedl Dicker-Brandeis (Frederieke Brandeis) mestra excepcional, conforme atestam os desenhos infantis que hoje pertencem ao Memorial de Terezin.

O pastor da comunidade evangélica do campo, Arthur Goldschmidt, retratou muitas figuras e aspectos do quotidiano. Nascido em Berlim, foi conselheiro do Tribunal de Apelação em Hamburgo, de onde foi afastado pela lei de 1933 sobre exclusão de funcionários judeus ou meio judeus (seu pai, que abandonara o judaísmo, o batizara na religião protestante luterana). Ele se tornou uma das figuras mais respeitadas da cidade e banido do seu alto cargo, envia os dois filhos à Itália e depois à França para protegê-los.

Em 1942 perde sua esposa e é deportado para Terezin onde se tornou pastor da comunidade evangélica: cerca de 200 fieis compareciam ao culto. Traçava em cada retalho de papel que lhe caía nas mãos retratos — excelentes — dos internados. Como guia espiritual, escutava confidências e conhecia interiormente os rostos que desenhou: daí a sensibilidade dessas fisionomias, como a de singular agudeza de Madame Paracy, de Viena.

Num velho caderninho estragado que usava em seus momentos livres, deixou-nos um testemunho de amor: é o desenho de um casal onde se vê o homem penteando a mulher. Ele, ainda aprumado, de gravata papillon e ela sentada no solo, acabrunhada como quem desistiu de esperar. São duas atitudes que convivem no campo: a resistência animosa ao destino e o esvaziamento de toda esperança, sem outro apoio que a ternura do companheiro.

Goldschmidt sobreviveu (aqui reproduzimos algumas de suas obras).

O vôo dos artistas se interrompeu em 1944 com a prisão de cinco membros do atelier. Interrogados em presença de Eichmann, são aprisionados na Pequena Fortaleza com suas famílias. Acusação: fazer propaganda mentirosa (Greuelpropaganda) para prejudicar a imagem do gueto. Um deles, Bloch, é espancado até a morte. Otto Ungar tem sua mão destruída para que não pudesse mais pintar e morre alguns meses depois. Os outros serão deportados para Auschwitz, onde morre Bedrich Fritta. Leo Haas, que sobreviveu, adotou o filhinho de Bedrich, Thomas.

Centenas de pintores, músicos e atores partem. Leo Haas escondeu mais de 400 obras murando-as no sótão de uma caserna. Bedrich Fritta havia enterrado as suas. Esses artistas desejavam acima de tudo dar para a humanidade um testemunho do que fora a vida no gueto. Suas obras subsistem na sua maior parte no Museu Judaico de Praga e no Memorial de Terezin.

Conforme Dominique Foucher, que estudou a pintura e o desenho em Theresienstadt: "Além de seu valor como expressão artística, essas obras constituem um testemunho único sobre o que foi Theresienstadt: um fenômeno sem precedente na história da cultura ocidental".

A música de Terezin

Desde o início da chegada ao campo, começam a se organizar as soirées da amizade, espetáculos que os prisioneiros apresentavam nos dormitórios. Com grande custo conseguiam trazer consigo um ou outro instrumento, ocultos na pequena bagagem permitida. Um instrumento grande como o violoncelo chegou desmontado peça por peça.

Sem demora os nazistas compreenderam o quanto a música poderia servir de propaganda para um "campo modelo onde era tão prazeroso viver".

Assim, o chefe do Conselho dos Anciãos, Paul Eppstein, conseguiu que viesse seu próprio piano. Dado o grande contingente de músicos ansiosos por exercitar-se, ele concedia duas horas por dia a cada um. Mas como todos consideravam esse tempo exíguo fundou-se uma Piano Polizei (PIPO), que regulava os horários. Como se vê, o bom humor tinha direitos de cidadania em Theresienstadt. Primo Levi, ao recordar Auschwitz, não omite de forma alguma episódios jocosos como as brincadeiras de iniciação com os novatos.

Maestros, poetas, compositores ensaiam óperas, música vocal e instrumental. Há mesmo um quarteto composto só de médicos. Foram levadas à cena As núpcias de Fígaro e A flauta mágica de Mozart. Um público exigente aplaudiu o Rigoletto de Verdi, a Tosca de Puccini, a Carmen de Bizet. Em 1942 é aberto o Café-concerto que oferece espetáculos à tarde e à noite.

Grande êxito alcançou a ópera Brundibar, cantada pelas crianças do gueto e da autoria do compositor tcheco Hans Krása; é a vitória do bem sobre o mal (encarnado em Brundibar) e teve um décor e uma mise en scène das mais caprichadas. A ópera representada 55 vezes se encerra com as palavras: "Aquele que ama a justiça, que lhe permanece fiel e não tem medo, é nosso amigo e pode vir brincar conosco."

Na expectativa da visita-inspeção da Cruz Vermelha, novas salas para música são abertas e mesmo um pavilhão é construído. Preparou-se o cenário para o filme-propaganda sobre Terezin. Paradoxalmente, executava-se a obra de músicos proibidos na Alemanha, os "decadentes", com uma liberdade de que não dispunham os cidadãos hitleristas.

No Café-concerto se apresentavam à tarde e à noite espetáculos à moda dos cabarés alemães da época e cantava-se ali uma canção que terminava assim:

Podem nos roubar aqui bastantes coisas

o destino decidiu por nós assim,

mas algo existe que jamais nos roubarão:

a certeza que um dia haverá aqui outra coisa

oh, escuta, camarada,

o canto de Theresienstadt

Os artistas costumavam divertir os doentes nos hospitais que, por gratidão, guardavam para eles um pouco de pão, margarina ou açúcar subtraídos de suas minguadas rações.

Tocavam, dançavam e cantavam para um público que continuamente ia desaparecendo, sendo que eles próprios não podiam prever se estariam ali na próxima representação.

No mesmo ano de 1944, após a visita da Cruz Vermelha, os músicos foram julgados inúteis. Vários compositores embarcam nos comboios da morte como o jovem Gideon Klein, que, interno aos 22 anos, escreveu toda sua obra em Terezin onde foi pianista, regente de coro e educador. Gideon deixou-nos uma fantasia e fuga para quarteto de cordas, uma sonata para piano, uma peça para barítono sobre três poemas de Rimbaud e arranjos inspirados no folclore tcheco, russo e judaico. Podemos admirar sua fisionomia no retrato que dele fez Charlotta Buresová.

Em 1944 parte também Pavel Haas, o "compositor adorado" de Milan Kundera. Pavel compôs música sinfônica, jazz, trilhas sonoras para cinema. Antes de cair nas mãos dos nazistas tinha se divorciado para salvar a esposa e a filha que eram católicas. Pude escutar seu belo Estudo para cordas, executado no filme sobre o campo.

Viktor Ullmann estudou composição com Schoënberg em Viena (onde foi o primeiro auxiliar de Zemlinsky), e com Haba no conservatório de Praga. Conhecendo Rudolf Steiner, Viktor tornou-se apaixonado antroposofista. Compôs sonatas, melodias para coros infantis, muitos lieder como os Lieder der Trostung (cantos de consolação), para voz e quarteto de cordas. Musicou poemas de Holderlin e A canção de amor e de morte do porta-estandarte Christoph Rilke.

Sua ópera Der Kaiser von Atlantis (O imperador de Atlantis) é uma sátira a Adolph Hitler e a seus anjos exterminadores; faz alusões a autores condenados pelo Reich como Gustave Mahler. Esta obra nunca pode ser apresentada.

Viktor Ullmann criou o Studio para Música Nova onde ensinou a execução das músicas contemporâneas "malditas". Criou também o Collegium Musicum para o estudo de música barroca. Entre 1942 e 1944, ano de sua morte em Auschwitz, esse grande artista abriu horizontes de criação livre para os prisioneiros de Terezin como poucas vezes a Europa terá conhecido.

* * *

Aqueles que restaram no campo, ameaçados sempre ou doentes e famintos, continuam a escrever música e poesia, óperas para as crianças. Preparam os Contos de Hoffmann de Offenbach enquanto a Alemanha está perdendo a guerra e acelera a "solução final" para os judeus. A 1º de agosto de 1944 dá-se a insurreição de Varsóvia que as forças alemãs esmagam no início de outubro. A liberação de Paris acontece a 25 de agosto.

No delírio dos últimos tempos do nazismo são aprisionados os filhos de "casamentos mistos" que chegam ao campo. As crianças, quando levadas ao chuveiro, gritam de horror: — Não! O gás, não! Os recém-chegados relatam aos prisioneiros o destino dos comboios e estes, tomam assim conhecimento das câmaras de gás.

Mas prossegue a luta da população russa e passo a passo a Alemanha recua. Quando o Exército Comunista liberta Auschwitz em 1945, os SS projetavam a construção em Terezin de uma câmara de gás com passagem subterrânea. Projetavam também um "lago para patos" onde afogariam milhares de pessoas. Em maio os soviéticos chegam ao campo e começa o repatriamento dos prisioneiros. Em outubro, os antigos habitantes de Theresienstadt recuperam sua cidade.

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Algumas semanas antes houvera outra visita da Cruz Vermelha ao campo, ainda sob o domínio nazista. A equipe dos visitantes manifestou de novo sua admiração pelas atividades artísticas a que assistiu na ocasião. Antes dessa inspeção havia se preparado o mesmo cenário: casas pintadas, ruas lavadas, praças abertas, os internos obrigados a agir como figurantes. A Theresienstadt vista é uma fachada ilusória: ali tudo é falso, menos as suas criaturas. As crianças são crianças, os mestres são mestres, os médicos são médicos, os artistas são artistas.

Em 1943 o campo viveu um memorável acontecimento: a apresentação do Requiem de Verdi. Quando a quase totalidade do coral foi deportada (150 participantes se foram nos "comboios do leste"), lentamente se formou um segundo conjunto que pode apresentar outra vez o Requiem. Este, recebido com emoção pelos prisioneiros que escutavam mescladas no mesmo coro as vozes dos vivos e mortos.

Mas, havendo novas deportações, os cantores se foram. Os sobreviventes do campo de Terezin formaram então um terceiro coral que, no outono de 1944, se apresentou para cantar o Requiem de Verdi.

Ecléa Bosi é professora do Departamento de Psicologia Social e do Trabalho do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (IP-USP) e autora de Memória e Sociedade.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    05 Maio 2005
  • Data do Fascículo
    Dez 1999
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