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Memórias de um comunista

DOSSIÊ MEMÓRIA

Memórias de um comunista** O presente texto é uma transcrição de algumas partes de um livro de Marco Antônio Tavares Coelho, provisoriamente intitulado Memórias de um comunista, que será publicado pela Editora Record, do Rio de Janeiro, e lançado provavelmente no próximo ano. As duas primeiras partes são trechos dos capítulos 7 e 10, intitulados, respectivamente, "Nas águas da política" e "Não enxergamos o precipício". A segunda parte é a transcrição integral do capítulo 16, intitulado "Para não fugir da memória". O livro possui 20 capítulos, com cerca de 370 páginas.

Marco Antônio Tavares Coelho

Episódios com San Tiago Dantas

A POUCOS MESES DA ELEIÇÃO, em 1958, em Minas foram tocados os sinos de rebate com a entrada na campanha de um candidato a deputado federal na chapa do PTB. Chegara de pára-quedas, não possuía bases eleitorais e estava gastando rios de dinheiro para conquistar núcleos municipais desse partido.

Sua ficha política era a mais negativa possível: havia pertencido à Câmara dos 40, suprema direção dos integralistas; combatera a posse de Getúlio na presidência da República em 1950; era o mais famoso advogado das empresas norte-americanas no Brasil. Além do mais, não era mineiro. Seu nome — Francisco Clementino de San Tiago Dantas.

Em nossos arraiais — no PCB, entre os trabalhistas e nacionalistas, no Binômio — ficamos alvoroçados. Era indispensável impedir a eleição daquele milionário, intruso e sumamente perigoso. Era o cavalo de Tróia do imperialismo na fortaleza do trabalhismo mineiro. Como fazia jornalismo investigativo, fui escalado para preparar uma série de reportagens sobre a figura.

Fui ao Rio conversar com pessoas que o conheciam bem, entre os quais Gabriel Passos e Camilo Nogueira da Gama. Conversei com Osvaldo Costa e este pediu-me que as reportagens fossem também publicadas no Semanário. Seguindo as informações colhidas fui à Biblioteca Nacional conferir dado por dado.

Caprichei na redação, eliminando adjetivos e figuras de retórica. Duas semanas depois começou a série de minhas reportagens sobre San Tiago Dantas — no Binômio e no Semanário. Publiquei o parecer que ele dera no Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil, opinando que Getúlio não poderia ser empossado porque não tivera a maioria absoluta dos votos na eleição de 1950.

Contei fatos sobre seu envolvimento com os integralistas. Indiquei sua participação em subsidiárias de empresas estrangeiras e o papel de seu escritório de advocacia na defesa de trustes e cartéis. Enfim, um dossiê volumoso, uma coletânea de fatos irrefutáveis. Estava contente com as minhas matérias e com sua repercussão. Apenas Prestes discordou da campanha, julgando-a politicamente equivocada.

Mas não me abalei, até que numa noite toca a campainha do modesto apartamento em que eu residia. Era um estranho, identificando-se como secretário do professor San Tiago Dantas. Disse-me que o famoso advogado pedia um encontro porque desejava conversar comigo. Concordei, pois não me ocorreu um motivo para repelir a polida solicitação.

Perguntou-me, então, em que local, dia e hora seria possível. Retruquei que poderia ser ali mesmo e marquei uma data para a semana seguinte. Teresa é que não gostou, alegando que nossa casa não era um local condizente para receber pessoa tão importante. E queria saber o que deveria servir a San Tiago Dantas. Esclareci — só um café, como se oferece numa casa mineira. Como julguei que, na certa, a conversa envolveria uma gestão para que suspendesse as matérias que estava publicando, pedi ao Armando Ziller para estar presente, a fim de testemunhar a conversa.

Na hora aprazada para o encontro, toca a campainha e vejo, subindo a escada íngreme de acesso, iluminada por uma luz mortiça, a figura controvertida. Era San Tiago Dantas. Na verdade, a estampa deu-me a idéia de um elefante cego e tive receio de que rolasse escada abaixo.

Gastamos os tradicionais dez minutos iniciais de cordialidade, tomamos o cafezinho e San Tiago Dantas, com aquele sorriso simpático, entrou logo no tema que motivara a visita. Começou por dizer que estava acompanhando atentamente minhas reportagens sobre ele. E acrescentou: "Só posso reconhecer que nelas não há nenhuma inverdade. Parece-me, também, que seu levantamento foi completo. Ao ponto de estar arquivando as reportagens para a elas recorrer quando elaborar minhas memórias".

Nesse ponto respirei aliviado, porque eu temia um desgastante contraditório, ponto por ponto, ou justificativas para as acusações formuladas nas matérias. Aí San Tiago Dantas entrou no ponto central, dizendo: "Quero tão somente dizer a vocês que reformulei minhas opiniões, só desejando que continuem acompanhando atentamente minha conduta para comprovarem essa mudança".

Fiquei sem saber o que dizer. Poderia pintar com cores mais vivas o que ele praticara de errado e nocivo. Contudo, não era mais essa a questão, porque se pode dizer tudo a uma pessoa mas nunca proibir que modifique seu comportamento. Como fiquei atônito, Ziller assumiu a conversa comentando fatos políticos. No fundo, jogando conversa fora, como hoje se diz. Encerrando, San Tiago Dantas entregou uma cópia de seus discursos recentes e me deu os números de seus telefones, para alguma necessidade.

Escrevi mais duas reportagens contra ele, abordando aspectos ainda não divulgados nas matérias anteriores. No entanto, perdi totalmente o élan. Passei a acompanhar tudo o que ele fazia, desconfiado e atento. Mas nada podia reprovar em sua atuação.

Transcorreram alguns meses e San Tiago Dantas tornou-se a grande figura do Partido Trabalhista, como o principal conselheiro de Goulart e como a figura que delineava os grandes temas partidários, conferindo aos getulistas maior respeitabilidade no cenário político. Ocupou o espaço que antes fora de Alberto Pasqualini, como a cabeça teórica da agremiação.

Ouvi um de seus discursos na Câmara dos Deputados, no Palácio Tiradentes, sobre o tema da reforma agrária. Naquela época, as sessões dessa Casa do Congresso eram presenciadas diariamente por dezenas de pessoas. O mundo político no Brasil comentava os debates ali travados. Os jornais dedicavam amplo espaço à divulgação daqueles embates, porque contavam, no plenário, com os maiores nomes do jornalismo político.

Os grandes momentos nas sessões eram sobretudo no grande expediente, que se iniciava às 16 horas. No plenário havia sempre um bur-burinho indesculpável, como ainda se vê hoje em Brasília. Os deputados conversavam entre si, voltados de costas para a tribuna, não prestando a menor atenção à fala dos oradores. Todavia, o quadro era outro quando ia à tribuna um grande orador — Carlos Lacerda, Adaucto Lúcio Cardoso, Vieira de Melo e poucos mais.

Naquela tarde, San Tiago Dantas subiu à tribuna e o plenário ficou em silêncio. Consultando apenas anotações com alguns dados, com a voz pausada, modulada como a dos grandes atores, apresentou a tese da necessidade da reforma agrária. Fundamentou-a do ponto de vista jurídico, histórico, político e ético. A banda de música da UDN — os melhores parlamentares desse partido de oposição — aparteou-o sem qualquer sucesso. A contradita de San Tiago Dantas era certeira, convincente e elegante.

Peça de oratória excepcional, que pode ser encontrada nos anais do Congresso, publicada sem a revisão do orador, pois nunca ele revia as notas taquigráficas, porque não era necessário. Cada vírgula ficava no seu lugar, os adjetivos eram os apropriados e a peroração feita no tom exato.

Nesse meio tempo, duas vezes encontrei-me com ele. Numa, discutimos a eleição dos novos dirigentes do PTB em Minas. De outra vez, em Brasília, na crise política resultante da renúncia de Jânio Quadros, porque desejou explicar sua opinião a favor da emenda constitucional instituindo o parlamentarismo, a fim de garantir a posse de Goulart.

Em setembro de 1961 houve o segundo episódio curioso na minha convivência com San Tiago Dantas. No primeiro gabinete do regime parlamentar, ele assumiu a chefia do Ministério das Relações Exteriores. Três semanas depois, recebi um recado em que ele solicitava minha ida ao Itamaraty, no belo palácio da avenida Marechal Floriano, no Rio de Janeiro.

Introduzido em seu gabinete, na sala histórica que durante anos fora do Barão do Rio Branco, o chanceler contou-me que estavam sendo ultimadas as negociações para o reatamento das relações diplomáticas do Brasil com a União Soviética.

Fiquei de boca aberta porque nenhuma informação sobre essa gestão transpirara no noticiário dos jornais. A relevância de tal iniciativa diplomática era imensa. Essas relações haviam sido rompidas pelo governo Dutra, devido a uma bebedeira de um diplomata brasileiro de segunda categoria, num hotel em Moscou. Justificativa esfarrapada para encobrir o maior engajamento do País na política de Washington para isolar a União Soviética.

Nós, comunistas, passamos anos defendendo o reatamento dessas relações diplomáticas. No governo Kubitschek vários setores da sociedade brasileira, inclusive nos meios empresariais, encamparam a tese, pois era uma necessidade ampliar os mercados para nossos produtos e abrir um caminho para estabelecer acordos comerciais e tecnológicos com a União Soviética. No entanto, o Itamaraty era liderado por um grupo infenso à prática de uma política internacional menos atrelada aos interesses norte-americanos.

Por essa razão, Jânio Quadros aproveitou aquele imobilismo anacrônico para obter o apoio de setores progressistas, porque levantou com coragem e sagacidade a urgência da adoção pelo Brasil de uma política externa independente. Orientação que foi seguida pelo chanceler Afonso Arinos de Melo Franco, apesar de sérias resistências nos meios militares, na igreja católica e entre os banqueiros.

Assim, a iniciativa de San Tiago Dantas correspondia a uma necessidade de aggiornamento, além de fortalecer a conotação progressista do governo Goulart. Todavia, como um estrategista que sabe dar os passos indispensáveis para alcançar determinados objetivos, ele desenvolveu um plano cuidadoso. Queria efetivar o reatamento das relações diplomáticas com a URSS de forma a não ocasionar maiores problemas políticos.

Esse plano me foi exposto por ele, com a recomendação de ser indispensável manter em sigilo a iniciativa. Assessorado por dois diplomatas competentes — embaixadores Carlos Alfredo Bernardes (Lolô Bernardes) e Mário Gibson Barbosa — San Tiago Dantas estava fazendo articulações em três áreas.

Debateu a questão com os donos dos jornais mais importantes na época: Júlio Mesquita Filho, de O Estado de S. Paulo; Nascimento Brito, do Jornal do Brasil e Roberto Marinho, de O Globo. Nenhum discordou do projeto. Simultaneamente, discutiu com os cardeais do Rio e de São Paulo. Dom Jaime Câmara não concordou, mas Dom Helder Câmara, então bispo auxiliar na arquidiocese, se encarregou de convencê-lo. Dom Carlos Carmelo aceitou como um fato normal as relações diplomáticas do Brasil com a URSS.

Na terceira área — entre os militares — é que apareceu uma resistência a ser contornada. San Tiago Dantas informou-me que, na sondagem, dois ou três generais haviam dito que a instalação de uma embaixada soviética no Brasil envolveria um perigo. Decorria do fato de ser freqüente os soviéticos usarem suas representações diplomáticas como uma base para espiões e informantes.

A forma que o Itamaraty encontrara para responder a essa objeção foi a de introduzir uma cláusula restritiva no texto que formalizaria o reatamento das relações com a URSS. Seria estabelecida uma equivalência no número dos agentes diplomáticos lotados nas duas embaixadas, no Rio e em Moscou.

Para San Tiago Dantas era desgastante apresentar ao governo soviético essa cláusula como indispensável, porque não deixava de ser uma limitação dos poderes soberanos dos dois governos. Contudo, raciocinava que, no futuro, com a normalização das relações diplomáticas, tudo se alteraria, principalmente do lado brasileiro. "O que temo — esclarecia o chanceler — é que, por não conhecerem bem o Brasil, os soviéticos não aceitem essa cláusula restritiva. E não posso argumentar sobre as razões dessa nossa exigência. Por isso é que recorro a você a fim de que explique diretamente aos soviéticos todos os aspectos do problema".

Não vacilei em aceitar aquela missão. Naquele tempo existia no Brasil um escritório comercial soviético, dirigido por um diplomata inteligente — Andrei Fomin. Desenvolvia um excelente trabalho, pois conseguiu em poucos meses estabelecer boas relações sociais e porque foi se apercebendo da maneira de agir dos brasileiros. Estranha para os estrangeiros que aqui aportam, por ser uma conduta despida de formalidades tão arraigadas em outros cantos do mundo.

Após discutir com Prestes, fui ao escritório comercial da URSS, na rua Alice. Informei a Andrei Fomin a conversa que havia tido com San Tiago Dantas. O diplomata soviético apenas ouviu o que eu relatei e não fez qualquer comentário. Não deu, nem poderia dar, qualquer resposta. O certo é que, em menos de duas semanas, foi anunciado o reatamento das relações diplomáticas do Brasil com a União Soviética. E no protocolo foi incluída aquela cláusula apresentada pelo Itamaraty.

Fui assim me convencendo do firme empenho de San Tiago Dantas em prosseguir no caminho de sua nova trajetória, o que para mim era uma repetição do episódio bíblico ocorrido na estrada de Damasco.

Todavia, apesar de por índole não ser eu uma pessoa desconfiada, ainda guardava frente a ele certas reservas mentais. Talvez por receio de sua capacidade de sedução. Ou por pressentir que ele não jogara ao mar toda a carga comprometedora do passado e que esses resquícios representavam um certo perigo.

Reforçava essa minha postura uma revelação de um amigo íntimo de San Tiago Dantas e seu colaborador imediato no Itamaraty. Refiro-me a Renato Archer, a quem eu muito respeitava e que se tornou meu amigo e parceiro em diversas iniciativas políticas. Amizade que se consolidou ao longo dos anos, culminando com o caloroso apoio que prestou a minha esposa e meus filhos, quando fui preso em 1975.

Certo dia Renato Archer disse-me que, vez por outra, San Tiago Dantas cometia erros políticos face a pessoas com as quais em tempos idos ele tivera excelentes relações, mas que não evoluíam politicamente como ele. Em outras palavras, San Tiago Dantas havia mudado de posição, mas não acontecera o mesmo com a maioria das pessoas de seu antigo círculo de amizades. Daí ele pretender com freqüência se apoiar em pessoas que agora estavam no campo dos adversários.

Nunca esqueci essa confidência de Renato Archer, por encerrar uma lição curiosa sobre a vida na política. Ou seja, a de que não há um fio de Ariadne no labirinto político, quando se misturam e se embaralham relações pessoais e relações políticas. Ligações que propiciam facilidades, quase sempre, mas que às vezes provocam episódios sofridos para as pessoas nelas envolvidas, assim como conclusões equivocadas de analistas e observadores que posteriormente intentam decifrar fatos e comportamentos.

Essas minhas reservas com San Tiago Dantas continuaram até o terceiro episódio, que sucedeu em janeiro de 1962, quando da reunião, em Punta del Este (Uruguai), da Organização dos Estados Americanos (OEA).

Em novembro de 1961, recebi outro recado de San Tiago Dantas me pedindo para ir ao Itamaraty. Lá chegando, informou-me que estava em curso o processo desencadeado pelo governo dos Estados Unidos para expulsar Cuba da OEA. Disse-me que essa pretensão era absurda e que contrariava os princípios do Direito Internacional.

O Departamento de Estado contava com quase dois terços dos votos na OEA, o estritamente necessário para a efetivação da medida. O Brasil, a Argentina, o Chile, o Uruguai, a Bolívia e o México se opunham, estando indefinida ainda a posição de Haiti. No entanto, existia a possibilidade de uma tentativa derradeira e desesperada que envolvia uma gestão junto ao governo cubano. Decorria de uma tese que oficialmente não poderia ser veiculada pelo Itamaraty. Por isso é que San Tiago Dantas novamente buscava a minha colaboração.

Antes de detalhar a idéia do chanceler, cabe explicar porque ele me considerava como uma pessoa que poderia abrir esse diálogo com as autoridades de Havana. Mais adiante relatarei com detalhes minha viagem a Cuba, em março e abril de 1960. Naquela ocasião fiz uma gestão, junto ao governo de Fidel, a pedido do então embaixador do Brasil, Vasco Leitão da Cunha. Este, naturalmente, informou o acontecido ao Itamaraty. Além disso, quando regressei ao Rio, dediquei-me a fazer palestras sobre a revolução cubana e a organizar recepções a seus dirigentes quando vinham ao Brasil. Também havia estabelecido um vínculo estreito com sua representação diplomática em nosso país.

Para San Tiago Dantas, o governo cubano deveria tentar quebrar o bloco articulado contra ele por Washington, proclamando sua disposição em firmar um estatuto de obrigações negativas. Como fui um péssimo aluno em Direito Internacional, San Tiago Dantas, emérito catedrático na Faculdade Nacional de Direito, pacientemente explicou-me o conceito desse estatuto nas normas jurídicas.

Esclareceu que era a fixação unilateral da neutralidade de uma nação, como fizeram a Áustria e a Finlândia. Em outras palavras, o compromisso de não firmar acordos com qualquer bloco militar. Em sua opinião, se Fidel Castro concordasse com a tese, ele daria uma prova cabal de que não pretenderia se engajar em alianças hostis ao sistema inter-americano. Assim, a adesão a essa tese possibilitaria a conquista de mais um ou dois votos e com isso seria abortado o plano da expulsão de Cuba da OEA.

Mas San Tiago acrescentava que o governo brasileiro não encaminharia, nem oficiosamente, tal sugestão, porque uma iniciativa desse tipo seria vista como uma ingerência em assuntos internos cubanos. Porque uma declaração de neutralidade é um ato que limita a vontade soberana de um país. Daí a idéia de San Tiago de recorrer a uma pessoa que os cubanos consideravam como amiga a fim de ser feita uma sondagem a respeito da tese junto ao governo de Havana.

Após consultar a direção do Partido, realizei a sondagem por intermédio da embaixada cubana no Rio. No entanto, não havia em Cuba naquela época a menor possibilidade de a sugestão ser acolhida. Fidel Castro estava aferrado à estratégia de enfrentar de peito aberto os Estados Unidos, desconsiderando por completo as tentativas de ampliar apoios entre os governantes da América Latina.

Por isso, nenhuma resposta foi dada por mim ao chanceler brasileiro. Contudo, como passei a seguir com apreensão as confabulações em torno dos preparativos para a conferência da OEA, San Tiago Dantas convidou-me para acompanhá-lo a Punta del Este, inclusive para ali manter contatos com a delegação cubana.

Credenciado pelo Itamaraty como jornalista de Novos Rumos, recebi do diplomata Dário Castro Alves recursos para viajar. A conferência durou mais de duas semanas, em virtude do suspense em torno da posição do Haiti, o voto decisivo para serem alcançados ou não os dois terços indispensáveis. (Recorde-se que o Haiti era governado como uma cubata africana pelo terrível Durvalier, o Papá Doc, de triste memória.)

Travei um bom relacionamento com alguns jornalistas brasileiros e estrangeiros que se deslocaram até Punta del Este. Entre os brasileiros, encontrava-se meu amigo Hermano Alves, do Jornal do Brasil, que fez as matérias mais interessantes sobre a conferência.

Lá estavam, igualmente, os jornalistas Ruy Mesquita e Oliveiros Ferreira, de O Estado de S. Paulo, órgão que apoiava abertamente a tese norte-americana. Entre os colegas estrangeiros, recordo os iugoslavos Julius Djuka e Yascha Altuli, o chileno Augusto Olivares, o francês Daniel Garric e o diretor do importante semanário Marcha, de Montevidéu. (Augusto Olivares, que depois foi assessor de imprensa do presidente Salvador Allende, morreu em 1973, quando do golpe de Estado no Chile.)

A delegação de Cuba era presidida por Osvaldo Dorticós Torrado, presidente da República, e dela faziam parte, entre outros, Carlos Rafael Rodrigues e Raul Roa. Carlos Rafael Rodrigues me conhecia bem, pois eu estivera com ele em Havana, um ano antes.

Todas as noites eu procurava a delegação cubana no hotel em que se encontrava hospedada, a fim de transmitir informações que coletava com outros jornalistas. Todavia, os cubanos não manifestavam qualquer interesse em atuar politicamente nos bastidores com as delegações dos outros países. Pretendiam tão somente denunciar com firmeza os Estados Unidos, pois essa era a política de Fidel Castro.

Nessa linha de atuação os cubanos contavam com o integral apoio de Rodney Arismendi, secretário-geral do Partido Comunista do Uruguai. Esse partido e seus aliados na Banda Oriental, em vão se esforçavam para fazer grandes manifestações de solidariedade a Cuba em Montevidéu e em outras cidades.

Os dias foram passando e todos aguardavam a definição do ditador do Haiti. Os delegados e jornalistas gozavam a vida no aprazível balneário de Punta del Este, menos eu, por dispor apenas de dinheiro para uma refeição diária. A única dúvida girava em torno do quantum os ianques iriam gastar com a obtenção do voto haitiano. De forma brincalhona, cheguei a propor a San Tiago Dantas que o Brasil oferecesse algum auxílio financeiro ao Haiti. Sorrindo, ele retrucou: "Não podemos entrar numa competição desse tipo, pois o Departamento de Estado cobriria qualquer lance nesse leilão".

Finalmente, com o acerto do preço cobrado por Durvalier, a conferência foi marchando para o final. Houve a repetição das acusações norte-americanas a Cuba, as palavras veementes de Dorticós em defesa de seu país e as catilinárias ridículas dos centro-americanos, especialmente do representante da Guatemala. Em contrapartida, assistimos à firme oposição dos representantes de Argentina, Uruguai, Bolívia, Chile e México à proposta insuflada pelo Departamento de Estado.

Chegando a sua vez, mesmo sabendo que a causa estava perdida, San Tiago Dantas foi desmontando ponto a ponto as justificativas para a expulsão de Cuba da OEA. Discurso sereno na forma, mas contundente. Fala que ficará para sempre como um exemplo da altivez diante da intolerância dos que dispõem da força, mas desrespeitando a soberania das nações e a vontade dos povos.

O resultado foi como uma morte anunciada. Assim, foi dado um passo decisivo para o isolamento diplomático do pequeno país de Martí e para o absurdo bloqueio econômico, unilateralmente decretado pelos Estados Unidos, que perdura até hoje. Quando terminou o showdown, como eu estava emocionado, abracei San Tiago Dantas com força, como quê a me desculpar de haver agasalhado dúvidas sobre seu comportamento.Uma longa matéria minha, publicada num suplemento especial de Novos Rumos, refletiu tudo o que sofri e senti naquele imenso salão de jogatinas desvairadas, no mais imponente hotel de luxo de Punta del Este.

Início do desenlace

Dois anos depois, nos primeiros meses de 1964, com San Tiago Dantas enfrentando a morte, tentei inutilmente auxiliá-lo nas gestões para salvar o governo de João Goulart. Ele perdeu assim a batalha final em sua vida, mas na memória dos que o acompanharam ele sempre será lembrado pela sua inteligência, pela sua cultura e por um talento invulgar.

Fui mobilizado também por San Tiago Dantas, quando intentou uma articulação derradeira para salvar o governo — a formação de uma frente ampla em torno de alguns princípios básicos. Por três vezes fui a sua casa, na rua Dona Mariana, em Botafogo. Ele lutava desesperadamente contra a morte.

Sorridente como sempre, trajando um robe de chambre, conversávamos em seu quarto. O câncer atingira seus pulmões. Todavia, sua mente estava voltada para aquela última batalha política que travou em sua vida. Num desse encontros, fiquei conhecendo José Gregori, a quem San Tiago considerava como uma das melhores revelações de São Paulo.

Fui o portador das minutas de San Tiago Dantas sobre essa proposta de acordo político, para serem examinadas pela direção do PCB. De volta à casa da rua Dona Mariana, transmitia-lhe sugestões e emendas, o que determinava uma interminável troca de opiniões.

Brizola logo abriu as baterias contra a idéia de San Tiago Dantas — fogo de barragem, pela esquerda. De outro lado, estava implícito que a tese somente poderia prosperar se envolvesse a participação do psd. Vale dizer, se a frente ampla levasse água para o moinho da candidatura de Kubitschek. Condição sine qua non.

Essa hipótese também não era aceita pelos comunistas. Prestes acenara, no dia 3 de janeiro de 1964, num programa de TV, que admitia a reeleição de Goulart. Declaração perigosa, porque na impossibilidade virtual de uma reforma da Constituição, restava somente o recurso a um golpe de força. Por isso, Amaral Peixoto, presidente do psd, abria fogo pela direita contra a proposta de San Tiago Dantas.

A morte da tese da frente ampla, e do autor da tese, eram mortes anunciadas. Mas não pressentíamos uma outra morte — a do governo Goulart.

Em fevereiro, com aquele calor habitual, sempre havia oportunidade para ir à praia do Leblon com Teresa e as crianças. Encontrei também tempo para ir, pela primeira e última vez na minha vida, ao desfile das escolas de samba na avenida Presidente Vargas. Vibrei ante o espetáculo inesquecível e principalmente com a Mangueira. Fiquei extasiado diante da beleza e da exuberância de uma de suas passistas — a Gigi da Mangueira.

Belo fim de festa, que era também o fim de uma época. O que eu não pressentia.

Para não fugir da memória

No dia 18 de janeiro de 1975 fui preso por agentes do DOI-CODI do Rio de Janeiro. Começou ali uma fase de sofrimentos que só terminaram quatro anos depois, às vésperas do Natal de 1978, quando fui libertado por me haver sido concedido livramento condicional.

Foram anos de provação, especialmente os seis primeiros meses, quando fui torturado nos quartéis do DOI-CODI do Rio e de São Paulo e, em escala menor, no de Porto Alegre. Além disso fui vítima de constrangimentos absurdos e ilegais, ocorridos nas delegacias dos DOPS de São Paulo e Rio, afora o que houve nos presídios do Hipódromo e Barro Branco, ambos na capital paulista.

Foi um calvário longo e até cansativo de narrar. Vários livros e reportagens foram publicados sobre o que se fez aos adversários da ditadura, nas décadas de 60 e 70. Muito se escreveu sobre os assassinatos de pessoas de várias facções políticas que combateram o regime militar. Assim, pouca coisa acrescentarei ao que já foi dito. Apesar disso, não posso deixar de dar meu depoimento, pensando no meu dever, como sobrevivente, por ser um dos poucos que pode reconstituir um quadro em que tantas pessoas foram imoladas.

Como transcorreram quase 25 anos daqueles episódios, optei por recapitular o sucedido apresentando trechos de cartas que escrevi para minha mulher. (O esclarecimento mais amplo desses fatos é feito no capítulo seguinte deste livro.)

A história dessas cartas é curiosa. Foram escritas quando estava preso no Hipódromo, soturno estabelecimento penal, com poucos presos políticos e centenas de detidos comuns — homens e mulheres. Era uma instituição medieval, sem condições de assegurar o respeito à condição humana dos encarcerados. Por isso acabou incendiado pelos detentos, alguns anos atrás.

Nele, os presos políticos não eram mais torturados e semanalmente recebiam visitas de familiares. A esses eu entregava papéis que poderiam ser levados para fora do presídio, desde que escondidos no vestuário do visitante. Nesse mister de pombos correios, atuaram três das minhas cunhadas, que se deslocavam até o Hipódromo — Tuchinha, Branca e Sônia. As duas primeiras vinham de Belo Horizonte, fazendo cansativas viagens de ônibus.

Relatei nas cartas o que havia ocorrido comigo. Elas eram entregues em Belo Horizonte a minha mulher. Mas como também Teresa estava sendo procurada pelos policiais, as cartas eram repassadas ao meu amigo Benito Barreto, escritor e jornalista, com a recomendação que deveriam ser conservadas com muito cuidado. Ele as guardava tão bem que as cartas ficaram perdidas durante mais de 20 anos.

Só recuperei essas memórias há poucos meses, quando já as considerava perdidas. São 11 cartas, escritas nos meses de junho, julho e agosto de 1975, num total de 125 folhas, em papel fino de que dispunha, de tamanho diverso. Além dessas, nos meses de janeiro e fevereiro de 1977, escrevi mais oito cartas, num total de 62 páginas, a respeito da vida na ala dos presos políticos no Presídio do Hipódromo e alguns registros de minha convivência com presos comuns. (Parte dessas últimas cartas estão no capítulo 18 deste livro.)

Resta explicar as razões desse trabalho de escrever as cartas, altas horas da noite, após terminar o bulício no presídio, quando todos os presos — políticos e comuns — tentavam dormir, sonhando muitas vezes de olhos abertos com o dia em que sairiam daquelas celas imundas e mal cheirosas.

Gastava horas naquele escrevinhar porque me lembrava do pensamento de Riobaldo, em Grande sertão: veredas: "O sofrimento quando é muito grande escapole da memória". Agi acertadamente, pois, se não fossem essas cartas, muita coisa teria se esfumado da minha cabeça.

Ao relê-las agora parece-me estar diante de uma peça de ficção. Não sinto que tudo aquilo sucedeu comigo, mas com outra pessoa. Há cicatrizes em meu corpo, mas o próprio ódio àqueles indivíduos que me torturaram sofreu a ação do tempo, não ficou congelado e íntegro. Para mim, a tortura tornou-se uma questão de princípios, despida de qualquer rancor pessoal.

Ao encetar este depoimento, optei por tirar essas cartas do desvão, publicando alguns de seus pedaços, como uma relembrança histórica, mas também como uma advertência para se extirpar a prática de torturas da vida brasileira. Pois continuam sendo utilizadas, nas delegacias policiais, contra homens simples do povo, suspeitos de crimes e contravenções.

As cartas não estão numa linguagem esmerada, mas não posso falseá-las, retocando-as. Transcrevo apenas trechos de algumas delas, fazendo cortes de repetições e de fatos de menor significado. Tão-somente fiz algumas correções mínimas e apresento os trechos seguindo a cronologia dos fatos acontecidos. Foram redigidas furtivamente, só com papel e uma esferográfica, debaixo de uma luz mortiça numa cela do cadeião da Mooca. Acrescento em separado, em itálico, indicações esclarecedoras e uma ou outra informação adicional.

Minha prisão

São Paulo, 25 de junho de 1975

Minha querida. Tive de terminar a última carta às pressas, pois surgiu a possibilidade de encaminhá-la por um portador. Assim, não contei o que aconteceu comigo no Rio naqueles três dias terríveis (18, 19 e 20 de janeiro). Não me é fácil reproduzir o que houve. Sobre aquela fase a memória falha. Talvez, porque tudo aconteceu muito depressa, ou porque foi uma sucessão rápida de brutais 'sessões' de tortura.

Fui preso às 11 horas da manhã, no dia 18, na esquina da Adolfo Bergamini com Dias da Cruz, no Engenho de Dentro. Ia tranqüilo para mais um 'encontro', como fiz centenas de outros, em 11 anos, de 1964 para cá. A pessoa com quem iria estar, havia sido detida dias antes. Mas, levaram-na ao local para que minha prisão se desse de qualquer jeito. Possivelmente, tiveram receio de não me identificar.

O pessoal da captura compunha-se, pelo menos, de uns 16 policiais e militares não fardados. Quando eu estava a uns dois metros do outro companheiro — e já havia feito um sinal — fui agarrado por dois agentes. Instantaneamente, entendi tudo. E passei a 'aplicar' aquilo que aconselhei aos outros: tentar denunciar aos transeuntes minha prisão e, simultaneamente, buscar desfazer-me de papéis comprometedores. Deixei cair das mãos um envelope cheio, mas eles perceberam. Era um desses envelopes grandes, pardos.

Mas, 'barulho' eu consegui fazer. Gritava só uma coisa: 'Estão prendendo o deputado Marco Antônio!' Pode parecer cretinismo ter falado no 'deputado'. Desde abril de 1964 havia posto de lado a postura de 'deputado'. Você sabe disso. Recordo até que, em fins de 1974, contei a algumas pessoas a minha reação ao ler no Estadão uma longa matéria que atacava o deputado Marco Antônio, pelo projeto da criação da 'Aerobrás'. Para mim aquele ataque era a outra pessoa. Durante 11 anos fui 'Jacques' e casei-me com aquele pseudônimo e com a personalidade dele resultante.

Na hora da prisão, porém, retornei de estalo ao 'deputado'. Era escandaloso prender um deputado. Aquela gritaria deu certo. Lutei um pouco. Juntou gente. Interrompeu-se o trânsito. Tive prova de que o escândalo deu certo no DOI. Na rua Tutóia (Quartel do DOI-CODI em São Paulo.), por duas ou três vezes, inquiriram-me sobre uma 'pessoa' que teria ido comigo ao 'ponto' e que denunciou imediatamente minha prisão, quando eu estava sozinho. Será que alguém denunciou o que assistiu? Não creio.

A sorte é que eu iria almoçar com você e nunca fui de falhar no que estabelecia. Assim, depreendo que não lhe foi difícil adivinhar o que acontecera. (Eu não via meus familiares há mais de um mês e para comemorarmos o aniversário do Marquinho, íamos almoçar com Helena Besserman e Luiz Vianna, no apartamento deles em Copacabana. Sempre adverti a Teresa que se eu faltasse a um encontro isso significaria que fora preso. Nessa mesma noite minha mulher e os amigos denunciaram a minha prisão.)

Voltando aos fatos, depois de alguns minutos jogaram-me num fusca, algemaram-me e colocaram-me um capuz. Um dos captores foi me dando bons socos. Estava com raiva pelo pequeno escândalo que eu havia armado. No volks fui meditando. A prisão não me surpreendeu. Durante 11 anos sempre previ essa possibilidade. Fui me educando também para tal eventualidade. Logo antevi as torturas que me aguardavam. Além disso, meditava que aquele fato (a prisão) iria mudar total e radicalmente minha vida. Aliás, logo passei a considerar como um dado líquido e certo que eu seria morto. Pois não haviam assassinado outros dirigentes comunistas?

No quartel da Barão de Mesquita

Entrei no DOI, por isso, com absoluta tranqüilidade, parecendo que tudo aquilo não acontecia comigo e estava a assistir um filme como o Atentado, que vimos juntos. De certa forma, pensava: acabou-se o pesadelo de muitos anos. Retiraram-me do volks, para ser fotografado e ficar em 'exposição', ante um vidro, atrás do qual eu era examinado pelos tiras, para não esquecerem meus traços fisionômicos. Tal vidro especial não permite que se veja quem está do outro lado. (O capuz foi retirado por alguns minutos e depois recolocado.)

De saída, despiram-me completamente. Retiraram óculos, aparelhos dentários (pontes móveis), aliança. Nu e de capuz, deram-me as 'boas vindas'. Um perguntou-me: 'seu filho da puta, conhece a lei dos direitos humanos?' Respondi: 'sim'. Retrucou: 'então, esqueça dela'.

Esse foi o sinal verde para o início da pancadaria. Três ou quatro deles, não sei bem, começaram a pancadaria. Por todos os lados eu recebia socos, chutes e cacetadas. Meia hora depois caí no chão. Não era, nem sou nenhum Mohamed Ali. Tentei me proteger no chão, cobrindo a cabeça com os braços. Foi inútil. Então, ligaram fios que transmitiam choques elétricos nos meus pés. Acionavam a 'máquina de choque', exigindo que me levantasse. Não tinha outro recurso senão erguer-me. Aí recomeçavam a espancar. Tornava a cair. Mas, os fios estavam ligados e recebia mais choques. Duas horas depois (esse cálculo de tempo é, evidentemente, apenas uma suposição) caí desacordado. Vim a retomar os sentidos numa cela, deitado no cimento.

A cela da tortura

São Paulo, 26 de junho de 1975

Querida, tenho feito essas cartas principalmente de madrugada, quando existe relativo sossego na cela e no pavilhão dos presos políticos. Durante o dia, além do natural bate-papo, existem as obrigações: aulas, cozinha, limpeza, lavagem de roupa. Ademais, a leitura de jornais e revistas, a preparação de aulas e sua transmissão etc., consomem muito tempo.

(No presídio do Hipódromo havia em média 30 presos políticos, na maioria operários ligados ao PCB. Para eles dávamos cursos de português, história, inglês etc. A alimentação vinha pronta da Casa de Detenção, mas nós a melhorávamos, complementando-a.)

O chato é chegar-se ao fim do dia sem ter escrito e feito outras coisas essenciais, relacionadas com a batalha política que se trava aí fora. Para ganhar tempo não subi, por duas vezes, para o banho de sol. Hoje recebi carta de Branca. Gostei muito. Deu notícias boas e estimulou-me bastante. Na prisão, receber cartas é o mesmo que ganhar na loteria. Indicam que estão vivos e fortes os laços afetivos que ligam o preso aos familiares, amigos e conhecidos.

Voltemos à descrição das torturas no Rio. Perdoe-me falar de coisas que sei irão feri-la. Mas sou forçado a tanto, para deixar documentado o que houve. A cela em que me colocaram deve ser subterrânea, ou num porão. Sua dimensão é, mais ou menos, de dois metros por dois. Sem a menor janela ou qualquer abertura para fora, além da porta. Essa é de aço, com um visor que permite o controle do preso pelo lado de fora.

O chão é de cimento áspero. Nela não havia colchão, travesseiro ou uma folha de jornal. Total e absolutamente nua. E eu nu dentro dela. O ar deve entrar por algum conduto apropriado. Suas paredes e o teto são pintados de preto. Possui um sistema de iluminação forte, acionado no corredor externo de acesso. A porta de aço assemelha-se a uma porta de geladeira, a fim de não permitir a passagem de som, pois a cela é o local da tortura. A escuridão é total, quando apagam as luzes. Verdadeiramente, é uma cova ou uma masmorra medieval, mas dotada de requintes ultra modernos, como o sistema de entrada de ar, a porta e a iluminação.

Assim, é a conjugação do passado mais miserável com a técnica sofisticada norte-americana. Não vi em São Paulo ou no Rio Grande do Sul coisa igual. Bom dinheiro nosso foi gasto em sua construção. Dentro dela perdi a noção do tempo. A rotina — dia e noite — não existe quando nela se é jogado. A coisa se divide em escuridão total, para o preso se refazer um pouco, a fim de depois apanhar mais; e a iluminação forte na hora da tortura. Horas, minutos, segundos, ali não têm existência. Espaço, horizonte, tudo isso é besteira. Vegeta-se como uma cobra presa em caixote hermeticamente fechado, destinado ao Butantã, para dela se extrair veneno.

Nem água, nem pão. Nem um urinol. É uma câmara de execução em que só se pensa na morte. Dentro dela o preso só lastima uma coisa: o 'diabo' do corpo continua agüentando. Só descobri, dias depois, que estava no dia 20 quando pude ler um 'recibo', solicitado à escolta que me trouxe para São Paulo. Por mim havia transcorrido um século, ou todo aquele tempo não passou de um pesadelo de 15 minutos. Tempo não houve.

Quando não se consegue morrer

As torturas na cela foram várias. Cinco vezes colocaram-me no 'pau-de-arara'; horas longas de 'choques'; cauterizadores queimando partes mais sensíveis do corpo. Mas, antes, exigiram que eu colocasse o capuz e uma espécie de quimono de judô, de brim forte. Razão dessa 'roupa': por ela me seguravam para jogar-me com mais força nas paredes de cimento; nu era mais difícil, pois o corpo escorregava das mãos deles, porque vivia molhado pelo suor. De todos os lados recebia murros e pontapés.

De vez em quando perguntavam: 'vai falar, seu filho da puta?' Eu não respondia. Eu precisava acima de tudo de ganhar tempo. Eles haviam apanhado no carro minha lista de 'pontos' para a semana seguinte. (Logo depois de me prenderem, localizaram meu fusca a poucas quadras do local do "ponto".) Por sorte, tudo estava mais ou menos em código. Minha letra não os ajudava a decifrar aqueles lembretes. Mas foi uma merda cair aquele papel. Como apanhei para nada 'dar' sobre o mesmo.

(Na lista de "pontos" estava marcada minha ida a uma reunião, no dia 20 de janeiro, do Secretariado Nacional, o núcleo central do PCB, de que participavam Giocondo Dias, Aristeu Nogueira, Jaime Miranda e Itaí Veloso. Eu entraria na véspera e conhecia o endereço. Segundo informou-me depois Aristeu Nogueira, quando Giocondo chegou, na manhã do dia 20 e eu não apareci, decidiu-se a saída imediata de todos do local. Nas torturas, o essencial para mim era evitar a descoberta dessa reunião. Meses depois Jaime e Itaí foram assassinados pelos agentes do DOI-CODI.)

Quando caía no chão pulavam sobre meu corpo. O jeito era rolar, enroscar-me. Mas, nada adiantava. Em certa hora exigiram que, de pé, abrisse as pernas, para darem chutes nos culhões. Não aceitei e isso os enfurecia mais ainda. Virava um pouco de lado e os chutes pegavam nas coxas. Jesus, como certo da morte, eu tudo fiz para defender os órgãos genitais! A coisa é atávica.

Minha sorte é que eles também cansavam. Uma vez, disseram-me: 'seu filho da puta: (Esse é o tratamento protocolar.) você está apanhando há quatro horas, mas logo continuaremos'.

Nesses intervalos para 'descanso' eu não dormia, penso. Caía numa modorra ou desmaiava de dor, não sei bem. O corpo todo doía. Ao ponto de 15 dias depois desses espancamentos, em São Paulo, ao mirar-me num espelho, vi o corpo todo roxo, isto é, abdome, tórax, membros superiores e inferiores.

Quando você me viu, em 20 de fevereiro, ainda respirava com dificuldade e suspeitei, até março, que estava com fratura no externo. Assim, na cela, naqueles intervalos da tortura, não podia ficar mais de 20 minutos na mesma posição, deitado no cimento frio. Tinha que ficar rolando, dando uma 'folga' a essa ou àquela parte do corpo. A modorra dava-me a impressão de flutuar no espaço, mais ou menos como quando a gente 'cozinha' um porre de bebida ou de 'lança-perfume'.

Lambuzado pelas fezes

Como não havia nem um urinol na cela, urinei e defequei ali mesmo. Mas, como rolava pelo chão e a escuridão era absoluta, fiquei lambuzado, da cabeça aos pés, em minha própria merda. Isso pode chocá-la. Mas a coisa é mais pitoresca do que grave. Cheiro não sentia. Coisa secundária. Como sujeira, era só uma agravante, pois já estava imundo. Unicamente sentia uma certa umidade pegajosa. O que não era coisa grave, pois fazia calor na cela.

Aquela merda espalhada pelo corpo levou-os a mandarem me lavar numa pia e a limpar a cela. Eles não agüentavam a fedentina. Ao contrário de mim, tinham olfato. Nessa dupla limpeza ganhei preciosos minutos, roubados do tempo destinado ao 'pau de arara' ou aos espancamentos. Agora, longe de tudo isso, até pode parecer engraçado. Aprendi nos dois que existem, quase sempre, pequenos detalhes cômicos no meio do sadismo mais terrível das sessões de tortura.

Suplício pela sede

Contei que não forneciam nem água nem comida. Ao lavar-me na pia, como disse, aproveitei para fartar-me de água, como um camelo que atravessa o deserto. Mas comida só forneceram uma vez. Colocaram um bandeijão de aço inoxidável com comida. Tudo muito salgado. Descobri isso no fim do 'almoço'. Água para beber, nenhuma. Ligaram, então, os holofotes muito fortes a fim de elevarem o calor do ambiente. Depois de duas horas o suor saía de meu corpo por todos os poros. Começou a tortura da sede. Resolvi ficar muito quieto, deitado no chão, pois qualquer movimento provocaria mais sede. Atrás do vidro me observavam. Isso deve ter durado umas cinco a seis horas. Foi terrível.

No DOI do Rio praticamente não fui interrogado. Minha recusa em abrir a boca só gerou uma tortura de 30 horas seguidas. Mas eles também não demonstraram nenhuma vontade em 'interrogar'. Queriam dar-me uma 'amostra' do que me esperava... Só medi a força de seus punhos. Defrontei bestas com aparência humana, nada mais. E deles fui pasto.

De um inferno para outro inferno

São Paulo, 7 de julho de 1975

Querida Teresa, chegou-me às mãos uma carta da Simone em que ela dá conta de seus estudos e do balé. Parece que tudo vai indo bem com ela. Antes de começar a falar sobre a rua Tutóia tenho que relatar, ainda, duas coisas.

A primeira refere-se ao fato de que no DOI do Primeiro Exército, quando começaram as torturas, fizeram questão de dizer-me coisas sobre as minhas atividades e vida clandestina, que deixaram-me completamente desnorteado. Sabiam onde eu vivia, no Ipiranga, falaram-me da Ruth Simis e outras pessoas com quem convivia, Cláudio, entre elas (Cláudio Abramo.).

Isso foi terrível. Doeu mais que os choques e as pancadas. Porque o dilema deixou de ser — falar ou não falar — para decidir se o sacrifício atroz tem ou não tem sentido. Abominei, então, as infantis facilidades que cometi, comprometendo pessoas que me são queridas. Além disso, sabia que na casa onde morava encontrariam papéis que comprometeriam outros amigos. Foi uma desgraça e dela não me recuperarei jamais. Não mereço perdão por isso.

O calvário pela via Dutra

A segunda coisa que desejo contar é a viagem do Rio para São Paulo. No dia 20 de janeiro deram-me minhas roupas — cueca, calça e camisa — e os sapatos. Meu corpo doía tanto que não consegui calçar as meias. Era impossível curvar a espinha. Grave erro, porque juntaram as meias com outras coisas que não entregaram e só depois de dois meses pude recuperá-las, quando, você sabe, mesmo no verão sinto frio nos pés.

Colocaram-me dois pares de algemas, que foram presas no piso de um fusca. Assim, tinha que ficar deitado no chão do volks, numa posição horrivelmente incômoda, porque o eixo de transmissão determina aquele calombo no piso. Por isso, de meia em meia hora era obrigado a uma mudança de posição. Porém, como não conhecia algemas, não sabia que basta encostar nelas para que apertem ainda mais. Em conseqüência disso, cada vez mais elas se aprofundavam em meus punhos, ferindo-os profundamente. Ademais, colocaram panos em cima de mim para que ninguém visse que transportavam uma pessoa presa, ao passarmos nos postos de pedágio. Também tamparam minha boca com um forte pano.

Além do fusca onde vim transportado, outro carro o seguia com fortíssima escolta armada. Os dois carros, de meia em meia hora, comunicavam-se entre si e com o Rio e São Paulo. Que palhaçada! A viagem durou umas oito horas, porque furou um pneu e pararam para jantar. Pedi, com dificuldade, água, mas nem isso me deram. Por sadismo, comentaram com ironia a refeição que haviam saboreado.

Nessa altura, sabia que vinha sendo levado para a OBAN. Torcia para chegar logo, pois o sofrimento com as algemas, com a posição, com a fome e com a sede era insuportável.

Essa lembrança de que queria chegar logo à rua Tutóia (o mesmo voltou a acontecer quando estava em Porto Alegre), antevendo, mais ou menos, o que me aguardava, leva-me ao seguinte pensamento: a desgraça é algo muito relativo. Há desgraças maiores e desgraças menores. Quando se pressente a possibilidade de minorá-las, mesmo em escala diminuta, a gente se agarra a um fio de esperança, a uma mínima possibilidade de melhoria.

(No período em que ainda estava sendo torturado fui levado para o DOI de Porto Alegre, a fim de me pressionarem para dar uma declaração pública contra o PCB. Recusei e afinal trouxeram-me de volta a São Paulo, pois tinha de ser apresentado à Justiça Militar.)

A recepção na OBAN

Chegando ao quartel da rua Tutóia, levaram-me para o que depois vim a saber ser uma cela especial, das três que lá existem. São de tamanho normal (2 x 3 m), sem instalações sanitárias. Tem uma janela gradeada e uma porta de aço. Nela existia um colchão imundo, sem nenhum travesseiro ou coberta. Não consegui dormir, as dores não permitiam. (Numa dessas celas é que foi colocado o corpo de Vladimir Herzog, morto na OBAN, para simular um suicídio.)

Bem cedo, encapuzaram-me e fui conduzido para a sala de torturas, no prédio principal do DOI, onde 'morei' 20 dias. Essa sala de torturas, de uns três metros quadrados, não possui janelas e é dotada de revestimento acústico (eucatex) para abafar os sons (berros de torturadores e urro dos torturados). Possui uma escrivaninha suja, onde tomam notas dos depoimentos. Às vezes deixam um tamborete de madeira para o preso. O interrogador senta-se numa cadeira.

Retiraram o capuz e vi-me colocado diante da figura mais sádica dos sádicos do DOI — o 'doutor Homero de Sousa'. Esse nome é evidentemente falso. O 'doutor' corre também por conta do disfarce. Na verdade, é oficial do Exército. Fisicamente forte, só fala com ódio e de seus olhos injetados expele raiva.

O vestibular do inferno

São Paulo, 28 de junho de 1975

Minha querida, foi maravilhosa para mim sua visita. (Referência a uma visita dela ao presídio do Hipódromo.) Senti que você buscou se controlar, mas eu não consigo fazer o mesmo. As menores coisas, inclusive lembranças, me comovem. Mas não pense que isso signifique tristeza ou melancolia. Não vejo o futuro negro.

Tenho já falado na 'ronda'. Quero, agora, dar uma explicação mais minuciosa sobre a mesma. Como disse, cheguei ao DOI de São Paulo no dia 20 de janeiro à noite. Na manhã do dia seguinte, tive, bem cedo, a recepção do 'doutor Homero'. Início das torturas, sem qualquer tentativa de tirar-me 'confissão' por processos suasórios.

Colocaram-me na sala de torturas do andar térreo, onde permaneci, dia e noite, quase sempre nu, por cerca de 20 dias. Urinava e defecava num urinol e não tinha nem uma pia para lavar as mãos. Ali comia o pouco que me davam como alimentação e ali descansava, no piso frio, nos momentos de 'folga'.

Essa sala tem revestimento acústico. O lugar da janela foi fechado com tijolos de vidro grosso e opaco, que mal filtravam a luz solar. Permanentemente ficava acesa uma luminária à néon. Tive de acostumar-me, nos parcos minutos que me permitiam recostar, dormir sem colchão, jornal, travesseiro e roupas naquele inferno. Era ótimo quando deixavam os sapatos, pois serviam como travesseiros, não obstante sentir muito frio nos pés.

Mas, ali no DOI, quando uma coisa é positiva, ela tem seu revés negativo, criado por 'eles'. No caso concreto, o calor dava-me terrível sede. O 'doutor Homero', como um dos 'pontos' (Procedimentos.) da ronda, determinou que só me fossem dadas duas canecas de água por dia. Sendo mais exato — a caneca de água pela metade. E na água colocavam sempre um pouco de sal. Assim, a tortura da sede, cerca de duas semanas, foi tremenda. No delírio das torturas no que mais pensava era numa garrafa geladinha de guaraná da Antarctica.

A morte em fatias diárias

Logo de saída, no dia 21, penduraram-me no 'pau-de-arara' por um tempo incalculável. Urrava pela dor na espinha. Colocaram-me, então, um pano na boca, para abafarem os gritos. Lá pelas 11 horas, calculo, o 'doutor Homero' desceu-me do 'pau-de-arara pelo método do 'carrossel'. Ou seja, ele mandava que uma das pontas do ferro (que me mantinha suspenso) fosse posta no chão. Davam-me um empurrão e meu corpo girava em torno do ferro, até chegar ao piso. Como resultado, além de ficar momentaneamente tonto, o atrito na barriga da perna (que estava comprimida pelas amarras) provocou feridas dolorosas, cujas cicatrizes são visíveis até hoje, seis meses depois.

O 'doutor Homero' deixou ordem para que não me dessem alimentos. Lá pelas duas horas retornou com uma outra pessoa, que suponho ser o comandante do DOI. Este disse-me, objetiva e secamente: 'Respeito sua ideologia, mas preciso de suas informações. Para obtê-las poderei até tirar sua vida'. Transbordando de fúria, o 'doutor Homero' gritava: 'você está na OBAN, isto aqui não é DOPS ou CENIMAR (Órgão de informações da Marinha.) Quero as informações para já! Não posso fazer como o KGB (Órgão policial da União Soviética) que pode esperar seis meses por uma informação!'.

Mandou me pendurarem novamente no 'pau-de-arara', mas berrou : 'com as amarras mais apertadas, para doer mais' (amarras nos pulsos e nas canelas). Quando eu já estava no 'pau de arara', ele chegou esbravejando com um vidro de álcool pertinho da minha cabeça (no 'pau-de-arara' a gente fica tentando equilibrar a cabeça, quando ainda restam forças, com a coluna em arco, voltada para cima). Acendeu um fósforo e gritou-me: 'Vou tocar fogo em você! Já fiz muito churrasco de gente. Quer ver?'

Não respondi. Sabia que 'eles' já haviam matado vários companheiros. Eu queria morrer logo. Tive vontade de dizer — toque fogo. Mas, pensei: se eu falar isso ele fará o contrário, não me matará. O miserável deve ter compreendido o que eu queria. Então, pensou um pouco, recuou e deu a sentença: 'Não, morrer depressa é muito bom para você, seu comunista filho da puta. Você terá que morrer aos poucos, sofrendo devagarinho, seu agente russo'. Afastou-se, deixando-me no 'pau-de-arara'. Desacordei uma meia hora depois, de dor. Retomei os sentidos já no chão. Aplicaram-me um chumaço de algodão, embebido em amônia, nas narinas.

Um regime especial — a 'ronda'

São Paulo, 4 de agosto de 1975

Teresa, vou continuando meu relato. Inicialmente, quero explicar o que foi a 'ronda'. Esta, na própria linguagem deles, significa um interrogatório ininterrupto, dia e noite, semana após semana. Fui submetido ao sistema da 'ronda' durante 20 dias. Do dia 22 de janeiro a 10 ou 11 de fevereiro.

Consegui ler a determinação escrita do chefe da 'Análise' o 'doutor Homero de Sousa' sobre a 'ronda'. Dizia ela : 'Tratamento de Marco Antônio T. Coelho. Proibição de usar roupas, colchão, coberta, proibição de fumar e ler jornais; só pode tomar o café da manhã (pão e um caneco de café com leite) e uma colher de arroz no almoço e outra no jantar; só pode beber um caneco de água por dia (duas vezes, um caneco pela metade); deverá ser interrogado de 9 horas da manhã até 7 horas da manhã do dia seguinte, sem interrupção. Essa é uma determinação para as turmas 'A', 'B' e 'C', a fim de quebrar a pretensa superioridade intelectual e cultural desse elemento'.

Para fazer cumprir essa determinação foram utilizados todos os elementos das três turmas, vale dizer 18 interrogadores. Esse sistema era suspenso quando o 'Dr. Homero' mandava me colocar no 'pau de arara'. Ao lado disso, os interrogatórios, muitas vezes, eram procedidos com as 'máquinas de choque' ligadas, isto é, desde cedo colocavam os fios nas minhas mãos e pés.

É verdade que depois de uma semana a 'ronda' teve de ser um pouco 'afrouxada', a pedido dos próprios interrogadores, que também tinham de ficar acordados, durante um plantão de 24 horas. Imagine, nesse sistema da 'ronda' eu já entrei esfrangalhado, pelo que sofri no Rio e no primeiro dia da chegada ao DOI-SP. A 'ronda' é a soma das seguintes torturas: impossibilidade de dormir, comer e beber um mínimo insatisfatório de água, levar 'choques' e ser pendurado no 'pau de arara'. Foi terrível e absurdo.

Deixei de carregar meu corpo

Três dias depois fiquei como um lunático. Só conseguiam me manter desperto com as 'máquinas de choques', com água fria que me jogavam (no décimo dia deixaram que eu tomasse banho, pois fedia e o banho me despertava) e com amônia aplicada às narinas. De vez em quando, alguns torturadores deixavam que eu dormisse uns 10 ou 15 minutos sentado no tamborete duro, ou semi-deitado no chão, porque as feridas nas nádegas não possibilitavam que ficasse sentado por muito tempo. É incrível, quando sempre fui um chato para dormir, a necessidade obrigou-me a dormir sentado num tamborete duro, 10 ou 15 minutos, a dormir sem colchão, no piso duro e frio. Vem a ser uma das formas mais monstruosas de flagelo essa de impedir-se por vários dias alguém de dormir. Só isso deixa a pessoa alucinada.

Eu sentia que não carregava meu corpo, mas que ele flutuava no ar ou navegava na água. Não possuía força para me conduzir. Para levantar tinha de pedir o auxílio de outra pessoa ou a apoiar-me na parede. Não contava com vigor suficiente para subir sozinho pela escada e eles determinavam que um auxiliar da carceragem me apoiasse; para descer era a mesma coisa, porque temiam que eu rolasse pelos degraus, ainda mais porque sempre se transita (os presos), lá dentro do DOI, com aqueles capuzes negros.

Não deixar marcas

Tal 'cuidado' comigo pode parecer contraditório com as sevícias brutais que sofria. Para elucidar essa aparente contradição, você deve atentar para o seguinte ponto: no DOI de São Paulo eles dominam a técnica de torturar sem deixar marcas: sempre falaram irritados da forma com que me flagelaram no DOI do Primeiro Exército, da incompetência dos elementos deste em fazer o serviço sem deixar cicatrizes tão feias.

Como contei, a tortura da sede foi também monstruosa, dado o fato de fazer muito calor em São Paulo naqueles dias de janeiro e fevereiro. Eu sempre estava sedento. Possivelmente contribuía para isso o fato de perder muita água, durante as torturas, pois o suor escorria de meu corpo. Ademais, um auxiliar da carceragem disse-me que, às vezes, recebiam a orientação de salgar um pouco a água. Eu acredito nisso, porque a água (o pouco que me permitiam beber) era salobra. Por tudo isso é que tive de roubar um pouco de água num urinol sujo.

(Não esclareci nesta carta para minha mulher detalhes mais humilhantes desse episódio. Na verdade, eu havia defecado nesse urinol, mas como nele colocavam água, para facilitar a limpeza, afastei com a mão as fezes e fui bebendo a água misturada com a urina.)

A tortura da fome eu senti menos. Creio que isso se devia ao fato do próprio estado físico levar-me a perder completamente a fome. É a mesma situação do doente em estado gravíssimo que não se alimenta, obrigando os médicos ao uso de soros por via intravenosa. Alguns interrogadores, uma semana depois de completar-se a 'ronda', tentavam amenizar esse aspecto das torturas, dando-me às escondidas uma xícara extra de café ou um biscoito. Minha aparência deveria ser espantosa. Foi, nessa altura, que um deles disse-me: 'Marco Antônio, você parece um cadáver'.

Interrogatórios e interrogadores

Entre as turmas de interrogadores — 'A', 'B' e 'C' — que se revezavam 24 x 48 horas — havia uma certa divisão de 'encargos', mas como se emulavam, por força do carreirismo, notavam-se pequenas divergências entre elas, que o preso podia aproveitar num grau mínimo. Já que acima delas pairava, decidindo tudo, a chefia e a 'Análise'.

Como divisão de encargos, notei, nos primeiros dois meses, que a turma 'C', chefiada pelo 'doutor Jorge', era a turma com a tarefa básica de 'amassar' os presos, enquanto a turma 'A', era a turma mais 'suave' e partia para explorar os dados obtidos pela turma 'C'. Mas, de qualquer forma o ambiente no DOI se modificava para pior nos dias da turma 'C'. Desde a manhã já punham em ação os instrumentos de tortura. Logo que o preso começa a dominar os 'sons' do DOI ele aprende a distinguir os barulhos de ferros sendo arrastados, pela movimentação na aparelhagem de tortura. Fica sabendo que, logo depois, será torturado ou ouvirá os urros de outro torturado.

O chefe da turma 'B' era o 'doutor Silas', que me pareceu muito curto de idéias; não babava ódio como o 'Homero' e chegava a ser tranqüilo; mas, dentro dessa 'tranqüilidade', também era terrível. Certa vez, com um ar ingênuo, perguntou-me: 'Marco Antônio, você já tomou 'choques' hoje?' Tal pergunta foi feita como se desejasse saber se eu já havia almoçado ou tomado café! — que candura mais filha da puta. Enfim, no DOI choque elétrico nos presos é tão rotina como o hasteamento da bandeira.

As turmas revelavam certa rivalidade entre si. Como parecia que os interrogadores-torturadores não conheciam todos os seus colegas das outras turmas, era freqüente me perguntarem, de passagem, sobre o 'trabalho' de seus colegas. Alguns faziam questão de assinalar erros e absurdos contidos nos depoimentos que tomavam. Uma cópia de cada depoimento era juntada num colecionador, que os interrogadores levavam para a inquirição.

Muitas vezes eu conseguia ler aquelas cópias, pois tinha interesse em relembrar minhas mentiras, o que era extremamente útil. Às vezes 'descobria' coisas ridículas que constavam naquela inundação de papéis, por exemplo: eu disse que 'morava' no apartamento da velha Alva Mendes, mas eles colocaram que eu 'vivia' amasiado com Alva Mendes.

Taras sexuais

De passagem, antes que me esqueça, é necessário assinalar a tara sexual do pessoal do DOI. Preocupação doentia a respeito do comportamento sexual dos presos; saber com quem mantinham relações sexuais; comentários constantes sobre órgãos sexuais dos torturados, especialmente das mulheres; xingamentos e insultos escatológicos aos presos. Tenho certeza que despiram e torturaram a Vera somente para vê-la nua. Aliás, certos tipos de torturas, como enfiar cabo de vassoura no ânus ou na vagina e choques elétricos nos órgãos sexuais, são de sua preferência porque isso satisfaz sua tara.

Ao mesmo tempo, se esmeram em grifar, para os torturados, que, em virtude das torturas nos órgãos genitais, ficariam inibidos sexualmente. Sua predileção, no contar piadas, é com as mais grosseiramente ligadas com sexo. Inquiriram-me semanas após semanas para que confessasse que eu mantinha relações sexuais com Alva Mendes, Ruth Simis e Jeny. Pelo seu julgamento, no fim, concluíram que, das duas, uma — que sou pederasta ou um incapaz sexual. Não acreditam em amizades e camaradagens isentas de relacionamento sexual.

Mas, minha querida, fiquemos por aqui, para não fazer uma carta mais longa. Sinto que essas cartas vão mal escritas e revisadas rapidamente. Numa ocasião ou outra fui praticamente levado a remeter-lhe uma carta sem relê-la, para não perder o portador. Essa falta de cuidado vai por conta do fato de que elas têm uma dupla finalidade: informá-la e deixar tudo mais ou menos documentado para uso futuro.

O 'chico doce'

Dia sim, dia não, o 'dr. Homero' aparecia para me bater ou pendurar no 'pau-de-arara'. Dava-me com um cacete de madeira, tamanho família, que denominavam de 'chico doce'. Usava ele muitas vezes uma palmatória, principalmente para bater nas nádegas, quando me pendurava no 'pau-de-arara'. Por isso feriu-me bastante nessa parte do corpo.

As pancadas com o 'chico doce' foram tantas que, uns dias depois, no cotovelo de meu braço esquerdo formou-se uma bolsa enorme com sangue pisado. Por duas vezes, um enfermeiro, com uma seringa, teve de extrair esse líqüido (cinco centímetros de cada vez). Mas, perto das outras formas de tortura, apanhar de cacete (uma vez o 'dr. Homero' bateu-me por mais de meia hora com seu cinturão de couro) não vem a ser o pior.

'Estátua' e 'churrasco'

Em algumas ocasiões, suspendiam o interrogatório para deixar-me como 'estátua', isto é, de pé, horas a fio, com os braços abertos em posição horizontal. Os auxiliares de carceragem eram utilizados para me 'controlarem', através de um visor na porta. Não agüentava ficar assim mais de duas ou três horas. Eles vinham, davam murros e choques, mas afinal se renderam à evidência de que eu perdera quase todas as forças. Só puderam exigir que ficasse de pé, parado. Mas, aí, os pés foram inchando, ao ponto de não caberem nos sapatos, não obstante eles estarem sem os cordões. Face a essa inchação nos pés resolveram suspender a tortura da 'estátua'.

Depois de preso à 'cadeira do dragão', inteiramente nu, molhavam meu corpo com uma salmoura. Acendiam dois holofotes fortíssimos e aguardavam que o sal na pele começasse a queimar. Uma hora depois, a dor era já insuportável. Soltava, então, berros de dor. O interrogador chegava e sadicamente perguntava: 'Já virou churrasco? Então, vamos começar o interrogatório'.

'Máquinas de choque'

Na rua Tutóia pude, infelizmente, examinar bem as 'máquinas de choque'. Quando lá passei existiam três dessas máquinas. Elas são armadas em caixas de madeira, mais ou menos toscas. A menor, a que chamam de 'pimentinha', foi pintada de vermelho: outra chamam de 'broxômetro' e outra tem um dizer gravado — 'saudações revolucionárias'. Às vezes ligam em série duas ou três dessas máquinas ao mesmo tempo. No princípio, os fios são ligados nas mãos e/ou nos pés; depois passam para o pênis; em seguida 'evoluem' para os tímpanos e a boca. Pela minha experiência, a forma que provoca mais dor é a colocação dos fios nos tímpanos.

Um espaço cor de rosa

Só quando a tortura se aproxima perigosamente da morte é que a relatividade da desgraça desaparece, pois cai-se num torpor estranho. Isso aconteceu após receber choques elétricos nos tímpanos por mais de cinco horas. Na minha opinião, esse é o pior lugar para se levar choques elétricos. Os choques nos tímpanos são dados em três tempos: fraco, médio e forte. Na primeira fase a vista fica escura e sente-se, além de muita dor, a cabeça cheia de estrelas; na segunda fase aumenta a dor e o número de estrelas; na terceira, sente-se uma explosão dentro do crânio, não se consegue falar e deve (creio) somente sair um urro de dor.

Pois bem, depois de receber dezenas desses choques caí exausto no chão frio. Estava totalmente nu e nem mesmo dispunha de sapatos que, às vezes, permitiam que usasse como travesseiro. Recordo-me bem que ficou ao lado de mim um ajudante de carcereiro, sentado numa cadeira. Naturalmente ele recebera ordem para ficar atento para não ocorrer uma paralisação cardíaca. Disse-me, então, com uma voz até mansa: 'tente descansar'. Apagou a luz e fechou a porta. Aí é que veio o torpor. Não tinha sequer força para mudar de posição, no piso. Mas senti que flutuava no espaço e num espaço cor de rosa, bonito. Deixei de sentir qualquer dor. Flutuava apenas. Não sei quanto tempo durou isso. Talvez uma ou duas horas. A consciência desapareceu. Desligou-se a 'chave geral'. Quando despertei é que comecei a ter pena de mim mesmo, pois não sabia em que parte do corpo doía mais.

Tortura de companheiros

Outra coisa tornou-se tão dolorosa quanto os sofrimentos físicos, ou pior ainda. Foram presos Ruth, Zé, Jeny e outros. (Ruth Simis, José Serber e Jeny Serber.) Começaram a torturá-los, principalmente a Ruth ... em minha presença. Eu havia sido o causador de suas prisões, pois haviam me seguido até à casa da maioria deles. Procurei não comprometê-los mais. Mas a acareação é fogo. Qualquer divergência nos depoimentos levava a redobrarem o 'pau' em cima de mim. E também na Ruth, que recebeu aquele 'tratamento'.

(Era possível aliviar a tortura de companheiros presos, que estavam envolvidos comigo, quando não havia "divergências" nos depoimentos. Foi o que sucedeu com Rodolfo Peano, meu grande amigo até hoje. Conseguiu me sussurrar que havia declarado que ele estava "roubando" o Partido. Inicialmente, não concordei com aquela versão infame. Mas ele insistiu que era a única solução. Por isso acabei corroborando com aquilo, o que ficou nos autos do processo.)

Lá pelo décimo-nono dia da 'ronda' tudo isso levou-me ao esgotamento total e absoluto. Nesse dia, segundo me recordo, o sub-comandante apareceu na sala em que me interrogavam. Pedi a ele que me matassem logo, de uma vez. Ele não respondeu, mas mandou que me dessem um calmante e que me permitissem tomar banho. Também houve pressão de alguns dos interrogadores para que os interrogatórios cessassem lá pelas duas horas da manhã.

Até então o intervalo nos interrogatórios era das sete às nove horas da manhã. Isto porque às oito horas da manhã se dá a substituição das turmas. Às sete horas os que saem já estão arrumando suas coisas e 'loucos' para ir embora. Os que entram, de 8 às 9 horas, aguardavam instruções da 'Análise'. Além disso, é no período da 7 às 9 horas da manhã que fazem a limpeza e servem o café.

O 'assobiador'

Na sala de torturas onde 'vivia' (melhor dizer onde 'morria') um faxineiro lavava o chão e passava um pano nos móveis. Por isso eu não podia dormir nesse intervalo de duas horas. O faxineiro era um tipo curioso. Funcionário da Prefeitura, com salário mínimo, fazia todo o serviço assobiando (eu passei, por isso, a chamá-lo de 'assobiador'). Ao realizar seu serviço, olhava-me de soslaio, com a curiosidade natural de quem vê uma 'fera' aprisionada. Mulatinho e humilde.

Uns 15 dias depois me perguntou: 'Por que o senhor me olha com raiva?' Não respondi, por surpresa. Mas eu estava tão atormentado que devia mirar todos eles com um ódio passivo. Passada mais uma semana, quando ele fazia a faxina numa sala, ao ser interrogado, eu defendia, ante um capitão, as posições do Partido, atacando o imperialismo e os privilegiados. Ao sair o militar, enquanto eu aguardava outro interrogador, o 'assobiador' falou entre os dentes: 'Meta o pau nos ricos, doutor'. Fiquei ainda mais surpreendido.

Mas falava da pressão de alguns interrogadores para que suspendessem às duas horas da madrugada as 'sessões'. Depois contaram-me que já julgavam a 'ronda' contraproducente, pois eu naquela altura não conseguia articular as frases e o pensamento.

Como funciona o DOI-CODI

São Paulo, 14 de julho de 1975

Teresa querida, aproveito a folga para continuar a escrever sobre aquele inferno, porque senão fico me sentindo em falta com a minha obrigação de contar tudo. De registrar tudo, antes que a memória comece a falhar.

Na manhã do dia 21 de janeiro, iniciou-se a fase das torturas na rua Tutóia. Sempre nela figurou como mentor e executor das piores sevícias, o tal capitão 'Homero de Sousa', chefe do 'Setor de Análise e Interrogatórios' (SAI), departamento que é o núcleo e o 'cérebro' (palavra imprópria, pois usam mais os músculos, nas torturas, do que outra coisa) do DOI.

O outro departamento importante é a 'seção de operações e capturas'. Além disso, existem serviços auxiliares, como datilografia, identificação, arquivo, cantina, enfermagem etc.

Ademais, funciona, na mesma sede do DOI, uma delegacia da polícia civil — a que chamam de 'auxiliar'. Essa delegacia é curiosa e estranha. Na aparência é uma delegacia distrital. Disse-me um carcereiro que sua jurisdição é insignificante, dois ou três quarteirões no Ibirapuera, onde está o DOI. Serve para dar 'cobertura' ao DOI, porque neste utilizam muitas viaturas e pessoal da Polícia Civil de São Paulo. Mas, volta e meia, essa 'auxiliar' recolhe alguns marginais. Uma vez colocaram, na minha cela, quatro marginais, numa noite. A guarda do DOI é feita, simultaneamente, por soldados da Polícia do Exército e soldados da Polícia Militar do Estado de São Paulo.

Tudo indica que tal estranha 'mistura' num quartel militar prende-se a três razões: comprometer a pm de São Paulo com o DOI; estabelecer o controle mútuo das duas guarnições militares; contrabalançar a inexperiência dos 'catarinas' (recrutas da Polícia do Exército) com o profissionalismo da pm de São Paulo.

A segurança do 'bunker'

Nessa dupla guarda devem ser usados, pelo menos, uns 300 homens, com excelente equipamento (fuzis e submetralhadoras). Para medir-se o grau de segurança (em termos militares) daquele quartel, basta citar um fato revelado por um dos interrogadores: permanentemente fazem exercícios simulados em que se considera um ataque ao DOI ou uma fuga de presos; neles se comprova que, ao sinal de alerta, mais ou menos mil homens cercam totalmente a região da Tutóia. Até nisso se vê o medo e o requinte dos chefes do DOI. (Na época existiam naquela área várias unidades do Exército, hoje desativadas e transferidas para outros lugares.)

Outro detalhe sobre a segurança do DOI: os presos são obrigados a usar macacões verde oliva, especiais, e os guardas têm ordem de atirar para matar se algum preso vestido de macacão verde oliva se aproximar de qualquer muro ou portão. O uso obrigatório desse macacão é ilegal, proibido pelas leis. Mas quando o preso é visitado, ou quando é levado a acareações com pessoas não-presas, determinam que vista sua própria roupa ('paisano', como eles chamam a roupa comum).

A rivalidade entre os torturadores

É necessário esclarecer que do DOI fazem parte: oficiais do Exército (vários capitães, poucos majores e um tenente-coronel), mas nenhum usa farda e todos são chamados de 'doutores'; oficiais da pm de São Paulo, também sem farda, e muitos policiais do DOPS. Todos são 'doutores', único título utilizado, até em relação aos enfermeiros. (Quando descobri isso, passei a dizer que eram 'funileiros' — consertadores de latas, que eram 'amarrotadas' pelos interrogadores; essa denominação correu célere dentro do DOI, ao ponto de logo receber o protesto de um dos enfermeiros.)

Existe um dado objetivo: uma surda rivalidade entre os oficiais do Exército e os policiais do DOPS. Aqueles é que mandam, que estão na chefia das equipes, que impõem o estilo militar ao DOI. Vivem a menosprezar a polícia militar pela sua corrupção e seu 'amoldamento' às pressões políticas. De outro lado, o pessoal do DOPS sente que seu órgão foi esvaziado, mas vê claramente que os militares são pouco competentes num ramo em que são especialistas (Os do DOPS.) há dezenas de anos. Ademais, (consideram que) os 'milicos' são grossos e sem nenhuma sensibilidade política.

O ritual do interrogatório

Os interrogatórios, assim como as torturas e demais castigos são rigidamente controlados pela chefia da SAI, ou seja, da 'Análise'. Como são muitos os interrogadores e divididos em três equipes isoladas, o interrogatório é orientado totalmente pela SAI. Assim, ao iniciar-se a inquisição, o interrogador recebe por escrito as perguntas que deverá formular ao preso. Abaixo da pergunta vem o que chamam de 'munição' e a indicação do tratamento a ser dado ao interrogado. Vale dizer, se entra ou não no 'pau'.

Em geral o preso é mantido sentado num tamborete, a uns três metros da mesa, usada pelo interrogador para escrever o depoimento. Ao contrário dos interrogatórios no DOPS (no velho estilo de filme policial, em que o interrogado é bombardeado com perguntas que celeremente se sucedem) no DOI o depoimento é anotado à mão pelo interrogador.

O depoimento é feito com certa lentidão e burocracia, o que dá uma margem de tempo para se pensar nas respostas. Como a grande maioria dos inter-rogadores é composta de semi-analfabetos, eles escrevem devagar, o que 'facilita' para o preso, que pode armar com relativo cuidado as respostas.

Logo que comecei a entender a engrenagem do interrogatório, compreendi ser decisivo procurar ler o que estava escrito na 'munição'. Por isso, com certa manha ia chegando o tamborete perto da mesa e fui me habituando a ler as perguntas de cabeça para baixo (isto é, com o papel voltado para o interrogador). Alguns interrogadores, mais espertos ou mais 'caxias' não iam nessa, escondendo com cuidado as indicações provenientes da 'Análise'.

Em geral, cada interrogador me inquiria durante quatro horas, sem parar. Depois era revezado por outro. Não havia intervalos, principalmente no período da 'ronda'. No princípio, o interrogatório durava 22 horas por dia. Isso foi assim por cerca de 20 dias. Depois foram reduzidos, até chegar a um período de 12 horas diárias. Com tal massa de interrogatórios, colecionaram cerca de mil folhas. Muitos interrogadores faziam questão de encompridar o depoimento, para 'encher o papel', diziam eles.

'Baboseiras' e histórias inventadas

Realmente, pelo menos uns 40% daqueles depoimentos são puras 'baboseiras', ou histórias inventadas. No princípio 'chutei' de qualquer maneira porque não conhecia bem o funcionamento do DOI. Depois vi que tapear grosseiramente não era fácil e quando me pegavam em flagrante era uma merda, porque o 'doutor Homero' mandava me tirar o couro, quando ele pessoalmente não vinha me castigar com a força que, infelizmente, Deus colocou em seus punhos.

O pior das mentiras é que a gente se esquece delas, quando são muitas e quando passam diversos dias. As mentiras vão se misturando, com o transcurso do tempo e depois tudo vira um cipoal, que a gente por ele paga um preço alto. No princípio inventei muita coisa, porque, conforme já relatei, pegaram comigo uma lista de 'pontos' (que abarcava cerca de uma quinzena de dias com uns 10 companheiros no Rio e São Paulo). Ademais, apanharam no meu apartamento, de São Paulo, uma lista de 'coisas a fazer' que envolviam umas 12 pessoas. Paguei caríssimo por esses dois papéis!

Recorde-se, você, que eu lhe disse no DOI, mesmo na frente daquele japonês, que eu 'salvara diversos companheiros'. (Na visita do dia 20 de fevereiro.) Referia-me a isso e pelo que fui seviciado barbaramente. Ficavam furiosos quando descobriam que eu os havia 'engrupido', gastando grupos de investigação e captura em torno de mentiras por mim forjadas, para ganhar sobretudo tempo.

Quinze dias depois eu já possuía o argumento verossímil de que minha prisão já era 'aberta', isto é, do conhecimento público, e que, sendo assim, nenhum companheiro iria a um ponto comigo. Foi-me muito útil, utilíssimo, ter ouvido, sem querer, que havia dado entrada no STM um pedido de habeas corpus.

Os sons na prisão

De passagem, lembro-me de dizer uma coisa fundamental que qualquer preso descobre na prisão, notadamente naquelas como o DOI, onde o 'segredo é a alma do negócio': ajuda consideravelmente manter os ouvidos afiados, aprender logo a identificar todos os sons, ouvir restos de conversas, enfim, aprender como o cão de Pavlov (o dos reflexos condicionados).

Eu tinha um ouvido de tuberculoso, como você fala, apesar de, por muito tempo, terem ficado zunindo na cabeça sons estranhos, em conseqüência dos choques nos tímpanos e dos 'telefones' que recebia ('telefones' são murros simultâneos nos dois ouvidos, o que, além de doer muito, deixa a gente surda por uns tempos).

Dia e noite, conforme me era possível, tentava saber o que se passava no quartel. Sistematicamente 'pescava' informações dos mais boquirrotos, que, mesmo lá, existem. Mas, minha grande arma eram os ouvidos. Mas, 'eles' também sabem disso. E por isso, usavam constantemente dois rádios, ligados quase sempre em alto volume, notadamente na hora de torturar um preso, desde que as dores são tão fortes que arrancam urros que atravessam o revestimento acústico existente nas salas de torturas. Se os rádios eram ligados em volume altíssimo podia-se concluir: começou uma 'sessão' de torturas.

Hoje, quando escuto uma canção que o Benito de Paula canta — Meu amigo Charlie Brown, ou coisa semelhante — sinto uma dor no coração. Em fins de janeiro e fevereiro tal canção estava na 'parada de sucessos', sendo tocada diversas vezes ao dia. Eu a ouvia quase sempre quando me torturavam. Criei, assim, uma inevitável associação de idéias, injusta para a canção.

Eu comentava a respeito da minha permanente preocupação em acompanhar os sons e ruídos no DOI, a fim de descobrir coisas e ter certa idéia do que iria acontecer. Depois de um mês já identificava os torturadores pela voz, já sabia qual campainha havia tocado, que cela havia sido aberta etc. Esse controle de sons era vantajoso, mas algumas vezes eu sofria por antecipação. Por exemplo, sabia que vinham me retirar da cela porque o auxiliar de carceragem, ou o próprio carcereiro, trazia um molho de chaves que tilintava sinistramente. (Referência à cela forte.)

Algumas vezes o cansaço trazia sono ou um torpor e assim não atentava para o barulho das chaves, ou para o rumor dos passos dos carcereiros. Então era despertado pelo levantamento de uma pequena chapa de ferro, que recobre o fecho da cela (embutido nas paredes grossas). Esse estrépito dessas chapas sempre anunciava a abertura das celas, para a retirada de um preso. Quase sempre essa movimentação do preso significa a desgraça, raramente indica boa notícia — como a liberação do preso para o DOPS.

A ajuda de Marcelo Mastroiani

Mas eu falava das mentiras que pregava e de seus inconvenientes. Pois bem, no princípio, por inexperiência, não 'fixava' bem a mentira, pois não sabia que mais tarde iriam conferi-la com todo cuidado. Não há cabeça de torturado, interrogado por cerca de 1.200 horas em 90 dias, só no DOI de São Paulo, que consiga guardar mentiras com detalhes. E quando percebiam o 'engrupimento', era aquele sortimento de sevícias.

É certo que fui 'aperfeiçoando' as mentiras e tornando-as mais sintéticas, com o menor número possível de detalhes. Por exemplo: quando uma pessoa surge nos depoimentos, logo querem sua identificação e traços fisionômicos; eu não dava o nome e me fixava, para efeito de 'engrupir', nos traços fisionômicos de outra pessoa e não me esquecia desse detalhe. Por isso, com a repetição da pergunta ... eu não tergiversava, pois guardara o essencial sobre a 'outra' pessoa. Tais sicranos chegaram até a ser alguns artistas de cinema, como o Marcelo Mastroiani. Parodiando o Guimarães Rosa, digo, com conhecimento: mentir no DOI é muito perigoso.

Outras vezes, lia na 'munição' a famosa recomendação: 'Descer o pau no MATC, porque ele está mentindo' sobre tal coisa. Era o sinal verde para a tortura. Fato engraçado: é sempre desagradável a gente ouvir na bucha, sem rodeios, alguém dizer — você está mentindo! Ora, como se é educado para não mentir, pois a mentira não é coisa ética (embora todo o mundo minta, uns mais, outros menos) ser apanhado mentindo é invariavelmente horrível. Talvez, só os cínicos escapem disso. Pois bem, eu tinha que mentir, mas não é gostoso, nem um pouco, escutar algo assim: 'você é um mentiroso, sem caráter'. O fato se torna 10 mil vezes mais desagradável quando isso é a precisa indicação de que uma 'fera' vai se desembestar em cima da carne da gente.

O ódio pessoal

Os que caem nas garras do DOI têm a noção de que se evidencia um ódio pessoal da parte dos interrogadores-torturadores, quando essas figurinhas antes lhe eram totalmente desconhecidas. O ódio que o 'doutor Homero' tinha para comigo só se explicaria se eu houvesse assassinado um seu familiar próximo. Pensei muito nisso até matar a charada.

Do combate em geral aos inimigos do fascismo (os comunistas em particular) eles resvalam fatalmente para o zoológico e irracional ódio individualizado a cada um de nós. Essa preocupação do 'doutor Homero' em desmoralizar-me moralmente — querendo provar que eu era um ladrão — chegou a um ponto tão absurdo que um dos torturadores, ao ler a 'munição' referente a pretensos roubos nas finanças do PCB, disse-me: 'Não vou fazer essa pergunta. Isso é uma indignidade. Você arriscava sua vida e esse problema de dinheiro, para você, não contava'. E pulou uma dessas perguntas sobre dinheiro.

Na cela forte

Enfim, no vigésimo dia da 'ronda' transferiram-me para a cela forte e decidiram fazer a interrupção (dos interrogatórios) às duas horas da manhã. O passar para a cela forte foi um alívio. Julguei-me um ser feliz por ter direito a dormir umas cinco horas, numa cela escura e fria, no princípio sem colchão nem coberta. Podia dormir, que maravilha! Além disso, nela existia uma instalação sanitária. Que fantástico não ter que urinar e defecar num urinol.

Fiquei na cela forte umas duas semanas. Decorridos uns dias comecei a sentir o lado tenebroso da cela forte: dormir no chão frio e duro; não ter pia para lavar as mãos; o estrondo da porta de aço ao ser aberta (às vezes um auxiliar da carceragem dava pontapés na mesma, só por filha-da-putice). Houve o episódio do rato que, no princípio, era asqueroso ao passar em meu corpo e que depois veio a ser somente incômodo. Mas creio já haver contado esse episódio do rato e seu fim nauseabundo, que, afinal, provocou minha transferência para um dos xadrezes do pátio.

Quando se está na cela forte, onde a porta de aço é inteiriça, o simples abrir da porta é assustador. A cela forte é estreita (1,20 x 3 m, mais ou menos) sem outra abertura que a porta de aço. A abertura da porta provoca um estrondo lá dentro. O preso levanta-se do chão ou do colchão com o coração deprimido, pois sabe que normalmente aquele estrondo é o prólogo das torturas.

Surrealismo na OBAN

Minha querida, recordo-me de um fato que me pareceu extraordinário no DOI. Foi no mês de fevereiro. Era já noite alta, num dia em que não estavam torturando. Encontrava-me na cela forte e, por buraquinhos da porta de aço filtrava-se o clarão lunar. Tudo era tranqüilo lá fora no pátio. Os rádios não estavam ligados. Mas meu corpo doía muito, no chão frio, porque tinham retirado o colchão esmolambado e fedido a urina e mofo. (Mas que dele gostava porque, pelo menos, me resguardava do frio e do cimento áspero.)

Ouvi, então, quase uma hora seguida, uma voz linda cantando. Comecei a prestar atenção, pois aquele canto me fazia bem. A princípio julguei que o rádio estivesse ligado. Mas nada de anúncios comerciais. E a canção se repetia. Era uma voz de contralto, educada e melodiosa.

Descobri que provinha da cela das mulheres. Pensei: 'será a Ruth?' Mas a voz dela eu conhecia, é diferente. Aquilo foi um mistério que durou dois dias. A canção me embalou. Esqueci até das dores no corpo. Foi algo de divino e absurdo ao mesmo tempo ouvir uma presa cantando tão bem, uma canção tão suave, dentro daquele inferno. A voz revelava a inocência de quem não tinha a menor consciência do local em que se encontrava. Enfim, um sonho surrealista no quartel do DOI de São Paulo.

No dia seguinte, percebi que outra pessoa estava com a Ruth. Um auxiliar da carceragem contou-me que ela é que havia cantado na noite anterior, e que era meio 'xarope' (maluca). Passando mais um dia, por um relaxamento de um dos interrogadores, ela foi chamada na sala onde eu prestava depoimento, fato que nunca mais se repetiu.

Tratava-se de uma moça de seus 25 anos, envolvida sentimentalmente com um companheiro nosso. Mas inocente de tudo sobre suas atividades políticas. Suas respostas, ao ser interrogada, não deixavam dúvida sobre seu não-comprometimento político. Ao mesmo tempo, informava que gostava muito desse companheiro e que faria tudo por ele.

A princípio, como de hábito, o interrogador a insultava, dizendo os piores palavrões, como 'puta sem vergonha'. Ela replicava de forma pura como qualquer pessoa simples, não aparentando o menor receio, com uma bruta coragem, fruto de sua total ignorância a respeito do pessoal do DOI. Dizia: 'Se vocês colocarem as mãos em mim, irão ver comigo'. Logo o interrogador começou a 'gozá-la' de forma sórdida sobre suas relações sexuais com o tal camarada, jogando frases como 'na certa, ele é um veado', ou 'você dá para todos os comunistas, não é?' etc. Ela respondia com simplicidade, meio envergonhada.

O interrogador passou a dizer que iria colocá-la numa das celas dos homens, 'para resolver o problema deles'. Ela replicou suavemente: 'isso não, desde que vivo com ele, nunca tive mais nada com outro homem. E depois, quando ele souber, não irá gostar'.

Ao escutar aquilo, vendo o bom senso daquela 'xarope', pensava: 'Afinal quem é insano mental aqui, ela ou o interrogador?' Ela não voltou mais a cantar. Foi solta logo depois. Enfim, um intermezzo surrealista no DOI.

Macacões verde oliva

Após o período em que fiquei nu na sala de torturas, obrigaram-me a usar macacões verde oliva (também as mulheres presas são obrigadas a usá-los). Tais macacões são obviamente fedidos, pois raramente os lavam. São de um tamanho único, o que cria problemas para os 'grandões', como o Zé Serber e ficam ridículos para os miúdos, como o Adjalma. (Adjalma Guimarães, engenheiro.)

Mas, para mim, 40 dias depois de encontrar-me no DOI, valeram a pena, porque minhas roupas (calça, camisa e cueca) estavam podres de sujas. Quando consegui lavá-las, usava à noite o macacão como travesseiro, pois já estava cansado de dormir com a cabeça apoiada nos sapatos. Já no fim da estada no DOI consegui, burlando um carcereiro, mais um macacão. Assim, semanalmente, lavava um deles. Senti-me nesta altura, um milionário, pois podia usar um macacão mais ou menos limpo.

Pesquisa sobre assassinatos

São Paulo, 28 de julho

Minha querida, da cela ou da sala de torturas procurava 'controlar' os que haviam sido detidos. Procurava puxar conversa com os interrogadores e os auxiliares de carceragem para descobrir quem se encontrava preso. Inclusive, perguntei muito sobre os cinco companheiros que 'desapareceram' no ano passado (Válter Ribeiro, João Massena Melo, David Capistrano, Luiz Ignácio Maranhão Filho e José Roman).

Procurei fazer constar nos depoimentos que os órgãos de segurança os havia assassinado. No princípio eles aceitaram. Mas logo veio uma advertência escrita da 'Análise', que consegui ler de cabeça para baixo: 'os interrogadores estão caindo no jogo de MATC, quando ele declara que ... (os cinco) foram assassinados por nós. Não aceitar isso nos depoimentos'.

Então, passei a dizer que eles foram assassinados pela CIA. A 'Análise' replicou: 'interrogar ao máximo MATC, descendo o pau, se necessário, pois o PCB é que sumiu com os desaparecidos, para fazer campanha contra os órgãos de segurança'. Aí, passei a apanhar para que 'revelasse' o que teríamos feito aos cinco!

Num momento de raiva, o 'doutor Homero', hidrófobo e xingando, gritou: 'Pegamos, sim o Válter Ribeiro, e com ele fizemos um acordo. Ele está no México!' Procurei colocar essa declaração nos depoimentos, mas os interrogadores não aceitaram.

Foram mortos na 'Colina'

Pouco a pouco, juntando pequenos detalhes e algumas indiscrições, concluí de forma irrefutável: os miseráveis chacinaram aqueles cinco companheiros, num local perto de São Paulo, a que denominam de 'Colina'. O tempo transcorrido, desde quando 'desapareceram', elimina qualquer dúvida a respeito. Desgraçadamente, parece que o mesmo fizeram, neste ano, com Elson Costa, Hiram Pereira, Jaime Miranda e Itaí José Veloso. Bandidos!

(Quando escrevi essa carta, depreendi que o assassinato daqueles companheiros não se deu na rua Tutóia, pois, na verdade o que lá sucedia acabava transpirando. Portanto, os órgãos de repressão possuíam um outro local, mais clandestino ainda, um verdadeiro matadouro secreto. Essa suposição, para mim se confirmou com um dado, contado por Renato Mota, outro companheiro do Comitê Central. Antes de ser levado para a rua Tutóia, ele esteve encarcerado num local ermo, possivelmente um sítio, sem iluminação elétrica nem a aparelhagem complexa do DOI na rua Tutóia. Nele, Renato passou dias literalmente preso a uma corrente de ferro e cadeados. No Rio, sucedeu o mesmo com Aristeu Nogueira, também membro do Comitê Central, segundo me declarou no intervalo de um julgamento na Justiça Militar no Rio de Janeiro. Em resumo, as autoridades militares que atuavam nas atividades de repressão dispunham de outros locais ainda mais reservados que as sedes do DOI na rua Tutóia e na Barão de Mesquita. No livro recentemente publicado, de Nilmário Miranda e Carlos Tibúrcio, intitulado dos filhos deste solo — Editora Perseu Abramo e Boitempo Editorial —, na base de revelações do ex-sargento do Exército Marival Chaves, esse centro clandestino de torturas e execuções do DOI-CODI era localizado em Itapevi, na região metropolitana de São Paulo.)

Ligações com o MDB

São Paulo, 22 de julho de 1975

Minha querida, conforme lhe contei, algumas vezes conseguia ler a 'munição' que os interrogadores recebiam da 'Análise', para orientarem-se na inquirição. Pude ler certa vez o seguinte: 'De ordem da Presidência da República deve ser feito minucioso interrogatório sobre as ligações do PCB com o MDB, principalmente em função das eleições de novembro passado'.

Por essa indicação concluí o porquê de oito interrogatórios (mais ou menos de 10 horas cada um) sobre a questão. Os depoimentos iam para a 'Análise' e essa sempre os julgava insuficientes, porque queria 'coisas sensacionais' contra o MDB, que simplesmente nunca existiram. Como foi difícil ultrapassar esse assunto. Por causa dele colocaram-me duas vezes no 'pau-de-arara', levei muitos murros e cacetadas e recebia 'choques' horas a fio.

A visita de Teresa e minha mãe

(No dia 20 de fevereiro, quando estava preso há um mês, graças a uma ampla movimentação política, permitiram que Teresa e minha mãe me visitassem no DOI , por 10 minutos, na presença de três oficiais do Exército. Esse contato teve enormes conseqüências, pois minha mulher e o conjunto da família passaram a denunciar com estridência as torturas que eu sofria. Por isso, Teresa passou a ser caçada pelos órgãos de repressão.)

São Paulo, 4 de agosto de 1975

Teresa, fui absolutamente surpreendido com tal permissão (da visita). Uns 10 minutos antes mandaram-me tirar o macacão e vestir o 'paisano' (minhas roupas). Foi o 'doutor Paulo' que me informou da visita, mostrando as cédulas de identidade sua e de mamãe. Ao mesmo tempo, advertiu-me que nada deveria contar sobre as torturas. Não tive nem 10 minutos para pensar no que iria dizer-lhe. Sabia só de uma coisa — tinha que lhe dar alguma 'dica' das torturas. Ao mesmo tempo era necessário ficar clara a nossa separação. (Nos depoimentos no DOI eu afirmei que estava me desquitando de Teresa.)

Dentro daquele quadro é que você me encontrou. Em frangalhos e na porta da loucura e do desespero. Na véspera, três 'máquinas de choque' ligadas nos tímpanos é algo assombrosamente terrível. Tem-se a nítida impressão de que explodem uma granada dentro do crânio.

O próprio torturador avisa de antemão: 'você não conseguirá falar. Faça apenas um sinal com o polegar, quando resolver confessar'. Mesmo depois da 'confissão' davam mais choques, como castigo, pelo 'trabalho' que estava lhes dando. Para medir o suplício do choque nos tímpanos basta saber que, uma semana depois, quando me permitiram tomar banho, senti uma dor horrorosa tão somente porque um pouco de água penetrou nos ouvidos.

Querida, sem querer comecei a falar em coisas tristes, quando pensava escrever-lhe uma carta alegre. Mas tudo isso veio à baila porque necessito explicar-lhe porque encontrou-me tão aniquilado e como foi formidável a sua ajuda, dita em poucas palavras: 'Você não pode ser um super-homem'. Nunca mais, nunca, olvidarei essa frase. Fez-me ter novamente vontade de viver.

Agora já soube o que você fez por mim, com sua carta (Escrita ao presidente Ernesto Geisel e transcrita no O Estado de S. Paulo.) cujo teor ainda não conheço, com seus apelos a todo o mundo, você paralisou o braço dos torturadores, com a ajuda da Tuchinha, de dona Paixão e tantos amigos. Não tenho, agora, palavras que traduzam o que sinto diante de tanto amor e dedicação.

O pior poderia acontecer

São Paulo, 28 de julho,

Minha querida, quando você me contou, no dia da visita, que chegou a me ver encapuzado no DOI fiquei com o coração gelado, pois o maior temor meu consistia, exatamente, que você e os meninos fossem levados para lá e torturados em minha presença.

Conheço casos em que isso ocorreu com outros presos políticos. O 'doutor Homero' ameaçou-me fazer essa monstruosidade. Ao lado disso, o cínico 'doutor Paulo', por diversas vezes, perguntava-me: 'Marco Antônio, por que sua mulher não voltou a visitá-lo? O que está acontecendo com ela?' (Essa pergunta do agente do DOI decorria do fato de que após a publicação da carta ao Geisel, Teresa, procurada pela polícia, ficou fora de circulação, em casas de amigos, principalmente na de Benito Barreto.)

Eu respondia sempre: 'Nós estamos praticamente separados. Só minha situação de clandestinidade é que não permite a legalização de nosso desquite'. Era a conversa que, desde o início, havia 'montado'. Mas, apesar disso eu tinha medo do pior acontecer. Estava a par do que estavam fazendo com a mulher e o filho do Osvaldo Pacheco. Por isso ouvia atento todos os ruídos e conversas. Assim, consegui ouvir que haviam prendido o Tatão. (Meu cunhado, que morava em São Paulo.)

Conseqüências das denúncias

Comecei a sentir que você deveria ter feito algo por mim uns cinco dias depois da visita. O 'doutor Homero' mandou que dois fotógrafos me tirassem dezenas de fotografias, vestido e nu, com barba e sem barba, de frente e de perfil etc. No dia seguinte, mandaram-me assinar uma declaração sobre qual era o tratamento que eu recebia. Aí já haviam parado as torturas físicas.

Pensei um pouco e mudei algo na mesma. Um detalhe, que eles sugeriram burramente, me deu a chance de aceitá-la alterando pouca coisa. Propuseram que eu declarasse que a partir do dia 20 de fevereiro os interrogatórios eram normais. Ora, eu fora preso no dia 18 de janeiro. Se tal documento fosse publicado (penso que exatamente por isso não foi utilizado) qualquer analista concluiria que eu estava fazendo uma cuidadosa ressalva da fase entre 18 de janeiro e 20 de fevereiro.

(Tudo isso decorria do fato de, na imprensa e no Congresso, terem sido veiculadas denúncias sobre as torturas a que eu era submetido, provocando o aguçamento das divergências no seio do governo, entre a "linha dura" e a ala do Golbery. Esta exigiu uma informação mais convincente do DOI.)

O período da 'lanternagem'

Simultaneamente, começaram o que chamei de 'período da lanternagem'. (Em São Paulo não denominam o desamassador da lata dos carros de lanterneiro; dizem funileiro; não sei como é em Belo Horizonte.)

Antes de tratar disso quero lhe falar sobre os médicos e enfermeiros do DOI de São Paulo. Uma vez que o 'dr. Homero' veio espancar-me, quando mal me agüentava, apareceu acompanhado de um cidadão que, rapidamente, examinou minha pressão arterial e disse-lhe: 'ele agüenta mais'. O chefe da 'Análise' nem esperou que terminasse. Desencadeou uma surra com seu cinturão de couro e com o 'chico doce'.

De outra vez, surgiu um médico legista com cara de japonês, para lavrar um 'laudo' sobre meu estado físico. Naturalmente o miserável escondeu cinicamente meus ferimentos. Esse 'laudo' é que foi usado pelo DOI e pelo Armando Falcão. (Esse médico era o Harry Shibata, denunciado por mim ao Conselho Regional de Medicina, que o condenou, proibindo que exercesse a Medicina.)

Fora disso, só me trataram três enfermeiros, um de cada turma, a quem eu chamava de 'lanterneiros'. Tais enfermeiros, depois de você ter denunciado o que faziam comigo (o que só entendi quando já estava no DOPS, por informação de outros presos), receberam ordens para melhorarem minha aparência. Muita coisa mudou.

Permitiram que comesse sem restrições a bóia. Deram-me vitaminas, pomadas etc. Um dia apareceram até com um, veja que cinismo, bronzeador de pele, para tentarem camuflar as cicatrizes. Estranhamente, me levaram para tomar banho de sol, o que se deu umas seis vezes. Depois entendi porque houve esse cuidado. Um desses enfermeiros deu com a língua nos dentes, dizendo: 'Se a pele não receber sol a cicatrização será muito lenta'. Fiquei no íntimo com raiva. Mas necessitava tomar sol, depois de recluso quase 50 dias. O bronzeador, porém, foi quase todo esvaziado no vaso sanitário.

A notícia na TV Globo

Outro fato que ocorreu nesse 'período de lanternagem' foi a minha aparição na TV. Uma tarde, sem nada me informarem, mandaram que eu vestisse o 'paisano', encapuzaram-me e me colocaram, com escolta, numa viatura. Percebi que essa rodou pouco tempo. Determinaram que retirasse o capuz. Estava no pátio do comando do Segundo Exército, que reconheci pelas suas linhas ultramodernas. Levaram-me para uma ala lateral do QG, cheia de plantas, com um jardim de inverno. E nenhuma explicação foi dada. De repente, apareceram dois rapazinhos, um com uma câmera de filmar e outro com jogos de luzes. Compreendi que me filmavam. Como já estava com muito ódio, pelas dores que sentia e por tudo o mais, só tive tempo de fechar a cara e manifestar ódio.

No dia seguinte soube que aquela cena havia sido exibida na TV. Entre o pessoal do DOI deve ter havido divergências sobre tal iniciativa. Deduzo isso pelo que comentou comigo um dos piores torturadores: 'Eu fui contra. Não se deve dar nenhuma explicação sobre o que fazemos ou deixamos de fazer'. Esse é um alucinado fascista e um sádico total. Vivia a falar que o Congresso seria fechado e que vários senadores e deputados seriam cassados. Mas, naturalmente, prevaleceu a opinião a favor de minha rápida apresentação na TV, em vista da corajosa denúncia das torturas e da pressão desencadeada por pessoas amigas.

(Em diversas oportunidades meus advogados tentaram obter uma cópia dessa cena gravada pela TV Globo, mas a emissora informou que não havia arquivado esse filme. Os jornais, porém, publicaram uma fotografia da cena.)

O incidente com o cardeal

São Paulo, 8 de agosto

Minha querida, conforme dizia, no quartel-general do Segundo Exército houve outro episódio 'edificante' para os militares do DOI. Nos primeiros dias de março apareceu o 'doutor Ubirajara', que veio com a seguinte conversa: 'Marco Antônio, existe um padre muito amigo do general D' Ávila de Melo, que deseja dar a você assistência religiosa. O que acha disso?'

Julgando uma coisa pelo menos esquisita, fui cauteloso, mas não podia prever o desfecho. Respondi: 'Aceito conversar com qualquer pessoa que tenha interesse por mim. Mas, não sou católico'. Ele pediu-me, então, que escrevesse um bilhete declarando tal coisa. Fiquei intrigado e resolvi fazer de forma cuidadosa, agradecendo a iniciativa 'desse padre'. Dias depois, com as cautelas costumeiras, fui levado novamente ao QG do Segundo Exército. Quando já estava encapuzado na viatura, o 'doutor Ubirajara' me disse secamente: 'Marco Antônio, não adiantou o bilhete, o padre quer mesmo falar com você'.

Porém, ia me esquecendo de dois detalhes: era uma quinta-feira, dia de visita no DOI e eu burramente contava com mais uma visita sua, o que me deixou furioso com o 'tal padre', pois certamente iria impedir-me de vê-la; de outro lado, como só possuía camisas de mangas curtas, 'eles' colocaram-me uma camisa social (de mangas longas), mas tiveram o extremo cuidado em costurá-la nos punhos, de forma muito apertada, com o claro objetivo de impedir que alguém enxergasse as cicatrizes em meus braços.

Fui para o QG com raiva, mas curioso. Tudo era fora do 'normal'. Numa das salas, acompanhado por um elemento da escolta, estava outro capitão do DOI, o tal de 'Silva'. Este começou a dizer que aquilo tudo era um absurdo, pois eu não era católico, insistindo ainda numa grossa mentira, que logo seria desmascarada.

Poucos minutos depois entraram na sala duas pessoas. Uma, com jeito muito sem graça, era o capitão-capelão do Segundo Exército — um tal de Barroso. O outro, bem mais idoso, foi-me apresentado como um monsenhor. (Por um cartão enviado por Dom Paulo Evaristo Arns a minha esposa, sei agora que era o monsenhor Victor K. Ribeiro.)

De saída o capitão do DOI extravasou logo sua fúria, dizendo: 'Estamos aqui para cumprir uma decisão do comando do Segundo Exército, contrariando nossa opinião no DOI. Aliás, o Marco Antônio disse que não desejava isso por não ser católico'.

Retrucou o monsenhor, com esplêndida calma, dando-me os elementos básicos para compreender a mentiralhada da turma do DOI. Disse: 'Vim aqui representando o cardeal de São Paulo que esteve dias atrás no DOI para visitar o Marco Antônio, a pedido do arcebispo da Paraíba. Entretanto, não o deixaram sequer entrar. O encontro aqui foi marcado pelo comando do Segundo Exército'.

O capitão 'Silva' começou a discutir agressivamente com o monsenhor, que saiu-se muito bem do choque, com calma e brilho. Fui entendendo a intervenção de Dom Paulo em meu favor e o conflito que ocorria. O capitão quis, então, encerrar logo o assunto, mas aí eu agradeci a interferência da Igreja e dando, com indiretas, alguns dados sobre minha situação.

A raiva da turma do DOI eu pude medir nos dias seguintes, pelos comentários que faziam. Bem, minha querida, vou terminando por aqui porque a carta já está muito longa. Beijos para você e os meninos e abraços para todos.

(A interferência de Dom Paulo foi solicitada pelo arcebispo da Paraíba, Dom José Maria Pires, mineiro de Itabira, Minas Gerais, uma das figuras da Igreja mais identificadas com as causas do povo. No dia 30 de abril, o cardeal distribuiu uma nota oficial relatando os fatos. O incidente com Dom Paulo ocorreu no portão do DOI, pois deram uma ordem ao sentinela para impedir a entrada do cardeal, o que repercutiu intensamente na cúpula da Igreja. Daí a determinação de Geisel ao Segundo Exército para contornar a situação. Aprazada a nova visita, o cardeal não falou pessoalmente comigo, porque havia viajado, mandando um representante em seu lugar.)

O seqüestro em Porto Alegre

(No mês de maio de 1975, eu e mais três presos políticos, inclusive Ali Saab, agrônomo, fomos levados clandestinamente num avião da FAB para o DOI de Porto Alegre. Depois de 21 dias me trouxeram de volta, num Bandeirante da FAB, junto com Osvaldo Pacheco.)

São Paulo, 11 de junho

Teresa, minha Teresa, em Porto Alegre, onde fiquei 21 dias incomunicável, deixaram-me de capuz preto na cabeça, dia e noite. Um elástico apertava fortemente o capuz no pescoço. Só para comer ou beber permitiam que o mesmo fosse levantado até a altura da boca.

Isolado assim até do ambiente da cela, sem poder olhar as mãos e o corpo, só restou-me o consolo de deixar o pensamento correr livremente. Pus-me, então, a lembrar das boas coisas da vida, desde os tempos da infância. Ficava horas a pensar nos detalhes de qualquer coisa agradável do passado. Num encontro nosso. Na primeira vez que segurei sua mão, lá no Parque Municipal. Nos sorrisos lindos e tristes da Simone. No nascimento do Marquinho, quando saltou como um cabrito de seu ventre. Nas conversas do papai e nos brinquedos que me trazia ao regressar de viagens. Nos eternos gestos de bondade da mamãe. Nos preparativos para os Natais. Ah!, como fiquei feliz quando acionei a máquina da memória para lembrar só do lado bom da vida.

Se um policial, por ventura, de repente retirasse o meu capuz, ao contrário de deparar um semblante aterrorizado e aflito, ficaria espantado com o sorriso tranqüilo que dançava em minha face. De outro lado, afugentei o desespero (pois ameaçavam-me de morte se não aceitasse fazer um programa indigno na TV), quando fixei logo um dado: faziam aquilo comigo porque havia realizado algo de útil aos trabalhadores, em 32 anos de luta.

Tal pensamento deu-me uma energia incrível e, sobretudo, paciência e confiança em dias melhores, dentro daquela solidão absoluta, total.

Outra coisa boa me ajudava naqueles dias. Ouvia, pelas manhãs, o trinado de pardais, que indicavam a chegada de um novo dia. Uma vez, minha Teresa, escutei a fala e o bulício de um garoto que brincava no pátio do quartel. Isso durou só uns 10 ou 20 minutos. Mas apurei ao máximo a audição, pois desejava saborear até o sumo aquela manifestação de um garoto, na rotina de seus folguedos inocentes.

Aquilo me extasiou, pois ali estava um broto do gênero humano, não comprometido com maldades. Curti, portanto, meus sofrimentos e angústia com 'nadinhas', idiotas para o comum dos mortais, mas coisas sublimes para quem não podia ver as próprias mãos, e não sabia se viveria ou não mais 24 horas.

Perante a Justiça verde-oliva

(No dia 16 de junho de 1975 fui levado pela segunda vez perante a Segunda Auditoria da Justiça Militar do Segundo Exército. Da primeira vez, apenas armei um escândalo denunciando as torturas.)

São Paulo, 18 de junho

Na segunda-feira foi o interrogatório. Você já deve saber como transcorreu. Não fiquei satisfeito com o que disse. Queria falar mais, protestar mais, levantar com maior energia o problema político. Mas os sacanas não foram bobos. Creio que não caí em nenhuma armadilha. Eles, quando sentiram minha posição de princípio, aceitando a responsabilidade de dirigente político do PCB, queriam terminar tudo logo, para encerrarem o ritual.

Senti-me, sem razão, um pouco frustrado, porque almejava um debate, como na Câmara. De qualquer forma foi gostoso dizer que sou comunista, publicamente, elogiar Prestes e o Partido. Penso que alguns parentes irão achar que continuo louco. Merda! Irei fazer mais do que isso, nem que fique 20 anos preso!

O tenente-coronel, que presidia o Conselho não tirava os olhos de mim. Parecia um boneco de madeira, talhado a machado. Eu fazia força para adivinhar o que passava pela cabeça dele. Ele me olhava fixamente. Das duas, uma: ou pensava que eu era um 'abominável homem das neves' (digno de ficar num zoológico, como raríssima espécie de animal), ou como um louco irrecuperável, pleno merecedor de meia dúzia de balas de um pelotão de fuzilamento. É possível, quem sabe, que ele admirasse minha audácia. Sua única intervenção, muito discreta, foi até para ajudar-me, 'soprando' para o auditor que, em certo ponto, era necessário deixar claro uma coisa que eu declarara.

O auditor, a 'grande figura' é o tipo de carreirista solícito e sem espinha diante dos homens do Poder. Sentiu logo que não poderia me fazer de gato e sapato. Não se atreveu a provocar-me e a puxar debates políticos. Mas 'trancou-me', não foi bobo. (O juiz-auditor era o doutor Nélson da Silva Machado Guimarães. Posteriormente, eu o processei em duas ações no Superior Tribunal Militar.) O importante será a repercussão nos jornais. Vi a nota do Estadão. Foi simpática para mim. Mas, naturalmente, com insuficiência. O básico agora é divulgar ao máximo minha declaração.

Gratidão

Teresa. Escreva, por intermédio do doutor Mário Simas, uma carta para a Ruth Simis. A luta impedia-me de contar a você como ela me tratava e me ajudava. No DOI, quando me aniquilavam, jogado no chão frio, despido e imundo, ela afagou meus poucos cabelos. Como esquecer um carinho amigo, naquela sucursal do inferno! E ainda mais partido dela, que foi brutalizada por todas as formas! (Mário Simas era meu advogado em São Paulo. Ruth Simis, muito torturada no DOI, cumpriu pena de seis meses de prisão e depois exilou-se em Berlim, durante mais de quatro anos.)

Doravante, tenho uma dívida imensa com muita gente: com Tuchinha, Branca, Oscar, Mário, Benito e Irá, Ceci, Helvécio, minhas irmãs, cunhadas, cunhados e sobrinhos, Vanessa etc. E não devo ter ciência ainda de 20% do que foi feito por mim. Tatão e Sônia têm sido formidáveis. É uma carga pesada receber o apoio de tantos amigos e parentes.

Teresa, não me aflijo com sua demora em visitar-me. É necessário cuidado. Sei que — embora separados por grades e por 600 quilômetros — estamos juntos noite e dia. Não é? Cuide da saúde para se recuperar para mim e os meninos. Estamos ainda dando os primeiros passos numa luta dura. Eu, Simone e Marquinho necessitamos muito de você.

* * *

Estes são os principais trechos das cartas. Reordenados apenas para manter a cronologia dos fatos no primeiro semestre de 1975. Para um melhor entendimento do que sucedeu até julho daquele ano e o ocorrido depois, nos presídios do Hipódromo e do Barro Branco, remeto o leitor aos próximos capítulos.

Marco Antonio Tavares Coelho, jornalista, é editor-executivo da revista ESTUDOS AVANÇADOS, publicação quadrimestral do Instituto de Estudos Avançados da Universidade de São Paulo (IEA-USP).

Cartas originais

 

 

 

 

 

 

 

 

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    O presente texto é uma transcrição de algumas partes de um livro de Marco Antônio Tavares Coelho, provisoriamente intitulado
    Memórias de um comunista, que será publicado pela Editora Record, do Rio de Janeiro, e lançado provavelmente no próximo ano. As duas primeiras partes são trechos dos capítulos 7 e 10, intitulados, respectivamente, "Nas águas da política" e "Não enxergamos o precipício". A segunda parte é a transcrição integral do capítulo 16, intitulado "Para não fugir da memória". O livro possui 20 capítulos, com cerca de 370 páginas.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      05 Maio 2005
    • Data do Fascículo
      Dez 1999
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