Acessibilidade / Reportar erro

O uso do fogo: o manejo indígena e a piromania da monocultura

ANTROPOLOGIA

O uso do fogo: o manejo indígena e a piromania da monocultura

Mauro Leonel

A INTRODUÇÃO do uso indiscriminado da queimada, como técnica de preparo dos terrenos para a agricultura, é atribuída equivocadamente aos povos tribais de floresta. Tanto entre cientistas, quanto entre leigos, a crença de ser o uso descontrolado do fogo um legado indígena é tida como verdadeira. Monteiro Lobato foi mais longe, atribuindo a destruição de recursos naturais pelo fogo ao desprezado caipira, que teria recebido tal legado do seu ancestral índio. Estas interpretações não levam em conta a degradação humana, a perda da solidariedade e da mútua ajuda que decorrem, por sua vez, da perda do domínio do pequeno produtor familiar e do grupo tribal sobre a terra motivada pela concentração fundiária, que passou, com a agricultura colonial de exportação, ao controle dos grandes latifúndios, destruindo as culturas de subsistência e a troca de excedentes, em favor da monocultura.

Muito poucos foram os que se dedicaram a pôr em dúvida tal certeza preconceituosa, a do selvagem predador, embora mais que duvidosa. Basta lembrar que os indígenas estão há 12 mil anos sobre estas terras e não podem ser responsabilizados pela destruição de cerca de 93% das florestas da Mata Atlântica, nos passados 500 anos, e de 14% da Amazônia, nos últimos 30 anos. Como explicar que as áreas indígenas, que representam cerca de 20,66% do espaço amazônico (Ricardo, 1999), estejam, e até agora, entre as áreas mais densamente florestadas do continente? Estudos antropológicos e etnológicos do último século, em particular os de etnobotânica e etnoecologia nas últimas décadas, contestam a certeza de que os selvagens seriam incendiários contumazes, certeza que pertence mais ao domínio do preconceito, do etnocentrismo, do que à ciência ou ao conhecimento (Ribeiro, 1987).

Outra vertente explicativa, a emergente História Ambiental, vem contribuindo para demonstrar, ao contrário, como o abuso do fogo acompanha os neobrasílicos e suas monoculturas de exportação, o gado, o café, a mineração, a urbanização, como no trabalho de Dean (1998), que embora nada elogioso aos índios, os exime da responsabilidade do crime histórico de lesa floresta. Outra contribuição que vem mostrar a capacidade regenerativa das alfinetadas indígenas na floresta, é a que encontramos nos estudos ecológicos da Amazônia, como nos trabalhos clássicos de Sioli (1990).

Acredita-se que os índios teriam como tradição o uso abusivo do fogo, tanto na floresta quanto no cerrado. Que os aborígenes usavam o fogo (e muitos de seus sobreviventes ainda o usam, e até descontroladamente) é mais que seguro. É certo também que a partir da convivência das alianças e laços com os autodenominados civilizados muitos de seus hábitos afrouxam, independentemente do juízo de valor que se possa fazer deles. Hoje são numerosos os casos de índios envolvidos em garimpos e venda de madeira. Que usassem o fogo indiscriminadamente, é o que neste trabalho procuraremos contestar. Nosso argumento é que o uso descontrolado do fogo por todos os neobrasílicos, inclusive europeus, mestiços, caboclos, brancos e africanos resulta das plantations, que passaram a dominar a agricultura brasileira a partir da colonização, entre elas o algodão, a cana de açúcar, o café e, mais recentemente, a soja.

A certeza disseminada de que os índios, por preguiça ou atraso no domínio de tecnologias, abusem tradicionalmente do fogo, levou um caboclo do Amapá a perguntar a especialistas em controle de queimadas por sensoriamento remoto quais seriam as técnicas contemporâneas dos países desenvolvidos que, uma vez introduzidas, pudessem reverter o uso descontrolado da queimada. A resposta buscada por esse caboclo amazonida estava seguramente mais perto dele do que supunha: deveria voltar-se para a cultura indígena, para o legado de seus antepassados. E poderia inclusive ser informado dos esforços frustrados das autoridades coloniais em introduzir o arado, o adubo e a poda nas monoculturas de exportação (Dean, 1998; Pádua, 1998).

A argumentação aqui desenvolvida não deve (e não pode) ser confundida com mais uma tentativa inconseqüente de idealização ou generalização indesejável sobre a condição indígena. Não é nosso propósito o obscurantismo, nem o que diviniza as culturas ditas "naturais", o bon sauvage, nem o racismo que as desfigura. O objetivo único, da ciência e da interdisciplinaridade, deve ser o rigor do conhecimento, que fala por si mesmo sem carecer do auxílio de retórica ideológica. Os índios não são todos iguais, eles mudam e interagem e é arriscado generalizar sobre uma tão grande diversidade cultural. Susnik (1982: 19), por exemplo, grande estudiosa dos Guarani, distingue uma corrente neolítica de povoamento, seguida por outra, que denomina de paleolítica por contar com práticas agrícolas mais desenvolvidas, incluindo o adubo e outras técnicas de manejo. A antropologia cultural contemporânea recusa explicações evolucionistas e raciais. Contudo, é certo afirmar que, quanto maior o hábito do cultivo, maior o desenvolvimento de tecnologias e instrumentos agrícolas.

Os incêndios naturais

Há na Amazônia fogo de ação humana e também fogo de combustão espontânea que ocorre dos períodos de seca, incluindo sinais de fogo e carvão que datam de milhares de anos (Hecht, 1989: 33). Moran (1990: 170) cita estudos que comprovam causas naturais para queimadas na região do rio Negro.

Por seu lado, paleontólogos e arqueólogos, lembra Susnik, identificam traços de uma grande catástrofe ocorrida aproximadamente em 2000 a.C., quando a savana teria tomado espaço da floresta tropical, no sul amazônico. No entanto, ainda de acordo com Susnik (1982: 19-20), tal desastre ecológico deu-se mais provavelmente como resultado de longas secas que duraram de quatro a cinco anos, dando oportunidade a grandes incêndios espontâneos e provocando a transformação de amplas faixas florestadas em savanas. Por estes cataclismos da natureza os grupos indígenas foram obrigados a realizar movimentos migratórios os quais, por exemplo, levaram os Guarani a buscarem alternativas no Sul do Brasil e na Bacia do Prata nos anos 500 a.C., à procura de terras mais aptas à agricultura, combinadas com caça e pesca, do que os campos e cerrados.

Meggers (1987: 65) refere-se à ocorrência de uma grande seca em 11000 a.C. e a outra em 4 a 2000 a.C., tendo os primeiros habitantes sobrevivido em refúgios de vegetação com oferta mais abundante de alimentos, uma vez que as florestas se fragmentaram e ampliaram as porções ocupadas por campos e savanas o que explicaria, segundo a autora, inclusive a grande diversidade lingüística na região e a atomização dos agrupamentos. As plantas cultivadas tornaram-se permanentes na dieta aborígene por volta de 1000 a.C. e "à proporção em que as baixadas foram sendo povoadas, as migrações tendiam a se tornar menos aleatórias, a se confinarem cada vez mais dentro de limites territoriais reconhecidos", uma vez que "a dependência para com a agricultura requer e, ao mesmo tempo, permite um modo de vida mais sedentário; requer, porque as roças devem ser plantadas, cuidadas e colhidas; permite, porque o alimento se torna disponível numa maior concentração e abundância locais". Embora o sedentarismo constitua uma tendência básica da evolução cultural na Amazônia, seu ecossistema obrigou a uma solução conciliatória combinada com dispersão e transitoriedade (Meggers, 1987: 220). Pode-se assim ter duas versões do nomadismo: a de uma horda que anda depredando; a de um grupo de cultura itinerante ou rotativa que se adapta a solos frágeis e sabe, ou aprende, a manejá-los adequadamente.

O fogo e o manejo indígena

do cerrado e das capoeiras

Um dos estudos mais detalhados sobre o uso do fogo no cerrado e nas capoeiras brasileiras, é o do etnobotânico Darrel Posey (1987: 180), realizado com os Kayapó, que demonstra, ao contrário da crença generalizada, o cuidado extremo na manipulação indígena do fogo. A roça é preparada a partir da abertura de clareiras, formando corredores, seguindo-se a queimada, controlada, para evitar o excesso de calor e o dano às raízes, previamente plantadas. Caso o uso do fogo fosse descontrolado, os índios estariam destruindo seu próprio esforço de roçar e plantar, inclusive o plantio de longo prazo. O fogo é usado pelos índios no cerrado, e mais de uma vez. No início, ateiam fogo controlado para a abertura dos terrenos de plantio e posteriormente a prática é repetida em menor escala, como uma técnica integrada ao conjunto de sua orientação no manejo dos recursos, com objetivos de fertilização e abertura de espaços reservados aos cultivos selecionados.

Os Xavante também usavam o fogo como tática de guerra. Orlando Villas-Bôas relata como, em sua pioneira expedição Roncador-Xingú, os índios cercaram por várias vezes os 14 sertanistas, e o alívio que era encontrar abrigo em um curso d'água (OESP, 12 jul. 2000: D5).

O índio ainda ateia fogo ocasional no cerrado, inclusive para caçar. Tal prática escandaliza particularmente os não-indígenas. Mesmo neste caso, argumenta Posey (1987: 182), o fogo é usado, não para destruir áreas florestadas, nem para ampliar os campos e savanas, mas para manejar as "ilhas de recursos", os chamados apêtês, de vegetação mais densa e rica. O autor mostra que a maior parte dessas "ilhas" são obras imemoriais da mão humana, dos próprios índios. E, neste caso, por que depois, por distração ou inconsciência, as perderiam para o fogo irresponsável?

O uso do fogo nos cerrados é prática corrente tanto dos Kayapó quanto dos Nambiquara, e de outros povos que vivem nesse ecossistema. A explicação dos índios é que o fogo, ateado apenas em faixas cuidadosamente selecionadas, elimina as cobras, os escorpiões, além de as plantas espinhosas e as ervas daninhas superficiais, as que dificultam caminhadas e caçadas nas trilhas de cerrado.

O cuidado com o fogo aparece inclusive no fato de atribuir-se aos anciãos a tarefa de decidir a época de queimar, ou seja, queima-se a partir de um conhecimento acumulado, da sabedoria, e não ao bel-prazer, como se pretende interpretar. Os próprios chefes aguardam a recomendação dos mais velhos, que se orientam pela experiência definindo a época de queimar, geralmente por volta da lua de agosto, antes do surgimento dos brotos da fruta pequi bastante estimada pelos índios. Hecht (1989: 33) afirma que estes pajés, especialistas no fogo, ademais de definirem quando queimar, conhecem sobre a sua graduação, a qualidade das cinzas e as técnicas de controle do fogo pelos ventos que contam com uma complexa taxinomia, não apenas para uso agrícola, mas ritual e medicinal.

Quando a época da queima se aproxima e é definido um kapôt (uma franja de cerrado a ser queimada), os índios, em contrapartida, protegem os apite (ilhas de recursos), mais abundantes em oferta de plantas úteis e diversificadas. A parcela a ser queimada é cercada com grama seca e arbustos, com as plantas que, chegam a acreditar, "gostam de fogo", porque o retêm por mais tempo. Durante a queima, os índios permanecem atentos, armados com ramos de palmeiras e de banana brava, todos preparados, como bombeiros, para que o fogo domine apenas o que se planejou, para que a queimada não se descontrole sobre suas reservas, seus locais de descanso, de refúgio e de defesa, suas hortas e jardins, suas "ilhas", que com tanto cuidado cultivaram ao longo dos anos. O fogo descontrolado e ameaçador é, assim, abafado.

Susnik (1982, IV: 35) afirma que o fogo para a caça de pequenos animais nas zonas áridas do cerrado é usado pelos grupos pedestres e pouco numerosos, e apenas por uma a três semanas, em locais selecionados, escolhendo-se os momentos de vento favorável. Nesses casos, o fogo é ateado em duas linhas paralelas, cuja distância é regulada pelo número de caçadores, o que mostra se tratar de queimadas perfeitamente controladas e previamente calculadas.

O uso do fogo pelos índios

é integrado a outras técnicas de manejo

O fogo faz parte, nestas culturas, de um conjunto de técnicas de manejo pelas quais os índios relacionam o trato da vegetação com o cuidado a ser dedicado aos animais, ou seja, a atração da caça e a garantia de alimentos e de outras plantas úteis. Ribeiro (1990: 63) argumenta que as capoeiras são bancos de germoplasma, de mudas e de sementes; pomares; "fazendas de caça"; roça de mandioca e reserva para a floresta alta. No descanso da capoeira, acrescenta Berta, "o crescimento das plantas invasoras é permitido para propiciar novas queimadas, uma vez que as cinzas fertilizam a terra e o fogo afasta as pragas, quando ateado a pequenas glebas". Vale assinalar que o uso do fogo é cooperativo, como todos os trabalhos de derrubada, terminando em festa com chicha, uma bebida fermentada pela saliva das mulheres. Pode-se admitir que todo o trabalho coletivo, como o indígena, comporta maior regulação que o fogo piromaníaco do não-índio, na calada da noite, por imprudência, falta de mecanismos culturais reguladores, desconhecimento, raiva ou interesse.

Entre os Uacuenai da Venezuela (Morán, 1990: 171), o fogo é também usado a partir de observações da natureza, que permitem a escolha do momento oportuno: observam a vazante, as constelações, a direção do vento e sobretudo os sapos chamados molitu, que cantam em setembro / outubro para a derrubada, novamente em março / abril para a queima e cantam outra vez em junho / julho para a limpeza. Estes índios foram transferidos de sua região de origem e sentiram falta do coachar dos sapos que sinalizava o seu ciclo produtivo, em conjunto com outros indicadores.

O fogo é usado com precaução, com finalidades precisas, como, por exemplo, quando são queimadas palmeiras para a obtenção do sal. Mesmo nos rituais, o fogo é reservado para proteger um morto, garantir-lhe o seu lugar na terra sem males, por mérito, como no caso de um guerreiro de destaque.

O que os índios pretendem é que o fogo espante os maus espíritos, que alerte os céus, motivo pelo qual o fogo vem a ser a companhia constante das noites, aceso logo após o pôr-do-sol, e mantido em pequenas fogueiras, estimuladas com atenção e técnicas acuradas.

A tecnologia do uso do fogo para queimadas é paralela à grande habilidade e tecnologia utilizada pelos indígenas nos processos de fazer fogo, seja por fricção ou por percussão, de grande eficácia e capazes de serem improvisados (Cooper, 1987).

Hecht (1989:33) lembra que o fogo integra a cosmologia indígena, como no caso dos Bororo que se comunicam com os espíritos bope, mediadores do fogo, mas também das rupturas, como a sazonalidade, o florescimento, o nascimento de animais, o ciclo menstrual. As rupturas trazem o caos, mas como transformação e renovação, destróem ou trazem dor, mas permitem a germinação e o nascimento. A grande quantidade de mitos sobre a origem do fogo dá conta de seu valor e de seu poder para os índios (Susnik, 1982).

Para os Chiriguanos, da vertente dos Andes, são duas as versões da origem do fogo: na primeira, foi roubado por crianças que escaparam de uma terrível inundação; na segunda, o fogo pertencia aos abutres, até que um sapo os enganou dizendo estar com frio. Tendo sido tolerado, matreiramente roubou algumas brasas. No entanto, na mitologia indígena, se o fogo era do domínio de outros, mais poderosos, como a onça, passa a exigir controle e manutenção quando no domínio do ser humano, fortalecido, mas devendo saber usá-lo. Os índios do Xingu acreditavam que a origem do fogo estava no olho da raposa (Galvão, 1996).

O uso indiscriminado do fogo contrastaria com o enorme esforço e com as tecnologias de antecipação de necessidades demonstrados por várias culturas indígenas. Embora uma roça seja pensada para dois ou três anos, nem sempre alcança o auge de sua produção dentro do programado: a batata-doce, por exemplo, é plantada para ser colhida por mais de quatro anos; o mamão, por mais de cinco anos; as bananas, durante 15 a 25 anos; o urucu, por mais de 25 anos; o cupá, por 40 anos; a castanha do Pará apenas produz após 25 anos. Assim, a roça abandonada está na verdade em permanente produção. É construtora da floresta não apenas para os homens diretamente, mas atraindo caça, mediante alimentos plantados com tal propósito (Posey, 1987: 174).

O cuidado com que os índios escolhem o que plantar em suas roças diversificadas e policulturais contrastaria com o pretendido desleixo de deixá-las expostas a qualquer incêndio, menos ainda o intencional. Numa roça aparentemente abandonada à capoeira, mas na verdade produzindo sua oferta à colheita de longo prazo, Posey identificou 94%, dentre 368 espécies consideradas, como tendo uso planejado, em geral medicinal ou de atração de caça, a exemplo das árvores frutíferas.

A prática de uso indiscriminado do fogo opor-se-ia ao hábito, cuidadoso e corrente, de transplantar plantas úteis do cerrado para a floresta e vice-versa. Por que arriscariam seu patrimônio? Posey (1987: 177) descreve como essas culturas indígenas criam suas "ilhas" de reservas de recursos, onde há de tudo: alimentos, água, produtos de limpeza, óleos corporais e capilares, repelentes de insetos, colorantes, folhas para trançado, material para a construção de suas casas, plantas medicinais, cocos e palmitos, bambu para flechas, comida para caça, fios, agulhas, venenos.

Além das "ilhas" de recursos, os índios plantam ao longo das trilhas, transformando assim a caminhada, a caçada, a pesca em possibilidade de coleta, digamos, de um "lanche", usando as plantas semidomesticadas como alimento nas longas caminhadas de até três meses na estação seca (Ribeiro, 1990: 63). Quanto mais se aproximam de suas aldeias, maior é o número de "ilhas" plantadas em roças, só aparentemente abandonadas ao olhar desavisado. Ao contrário, porém, são transformadas em reservas de longo prazo e tratadas como culturas permanentes, servindo também de locais de refúgio, defesa, descanso, além de reservas de recursos, mais próximos assim de um jardim que de uma horta ou plantação geralmente ligada ao conceito de trabalho e não ao de lazer. A cultura indígena "faz a roça", mas não conhece a expressão "trabalho", nem a expressão "natureza", pois fazem parte dela (Mindlin, 1985). Por outro lado, o incêndio seria inconveniente às reservas de caça, pois seria contrário à sábia integração entre as culturas vegetal e animal, a que praticam a milênios, num sistema que tem como base a policultura, contradizendo a perdulária monocultura pseudo-civilizada.

Os Tupi e Avá-Guarani, as tribos de florestas

Os Avá-Guarani, como seus parentes Tupi (Susnik, 1982, IV: 70), dispunham de técnicas agrícolas bastante desenvolvidas, usando montículos de terras renováveis, elípticos, de 140 m de comprimento por 75 m de largura, onde realizavam sua roça cooperativa. Com o auxílio de machados de pedra aparavam árvores, derrubando as maiores as quais em sua queda, calculadamente pelo efeito dominó, arrastavam as menores previamente talhadas no ponto em que pretendiam que se quebrassem. As cinzas garantiam a fertilização primária. Daí seu sistema, que tinha (para alguns ainda têm) como base a maloca da família ampliada e a prática da poligamia, que articulava laços de parentesco por meio dos quais abria maiores possibilidades de mútua-ajuda. Por tal sistema, esses povos chegaram a contar com reservas de grãos, inclusive para as guerras periódicas, das quais tenderam a sair vitoriosos, até à chegada dos colonos.

Susnik (1982, IV: 72) descreve o "senhor da queimada", o espírito do fogo - tatatîna yára -, personagem mítico protetor do uso do fogo, simbolizando o otimismo porque desde o início dos trabalhos agrícolas, a queima é ali entendida como parte integrante do conjunto do ciclo produtivo, tanto que o antecessor do protetor da queimada é tamíi, o germinador, correlato a kawrahy, o espírito que garante o florescer das plantas, por sua vez correlato a tupã, o senhor das chuvas.

Os Guarani, ainda segundo Susnik, elegiam o local, geralmente bambuzais, por limitarem outras plantas; abriam nele dois hectares por família, que mudavam a cada três anos. Explica que a queimada se repetia contra as ervas daninhas, várias vezes; as fogueiras apenas poderiam ser feitas se com o máximo cuidado, pois tratava-se, ao contrário da interpretação corrente, de práticas destinadas a proteger a plantação e não de destruí-la, ou à natureza que a circundava. Orientados pelas Plêiades - o aglomerado de estrelas - os índios decidiam a ocasião do plantio, que era desaconselhado na lua nova, dando-se preferência à minguante. O instrumento-chave para o plantio era um pau-cavador de madeira pesada, de um metro e meio de comprimento, com uma ponta cônica e achatada (a coivara). Seguramente os Guarani também não pretenderiam queimar suas próprias roças por descaso, que eram limpas em mutirões: plantavam cinco variedades de milho, batatas, feijão, urucum, taquara, plantas medicinais (anti-espasmódicas; anti-ofídicas; para o parto), além de folhas para cobrir e guardar a pamonha, sementes para adorno, calabaças, tabaco, pimenta, tudo em pequenas reservas, ou jardins, contendo produtos adequados à cada estação, geralmente próximo dos rios, mas em terra firme. O omoplata dos animais maiores era usado como pá. Quando da caça ou da pesca, paravam em sua caminhada para olhar seus jardins, prevenindo-se contra novas pragas e abrindo poços de água potável nas imediações.

A roça de coivara, também chamada de roça itinerante ou rotativa, é descrita na literatura anglo-saxônica como slash and burn (corte e queima) ou shifting cultivation (agricultura itinerante). Consta do Handbook of South American Indians, o clássico da etnologia da primeira metade do século XX, como generalizada no subcontinente, entre os povos tribais de floresta. Por essa literatura, a escolha do local onde se abrirá uma clareira - pela derrubada - e a limpeza prévia do local - a coivara - são tão ou mais importantes que o uso do fogo, e com ele articuladas. Na maioria das culturas é uma atividade cooperativa que culmina sempre, como já foi dito, por uma festa estimulada pela bebida fermentada, a chicha ou macaloba. Freqüentemente o que se queima são apenas as árvores menores e galhos, ou seja, referem-se as descrições a queimas seletivas, como a limpeza de um jardim, ao final da estação seca. Em todas as descrições a derrubada das árvores antecede em meses à queimada, para que seque a vegetação caída (Lowie & Métraux, 1948).

Em ecossistemas frágeis

Em ecossistemas mais frágeis, como entorno aos rios de água preta - como é o caso do rio Negro - os índios adotam também práticas extremamente mais reguladas do que se acredita, como indicam os estudos, hoje clássicos, de Berta Ribeiro, a incansável companheira de vida e trabalho de Darcy. Berta (1995) relata que as épocas da derrubada e da queima são determinadas por conhecimentos acumulados e complexos, por exemplo, pelo surgimento das constelações: 19 delas, são seguidas de 19 chuvas com curtos períodos de estiagem, oportunamente aproveitados para a queima e derrubada. A descrição da antropóloga demonstra a sabedoria de verdadeiros ecólogos, pois o movimento das constelações e chuvas é correlacionado com a piracema, com a subida dos peixes, com a maturação das saúvas, das térmitas, dos gafanhotos, das larvas de borboletas, dos cogumelos, das rãs, todos alimentos valorizados na dieta indígena. As estiagens são correlacionadas com o brotar das frutas. Pode-se estimar quantos especialistas a nossa ciência compartimentalizada precisaria reunir para integrar tal conhecimento.

Os Desana, grupo estudado por Berta, escolhem os cinco a quinze dias sem chuvas, curtos "verões", para a queima das roças já abertas pela derrubada. O ano indígena no rio Negro inicia-se em outubro, quando surgem quatro constelações com chuvas simultâneas: é o sinal para a derrubada. Em novembro amadurecem as frutas abriu e ingá (1995: 108). Em média, a roça é aberta três meses antes da queima e realizada de preferência num período em que os indígenas sabem prever sete dias de sol forte para a limpeza e a fertilização se darem em uma só empreitada e, para que o fogo consuma toda a madeira, previamente destinada para esse fim, queima rapidamente seguida pelo plantio, após a adubagem pelas cinzas. Quando as fruteiras deixam de oferecer o ingá o plantio se inicia, no período em que surge a nutritiva pupunha, coincidindo com uma constelação que lembra um fêmur de tatu - aliás denominada tatu - seguida de chuvas como as demais formações celestiais. Outra fruta, a cucura, faz par com a pupunha amadurecendo em março e abril, duplo sinal para que seja realizada a nova queima de limpeza e manutenção da roça derrubada em dezembro.

Maio é a ocasião da derrubada da capoeira a ser queimada por volta de junho, desta vez, especialmente destinada ao milho. O mês de agosto é dedicado à roça nova, base da itinerância e da rotatividade. O sinal é dado pelo esgotamento das larvas, prevendo-se a queima para setembro. Como a queima só é eficaz quando coincide com dias seguidos de sol forte, quem não cortou "dançou", como na parábola da cigarra e da formiga de La Fontaine. A roça nova é mais trabalhosa e rende menos: deixa-se secar a madeira por três meses depois da derrubada, porque a vegetação está mais verde que a das roças em uso. Um mês depois de plantar é a hora de roçar, coivarar, e de nova queima em fogueiras, trabalho que compromete uma semana e desmente o mito da cultura preguiçosa (Ribeiro, 1995: 113).

Quanto menos se cuidar para que a roça seja bem queimada, mais trabalho de limpeza a roça dará, pois tudo deve ser feito enquanto a mandioca está baixa para garantir que brote adequadamente. Arranca-se o capim, quebram-se e amontoam-se os galhos, ateiam-se fogueiras ainda mais controladas e localizadas e aproveita-se para plantar o cará e a batata-doce que, em sua policultura, conviverão com a mandioca. Além da cinza, o carvão desfeito das árvores abatidas irá favorecer, pela fertilização, as novas plantas; em seguida, a roça é enriquecida ainda pela pimenta e pelas árvores frutíferas. Em média, cada família ampliada dispõe de três roças, pois devido aos solos fracos a região permite apenas um replante. Para voltar a usar o terreno é preciso aguardar-se pelo menos três anos, a formação de nova capoeira, período em que se defendem com a produção da roça velha porque a mandioca da roça nova terá de ser esperada por oito meses.

Quando a roça não é bem queimada, mais se repete o roçar e o coivarar, limpeza e conservação realizada cerca de quatro a cinco vezes em cada ciclo produtivo. A queima tem a vantagem adicional de espantar a cotia e o caititu, que podem atacar o broto, animais que para serem espantados precisam da presença contínua do agricultor. Uma roça pode render cinco plantações alternadas, com intervalos de um a três anos, não se podendo aproveitar mais as terras arenosas, que necessitam ser abandonadas. Quanto mais argilosas as terras, menos mandioca se consegue. Os parentes podem negociar roças entre si, uma vez que cooperam no trabalho (Ribeiro, 1995: 117). Em média, o replantio se dá no segundo ano, antecedido de nova fogueira com o capim arrancado e os galhos podres ou os não consumidos na primeira queima. A cinza resultante é novamente espalhada como adubo e misturada a montículos de terra, plantando-se as manivas já brotadas, em média de seis em cada monte.

Com essas técnicas de manejo, mesmo os solos frágeis do rio Negro, permitiriam 2,2 habitante por km2 (Morán, 1990: 170). Métodos semelhantes são utilizados nos roçados na várzea, sendo o seu sucesso determinado pela escolha do período do plantio, com a terra nem muito seca, nem muito molhada. Como a fertilidade do solo é renovada pela sedimentação, o potencial agrícola da várzea pode ser comparado ao das regiões temperadas (Meggers, 1987: 59).

Os ensinamentos do manejo indígena

Enfim, o que ensina a agricultura indígena é o que a arrogância colonial recusou-se a aprender com ela: destruir a vegetação endurece o terreno, diminui sua permeabilidade aumentando o escoamento de nutrientes e acentuando a erosão, impedindo a acumulação de húmus e perdendo a água, pois já não a retém. Quanto maior o intervalo entre a derrubada e o segundo plantio, maior é o dano e mais lenta a recuperação (Meggers, 1987: 44). O manejo indígena é também um exemplo da superioridade da policultura, uma vez que a diversidade protege espécies contra intempéries e pragas pela altura diferenciada das espécies ou pela dispersão que cria refúgios para espécies vegetais e animais, segundo Ribeiro (1990: 61). Cita como exemplo os Munduruku, que também praticam a roça itinerante. A cultura agrícola dominante quer obcecadamente transformar a cultura itinerante em cultura permanente, a seu modo monocultural, quando o saber indígena demonstrou que as "ilhas" de recursos apenas poderão resultar nas florestas tropicais pela policultura, que resulta em florestas antropogênicas convivendo com o ser humano, ao contrário da cultura compartimentalizada e uniforme da mentalidade colonial exportadora.

Os Munduruku usam os mesmos métodos já descritos para os povos tribais de floresta, removendo os arbustos e as árvores pequenas, em seguida derrubando as grandes, um trabalho de três dias: uma árvore derruba as outras que se encontram no arco de sua queda, alcançando-se a limpeza de uma faixa média de largura de 100 m, limpos para o plantio, finalizando-se o trabalho pelo abate das restantes. A madeira derrubada é deixada secar ao sol por dois meses. O dia do fogo é escolhido por sua coincidência com uma ligeira brisa, "apenas suficiente para mantê-lo sem que se espalhe pelo campo. Dessa forma, nem toda a madeira é queimada" (Meggers, 1987: 46).

A queima é feita antes das primeiras chuvas, seguida pelo plantio, cavando-se e enterrando-se as sementes acompanhando a mesma intercalação da natureza e não o ordenamento paisagístico das plantações monoculturais originárias do Mediterrâneo, que parece se relacionar à aparência de ordem, à misomania positivista de alguma pseudociência. Ao contrário, é a diversidade que impede a propagação das pragas que irão exigir uma segunda limpeza, também seguida de imediato replantio e de nova queima de madeira cortada que oferecerá novos nutrientes. Os Kamaiurá aproveitam as limpezas que preparam as requeimas a fim de selecionar os galhos que serão utilizados como lenha doméstica, ou seja, nada se perde. A própria decomposição dos troncos irá também oferecer nutrientes. Após dois ou três plantios a terra é devolvida à floresta, ela sim, o ser abrangente encarregado da recuperação e provedora de todos os seres vivos.

Eis porquê a agricultura itinerante corta-e-queima é considerada por Meggers (1987: 47) como superior à intensiva no ambiente da floresta tropical: um campo mantido limpo, como as desastradas pastagens uniformes da recente expansão da fronteira econômica nos últimos 30 anos, permite a entrada plena de raios solares que deterioram os nutrientes. É bem verdade que tal uso é permitido também pela baixa densidade demográfica dos pioneiros nas Américas e pela instabilidade da ocupação, uma vez que constituem culturas, embora não tão nomâdes quanto se pretendeu, mas contam com maior mobilidade que o sedentarismo da cultura européia e mediterrânea.

De acordo com Ribeiro (1990: 57), pode-se concluir, ao contrário do que normalmente se acredita, não terem sido os índios a se adaptaram à floresta, mas a floresta se adaptado a eles mediante o agroflorestamento, inclusive o realizado por povos extintos: "trata-se da modificação intencional do habitat para estimular o crescimento de comunidades vegetais e a integração destas com comunidades animais e com o homem". Apoiada pelos estudos de William Balée, Berta cita os "quintais de terra preta", de alta produtividade, deixados como legado por antigos habitantes, assim como os babaçuzais, provavelmente deixados pelos Guajá e hoje usados pelos Kaapor.

Lições de uso adequado do fogo e do ecossistema

Darcy Ribeiro, em sua apresentação ao livro de Meggers (1987: 16) resume uma outra versão do legado indígena, diversa da crença disseminada: "Assim passaram milênios até que surgiram os agentes de nossa civilização munidos, também ali, da capacidade de agredir e ferir mortalmente o equilíbrio milagrosamente logrado por aquelas formas complexas de vida". Meggers (1987: 26) também destaca a diferença entre dois tipos de uso dos recursos na Amazônia. "um laboratório apropriado para o estudo da evolução cultural". O primeiro foi orientado, a seu ver, pela seleção natural; "o segundo, introduzido no princípio do século XVI, foi um sistema de exploração controlado pelo exterior, que não apenas destruiu o equilíbrio anterior mas impediu o estabelecimento de um novo equilíbrio".

Hecht (1989: 34) considera ser o fogo essencial ao manejo para fins humanos nos trópicos e que o problema não está nele, mas no seu uso abusivo e extensivo que, inibindo a regeneração, compromete a biodiversidade. O manejo indígena, ao contrário, estimula a diversidade, permite a recaptura de nutrientes e estimula a regeneração. O fogo indígena é combinado por atividades que compensam o seu potencial destrutivo, para fazer frente ao processo de lixiviação, à exposição ao calor e à chuva, que tendem a empobrecer os nutrientes do solo, carente de fósforo, nitrogênio, potássio, cálcio e magnésio.

A tecnologia indígena permite a regeneração. O fogo é controlado, avança mais sobre cipós e pequenas plantas, previstas para serem queimadas. As mulheres plantam logo em seguida, primeiro as plantas de ciclo rápido, como milho, feijão, melancias - de colheita prevista de seis meses a dois anos. Após o abandono, vem a capoeira e com ela os animais e micro-organismos. Os animais trazem sementes, que a diversidade esconde de seus predadores permitindo que germinem. A segunda queima, a coivara, é uma seleção mais fina de pontos férteis. É então plantada a batata-doce, que aproveita particularmente o potássio das cinzas. A remoção dos resíduos do solo pelas mulheres evita a compactação, daí os novos empilhamentos e as novas fogueiras antes da introdução de mamão, abacaxi e urucu. Os índios chegam a preparar comida nos locais das roças para aproveitar as cinzas como nutriente. As plantas introduzidas no primeiro plantio são as mais tolerantes ao fogo, vindo depois as frutíferas, destinadas à caça. Os Kayapó plantam 16 espécies frutíferas que servem ao consumo humano e também aos animais: nove dentre onze animais de caça e sete aves principais gostam de frutas e, pelo menos 60 espécies delas foram identificadas pelos índios como atraentes à caça (Hecht, 1989: 40).

Hecht (1989: 39), que pesquisou com Posey entre os Kayapó, infere que o procedimento desse índios "pode facilmente ser compreendido nos termos da ciência do primeiro mundo". Para os índios, a roça conta tanto quanto a regeneração da floresta, pois a usam de forma habitual, diferentemente dos não-índios a quem a floresta incomoda e assombra. Os índios captaram que os nutrientes saem das próprias plantas e não do solo, por isso as estimulam, seqüenciando as plantas de vida curta após as de vida longa, permitindo que a própria vegetação se proteja contra sol e chuva. Assim, conclui, a vegetação que sai da regeneração não pode ser considerada uma simples recuperação natural, mas uma floresta antropogênica, manejada, ao contrário da crença que considera o índio como um destruidor.

Goodland & Irwin (1975: 52) chegaram à mesma conclusão: culturas rotativas e itinerantes constituem a única forma viável de agricultura na floresta tropical, que devem ser deixadas à recuperação por 100 anos, ou por 30 anos, de acordo com Sioli (1990). Para obter sucesso, Goodland & Irwin avaliam que as condições devam ser o longo descanso da clareira aberta, cercada de maior espaço de área florestada, ou seja, os claros abertos devem ser pequenos e deixados à recuperação. É óbvio que tal sistema condiciona a densidade demográfica: não se pode alimentar mais de 10 pessoas por km2 em solos tão débeis.

A floresta, ensina Meggers (1987: 42), obteve um extraordinário sucesso em contrabalançar o rigor dos trópicos ao concentrar em sua abóbada nutrientes que irão substituir aqueles não encontrados no solo. O desmatamento de grandes áreas impede a regeneração das florestas devido à lixiviação ocasionada pelas chuvas tropicais e a compactação dos solos que advêm da exposição ao sol. No entanto, no caso do fogo indígena, por ater-se a pequenas dimensões, permite fácil recomposição do solo pela absorção de suas próprias cinzas, uma vez que "o espetacular ritmo de crescimento e a vasta massa de vegetação tropical são adaptações para uma nova captação e o armazenamento de nutrientes". A reciclagem é permitida novamente pela queda de resíduos das copas fartas em nutrientes e pela folhagem que, por sua amplitude, capta nutrientes no ar: "aproximadamente 75% do potássio, 40% do magnésio e 25% do fósforo destinado às plantas em crescimento são devolvidos ao solo pela água da chuva que cai das folhas". Plantas com diferentes necessidades, bloqueando pragas, ajudam-se mutuamente e, pelas dimensões diversas enriquecem o solo pela sua decomposição e, pela rede que formam, são retentoras de nutrientes.

Quando da queimada total, explica Meggers (1987: 43), o solo fica exposto, a chuva endurece o terreno e diminui sua permeabilidade. Ao diminuir a absorção, aumenta o escoamento e acentua a erosão, ocasionando o desaparecimento do húmus com os minerais solúveis arrastados para o subsolo, para fora do alcance das plantas em germinação. Mesmo a adição de fertilizante - inôrganico ou orgânico - não aumentará o nitrogênio, pois será volatilizado sob o efeito dos raios solares: "quanto maior for o intervalo entre a derrubada, limpa e o início do segundo plantio, tanto maior será o dano causado e mais lenta a recuperação".

Meggers (1987: 45) não se surpreende ao notar que os observadores, vindos de clima temperado, vejam a roça itinerante do indígena como "um desperdício de mão-de-obra, ao mesmo tempo que destruidor de mata e as propostas formuladas para o aumento da produtividade agrícola tropical preconizam muitas vezes a substituição do sistema indígena pelo cultivo permanente". No entanto, argumenta Meggers (1987: 47), a roça itinerante pela derrubada e queima em pequena escala "imita as características da vegetação florestal". Por intercalar produtos de diferentes requisitos de nutrientes, diferentes espécies arbóreas diminuem a competição e protegem-se contra pragas, ao serem evitados os grandes roçados uniformes.

A segunda limpa, por seu lado, apressa a detereoração do solo, reduz a sombra e a proteção contra a erosão. O indígena, porém, ao retardar a colheita e replantar de imediato diminui o tempo de exposição do solo aos efeitos danosos da insolação, enquanto a queima da madeira derrubada devolve nutrientes, beneficiando os brotos. A decomposição dos troncos e tocos agregam nutrientes adicionais para o período de germinação. Mesmo assim, no segundo ano, a safra diminui e torna-se não compensadora no quarto, quando o índio ou caboclo devolve a clareira aberta pela derrubada e queimada à floresta, voltando décadas depois.

Meggers (1987: 48) mostra ainda que a agricultura temperada não deixa de usar o fogo no material recolhido da limpeza e que o arado e a monocultura em fileiras uniformes "acarreta efeitos desastrosos para a terra". Ao expor a terra ao sol deterioram-se os nutrientes e a retirada da vegetação impede a restauração do solo. "Até mesmo a enxada destrói uma boa constituição do solo, enquanto uma aradura profunda acelera a decomposição de matéria orgânica, pois aumenta o oxigênio. Por ocasião da germinação, muitos nutrientes já desapareceram ... Qualquer praga ou doença pode alastrar-se rapidamente ... Resumindo, tais métodos não somente destróem o solo de modo irreparável, como também aumentam o risco de uma colheita fracassada. Não há dúvida que o método da agricultura itinerante é o mais apropriado às condições tropicais", por ser o único que pode ser usado indefinidamente, mantendo a fertilidade do solo. Entretanto, "em contra-partida - e é esse o preço a ser pago -, mantém uma concentração demográfica relativamente baixa e a instabilidade da fixação dessa população" (Meggers, 1987: 49). A autora conclui que "o homem nem sempre foi um elemento destruidor da Amazônia. Pelo contrário, nos milênios após a sua chegada, permaneceu um membro em harmonia com a comunidade biótica" (Meggers, 1987: 219).

Os índios anteciparam-se ao que descreveria mais recentemente o ecólogo Sioli (1990: 60): "A floresta cresce, de fato, apenas sobre o solo, e não do solo, utilizando-se deste apenas para sua fixação mecânica e não como fonte de nutrientes; em vez disso, ela vive numa circulação fechada de nutrientes". A cultura itinerante combina-se com os estratagemas que a vegetação encontrou para se adaptar e ganhar exuberância nos trópicos, precavendo-se contra a perda de nutrientes, mediante um sistema radicular superficial, mas denso, três vezes mais que nos climas temperados, com grande decomposição de plantas, interagindo com insetos, excrementos, fungos e microorganismos; permite que a água que goteja da copa das árvores seja rica em nutrientes, compensando os solos.

Por isso, conclui Sioli (1990: 62), "desde tempos remotos a forma de uso da terra pela população aborígene, e a seguir também pela população de 'caboclos' neobrasílicos e imigrantes, foi e continua sendo a da chamada shifting cultivation, quer dizer, a do estabelecimento de pequenas áreas de derrubadas e queimadas, roças bem distantes entre si. Em conseqüência da rápida exaustão, essas roças, dois ou três anos após, são invariavelmente abandonadas, iniciando-se alhures, da mesma maneira, e por igual lapso de tempo, novas plantações. Nas áreas abandonadas cresce rapidamente uma mata secundária ('capoeira'), a qual 30 ou 40 anos mais tarde é reconhecível apenas por um botânico e por este distinguível da floresta primitiva, em vista de algumas espécies peculiares de árvores. As 'alfinetadas' na floresta primitiva, coesa, saram inteiramente no decorrer deste período."

Sioli (1990) adverte também que este sistema é viável apenas enquanto a densidade populacional for reduzida, com uso de áreas pequenas e afastadas umas das outras, de maneira alguma coalescendo, "e enquanto estas áreas não forem estabelecidas com o fito de exportar as colheitas". Roças pequenas, cercadas de floresta alta por curto período, "ficam expostas à reduzida erosão do solo; as perdas de nutrientes são limitadas; os nutrientes fluem novamente das vizinhanças para as roças abandonadas; o balanço hídrico do solo e da atmosfera não é alterado de maneira incisiva, nem a guarnição de espécies e de genes do ecossistema florestal é dizimada. Esta forma de uso da terra é adaptada a solos pobres em reservas de nutrientes."

Com as culturas de exportação, "que nada mais representam que uma segunda vaga de conquista" (Sioli, 1990: 64), ampliam-se e aproximam-se as áreas derrubadas, com conseqüências irreversíveis: empobrecimento dos solos em nutrientes (que não podem ser compensados com adubo mineral, não-retido pelo solo caulínico, que será lavado a não ser que se adube semanalmente); erosão dos solos em declive; aprofundamento da camada arenosa nas superfícies horizontais planas, instalando-se um outro tipo de vegetação semelhante à do cerrado, impedindo o retorno da floresta. Finalmente, Sioli prevê, com a cultura de exportação na Amazônia, períodos de seca mais longos; chuvas mais marcadamente sazonais; mais solo arrastado para os rios, modificando-os; eliminação da biomassa da floresta e da biodiversidade de qualquer forma, por oxidação e alterações climáticas, no balanço climático e no teor de CO2 da atmosfera terrestre.

Assim, a diferença entre o uso que os índios e as culturas de exportação fazem da queimada não é apenas identificável na escala da área desmatada, mas na sua integração e adequação com o meio: a indígena, permitindo a recuperação da floresta, promovendo a diversidade e o adensamento; a não-indígena, queimando e desmatando de forma irreversível.

As primeiras levas de seringueiros que entraram na Amazônia, por terem sido conduzidas pela mão do índio foram menos predatórias. Os colonos e pecuaristas do último surto de ocupação contaram com US$ 1 bilhão em incentivos para queimar, e os lotes de colonos que apenas seriam reconhecidos se fossem queimados, eram considerados pelo incra como produção, ao contrário do saber indígena. Os últimos 30 anos, com o avanço descontrolado da fronteira, é que vieram dar o sinal de alerta até o ponto atual em que o Brasil se encontra por causa do desmatamento por queimada: entre os dez países mais poluidores do mundo em emissões de gás carbônico, podendo, segundo cenários apresentados por estudos do inpe na última reunião da sbpc, comprometer a temperatura da região e do planeta. Além disso, corre o risco de savanização de amplas faixas da atual cobertura florestal, repetindo o passado de destruição da Mata Atlântica. Das 280 milhões de toneladas de carbono emitidas pelo Brasil, grande parte seriam devidas ao desmatamento por queimadas.

O modo adequado de uso dos recursos naturais pelos índios na floresta tropical deveria, assim - ao contrário da crença arrogante e preconceituo- sa -, orientar a correção dos antigos e dos novos assentamentos, adicionado às contemporâneas pesquisas agroflorestais e de mercado, privilegiando a agricultura familiar sustentável, compatibilizando o ecossistema com as necessidades sociais de milhões de brasileiros.

Referências bibliográficas

CARNEIRO, R.L. Slash and burn cultivation among the Kuikuru and its implications for cultural development in the Amazon basin. In: Patricia Lyon (org.). Native South Americans. Boston, Little Brown, 1974.

COOPER, J.M. Processos de fazer fogo. In: B. Ribeiro (org.). Suma Etnológica Brasileira, t. 1. Petrópolis, Vozes, 1987.

DEAN, W. A ferro e fogo. A história e a devastação da Mata Atlântica brasileira. São Paulo, Companhia das Letras, 1998.

DRUMMOND, J.A. O manejo agroflorestal científico como um uso alternativo de recursos naturais na Amazônia brasileira. Estudos Sociedade e Agricultura, n. 11. Rio de Janeiro, UFRJ, 1998.

GALVÃO, E. Diários de campo. Rio de Janeiro, UFRJ, 1996.

GOODLAND, R. & IRWIN, H. A selva amazônica: do inferno verde ao deserto vermelho. São Paulo, Edusp/Itatiaia, 1975.

HECHT, S. The fate of the forest. Developers, destroyers and defenders of the Amazon. Nova Iorque, Verso, 1989.

LOWIE, R.H. The tropical forests: an introduction. In: Handbook of South American Indians. Washington, Smithsonian Institution, 1948.

MEGGERS, B. Amazônia. A ilusão de um paraíso. São Paulo, Edusp/Itatiaia, 1987.

MÉTRAUX, A. The Tupinamba. In: Handbook of South American Indians. Washington, Smithsonian Institution, 1948.

MINDLIN, B. Nós Paiter. Os Suruí de Rondônia. Petrópolis, Vozes, 1985.

MORÁN, E. F. A ecologia humana das populações da Amazônia. Petrópolis, Vozes, 1990.

PÁDUA, J.A. Cultura esgotadora: agricultura e destruição ambiental nas últimas décadas do Brasil Império. Estudos Sociedade e Agricultura, n. 11. Rio de Janeiro, UFRJ, 1998.

POSEY, D. Manejo da floresta secundária, capoeiras, campos e cerrados. In: B. Ribeiro (org.). Suma Etnológica Brasileira, t. 1. Petrópolis, Vozes, 1987.

PRESCOTT-ALLEN, R. e Christine, P. A. Cuanto vale la vida silvestre? Las contribuiciones econômicas que la flora y fauna silvestres aportan a los países en vías de desarrollo. Cusco, Centro de Estudios Rurales Andinos Bartolomé de Las Casas, 1987.

RIBEIRO, B. Os índios das águas pretas. São Paulo, Edusp/Companhia das Letras,1995.

__________. Amazônia urgente. Belo Horizonte, Itatiaia, 1990.

__________. (org.) Suma Etnológica Brasileira, t. 1. Petrópolis, Vozes, 1978.

RICARDO, F. Terras indígenas na Amazônia Legal. São Paulo, ISA (http://www.socioambiental.org), 1999.

SIOLI, H. Amazônia: fundamentos da ecologia da maior região de florestas tropicais. Petrópolis, Vozes, 1990.

SUSNIK, B. El rol de los indigenas en la formacion y en la vivencia del Paraguay, t. 1. Assunção, IPEN, 1982.

__________. Los aborigenes del Paraguay. IV Cultura Material. Assunção, Museu Etnográfico Andres Barbero, 1982.

Mauro Leonel é professor-visitante do Instituto de Estudos Avançados da USP, professor do Procam (Programa de Pós-Graduação em Ciência Ambiental da USP) e do Departamento de Ciências Políticas da Unesp-Marília. É autor, entre outros, de A morte social dos rios (Perspectiva, 1998); Etnodicéia Uruéu-au-au (Edusp, 1995) e Roads, indians and the environment in the Amazon, from the Central Brazil to the Pacific (Copenhagen, IWGIA, 1992).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    11 Abr 2005
  • Data do Fascículo
    Dez 2000
Instituto de Estudos Avançados da Universidade de São Paulo Rua da Reitoria,109 - Cidade Universitária, 05508-900 São Paulo SP - Brasil, Tel: (55 11) 3091-1675/3091-1676, Fax: (55 11) 3091-4306 - São Paulo - SP - Brazil
E-mail: estudosavancados@usp.br