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O interesse pela dança foi despertado em mim por eles: depoimento de José Miguel Wisnik

CRIAÇÃO / DANÇA

"O interesse pela dança foi despertado em mim por eles"

Depoimento de José Miguel Wisnik

COMPOSITOR, músico e professor de Literatura da USP, José Miguel Wisnik compôs a música do espetáculo Nazareth, estreado pelo Grupo Corpo em 1993. Em seu depoimento à ESTUDOS AVANÇADOS, ele fala de sua experiência pessoal de trabalhar com a Companhia.

ESTUDOS AVANÇADOS - Como o senhor vê a trajetória do corpo de balé Grupo Corpo dentro das atividades da dança no Brasil?

José Miguel Wisnik - Eu não sou um conhecedor de dança, mas venho acompanhando bem de perto o Grupo Corpo, há oito anos, desde que os conheci e fui convidado para fazer a música do espetáculo Nazareth, que teve sua estreia em 1993 e foi produzido em 1992. Ou seja, mesmo não sendo um conhecedor da dança - até então, eu não tinha na verdade grande aproximação com a dança, eu via poucos espetáculos - a partir de então, o interesse pela dança foi despertado em mim por eles e eu passei a acompanhar de perto o seu trabalho e a acompanhar um pouco mais as coisas que acontecem em dança no Brasil. Do que eu posso dizer sobre eles nesse cenário, antes de mais nada, é registrar o quanto é surpreendente a qualidade e a consistência dos espetáculos deles, que nos fazem pensar sobre como isso chega a ser possível no Brasil. Realizar-se um trabalho como esse, que envolve um esforço continuado de um grupo muito grande de pessoas: um corpo de baile com 18 dançarinos, coreógrafo, equipe de cenógrafo, iluminador, direção artística e tudo o que cerca um trabalho cotidiano que torna possível a um grupo desses existir, consolidar-se, ter uma presença forte no Brasil, fora do Brasil. Todas essas conquistas do Grupo Corpo nos fazem pensar não só no resultado final que eles apresentam, mas pensar que processo possibilitou uma consolidação desse tipo. No Brasil, em geral, é muito difícil sustentar o trabalho de grupos continuados e dar a eles consistência e qualidade porque muitas vezes esbarra-se nas condições da produção que impedem que um trabalho desse tipo tenha a consistência que o Grupo Corpo tem, graças a uma continuidade. Entretanto, há muitos anos eles o vêm fazendo, e vejo que isso só foi possível porque é um grupo extraordinário de pessoas que expandiu um núcleo familiar. Acho que por trás disso tem algo do mistério da família mineira, porque na verdade foram irmãos que se interessaram pela dança e constituíram uma célula inicial de pessoas que passaram a estudar dança, trabalhar com a dança e fizeram um espetáculo que tinha irmãos e irmãs atuando como dançarinos. Um deles tornou-se coreógrafo, que é o Rodrigo Pederneiras. Outro se tornou diretor artístico do grupo. Tudo isso talvez pedisse algo do tipo o desejo de fazer um trabalho com dança, mas também essa agregação de tipo familiar que em Minas é possível, não só por ser a família Pederneiras, mas também porque ela acaba congregando outras pessoas que também passam a viver de uma forma de muita sociabilidade, de sensibilidade familiar. Tudo isso é muito mineiro. Lá em Minas têm um prédio que eles construíram. Quanto se chega lá, se é recebido não em uma sala inicialmente, nem na sala da diretoria. Há uma pequena cozinha onde se é recebido de maneira muito afetiva, calorosa, pessoal. Acho que quem acompanha o Grupo Corpo de perto, percebe o quanto eles conseguiram criar relações de muito rigor, de muita competência e, ao mesmo tempo, de muita proximidade afetiva e contagiante. Eles imprimem isso ao trabalho do grupo e acredito ser fundamental para conseguirem as coisas que eles vêm conseguindo.

O trabalho deles partiu de uma aproximação à experiência mineira. Os primeiros trabalhos estão ligados à música mineira, ao Milton Nascimento. O espetáculo Maria, Maria, temas ligados à vida de Minas, à cultura mineira, à música mineira, foram a motivação inicial do trabalho deles. Fizeram alguns espetáculos com os quais já se tornaram extremamente conhecidos, mas que estavam fortemente ligados ao testemunho dessa experiência local do mundo de Minas.

Traduzindo esse tipo de relação pessoal para uma poética e para uma trajetória estética do grupo, acho que inicialmente eles tiveram uma fase bem mineira. Depois, pelo que vejo, percebo, eles procuraram até se desvincular dessa raiz mineira e buscaram tomar para si as técnicas do balé clássico, o fundamento do balé clássico, para constituir um princípio de dança contemporânea, mas passaram a fazer coreografias baseadas no repertório da música clássica européia. Fizeram A missa do orfanato, os Noturnos, os Prelúdios de Chopin, as Variações Enigma de Helger. Eles estavam trabalhando e acho que esse foi o momento em que buscaram constituir um repertório forte de técnicas ligadas à linguagem clássica e contemporânea, mas de todo modo internacional da dança. Acho que através desses espetáculos, o Rodrigo Pederneiras formou-se como coreógrafo. E começa uma terceira fase, quando eles voltam a fazer espetáculos baseados em música contemporânea brasileira, encomendada por eles, que fazem com que tudo o que acumularam de experiência com essas peças clássicas seja usado para a criação de uma linguagem de dança contemporânea brasileira. Isso aconteceu especialmente quando fizeram um espetáculo chamado 21, com música do músico Marco Antônio Guimarães e tocada pelo grupo uakti, em 1992. Trabalharam com uma música feita com aqueles instrumentos artesanais, com a criação de timbres instrumentais originais e com aquela linguagem, com aquele pensamento musical muito singular do Marco Antônio Guimarães, que fez uma peça toda baseada em variações rítmicas sobre o número 21. Essas variações eram ao mesmo tempo, eu diria, uma construção neopitagórica, porque fazia a música se basear nesses números, nas relações entre o número 3 e o número 7, portanto, ímpares, ritmos regulares e quebrados, mas isso tudo profundamente associado a uma tradição da música popular mineira, que também aparecia muito fortemente nesse espetáculo. Então, acho que isso levou o Grupo Corpo de volta a Minas por um lado, mas num outro plano de construção porque a música não era mais como as canções do Milton Nascimento que foram feitas para eles, como Ponta de Areia e Maria, Maria, e depois viraram canções importantes e muito conhecidas no Brasil. Eles passaram a fazer essa dança sobre música brasileira contemporânea, mas fortemente instrumental, e isso deixou uma marca que foi um momento de virada ocorrido nesse espetáculo 21, que iniciou o processo pelo qual eles voltaram a ter um novo tipo de reconhecimento internacional muito grande, não só como um balé de interesse local ou com sabor regional, como o Maria, Maria, mas também como um balé com uma linguagem coreográfica forte e com uma competência muito grande para realizá-la. Foi nesse momento que eles estavam querendo fazer uma seqüência de trabalhos apontando para essa direção.

ESTUDOS AVANÇADOS - Aí então é que entra a sua participação, a participação da sua música no Grupo Corpo?

José Miguel Wisnik - Quando eles estavam se voltando para esse tipo de preocupação, convidaram-me para fazer música, uma composição original, mas que seria baseada na tradição da música popular brasileira. Eles tinham pensado em alguma coisa como Pixinguinha, Zequinha de Abreu, Ernesto Nazareth. Gostei dessa proposta e achei que nos deveríamos concentrar em Ernesto Nazareth, por ser um compositor de música instrumental escrita, em suma, que tem já partituras escritas e sobre as quais se poderia construir variações. Foi nessa ocasião que os conheci. Eu vi o espetáculo 21 e também o vídeo com as Variações Enigma de Helger. Vendo esses dois espetáculos, percebi que eles se encontravam em uma encruzilhada: o espetáculo Variações Enigma era um espetáculo contemporâneo, mas baseado na linguagem do balé clássico, no comentário do balé clássico, baseado, em suma, sobre música européia, enquanto o 21 era música contemporânea brasileira, apontando para a música e a dança popular brasileira. Então, me pareceu que eles estavam em uma passagem interessante entre o clássico e o popular e justamente estavam querendo criar alguma coisa que pusesse em contato e diálogo essas duas vertentes. Achei que era justamente esse o assunto da música de Nazareth. Isso porque Ernesto Nazareth era um compositor popular que fazia maxixe chamados tangos brasileiros, mas, ao mesmo tempo, entrou para o repertório clássico e se tornou um compositor que faz parte da memória coletiva, com músicas como Brejeiro, Odeon, Apanhei-te cavaquinho, que todo mundo conhece. Ao mesmo tempo, Nazareth é um compositor tocado por grandes pianistas: por Nelson Freire, por Arnaldo Cohen, por Roberto Zidon, por Artur Moreira Lima. É um compositor que entrou para o repertório do concerto e está, portanto, nesse curioso cruzamento, muito sintomático da música brasileira, que sempre se forma nesse contato e, às vezes, na exposição das fronteiras entre o popular e o erudito e, às vezes, na dissolução dessas fronteiras.

Lembrei-me então de um conto de Machado de Assis chamado o Homem Célebre, que fala justamente sobre um compositor de polcas muito famoso e muito bem-sucedido enquanto compositor popular e que, no entanto, quer compor música clássica. Esse conto me deu uma espécie de subtexto para trabalhar a música de Nazareth, que me parecia contemporânea ao personagem de Machado. Nós nos encontrávamos nessa mesma tensão entre o popular e o erudito e havia muitos motivos que dariam matéria para esse tipo de variação. Então, a música que eu compus para Nazareth, pode-se dizer que se constitui de uma série de variações sobre o erudito e o popular vistas a partir da música de Nazareth, com subtexto machadiano e colocada, portanto, para o grupo a questão da dança clássica e da dança popular brasileira.

Uma vez feito este trabalho, porque o Grupo Corpo trabalha sempre com a música já pronta, eles não têm coreografias prévias, anteriores à música: a coreografia nasce sempre, todo o espetáculo nasce da música. A música é para eles a grande motivação de tudo. Então, com base nisso, eles construíram o espetáculo em todos os aspectos da coreografia, do cenário, da iluminação, do figurino. Trabalharam sobre essas mesmas variações, não de uma maneira narrativa, porque não havia o menor interesse em colocar na cena da dança, por exemplo, o personagem machadiano, nada que supusesse que o balé estaria contando uma estória. Na verdade, podemos dizer que esse subtexto, esses motivos machadianos que estão colocados ali, geraram de fato elementos interessantes na dança, machadianos, como o duplo, o espelho, o trio em lá menor, o pas de deux, de trois... esses elementos foram incorporados. Pode-se dizer, são elementos que vêm tanto do homem célebre de Machado, quanto do romance Esaú e Jacó, de um conto como o Trio em lá menor, o Espelho, o Tema de Flora, cujas notas Machado de Assis dá no romance Esaú e Jacó, todos esses são elementos que me motivaram na construção da música e que, como eu aprendi a ver, foram sempre captados por eles, de maneira muito sutil e surpreendente. Porque aquilo depois é devolvido como resolução, resolução visual e dançante de uma maneira extraordinária. Então, esse espetáculo resultou desse diálogo todo de níveis, digamos, musicais, verbais e não-verbais, e acho que foi de uma grande felicidade fazer essa combinação, digamos, entre Minas Gerais, São Paulo, porque um paulista fazendo uma interpretação da música carioca, oferecida aos mineiros. Acho que de fato o espetáculo resulta dessa espécie de triangulação.

Depois disso, eles fizeram um espetáculo novamente com Marco Antônio Guimarães, que instrumentou uma peça de Philipe Glass feita para eles, com sete ou oito peças para balé. Posteriormente tem o espetáculo Bar, também com música de Marco Antônio Guimarães. Depois eu voltei a fazer, com o Tom Zé, a música do espetáculo Parabelo. Trabalhamos com células de músicas que estão ligadas ao mundo do sertão baiano, do sertão nordestino, que vieram por intermédio de Tom Zé, sobre as quais construímos também uma série de variações que resultaram num espetáculo que tem esse aspecto inteiramente voltado para uma dessas regiões do Brasil. Não só região geográfica, mas região do imaginário brasileiro, região da vida cultura, uma espécie de indagação sobre o sertão, que se traduziu em sonoridade: o modo como escolhemos a sonoridade, o uso dos instrumentos, as vozes, o pilão, o serrote usado como instrumento. Instrumentos de trabalho que ao mesmo tempo produzem não só ritmos, mas também timbres e melodia. Incluímos também vozes e letras, no caso voltando ao mesmo tempo ao caráter de música instrumental e de música cancional também. Isso voltou no Parabelo e, novamente, sempre que um trabalho é entregue ao Grupo Corpo, percebe-se o quanto a resposta depois é profundamente surpreendente pela capacidade de nos fazer ver a música de uma maneira tão clarificadora. Por exemplo... é difícil dar exemplos aqui porque não se tem imagem para representar isso. Há uma passagem no Parabelo, uma cantiga dessas de roda, nordestina, que diz:

Eu vi o cego lendo a corda da viola

Cego com cego no duelo do sertão

Eu vi o cego dando nó cego na cobra

Eu vi cego preso na gaiola da visão

Pássaro preto voando pra muito longe

O cabra cego enxergando a escuridão

Eu vi o pai, eu vi a mãe eu vi a filha

Vi a novilha que é filha da novilhá

Eu vi a réplica da réplica da Bíblia

Na invenção de um cantador de ciençá

Vi o Cordeiro de Deus num ovo vazio

Fiquei com frio, pedi pra me esquentá

Parecia-me extremamente difícil imaginar como essa música poderia ser dançada. No entanto, Rodrigo Pederneiras criou uma coreografia ao mesmo tempo intrincada e singela, baseada num jogo, como brincadeira de crianças de roda, mas com um movimento de braços entrelaçados, que criavam essa visão de entrelaçar do pai, da mãe, da filha, da novilha que é filha da novilhá, quase como se fosse assim, do código genético transformado numa brincadeira que se faz pelo jogo de braços e pés. Tudo isso o Rodrigo Pederneiras faz de maneira inteiramente intuitiva, que ele não tem necessidade alguma de verbalizar. Acho que justamente esse tipo de sensibilidade profunda para a captação desses núcleos ao mesmo tempo rítmicos, sintáticos e semânticos que estão contidos na música, ele é capaz de encontrar soluções e que, ao mesmo tempo, respondem àquilo que a música propõe e afirmam uma linguagem dele, totalmente original e muito singular. Não adiantaria que isso tudo existisse se não houvesse uma capacidade de pensar figurinos, luz, esse conjunto, coisa que acontece no caso de haver um diretor artístico como Paulo Pederneiras, capaz de pensar o processo todo, capaz de pensar a transformação dessa linguagem em realização mesma no palco. Então, estou me estendendo aqui na medida em que sou convidado a fazê-lo, não só fazendo observações e um pouco tentando comentar os processos de linguagem, as questões com as quais eles se deparam, mas ao mesmo tempo estou externando o meu entusiasmo pelo fato de ter sido possível uma conjugação tão feliz e tão rara de talento e sensibilidade que consegue fazer com que uma dança aconteça.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    12 Abr 2005
  • Data do Fascículo
    Dez 2000
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