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Reflexões sobre o papel do concurso vestibular para as universidades públicas

EDUCAÇÃO SUPERIOR

Reflexões sobre o papel do concurso vestibular para as universidades públicas

Alceu G. de Pinho

DENTRE TODAS as atividades da Universidade, aquela que é mais facilmente percebida pela sociedade é a graduação de profissionais: médicos, engenheiros, arquitetos, odontólogos, professores, advogados, fisioterapeutas, administradores, agrônomos, comunicadores, geógrafos, psicólogos etc. Ela os quer em número suficiente para bem atendê-la, com a melhor qualificação possível e com elevado senso de compromisso social.

As universidades estaduais paulistas são, em ampla escala, sustentadas por toda a população do estado mediante um imposto indireto, o Imposto sobre Circulação de Mercadoria e Serviços. Assim, esse benefício mais notório produzido pela universidade pública deve reverter igualmente sobre todos os cidadãos que, solidariamente, ajudam a mantê-la. A formação de pessoal em número compatível com seus recursos humanos e materiais, com a competência que se pode esperar da excelência de seu quadro docente e com sensibilidade e espírito público para compreender suas responsabilidades sociais, deve ser um compromisso explícito da Universidade para com a sociedade.

Para formar profissionais com tal perfil em prazo aproximadamente igual à duração regular dos cursos (sem o que os custos ficariam intoleravelmente pesados), a Universidade de São Paulo é obrigada a selecionar rigorosamente aqueles que terão o privilégio de nela realizar seus estudos de graduação. Disso decorre a necessidade de um Concurso de Ingresso (ou Concurso Vestibular) uma vez que o número de postulantes é muito superior ao número de vagas oferecidas (a relação entre o número de candidatos e o número de vagas tem variado muito pouco nos últimos 20 anos, mantendo-se essencialmente entre 13 e 16).

Desde que foi criada a Fundação Universitária para o Vestibular (Fuvest), há 22 anos, o Concurso de Ingresso é um exame de seleção unificado, realizado em duas fases. Na sua versão atual, implantada em 1995, a primeira fase é uma prova de conhecimentos gerais, comum a todos os candidatos, independentemente da carreira escolhida, cobrindo, de maneira panorâmica, os aspectos mais relevantes do conteúdo do ensino do atual segundo grau. Essa fase é, ao mesmo tempo, eliminatória e classificatória: eliminatória porque seleciona, em cada carreira, candidatos considerados habilitados para realizar a segunda fase, em número determinado pela demanda relativa (relação candidato por vaga) registrada na carreira; classificatória porque o resultado obtido por cada um dos candidatos selecionados será considerado para, juntamente com aquele obtido na segunda fase, determinar a nota final. A segunda fase é constituída por uma prova de Língua Portuguesa, também comum para todos os selecionados, mais até três outras provas escolhidas pela Unidade responsável pela carreira. O peso da segunda fase é, no máximo, igual ao da primeira.

Assim, o Concurso de Ingresso é unificado, pois as provas são as mesmas para todos, mas, ao mesmo tempo, a competição se faz no âmbito restrito de cada carreira, previamente escolhida pelo candidato. O grau de dificuldade da competição não depende obviamente tanto das provas mas, muito mais, do número e do nível de preparo dos candidatos que se apresentam em cada uma das numerosas carreiras oferecidas. Por tal motivo é possível dizer, apropriadamente, que precedendo o exame de seleção propriamente dito, existe uma "fase zero" que se materializa no momento da decisão de inscrever-se ou auto-excluir-se do vestibular e, no primeiro caso, que carreira escolher.

É uma situação de fato a existência de um grupo de carreiras que, na média, atraem candidatos muito melhor preparados que outras. Trata-se de simples reflexo da tradição e de expectativas, dos candidatos ou de suas famílias, a respeito das oportunidades oferecidas pelo mercado de trabalho. Conseqüentemente, nelas a competição é muito mais acirrada que na média: a relação candidato por vaga é freqüentemente muito superior à média de 13 a 16 encontrada no conjunto de carreiras e o sucesso requer dos candidatos uma sólida formação adquirida ao longo dos onze anos cobertos pelos primeiro e segundo graus.

Se quisermos analisar os perfis acadêmico e sócio-econômico dos ingressantes na Universidades de São Paulo não é aconselhável utilizar os dados de uma forma global, pois tal procedimento dilui as contrastantes diferenças que existem entre as numerosas carreiras oferecidas, mas examinar o que se passa em dois subconjuntos distintos, ambos estatisticamente significantes e bastante homogêneos, que designaremos, no que se segue, por A e B. O subconjunto A caracteriza-se por elevada relação candidato por vaga e, portanto, reduzida probabilidade de ingresso e desempenho médio dos ingressantes nitidamente superior à média geral da Universidade. Ele compreende as carreiras de Medicina, Direito e Engenharia — Ciências Exatas. O subconjunto B, com características opostas, engloba as cinco carreiras oferecidas pela FFLCH: Ciências Sociais, Filosofia, Geografia, História, e Letras, além de os bacharelados em Física. Cada um deles corresponde, em números redondos, a cerca de 25% das vagas oferecidas.

Os dados apresentados na tabela 1, e os que se seguem, referem-se ao concurso vestibular que definiu os ingressantes de 1997. No entanto, para universos tão amplos como os considerados, os números não variam de forma significativa de ano para ano. Quando muito, se examinados sobre longos períodos (no mínimo cinco anos), podem exibir alguma tendência significativa. O desempenho médio dos ingressantes é o resultado do exame da primeira fase que é comum para todos os candidatos.

O perfil sócio-econômico dos ingressantes é determinado a partir das respostas, dadas voluntariamente pelos candidatos, a numerosas perguntas formuladas em questionário próprio entregue por ocasião da inscrição no concurso. Tipicamente 98% dos inscritos entregam o questionário devidamente preenchido. Escolhemos aqui os quesitos relativos à natureza da escola onde cursaram o 2º grau e aqueles que dizem respeito aos chamados "itens de conforto" existentes em suas residências.

Na tabela 2 resumem-se as respostas relativas ao quesito "natureza da escola onde foi cursado o 2º grau". A alternativa "outros" refere-se ao 2º grau feito parcialmente em escola pública e parcialmente em escola privada e certas situações muito pouco usuais. Já que, como mencionamos, a probabilidade de ingresso depende da relação candidato por vaga, a qual é muito diferente para as carreiras dos grupos A e B, elas foram normalizadas adotando-se como 1 a probabilidade de ingresso dos candidatos que cursaram em escola pública estadual ou municipal a totalidade do 2º grau; trata-se portanto de probabilidades relativas. Os grupos A e B foram abertos pelas carreiras que os constituem para por em evidência a homogeneidade de cada um deles. Foi dado destaque aos alunos que realizaram seus estudos do 2º grau em Escola Pública Federal devido à excepcionalidade dos resultados alcançados.

O exame dos dados da tabela 3 leva, naturalmente, a algumas constatações importantes.

Nas carreiras onde o nível de competição é mais elevado e portanto menor a probabilidade de ingresso, o preparo propiciado pelas escolas públicas estaduais e municipais de 2º grau é insuficiente para garantir sucesso à maior parte daqueles que nelas realizaram integralmente seus estudos. A participação percentual de tais estudantes entre os ingressantes é tipicamente quatro vezes menor que sua participação entre os inscritos.

Já nas carreiras do subconjunto B eles formaram um grupo relativamente mais importante entre os inscritos (da ordem de 50%) mostrando que tendem a preferir disputar uma vaga nas carreiras menos procuradas pelos egressos das escolas particulares. Mesmo assim, entre os ingressantes, a participação percentual ainda é reduzida embora para algo da ordem de 33%. Percebe-se aqui manifestar-se claramente o que foi chamado de "fase zero do vestibular", ou seja, a escolha da carreira feita de modo a aumentar a probabilidade de sucesso, mesmo que a vaga assim obtida não tenha um grande valor de mercado.

Alunos que realizaram o segundo grau em escolas públicas federais demonstraram cabalmente um preparo muitíssimo superior ao preparo médio dos candidatos oriundos das escolas públicas estaduais e municipais e ainda claramente superior (um fator 2!) ao preparo médio revelado por aqueles procedentes de escolas particulares. Nas carreiras do subconjunto A a participação percentual desses estudantes entre os ingressantes triplica em relação àquela que lhes cabe no grupo dos inscritos. Nos cursos de Engenharia da Escola Politécnica, eles chegam a ocupar 10% das vagas.

Nas carreiras do subconjunto B os números são menos contrastantes mostrando que são os estudantes das escolas federais que se consideram mais fracos e, portanto, se sentem inseguros de enfrentar a disputa por uma vaga nas carreiras mais valorizadas pelo mercado aqueles que se dirigem para aquelas do subconjunto B.

Os candidatos que se enquadram na categoria "outros" obtêm, como deveria ser esperado, resultados intermediários entre os conseguidos pelos egressos de escolas públicas estaduais e de escolas privadas, em geral mais próximas dos primeiros.

Os dados da tabela 3 informam para os "itens de conforto" pesquisados a porcentagem dos ingressantes que possuem 0,1,2, ... desses itens, e seu número médio em cada residência. Há uma evidente diferença entre os resultados correspondentes aos subconjuntos A e B. Ela se manifesta no valor médio, com algumas diferenças significativas (superiores a 30%) especialmente em itens como banheiros, empregados mensalistas, carros, microcomputadores e máquinas de lavar louças, bem como na sua distribuição.

A distribuição é, no caso do subconjunto B, significativamente mais larga que no subconjunto A, indicando uma população muito mais heterogênea no primeiro caso. Por menos discriminativos que sejam os itens investigados, se utilizarmos qualquer um dos sistemas de pontuação empregados pelas associações especializadas em pesquisas de mercado, concluímos que se trata de uma típica amostragem de classe média com uma importante presença de estudantes provenientes de famílias de, pelo menos, classe média alta, especialmente entre os ingressantes do grupo A. Qualquer outro critério utilizado como, por exemplo, o número de anos de escolaridade dos pais levaria a conclusões concordantes com as fornecidas pelas tabelas 2 e 3, uma vez que, como é óbvio, as variáveis consideradas estão longe de serem independentes.

Outros indicadores sócio-econômicos investigados pela aplicação do questionário mostram outras características das populações A e B, também bastante diferenciadas no que concerne, por exemplo, à faixa etária dos ingressantes, à situação familiar e à inserção no mercado de trabalho. Algumas delas são resumidas na tabela 4.

Uma informação complementar, cuja fonte não é o questionário da Fuvest, mas o Anuário Estatístico da Universidade de São Paulo (1997), refere-se à porcentagem dos formados por ingressantes. Considerando-se os últimos três anos para alisar possíveis flutuações, verifica-se que no conjunto das carreiras do grupo A formam-se 81% dos ingressantes, enquanto no grupo B apenas 29%. A média em todas as carreiras da Universidade é 60%.

Encerramos essa coleção de dados informando que no grupo A apenas 16,1% dos ingressantes declararam estar se inscrevendo exclusivamente no vestibular Fuvest e 46,5% pretendiam inscrever-se também em vestibulares para universidades privadas. No grupo B essas porcentagens foram 50,1% e 29,1%, respectivamente, contraste muito expressivo.

Algumas reflexões encerram a exposição dos dados numéricos retro apresentada. O concurso vestibular é um espelho fiel das distorções e das iniqüidades que caracterizam a sociedade brasileira. Ele é um instrumento neutro e, sendo seu objetivo precípuo selecionar os candidatos mais bem preparados para preencher as poucas vagas oferecidas, não poderia ser outro o resultado. Tal resultado só não é mais desastroso porque a marcada hierarquização das numerosas carreiras oferecidas, determinada pelas expectativas de emprego e remuneração após a conclusão da graduação, abre algum espaço para candidatos menos bem preparados e conformados com um horizonte mais modesto. Não há qualquer surpresa no que se constata e, face aos compromissos da Universidade com a sociedade quanto ao nível dos graduados que ela deve fornecer num prazo economicamente suportável, seria um descalabro tentar usar o concurso vestibular como instrumento de justiça social. Perderiam todos, sem que se pudesse minimamente corrigir as deformações que marcam os 11 primeiros anos da educação das crianças e dos adolescentes do país.

A rede pública de ensino superior do Brasil oferece, em média e gratuitamente, muito melhor ensino do que a rede privada. No entanto, em 1994, nela só havia uma vaga para cada dez concluintes do 2º grau. A rede privada oferecia 2,3 vagas, significando que no ensino superior havia 3,3 vagas para 10 concluintes do segundo grau ou seja uma para cada grupo de três. Nessa mesma ocasião, informava-se (Relatório Nacional Brasileiro apresentado à Cúpula Mundial para o Desenvolvimento Social, Copenhague, 1995) que somente 30% da população na faixa de 15-19 anos tinha acesso ao ensino de 2º grau.

Então, por que se espantar com o fato de serem os estudantes das universidades públicas do país predominantemente oriundos das famílias mais privilegiadas economicamente, que foram capazes de lhes proporcionar estudos de 1º e 2º graus nas melhores escolas, em geral escolas privadas? Nas três universidades estaduais do estado de São Paulo, nas duas federais e no ITA o total de vagas de pouco ultrapassava 14 mil em 1997, cerca de metade das quais na USP. Quem se poderia esperar que ocupasse essas vagas se o critério de acesso é a qualidade da formação anterior? O que é cruel é serem as universidades estaduais — como todos sabem — essencialmente suportadas por um imposto indireto, pago indistintamente por ricos e pobres. É um perverso mecanismo em que o estudo dos mais ricos é parcialmente subsidiado pelos pobres.

Porém, nada disso quer dizer que o mecanismo de acesso à universidade pública seja elitizante. A sua população não poderia ser, seriamente, diferente do que é hoje. Quando reitor da Universidade de Brasília, o professor Cristovam Buarque escreveu em seu livro A aventura da Universidade (Paz e Terra/Unesp, 1993) mais ou menos o seguinte: o que torna a universidade elitista não é o fato de que os pobres não terão filhos médicos, mas o fato de que os pobres não terão médicos para seus filhos. Até que nossa sociedade se transforme e progressivamente universalizemos a educação básica, da qual o ensino médio é a etapa final, que, pelo menos, possamos incutir em nossos privilegiadíssimos estudantes um legítimo e profundo senso de responsabilidade social, para que retribuam à sociedade o que dela receberam, enquanto auferem todas as vantagens e benesses pessoais que uma educação superior proporciona.

Apêndice

Quando da submissão desta contribuição para publicação, foi sugerido ao autor ser interessante apresentar ao lado dos resultados de 1997, aqueles referentes ao último vestibular da Fuvest (ingressantes no ano 2000). Como já mencionado, não devem ser esperadas alterações significativas de um ano para os vizinhos, porém, no concurso do ano 2000, teve lugar uma importante modificação no cálculo da média final que passou a levar em conta, ao lado das provas tradicionais da Fuvest, um resultado parcial do Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM). A inclusão de pontos obtidos no ENEM, proposta na Universidade de São Paulo e aprovada no seu Conselho Central de Graduação, foi cercada por uma certa controvérsia, pois argumentava-se, como justificativa, que a medida visava a beneficiar candidatos oriundos da rede pública de ensino médio. O autor desta nota teve a oportunidade de manifestar-se perante o Conselho Universitário, contestando tal argumento por várias razões. Primeiro, porque tinha fundamentados motivos para acreditar que os alegados benefícios seriam inexistentes. Segundo, porque, embora a criação do ENEM tenha sido uma excelente e oportuna medida, confundi-lo desnecessariamente com processos seletivos para acesso ao terceiro grau, especialmente nas universidades de maior prestígio, era inadequado e inoportuno uma vez que a concepção de um concurso vestibular como o da Fuvest e a de um exame da abrangência do ENEM devem partir de pressupostos diferentes. Ao reforçar o caráter propedêutico do segundo grau, uma séria e tradicional deformação existente neste nível de ensino, confundir o ENEM com concurso vestibular seria um óbvio retrocesso. Além disso, havia riscos bastante delicados com relação à segurança que a Fuvest sempre garantiu a seus candidatos. Enfim, na tabela 5 estão sintetizados os resultados do Fuvest 2000 para os mesmos subconjuntos A e B definidos anteriormente.

Cabem aqui os seguintes comentários.

O número de candidatos inscritos aumentou substancialmente em 2000. Em relação ao número de inscritos em 1997, o crescimento foi superior a 18%. Ora, do total de inscritos, a porcentagem no subconjunto A caiu de 36,9 (ver tabela 2) para 29,7, ao passo que no B subiu de 8 para 10. Considerando-se que no subconjunto B há, majoritariamente, candidatos que realizaram seus estudos de 2º grau em escolas da rede pública, ao contrário do que ocorre no outro, é fácil concluir que a novidade (isto é, a inclusão de nota do ENEM no cálculo da nota final) foi um fator de atração de candidatos novos oriundos de escolas públicas e que procuraram, na sua maioria, carreiras com o perfil daquelas representadas no subconjunto B. Assim, a mensagem, mesmo que subliminar, foi captada por essa faixa de candidatos. Eles seriam "ajudados" pela novidade.

No subconjunto A os candidatos egressos da rede pública caíram de 27,1% para 24,7%, enquanto que no B subiram de 48,3% para 49,2%, em concordância com os resultados apresentados na tabela 5. Enquanto isso, sua participação entre os bem sucedidos caiu de 7,3% para 6,7% em A mas também caiu em B, de 32,7% para 31,9%. Em resumo, a mensagem não era bem aquilo que alguns imaginavam. A promessa era um engodo, como o serão todas as tentativas de usar os mecanismos de seleção para as boas universidades como instrumento para "corrigir" o desmantelamento sistemático a que foi submetido o ensino público fundamental e médio neste país, nas últimas décadas. Não se corrigirá nada e apenas se conseguirá, também, desmantelar o ensino superior público que, bem ou mal, vem resistindo e apresentando mesmo algumas "ilhas de excelência" que servem bravamente de paradigma para todo o sistema universitário brasileiro.

Alceu G. de Pinho, ex-diretor executivo da Fundação Universitária para o Vestibular (Fuvest), é professor-aposentado do Instituto de Física da USP.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    16 Mar 2005
  • Data do Fascículo
    Ago 2001
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