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Os presidenciáveis e o relacionamento internacional de nossa economia

ELEIÇÕES 2002 - ENTREVISTAS

Os presidenciáveis e o relacionamento internacional de nossa economia

Entrevista

PRETENDENDO levar ao conhecimento de seus leitores a posição dos candidatos à presidência da República sobre questões que dizem respeito ao relacionamento internacional da economia brasileira, ESTUDOS AVANÇADOS entrevistou no mês de junho Luiz Inácio Lula da Silva, José Serra, Ciro Gomes e Anthony Garotinho. O nome de cada um deles foi oficializado em convenção partidária, obrigatória, conforme determinação do Tribunal Superior Eleitoral (TSE). Aos quatro foram feitas as mesmas perguntas abaixo relacionadas:

  1. No presente momento, um crucial desafio da economia brasileira reside em constrangimentos internacionais, decorrentes do elevado déficit em nossa balança de pagamentos em conta corrente. Como o senhor encara essa questão?

  2. Que diretrizes devem ser adotadas para diminuir nossa dependência de capitais externos? Qual a sua posição sobre a regulação dos movimentos internacionais de capital na economia brasileira?

  3. Que princípios devem presidir nossa política para administrar a dívida externa do país? No seu entender ela precisa ser renegociada?

  4. O atual acordo do Brasil com o FMI vence em 2002. O senhor acredita que ele deve ser renovado?

  5. Qual deve ser a posição do Brasil diante do projeto da ALCA?

O primeiro turno das eleições ocorre no dia 6 de outubro e o segundo turno no dia 27 de outubro. O TSE informou que mais de 115 milhões de brasileiros votarão nas eleições em que serão escolhidos o presidente e o vice-presidente da República, os governadores e os vice-governadores, os senadores cujos mandatos terminam agora, e os deputados federais e estaduais.

ESTUDOS AVANÇADOS— NO PRESENTE momento, um crucial desafio da economia brasileira reside em constrangimentos internacionais, decorrentes do elevado déficit em nossa balança de pagamentos em conta corrente. Como o senhor encara essa questão?

Luiz Inácio Lula da Silva— O Brasil hoje paga um preço elevado pela vulnerabilidade externa, construída ao longo destes oito anos de governo FHC. Qualquer turbulência internacional, ou mesmo problemas internos provocam efeitos colaterais negativos na economia brasileira. Com um déficit em conta corrente de quase 4% do PIB, estamos permanentemente na dependência da boa vontade dos credores externos para fechar as nossas contas. E esses credores exigem taxas de juros exorbitantes para cobrir o chamado risco-país.

No ano passado, foram necessários US$ 23 bilhões de investimentos externos para cobrir a conta corrente e US$ 27 bilhões para a rolagem dos vencimentos da dívida externa. Quando houve abundância de capitais no mercado internacional e havia privatizações a fazer, como na década passada, o problema ficava oculto. Mas a partir de 2001, os investimentos em países emergentes diminuíram, explicitando as coisas. Essa situação de carência de recursos externos expõe o país a constantes interrupções do ritmo de crescimento, ou a um processo que os economistas chamam de stop and go, conforme pudemos observar ao longo de todos esses anos. Mal a economia começa ganhar impulso para crescer, o crescimento é interrompido por algum problema na esfera internacional. De 1998 para cá, somente em 2000 houve condições para um crescimento razoável. Esta tem sido uma das principais razões para um crescimento medíocre do PIB, de 2,4% ao ano em média, na última década e ao longo dos dois mandatos do presidente Fernando Henrique.

Convém esclarecer que esse desequilíbrio das contas externas não é um problema estrutural da economia brasileira. Até 1994, o Brasil praticamente não tinha déficit em conta corrente, com um folgado superávit comercial de mais de US$ 10 bilhões. Foi a partir de uma abertura desorganizada e da sobrevalorização cambial que esses problemas surgiram. Daí para frente, o país entrou no vermelho. E foram vários anos de déficit em conta corrente que acumularam um passivo externo de mais de US$ 200 bilhões. Foi um passivo que financiou apenas gastos de consumo e virou fumaça. Poderia ter financiado investimentos que se transformariam em exportações. Foi o chamado populismo cambial.

Num período em que o comércio internacional se ampliava a taxas de até mais de 10% ao ano, o Brasil apenas aumentava as importações, em detrimento da produção interna. Por causa disso perdemos terreno no comércio internacional, e hoje a décima maior economia do mundo representa apenas 0,9% de todo o comércio mundial. Enquanto o México, que tem um PIB parecido com o nosso, exporta US$ 180 bilhões por ano, o Brasil exporta menos de US$ 60 bilhões. Não se trata de imitar esse ou aquele país, mas de recuperar o espaço perdido numa economia cada vez mais globalizada.

O desequilíbrio das contas externas é ruim porque resulta num risco-país elevado e mantém a taxa de juros num patamar incompatível com o crescimento econômico. Estamos metidos num círculo vicioso no qual a vulnerabilidade elevada mantém os juros altos, o que por sua vez freia o crescimento da economia, enquanto eleva o crescimento da dívida pública. É por isso que a importante relação dívida pública/PIB está em permanente crescimento.

Para desatar esse nó devemos criar as condições para baixar a vulnerabilidade e baixar o juro brasileiro para um nível que permita um crescimento maior. Aliás, o risco-país de mais de 1.700 pontos, que chegamos a ter em junho, está completamente divorciado da realidade econômica brasileira. Não é possível que alguém compare o risco brasileiro à situação da Nigéria ou do Equador, países que possuem um quadro econômico completamente diferente do nosso. Entretanto, o fato de possuirmos uma das maiores dívidas externas do mundo e uma alta relação dívida externa/exportações nos deixa sujeitos a esses caprichos do mercado financeiro, que num passe de mágica projeta o risco-país de 700 pontos para 1.700.

José Serra— O tripé de política econômica desde 1999, constituído pelo regime de câmbio flutuante, metas inflacionárias e austeridade fiscal, representa grande avanço. Neste sentido, o nervosismo conjuntural dos mercados está descolado dos fundamentos da economia que asseguram a solvência do país.

No entanto, é necessário avançar mais e enfrentar o problema da vulnerabilidade externa da economia brasileira, refletido no ainda elevado déficit em transações correntes, que está em torno de 4% do Produto Interno Bruto.

A aceleração do crescimento econômico, tão vital para enfrentarmos nossos graves problemas sociais, esbarra na dificuldade em financiar um déficit externo elevado, especialmente em uma conjuntura internacional marcada pela crescente volatilidade.

A reversão desse processo depende, mais do que nunca, de ganhos sistemáticos de produtividade, que, por sua vez, viabilizam a expansão das exportações e a substituição de importações. Todas as políticas públicas devem estar voltadas para uma política moderna e ativa de comércio exterior.

Cumpre promover ações de política industrial de corte horizontal e setorial que privilegiem ganhos de produtividade e permitam construir vantagens comparativas em sentido dinâmico. Além disso, é essencial investir na modernização das instituições de política industrial, de forma a minimizar as falhas do Estado e assegurar máxima transparência, boa governança e eficiência na alocação de recursos públicos.

Assim como a estabilização requereu uma mudança cultural, a conquista de mercados externos também exigirá uma nova mentalidade, uma mobilização nacional nas três esferas de governo e no setor privado a ponto de tornar-se verdadeira obsessão.

Nesse contexto, será indispensável uma postura pró-ativa do país junto à comunidade econômica internacional, especialmente nos principais fóruns multilaterais como a Organização Mundial do Comércio. No ano passado, o Brasil mostrou sua capacidade de articulação internacional na 4ª Reunião Ministerial da OMC.

Não é possível silenciar diante dos freqüentes abusos protecionistas que inibem a expansão das exportações de países em desenvolvimento, desviam e distorcem os fluxos de comércio e investimento e, o mais grave, aumentam ainda mais as disparidades de renda per capita entre os países do planeta.

Ciro Gomes— As duas grandes emergências do Brasil são o gigantesco déficit em transações correntes e a explosiva dívida interna. Para superar aquela, todo o esforço do meu governo será no sentido de reduzir a dependência de capitais externos, sobretudo os de curto prazo, fomentando as exportações e substituindo seletivamente as importações. As agências de financiamento oficiais, como o BNDES, serão orientadas a criar linhas de crédito especiais, com juros competitivos, para estimular a empresa exportadora e para dar à indústria nacional a oportunidade de produzir uma lista também seletiva de bens que hoje importamos. Ao mesmo tempo, o Tesouro Nacional investirá na implementação de uma política de ciência e tecnologia cujo objetivo será o de desenvolver padrões tecnológicos que coloquem o setor produtivo brasileiro no mesmo nível do concorrente internacional.

Nossa proposta de governo, que está no site www.ciro23.com.br, também prevê a adoção de tarifas declinantes ao longo do tempo, a fim de permitir a mais rápida substituição de importações. Com isso, evitaremos a acomodação do setor produtivo, que assim, pela redução gradual e finita das tarifas, estará permanentemente desafiado a cumprir suas metas.

Na mesma direção, a diplomacia brasileira, que tem tido um comportamento passivo diante dos desafios da Nova Economia, estará, no meu governo, engajada em um esforço ativo de consolidação e expansão dos nossos atuais mercados. Porém, ela será desafiada, prioritariamente, a conquistar novos mercados para os produtos brasileiros. Nossa política de comércio exterior será agressiva e, para a sua consecução, nossas diplomatas terão de ser verdadeiros agentes comerciais.

Ainda com o objetivo de reduzir drasticamente nossa dependência do capital externo, meu governo trabalhará como um ourives na superação de cada um dos itens da conta corrente da nossa balança de pagamentos. Por exemplo: ao estimular o renascimento de nossa marinha mercante, estaremos marchando no sentido de reduzir nosso déficit na conta de transportes, que é hoje de US$ 3 bilhões/ano. Se implementarmos uma política competente de atração de turistas estrangeiros, reverteremos, também, a conta de turismo, que hoje tem um déficit de US$ 1,5 bilhão. Será assim em todas as demais rubricas.

Anthony Garotinho— O elevado déficit em transações correntes do Brasil é o principal entrave à retomada do crescimento econômico e a mais grave de todas as seqüelas da política econômica de FHC. Se somarmos ao déficit em transações correntes a rolagem anual da dívida externa pública e privada, chegamos a uma necessidade anual de recursos externos de quase US$ 50 bilhões, o que representa mais de 10% do PIB do país. Para superar essa dependência externa, é preciso implementar políticas ativas de incentivo às exportações e de substituição competitiva de importações. Só assim poderemos reduzir o déficit em transações correntes e, dessa forma, conquistar espaço para diminuir de maneira significativa os juros básicos da economia, que são mantidos altos para atrair o capital financeiro necessário para equilibrar o balanço de pagamentos.

É necessário, ao mesmo tempo, aumentar o nível da poupança interna para que, no futuro, uma parcela maior dos investimentos seja financiada com poupança nacional. Ou seja, deve-se mudar radicalmente a atual política econômica neoliberal que acredita que o Estado não tem nenhum papel a desempenhar na promoção do desenvolvimento econômico. O Estado brasileiro, em parceria com as empresas, as universidades e os centros de tecnologia tem importante função a cumprir no desenvolvimento do país.

ESTUDOS AVANÇADOS — QUE DIRETRIZES devem ser adotadas para diminuir nossa dependência de capitais externos? Qual a sua posição sobre a regulação dos movimentos internacionais de capital na economia brasileira?

Luiz Inácio Lula da Silva— Só existe um caminho para superar o impasse do desequilíbrio das contas externas. Pôr em prática uma política industrial e de comércio exterior que promova um eficaz processo de substituição de importações e de dinamização das exportações brasileiras. Isso significa que o Estado deve deixar a atitude passiva que vem tendo nessa matéria e dedicar-se a promover a competitividade dos produtos brasileiros.

Convém deixar claro que não se trata de nenhuma volta ao passado, quando se praticava a reserva de mercado ou um protecionismo exacerbado que sustentava a existência de empresas pouco competitivas e resultava em custos elevados para os cofres públicos. Trata-se de fazer no Brasil aquilo que vem sendo praticado, em maior ou menor escala, pela maioria dos países do planeta. Só que cada país pratica um tipo de política industrial adequada às suas necessidades.

Nos Estados Unidos, por exemplo, até agora não tem sido necessário se preocupar com o crédito de longo prazo, porque há recursos financeiros abundantes e a um baixo custo para os empresários que querem investir. Tampouco existe a necessidade de promover mudanças no sistema fiscal, uma vez que os tributos não pesam sobre a produção americana. Porém, o governo Clinton deu um decisivo suporte para o fortalecimento das empresas de alta tecnologia americanas, que deveriam vencer num cenário de alta competitividade com o Japão e outros países. Mesmo o governo Bush, com todas as limitações que lhe possamos atribuir, com o auxílio do FED, não pensou duas vezes em dar suporte às empresas americanas prejudicadas pelo atentado terrorista de 11 de setembro, dando créditos e facilidades fiscais para recuperar a economia americana do trauma sofrido.

Aqui no Brasil precisamos de uma política industrial que dê apoio à produção para o mercado interno e para a exportação, cobrindo as deficiências de crédito que o empresário enfrenta no Brasil, assim como alivie a elevada carga fiscal que incide sobre a produção, e ainda garanta uma infra-estrutura mais eficiente, tanto para fornecer energia e combustíveis baratos quanto para o transporte das mercadorias a custos reduzidos até o mercado consumidor. O que implica em baratear o embarque e o frete, e desburocratizar todas essas operações nos portos brasileiros, extremamente onerosas e demoradas para os exportadores.

Certamente não falta crédito ao BNDES para viabilizar essas operações. Basta racionalizar o uso dos quase R$ 30 bilhões de recursos que esse banco estatal possui a cada ano. Os exportadores brasileiros precisam também de recursos para investir mais em design e marketing, e sobretudo para melhorar o nível tecnológico de seus produtos. A marca "made in Brasil" deve ser divulgada aos quatro ventos por um Itamaraty prestigiado e dotado dos recursos para uma ação mais agressiva no exterior.

É muito importante a negociação de melhores acordos com nossos parceiros comerciais, mal acostumados em obter privilégios no mercado brasileiro, sem a devida reciprocidade. É preciso criar uma Secretaria de Comércio Exterior que tenha a autoridade e os instrumentos para impulsionar o comércio exterior brasileiro. Não basta termos as commodities agrícolas mais competitivas do planeta, como soja, suco de laranja, celulose, café, algodão e outras mais. É preciso elevar as exportações de manufaturados com maior valor agregado, dando as condições para que mais empresas brasileiras resolvam se aventurar no mais difícil mercado externo.

Atualmente, diversos países se dizem a favor do livre comércio, mas praticam um protecionismo descarado, muitas vezes utilizando-se de barreiras não-tarifárias como ações antidumping ou fito-sanitárias. Nesse caso é preciso reagir com processos na Organização Mundial de Comércio e com ações retaliatórias que imponham perdas a esses países e criem uma moeda de troca para uma suspensão das sanções de ambas as partes.

Merece especial atenção uma política de substituição de importações que viabilize a produção no país de uma parte dos inúmeros componentes eletro-eletrônicos que hoje são importados e constituem um déficit comercial anual de cerca de US$ 8,5 bilhões, somente com esses produtos. Sem cometer os exageros do passado, é possível reduzir a carga fiscal, mesmo dando alguns incentivos, e garantir o crédito que possibilite a produção local de semicondutores, discos rígidos e componentes de telefonia. Sem uma boa base de componentes eletroeletrônicos será difícil ao Brasil estar atualizado com a terceira revolução industrial. Seja estimulando empresas brasileiras, seja atraindo empresas estrangeiras, é perfeitamente compatível com o livre comércio e com as regras da OMC estabelecer as condições para uma moderna substituição de importações. Recentemente, o governo FHC perdeu a oportunidade de atrair a Intel para produzir chips no país, deixando que essa empresa fosse implantar-se na Costa Rica, com muito menos recursos a oferecer do que a economia brasileira.

Além de viabilizar um saldo comercial mais favorável, é preciso também criar as condições para a mobilização da poupança interna no financiamento do desenvolvimento. Devido às circunstâncias desfavoráveis e à negligência do governo, não se desenvolveu no país um robusto mercado de capitais, que em outros países é a base para um financiamento a custo reduzido das necessidades de expansão das empresas. O governo FHC perdeu a oportunidade das privatizações para promover a abertura de capital de empresas estatais e para pulverizar suas ações nas mão de milhões de acionistas brasileiros, de modo semelhante ao que ocorreu no processo de privatizações da Inglaterra. Pelo contrário, com a lei Kandir de 1997, o governo baniu os interesses dos acionistas minoritários, concentrando nas mãos dos controladores todas as vantagens de compra e venda de ações. Mesmo com a nova lei das Sociedades Anônimas, ainda não foram restabelecidos os direitos dos minoritários a ponto de incentivar mais brasileiros a direcionar suas poupanças para o mercado de capitais. Uma redução substancial dos juros deverá dar mais atratividade às bolsas de valores e à subscrição de debêntures, que têm uma grande importância nos outros países.

A mobilização da poupança nacional passa também pela implementação de um programa de habitação popular, que mobilize as poupanças e ainda provoque um efeito multiplicador importante no PIB, uma vez que o chamado construbusiness representa 15% do PIB e gera muitos empregos. O fortalecimento dos fundos de pensão é um outro pilar importante de sustentação da poupança doméstica.

Com tudo isso, pelo menos a curto e médio prazo, ainda não haverá poupança doméstica suficiente para viabilizar uma taxa de crescimento de cerca 4,5% do PIB, que é o mínimo necessário para criar os 1,6 milhão de empregos que o Brasil necessita para absorver os jovens trabalhadores que a cada ano ingressam no mercado de trabalho. Hoje o Brasil possui um nível de poupança interna na faixa de 17% do PIB e seria necessário 21 a 22% de investimentos para viabilizar esse crescimento. Daí a necessidade de contar com a participação de investimento externo direto da ordem de 4 a 5% do PIB por ano, para possibilitar tal expansão da economia brasileira.

Atualmente todos os países procuram atrair capitais externos para completar seus investimentos, independentemente da ideologia dos governantes. Não é por acaso que o país emergente que mais atrai capital externo é um país comunista, a China, capaz de receber mais de US$ 40 bilhões por ano. Porém trata-se de atrair sobretudo investimentos voltados para a produção dirigida ao mercado doméstico e à exportação, de modo a manter o equilíbrio das contas externas. Num mundo extremamente competitivo na atração de capitais externos, não convém criar isoladamente qualquer tipo de obstáculos ou barreiras ao livre fluxo de capitais. Certamente o mundo globalizado carece de uma regulamentação maior de fluxos especulativos e de uma nova arquitetura financeira internacional que reduza a instabilidade e a ocorrência cada vez mais freqüente de crises, que afetam a todos. Nesse sentido, a taxa Tobin pode ser um bom mecanismo, porém só funcionará se adotado em conjunto por vários países ao mesmo tempo. Essa é uma discussão importante que deve ser encaminhada nos organismos multilaterais nos próximos anos.

José Serra— A preservação da soberania nacional no mundo globalizado é essencial. A globalização é um fato irreversível. Nela, as internacionalizações realmente novas são as que acontecem nas comunicações, altamente positivas, e nos fluxos financeiros, cuja eficiência tem sido até agora discutível. Nenhum país deve ou pode colocar-se à margem da globalização, mas as sociedades nacionais persistem e têm de adotar políticas próprias, adequadas a suas distintas situações.

No tocante à diminuição da dependência de capitais externos, é crucial promover as exportações e a substituição de importações.

No tangente aos movimentos internacionais de capital, a experiência tem mostrado de forma eloqüente como a liberalização completa do movimento de capitais financeiros está longe de produzir estabilidade com crescimento, ou alguma eqüidade maior entre países desenvolvidos e em desenvolvimento. Como assinalou um insuspeito relatório recente do Bank of International Settlements (BIS), há fatores desestabilizadores inerentes ao processo: a maior oferta de crédito em escala mundial aumenta os preços dos ativos e produz maiores lucros; a maior liquidez fragiliza os balanços de pagamentos dos países; e as redes de seguros mal concebidas (o que só se descobre a posteriori) provocam maior instabilidade.

Ciro Gomes— Os movimentos iniciais do meu governo serão na direção de devolver a confiança ao povo brasileiro, em primeiro lugar, e aos investidores nacionais e internacionais, mantendo e honrando os contratos e recuperando a capacidade de investir do setor público federal. Para isso, proporemos, no primeiro momento, ao Congresso Nacional, as reformas tributária e previdenciária. O novo modelo tributário que imaginamos deslocará da produção e dos salários para o consumo das faixas de renda mais alta e para os ganhos de capital e de propriedade a incidência dos impostos. Com a outra reforma, a idéia é substituir o atual regime previdenciário, de repartição, por outro, de capitalização (detalhes no mesmo site). Com isso, obteremos superávits primários compatíveis com a redução paulatina da relação dívida pública/PIB. A conseqüência imediata dessas duas reformas, acrescida da redução do déficit em transações correntes da balança de pagamentos, será a queda expressiva das taxas de juros, dando ao país a condição de fazer crescer sua economia. Conseqüência prática: crescerão a produção e o emprego.

O mercado deve estar ciente de que o capital externo será muito bem-vindo como parceiro do esforço de desenvolvimento econômico do Brasil. Não haverá qualquer restrição à entrada e à saída do capital estrangeiro.

Anthony Garotinho— A diminuição da dependência de capitais externos virá com a redução do déficit em transações correntes e com a elevação do nível da poupança nacional. Mas nenhuma das duas coisas acontecerá por acaso. Para que elas aconteçam, é preciso a atuação decidida do governo, promovendo uma reforma tributária que desonere o investimento e a exportação, implementando políticas ativas que estimulem as exportações e a substituição de importações, e incentivando a inovação tecnológica aplicada à produção. Ou seja, é preciso ter políticas ativas de exportação, de substituição competitiva de importações e de estímulo à pesquisa científica e tecnológica para que a economia cresça de forma sustentável, com base no aumento da produtividade e da eficiência.

Quanto à regulação do movimento internacional de capitais, sou a favor da proposta do economista James Tobin de que se cobre, no plano internacional, uma taxa sobre a movimentação errática de capitais especulativos. Não creio, contudo, que o Brasil deva adotar, por conta própria, restrições à entrada de capitais. Quem tem um enorme déficit em transações correntes e necessita de recursos equivalentes a 10% do PIB, a cada ano, para equilibrar o balanço de pagamentos, não pode impor restrições à entrada ou à saída de capitais.

ESTUDOS AVANÇADOS — QUE PRINCÍPIOS devem presidir nossa política para administrar a dívida externa do País? No seu entender ela precisa ser renegociada?

Luiz Inácio Lula da Silva— A dívida externa brasileira já foi um sério problema no passado, principalmente nos anos 1980, diante da crise da dívida externa, quando o país chegou a pagar 5% do PIB como serviço da dívida. Na atualidade, a dívida externa brasileira chega a cerca de US$ 210 bilhões de dólares, e está diminuindo, dos quais cerca de metade é de responsabilidade do setor privado e a outra metade pertence ao setor público. É uma dívida de longo prazo, com um vencimento médio de 6,2 anos e que paga uma taxa de juros de 8,2%, em dólares, o que não chega a ser preocupante. A dívida externa líquida do setor público representa cerca de 10% do PIB e gera um serviço de cerca US$ 7 bilhões anuais, perfeitamente administrável, mesmo em condições mais adversas de mercado.

Não há nenhuma solução mágica para a administração da dívida externa brasileira. Trata-se de resgatar os títulos no vencimento e apresentar novos títulos em melhores condições de prazo e juros. A remuneração dos títulos da dívida externa, denominados C-Bonds, depende da confiança que o mercado tiver na capacidade de pagamento da própria dívida externa brasileira. Daí a importância de gerar rapidamente saldos comerciais positivos, que representem a capacidade da economia brasileira de possuir moeda forte para pagar esses compromissos.

Cumprir os prazos e respeitar os compromissos também é importante para uma boa rolagem e a obtenção de condições mais favoráveis para os títulos brasileiros. Não há razão para se pensar em renegociação unilateral, em reestruturação forçada e muito menos em qualquer forma de calote da dívida externa brasileira. São medidas extremas que são adotadas por países que já quebraram e não encontram outra saída a não ser confessar aos credores que não possuem a menor possibilidade de pagamento. O Brasil está longe dessa condição de inadimplência. Apesar das falhas do governo FHC, o nosso país ainda tem uma economia sólida, dotada da capacidade de gerar riqueza também em moeda externa, de competir no mercado internacional e de fazer frente aos nossos compromissos. O setor privado é responsável pela rolagem da dívida privada e pode aumentá-la ou diminuí-la de acordo com as suas conveniências. E o setor público tem uma dívida reduzida, muito fácil de rolar, mesmo em períodos de maior turbulência.

José Serra— A situação é segura. O peso da dívida externa no PIB tem sido declinante e o país tem todas as condições para honrar seus compromissos. O estoque da dívida externa tem características que minimizam os problemas no seu carregamento por três razões principais. Em primeiro lugar, mais da metade dessa dívida foi contraída pelo setor privado ou por empresas públicas financeiras, como o Banco do Brasil, a Caixa Econômica, o BNDES e o Banco do Nordeste. A dívida externa do governo, que é um problema de vários países emergentes, no Brasil representa menos de 45% do estoque total.

Em segundo lugar, a dívida externa brasileira é composta por títulos longos e contratados em condições favoráveis em comparação com a dívida interna. Tomando-se a posição do fim de 2001, apenas 14% da dívida vence neste ano, 12% no ano que vem e os outros 74% vencem a partir de 2004, o que mostra que seus vencimentos são bem distribuídos no tempo. É importante também dizer que 60% da dívida registrada foi contratada a taxas fixas.

Em terceiro lugar, vale notar que a relação entre a dívida externa e exportações de bens e serviços também está caindo gradualmente. Em 1999, essa proporção era de cerca de 300% e hoje é de cerca de 230%. O Brasil precisa melhorar ainda mais a sua razão dívida/exportações, mas para isso deve aumentar a competitividade, viabilizando o aumento das exportações.

Ciro Gomes — A dívida externa pública do Brasil, da ordem de US$ 100 bilhões, ainda não é problema. Ela foi muito bem renegociada no governo Itamar Franco. Os nossos credores externos aceitaram muito bem a proposta de um alongamento negociado dos prazos de vencimentos dessa dívida, que se esticaram para 30 anos, com taxa de juros ao redor de 6% ao ano. Assim, a dívida externa pública, isto é, a dívida soberana, repito, está bem composta, compatível com a capacidade de pagamento da União.

Porém, a dívida externa privada é um problema com o qual o governo brasileiro nada tem a ver. Dívida privada, privada é!!! Assim mesmo, com exclamação. No meu governo, o Tesouro Nacional jamais desembolsará um centavo para pagar dívida do setor privado. Tendo se animado pelo discurso oficial e pela propaganda mistificadora da falsa paridade cambial com a qual se reelegeu o presidente Fernando Henrique, as empresas brasileiras correram com muita sede ao pote do financiamento internacional. Endividaram-se ao máximo na certeza de que o R$ 1 continuaria valendo US$ 1. Hoje, elas estão diante da crua verdade: para honrar sua dívida, têm de pagar caro pelos dólares de que precisam. Caíram na armadilha do próprio governo, que implantou no país, desde janeiro de 1995, esse modelo neoliberal que quebrou a Argentina e agora nos ameaça. Não há outra alternativa: ou mudamos o modelo e colocamos o Brasil para crescer, ou não haverá solução para os nossos gravíssimos passivos financeiros, sociais e de infra-estrutura.

Anthony Garotinho— O princípio que deve nortear a nossa política para a dívida externa é o da permanente defesa dos interesses nacionais, associado ao respeito aos compromissos externos assumidos, de forma soberana, pelo país. Se conseguirmos eliminar, com rapidez, o déficit em transações correntes, não vejo necessidade de renegociar a dívida externa do Brasil.

ESTUDOS AVANÇADOS — O ATUAL acordo do Brasil com o FMI vence em 2002. O senhor acredita que ele deve ser renovado?

Luiz Inácio Lula da Silva— Convém lembrar que o Fundo Monetário Internacional foi criado em 1944, a partir da idéia do economista inglês John Keynes, justamente para ajudar os países membros a vencerem as dificuldades financeiras em época de crises. Sem dúvida, é necessária a existência de um organismo internacional com a capacidade de emprestador de última instância, ou seja, que possa emprestar recursos quando não houver condições de obtê-los no mercado internacional. Portanto, enquanto sócio quotista do FMI, com um depósito de US$ 4 bilhões, o Brasil tem o direito de sacar dinheiro, quando for necessário. O problema são as condições que o FMI tem imposto aos países que recorrem a ele. Muitas vezes parece que o FMI está mais interessado em defender os interesses dos credores do que os interesses dos países que recorrem a ele.

Além disso, os programas de ajuste propostos pelo FMI têm sido mal sucedidos. Recentemente, a direção do FMI reconheceu que deu uma orientação errada nas crises da Ásia, Rússia, Argentina e eu incluiria também o caso Brasil. Afinal, o FMI concordou com a manutenção de um câmbio sobrevalorizado, que tanto estrago causou à economia brasileira. Inclusive deu cobertura ao governo FHC em 1998, concedendo um empréstimo que viabilizou a sobrevida do câmbio sobrevalorizado até depois das eleições, garantindo a reeleição de Fernando Henrique, mas causando um prejuízo ao país, que poderia ter flexibilizado o câmbio antes, sem perder tantas reservas.

A minha impressão é que a atual equipe econômica brasileira está excessivamente afinada com as idéias do FMI e não precisa sequer contestar as propostas que esse organismo faz. Eu creio até que, se não existisse um FMI fazendo certas propostas, o Ministério da Fazenda e o Banco Central teriam que inventar um organismo como esse para atribuir a ele certas medidas impopulares e mesmo prejudiciais ao país. Por isso mesmo faltou empenho do governo em definir condições que levassem o Brasil a se recuperar das crises da Ásia, Rússia e da própria crise brasileira.

Não vejo nenhuma razão, por exemplo, para aceitar que os investimentos das empresas estatais sejam contabilizados como gastos ou despesas no cômputo do superávit primário. Isso reduziu a capacidade de investimentos das estatais brasileiras, por exemplo, no setor de energia elétrica, contribuindo para o racionamento e a crise do ano passado. Mais recentemente, o FMI orientou o BC a fazer as chamadas operações de proteção cambial no mercado futuro, o chamado swap cambial, atrelado à colocação de letras financeiras do Tesouro, num momento em que o mercado estava inundado de LFT. Foi mais ou menos como vender Coca-Cola para a padaria, mas exigir a compra de igual quantidade de um outro refrigerante de segunda linha, um produto que o mercado não queria naquele momento. Talvez o FMI também esteja por trás dessa demora do BC em baixar as taxas de juros, que deveria ter ocorrido em abril e maio, não fosse uma meta de inflação exageradamente pequena. Depois o próprio governo reconheceu o equívoco do chamado swap atrelado às LFT e suspendeu a operação.

Por tudo isso, não é recomendável recorrer ao FMI, ao menos que não haja alternativas, e mesmo assim, discutindo as condições e acertando medidas que não prejudiquem o país. Melhor que isso é criar as condições para que seja totalmente dispensável precisar dos préstimos do FMI, caminhando com nossas próprias pernas e sem muletas. Por isso não podemos descuidar dos programas voltados para fortalecer as contas externas, conforme já me referi nas outras respostas.

Acredito, inclusive, na possibilidade de uma reformulação geral do papel e desempenho do FMI, recuperando os objetivos para os quais ele foi criado, na visão de Keynes — adaptado, naturalmente, às condições atuais de uma economia globalizada, com grandes movimentos de capitais e mercadorias, e um enfraquecimento dos Bancos Centrais. Creio que é oportuno o estudo de uma nova arquitetura financeira internacional, o que implica na reformulação das instituições multilaterais, como o Banco Mundial, o FMI, e a própria Organização Mundial de Comércio (OMC). A própria autocrítica do FMI em seu desempenho recente, abre espaço para isso.

José Serra— Sou favorável à renovação do acordo com o FMI, pois sua prorrogação irá garantir a possibilidade de utilizarmos os recursos do Fundo em caso de necessidade. O último acordo com o FMI foi assinado em setembro do ano passado e abriu ao país uma linha de crédito de 15 bilhões de dólares.

Ciro Gomes— O FMI não é um bicho-papão.

Anthony Garotinho— Nenhum país é obrigado a recorrer ao FMI. Os países que o fazem é porque necessitam. As condições de financiamento do FMI são melhores do que as da banca privada. O problema é que a experiência internacional tem mostrado que, em muitos casos, o FMI desconhece a realidade dos países que recorrem a seus empréstimos e impõe condições de política macro-econômica que agravam a situação desses países. Esse risco, contudo, pode ser evitado se a negociação com o FMI for feita de forma soberana e com base nas necessidades e possibilidades reais da economia. Tudo depende da qualidade da negociação e da vontade política e firmeza do governo. A herança econômica que o governo FHC vai deixar é tão grave que dificilmente a próxima administração escapa de uma prorrogação e revisão do acordo com o FMI.

ESTUDOS AVANÇADOS — QUAL DEVE ser a posição do Brasil diante do projeto da ALCA?

Luiz Inácio Lula da Silva— Conforme já disse, o Brasil perdeu terreno no comércio internacional na década passada, justamente por conta de acordos comerciais desfavoráveis e pouco empenho do governo para aproveitar a espetacular expansão comercial que se verificava em todo o mundo. Nesse sentido, não cabe entrar mais uma vez numa aventura comercial em que nada se oferece e muito se exige do Brasil. A proposta da ALCA, tal qual está formulada, só traz vantagens para os Estados Unidos da América, que hoje já desfrutam de uma posição privilegiada no comércio brasileiro. Enquanto os produtos norte-americanos, com raras exceções, entram livremente no Brasil, 60% das exportações brasileiras que vão para os Estados Unidos defrontam-se com algum tipo de obstáculo para entrar naquele país. São sobretaxas, como a do aço e suco de laranja, quando não são cotas de importação, como no caso do açúcar, ou ações antidumping e fito-sanitárias, tudo isso reduzindo o potencial exportador brasileiro.

Um estudo feito pela embaixada brasileira em Washington constatou que as exportações brasileiras para os EUA pagam uma tarifa média de 45%, enquanto as norte-americanas para o Brasil pagam em média 15%. E a administração Bush quer discutir a ALCA sem colocar na mesa de negociações essas limitações impostas a praticamente todos os produtos nos quais o Brasil é mais competitivo. O que vamos discutir, então? Apenas a redução da TEC (Tarifa Externa Comum do Merco-sul) ou da Lei de Informática, que acabamos de aprovar? Ou a simples anexação do Brasil aos Estados Unidos? O comércio tem que ser uma estrada de mão dupla, onde todos saiam ganhando e não somente alguns. O governo Bush tem tomado medidas protecionistas que ferem os interesses dos outros países e isso não pode ser consolidado num acordo geral de livre comércio.

Isso não quer dizer que um governo democrático popular no Brasil vai ter hostilidade em relação aos Estados Unidos. Afinal, eles representam 25% de nossas importações. Mas não vai ser submisso, como é o governo FHC, e defenderá firmemente os interesses do povo brasileiro, fazendo valer o peso que o Brasil possui no contexto internacional. Nossa participação hoje é pequena, mas pode ser aumentada, e o Brasil ainda é a décima maior economia do mundo. Não podemos ser tratados como uma república de bananas. Temos que ocupar o espaço que nos cabe e adquirir respeito. Sem o Brasil, a ALCA não existe. Vamos combater o protecionismo, tentar abrir os mercados para os produtos brasileiros e, sobretudo, defender nossa soberania. Isso vale tanto para a China e Índia, como para os Estados Unidos. Para o Brasil é mais interessante neste momento defender o Mercosul, que passa por uma crise, mas já foi muito importante para a dinamização do comércio entre seus membros, do que simplesmente aderir a um acordo sob a hegemonia dos Estados Unidos. Reforçar o Mercosul significa atrair os países andinos para dentro do acordo, estreitar os laços com a União Européia, e ampliar o comércio com a China, Índia, com a Ásia de modo geral, com a África do Sul e com todos os países onde houver espaço para crescer.

José Serra— O que nós temos que fazer com relação à ALCA, como, aliás, com todas as questões de comércio — na Organização Mundial do Comércio, nas negociações com a União Européia, que também é useira e vezeira de subsídios agrícolas, para ficar em alguns exemplos — é ter, como critério fundamental, a defesa do interesse nacional. Um acordo comercial não é uma questão de boa vontade ou de doutrina pura. Um acordo comercial tem a ver com os interesses econômicos dos diferentes países. E o norte da posição brasileira nessa matéria deve ser o interesse nacional.

A formação da ALCA tem que se dar de forma gradual, e, neste caso, nós contamos, até, com o exemplo do Nafta, que é apenas uma área de livre-comércio e está programado para entrar em pleno funcionamento só em 2010. Em geral, a pressa em matéria de integração é um patrimônio da América do Sul, particularmente do Mercosul, que pretendia reproduzir em quatro anos o que a Europa fez em quarenta com o mercado comum.

A questão fundamental para nós situa-se nos mecanismos de proteção não-tarifária. E esses mecanismos têm que ser objeto de debate e de definições comuns no âmbito das negociações da ALCA. Não se trata de o Brasil impor este ou aquele critério quanto à proteção não-tarifária. Trata-se de estar de acordo ou não. Trata-se de a questão entrar ou não na mesa de negociações.

No Brasil, 70% das exportações industriais vão para as Américas. Nós não podemos deixar de sentar para negociar. Mas só deveremos embarcar se os Estados Unidos removerem o seu protecionismo. Porque senão nós só vamos ter que ceder e não vamos ganhar nada. Ou seja, com a ALCA, nós podemos nos sair muito bem ou podemos nos sair muito mal. Para sair mal, é melhor não entrar. E, para isso, temos que negociar com competência, com preparo, sem amadorismo. Com amadorismo, nós naufragamos.

A ALCA pode ser muito boa ou muito ruim para o Brasil porque os Estados Unidos são um país protecionista. Eles não se protegem como outros países, no imposto da importação, na tarifa; eles se protegem nos procedimentos não-tarifários: cotas, no abuso do antidumping e das salvaguardas. Tem todo o material lá para escrever um livro. Eles inovaram muito nesta matéria. Pois bem, vamos sentar à mesa. Eles dizem para o Brasil: "Vocês reduzem as tarifas, mas as nossas são muito baixas, não precisamos reduzir porque estamos perdendo". Por que? Porque tem que eliminar as restrições extras que eles fazem. Se fizerem isso, a ALCA é um bom negócio para o Brasil. Se não fizerem, poderá ser um péssimo negócio e esse será o nosso critério. Péssimo negócio não vamos fazer.

Ciro Gomes— O Brasil não pode, sob nenhuma hipótese, aceitar, passivamente, o calendário de implantação do Acordo de Livre Comércio das Américas. Para a nossa adesão à ALCA, o Brasil apresentará algumas condições essenciais, porque esse tratado, ao contrário do que diz a propaganda oficial, tem tudo a ver com o setor produtivo, com os salários, com o emprego, enfim, com o dia-a-dia do povo brasileiro. Reparem: o setor produtivo dos Estados Unidos e do Canadá opera com financiamento extraordinariamente reduzido. Lá nos Estados Unidos, a taxa básica de juros é de 1,75% ao ano. Aqui no Brasil, a empresa industrial, comercial ou do setor de serviços desconta uma duplicata a 4% de juros ao mês. Ao mês!!! Lá, o empresário canadense e o norte-americano está produzindo com a última geração tecnológica, enquanto aqui no Brasil, por média, há um retardo tecnológico de três gerações. Nos EUA e no Canadá, as empresas produzem em mega-escala, ao mesmo tempo em que, aqui no Brasil, sete de cada dez empregos são gerados pela pequena e média empresas, que, por definição, operam em pequena escala.

Diante dessa assimetria competitiva, será um crime aceitar o cronograma de implantação da ALCA. Se isso acontecer, e no meu governo isso não acontecerá, estará em risco, e condenada mesmo à extinção, a base produtiva nacional. Em conseqüência, serão extintos aqui, também, milhões de empregos, com repercussão imediata e explosiva na área social.

No futuro, o comércio será mundial, e não devemos ter medo disso, mas o Brasil só poderá aderir à ALCA em 2005, como está previsto, se tivermos reduzido, substancialmente, a atual assimetria competitiva. Do contrário, a base produtiva e os empregos nacionais correrão o risco de destruição.

Anthony Garotinho— O Brasil deve continuar a negociar a criação da ALCA. O Brasil tem um grande peso político, econômico e demográfico. Por isso, foi indicado para co-presidir, junto com os Estados Unidos, o processo de negociação. Nosso país não pode fugir dessa responsabilidade. Sua voz faria falta e enfraqueceria a posição de toda a América do Sul. Mas é evidente que do lado norte-americano os sinais emitidos são ruins. As restrições à importação de aço brasileiro, a nova lei agrícola que prevê US$ 180 bilhões de subsídios à agricultura americana nos próximos 10 anos e a autorização para negociar, extremamente restritiva, dada pelo Congresso ao Poder Executivo, são indicadores de que os Estados Unidos não estão interessados em promover o livre comércio, mas, sim, em terem uma reserva de mercado para seus produtos na América Latina. Se for assim, a negociação fracassará, e cabe ao Brasil dizer isso, desde já e com clareza. Mas não devemos impedir que as negociações prossigam. Afinal, o princípio estabelecido é o de uma negociação em bloco (princípio do single undertaking), o que nos permite rejeitar o processo até o último momento. Por outro lado, o Congresso brasileiro está aprovando o equivalente à TPA (Trade Promotion Authority) norte-americana. Isso é bom. A negociação torna-se mais simétrica e é importante que o Congresso e a sociedade participem ativamente do processo.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    16 Mar 2005
  • Data do Fascículo
    Ago 2002
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