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Os desafios da área de Humanidades no Brasil e no mundo

DEPOIMENTO

Os desafios da área de Humanidades no Brasil e no mundo* * Texto apresentado pelo autor no painel "Las Humanidades", das "Jornadas sobre Iberoamérica y Espanã - La Universidad en la sociedad del siglo XXI", organizado pela Universidad Complutense de Madrid, pelo Instituto de Estudios Internacionales e pela Fundación BSCH, em junho de 2001.

Jacques Marcovitch

Introdução

AS HUMANIDADES, no entender de alguns analistas, vivem uma crise de identidade cuja determinante é a recente globalização e suas repercussões no universo do pensamento ou mesmo na vida prática. Ao fim da polarização entre sistemas políticos teria correspondido um colapso das utopias. Conseqüentemente, os críticos do capitalismo, historicamente inseridos na área das Humanidades, teriam mergulhado no mais terrível pesadelo intelectual. Especula-se ainda, nestes apressados julgamentos, que o brusco redesenho no mundo do trabalho teria fechado, em definitivo, as oportunidades para os que escolheram nas Humanidades a sua formação profissional. Aí temos um resumo bruto do quadro que nos cabe debater. Como todos os resumos, este é precário e esquemático, embora inegavelmente possua alguns dados da realidade.

A reitoria de uma universidade é um privilegiado observatório da realidade no câmpus. Desse observatório podemos avaliar adequadamente os obstáculos enfrentados por todas as áreas acadêmicas, principalmente a das Humanidades, que se choca frontalmente, neste início de século, com múltiplos fatores adversos. Na reunião mundial promovida pela Associação das Universidades Americanas (AAU), realizada em Washington, em abril de 2001, o reitor da Universidade de Cambridge, professor Alec Broers, apontou um destes sérios obstáculos: em termos de financiamento não há equilíbrio entre as Humanidades e a área de Ciência & Tecnologia, pois esta última sempre tem maiores possibilidades de obter recursos, dentro e fora da universidade. As agências de fomento, nesta quadra histórica, estão claramente priorizando projetos ligados à genômica e à tecnologia de informação, por exemplo. Broers levantou a hipótese, que estamos trabalhando na Universidade de São Paulo, de compensações diferenciadas para os pesquisadores das Humanidades, além de outras medidas que ampliem o seu potencial de captação de recursos.

A busca de recursos extraorçamentários é real em qualquer câmpus, seja de países desenvolvidos ou não. Há uma etapa, neste processo, que muitos colegas das Ciências Humanas subestimam ou simplesmente não sabem tratar: a correta estruturação de um projeto, que inclui rígidos cronogramas físicos e financeiros a cumprir. As Ciências Humanas são em geral desestruturadoras, no justo sentido de que devem sempre desestruturar o estabelecido e buscar os novos caminhos do pensamento. Como dizia Johann Wolfgang Goethe, "o mundo só pode ir em frente por meio daqueles que se opõem a ele". Mas alguns pensadores da área de Humanidades ampliam demais este belíssimo conceito, e simplesmente se negam a estruturar qualquer coisa, até mesmo projetos inovadores de pesquisa que permitam alavancar financiamentos.

Há uma verdade objetiva neste gracejo. De fato, não são muitos os colegas de Ciências Humanas que revelam aptidões para ampliar seus horizontes práticos de trabalho. Independentemente do apoio oferecido pela administração universitária, eles precisam buscar formas próprias para alargar o seu campo de ação acadêmica.

As Humanidades na Universidade de São Paulo

Há exemplos positivos na Universidade de São Paulo. Recentemente chegou à Reitoria da USP um ousado projeto de curso interdisciplinar de graduação em Humanidades, encaminhado pelo professor de Filosofia, Renato Janine Ribeiro. Esta proposta é polêmica e vem provocando discussões na faculdade onde ele trabalha. O curso está centrado no estudo das artes, da filosofia e da literatura. Prevê dedicação integral. Depois do terceiro ano, os estudantes escolherão trajetória própria matriculando-se nas matérias que desejarem.

O proponente sugere algo que, em seus aspectos gerais, excluindo-se o que tem de especificamente universitário, constitui uma hipótese para equacionar o ensino baseado em múltiplas linguagens, ou seja, o que ele chama de "poliglotismo cultural". Trata-se de mais um instrumento de combate à especialização rígida no aprendizado. Afirma Janine que a complexidade do mundo atual torna impossível o enfrentamento dos seus problemas usando-se apenas uma linguagem. O "monoglotismo" científico e/ou cultural, diz ele, acontece quando professores ou alunos abordam as realidades com apenas uma ciência. O estudo busca relacionar as linguagens do seu currículo. Entende Janine que tudo o que se produziu nas áreas de Literatura, Filosofia e Artes constitui um patrimônio, ao contrário das ciências, onde há um processo natural de perda e refutação. Penso que esta fusão de linguagens também pode ser discutida como um dos caminhos para o ensino fundamental e para o ensino médio. Em todos os estágios da educação é imperioso evitar a disjunção entre a cultura científica e a cultura humanística. Edgar Morin, em seu livro La tête bien faite, nos ensina que a "não-comunicação entre essas duas culturas traz graves conseqüências para ambas" - o que vale dizer, para a própria escola.

Devemos não apenas contemplar a escola, mas o ambiente externo. Há, do lado de fora, um mundo pouco receptivo à contribuição de filósofos, historiadores, sociólogos e outros especialistas formados pelas Humanidades e que têm a academia como espaço quase único de trabalho. Além do câmpus, um ambiente pragmático e dominado pela mais dura materialidade prefere os egressos das escolas profissionalizantes. Ocorre que lá fora não existe apenas a demanda empresarial. Existe o Estado. E o espaço do Estado, que tantos querem mínimo, não pode encolher-se a ponto de não abrigar estudiosos que são fundamentais no equacionamento de políticas públicas. E cabe às academias, em seu diálogo com os governos, alertá-los para este aspecto da crise das Humanidades. Se esta elite intelectual, permanentemente debruçada sobre os problemas sociais, não decifrar o seu enigma, quem o fará? Não será certamente a tecnoburocracia com a sua visão nublada pelo viés político-partidário. Tampouco a mídia, com a sua abordagem imediatista, centrada no quadro aparente, sem buscar nuances, causas, raízes e fatores somente percebidos pelos que fazem desta problemática um objeto permanente de estudos.

Recentemente, em dossiê que a Universidade de São Paulo publicou sobre as políticas nacionais de saúde pública, um professor da área de Ciências Médicas, José R. Carvalheiro, defendeu conceito verdadeiramente inovador para a formação de grupos de trabalho. As políticas públicas, disse ele, devem ser formuladas por uma "comunidade epistêmica" - ou seja, um coletivo de pensamento envolvendo participantes de todas as áreas do conhecimento, e não apenas os chamados especialistas. Nas estratégias do Estado moderno para a saúde, educação, defesa do meio ambiente, trabalho, segurança ou qualquer outra demanda social, é indispensável o concurso das Humanidades, tendo em vista a sua noção abrangente do conjunto da sociedade e das suas carências principais.

Cabe aqui observar que as universidades brasileiras, mesmo conectadas aos grandes centros internacionais de pesquisa, correm o risco de perder suas identidades, caso passem a gravitar somente em torno deles, que em geral privilegiam programas de ciência e tecnologia. Quando as pessoas, usando a informática, acionam os servidores de universidades de outros países e têm à disposição suas bibliotecas, cursos e fóruns de debates, podem ficar magnetizadas com riscos de renunciar à sua capacidade crítica. Nesse aspecto não podemos agir como passivos imitadores. O Brasil e outros países emergentes em algumas áreas do conhecimento, principalmente nas Humanidades, dispõem de potencial crítico para se tornarem referências em nível internacional. Observemos principalmente as questões sociais. O meu país tem uma vivência de análise e uma qualidade de pesquisa em relação a esta problemática muito superiores a dos chamados países centrais.

Essas pesquisas na dimensão social começaram há muito tempo no Brasil, pois lamentavelmente temos uma grande tradição em matéria de exclusão, desde o período colonial. Os países desenvolvidos somente agora, no ambiente acadêmico, iniciam a exploração do tema. A sociedade americana também está se fragmentando, sem que haja uma vivência dos seus cientistas sociais no trato da matéria. O expressivo aumento da população carcerária e das condenações à pena de morte em alguns Estados demonstram as conseqüências desta fissão social num país pós-industrializado. O mesmo acontece na área da agricultura e da saúde.

No campo das Ciências Sociais, os temas têm, no mais das vezes, um cunho especificamente nacional. Nesta área, a presença da USP na sociedade é, ao mesmo tempo, mais evidente e mais difusa. O presidente da República é um sociólogo, professor da nossa instituição. Economistas, administradores, juristas ou historiadores ocupam vários escalões do poder, de ministérios a secretarias de Estado. E todos eles recebem apoio de assessores egressos dos bancos da mesma Universidade. Não há plano econômico sem economistas, como não há plano viário digno desse nome que, além do urbanista e do engenheiro, não recorra aos geógrafos. É notável a contribuição dos nossos professores de Humanidades em estudos reveladores a respeito do fenômeno da violência urbana e práticas de cooperativismo entre cidadãos desempregados, o que abre caminhos para que a população encontre meios próprios de enfrentar a atual crise do trabalho em nosso país. O que é necessário é que tais práticas venham a ser uma regra geral nesta área do conhecimento. Estamos trabalhando nesta direção.

A Universidade de São Paulo vem empreendendo jornadas pelos direitos dos negros, centrando atenções na articulação de estudos que possam lastrear projetos voltados para os despossuídos e para as vítimas da discriminação. Criou-se um grupo de políticas públicas e agora com o status de Comissão Permanente, formada por acadêmicos e representantes comunitários. É seu objetivo levantar indicadores e diagnósticos, oferecendo propostas nas áreas de educação, saúde, cultura, representação política e meios de comunicação que dizem respeito aos interesses da comunidade afro-brasileira. Também os obstáculos à afirmação social da mulher negra e as violências de fundo racista são objeto de estudos em constante atualização. Pioneiras no estudo da problemática negra em nosso país, as universidades públicas devem atuar sempre nesta direção. Elas são frutos, como se sabe, dos mesmos valores históricos que sempre inspiram as lutas libertárias: o universalismo, a fraternidade, os direitos compartilhados. Devo dizer que a maioria dos integrantes deste grupo é da área de humanas, mas a administração ainda encontra dificuldades para recrutar quadros quando cogita de projetos semelhantes.

Por outro lado, o que foi consolidado em termos de pesquisa social não pode ser simplesmente transplantado para outros países. É muito comum agências de cooperação de países desenvolvidos trazerem para o Brasil missões que buscam se apropriar do conhecimento gerado por experiências nossas e transferi-las, como intermediárias, sem os devidos créditos, para outros países. É preciso reagir a isso, naturalmente evitando cair na xenofobia, que constitui um crime intelectual. A postura acadêmica em face da globalização é algo não suficientemente discutido. Uns inclinam-se pela submissão deslumbrada, outros pelo nacionalismo estreito, ideológico. Deve-se reconhecer o valor do outro e somente incorporá-lo às estratégias de desenvolvimento após avaliar a sua adequação e dialogar com os produtores do conhecimento.

O deslumbramento com as práticas do Primeiro Mundo apresenta outros inconvenientes. Sabemos que a extrema direita francesa chegou a propor a revogação das leis que proíbem a discriminação racial. Digamos que a resistência humanista enfraqueça naquele país e prevaleçam essas teses absurdas. Ou que, nos Estados Unidos, por um desses terríveis desvios da História, voltasse o macarthismo, e iguais retrocessos políticos ocorressem nos grandes centros mundiais. A globalização vem trazendo notórios benefícios no que concerne à tecnologia e à economia, com repercussões positivas sobre a média das condições de vida da população. Em média todos vivem melhor e por mais tempo, mas o fenômeno precisa ser visto com reserva no plano político, visto que a exclusão está crescendo e o acesso à renda se torna mais difícil para grandes contingentes da população humana. As universidades, em todo o planeta, podem exercer um importante papel crítico nos desdobramentos deste problema. Como conciliar os benefícios da globalização com a coesão social? Como assegurar a empregabilidade? Essas respostas somente poderão ser dadas pelas Ciências Humanas.

A valorização das Humanidades e a revisão do seu papel são tarefas inadiáveis na academia. Cresce, na Universidade de São Paulo, mesmo entre pesquisadores das áreas de Exatas e Biológicas, a convicção de que a ciência é um corpo único de estudo e não deve haver hierarquização do conhecimento com estímulos ou recursos mais amplos para determinados segmentos de investigação. No que diz respeito à avaliação acadêmica, embora se valorize a autoria de artigos em publicações internacionalmente indexadas, planejam-se mecanismos que reconheçam trabalhos meritórios na área de Ciências Humanas, mesmo circunscritos à veiculação local. Prospera, em nossa política de avaliação, o conceito de que não pode haver exigências iguais para realidades desiguais.

As Humanidades no mundo

Vendo não apenas a universidade, mas a própria trajetória do homem, compreenderemos mais ainda o papel das Humanidades. O mundo não pode prescindir daqueles que o interpretam. A Filosofia, embora reunindo teses em sua maioria aparentemente abstratas, jogou um papel decisivo na construção da aventura humana. Habitando este planeta minúsculo em algum ponto do universo, o homem julgou-se muitas vezes dono de poderes que absolutamente jamais teve. Aos filósofos coube a missão salvadora de alertá-lo para enormidade das suas limitações e equívocos. Foram eles que desconstruíram mitos e iluminaram os caminhos da História. Foram eles que decifraram, ao longo dos séculos, os grandes enigmas da existência. A humanidade muito deve a estes indivíduos que fizeram uso da inteligência para enfrentar o desafio máximo da espécie, que é a possível compreensão do mundo.

A intrigante lógica dos argumentos filosóficos encanta a qualquer pessoa, mesmo não versada na matéria. A respeito das possibilidades de compreensão do mundo, Thomas Nagel, em The view from nowhere, levanta a hipótese da existência de seres superiores somente para afirmar que eles, caso existissem, poderiam apontar fenômenos que os humanos são incapazes de entender. Em síntese, diz Nagel que a simples percepção das coisas não é suficiente para definir a sua existência. Immanuel Kant igualmente falava das "coisas em si", querendo dizer que muitas dessas coisas são inacessíveis apenas aos seres reais e não aos seres possíveis. Desculpem-me se estou a tomar atrevidamente o vosso tempo em divagações. Faço isso apenas para demonstrar um certo fascínio, que é de todos nós, pelos incontáveis labirintos de universo tão atraente. Já diziam os antigos pensadores gregos, há mais de dois mil anos, que a Filosofia é fruto da capacidade que tem o homem de se admirar com as coisas. O filósofo jamais se habitua inteiramente ao rumo dos acontecimentos. Para ele o mundo é sempre um enigma a ser continuamente decifrado. Por isso mesmo a busca do conhecimento superior não pode abrir mão da reflexão filosófica. O sistema acadêmico, em todas as eras, sempre teve na filosofia uma referência primacial.

É necessário, por outro lado, que os ingressantes no estudo das Humanidades sejam despertados para a beleza e a desafiadora complexidade da Antropologia, Ciência Política, Sociologia, Geografia, História, das Letras e Artes. São estas disciplinas que explicam a sociedade. Dificilmente poderemos chamar de sábio alguém que não tenha noção dos fenômenos que figuram nessas grades curriculares. A universidade precisa encontrar os meios de levar à sociedade o valor e o poder transformador dessas ciências. Não me refiro, em nenhuma hipótese, a quaisquer técnicas ou meios indutores de persuasão. Imagino a projeção das Humanidades trabalhada em projetos acadêmicos amplamente mobilizadores e capazes de sensibilizar, pela qualidade, os formadores de opinião.

A despeito da maior visibilidade, em nosso tempo, das teses que apontam para a decadência da educação clássica e do conceito de liberal arts, as opiniões favoráveis a este tipo de formação ainda são bastante sólidas entre os acadêmicos e os pedagogos.

Philippe Sion, em convite que me dirigiu para falar sobre o tema no Fórum de Davos, fez uma longa pergunta: "Ainda é importante que as pessoas conheçam a literatura dos grandes escritores ou as obras de arte do passado, as obras dos maiores filósofos e pensadores científicos de séculos passados, ou estes são tesouros que podem ser colocados de lado, ou ser considerados tópicos antiquados, num mundo cibernético em rápida mutação? Ainda é possível ser ao mesmo tempo um pensador e um técnico?".

Respondi, com ênfase e sem rodeios, que a educação clássica envolve uma série de valores irrenunciáveis. Nenhuma civilização poderá jamais prescindir de seus acervos de arte e conhecimentos filosóficos acumulados ao longo dos séculos. O mundo cibernético, em rápida mutação e com enormes benefícios ao desenvolvimento humano, ainda é insuficiente para substituir esses tesouros.

Digo aqui que o mundo cambiante de hoje, com suas perdas e ganhos, requer um modelo educacional flexível e sem absolutismos. Requer uma educação plena, que oriente os jovens em seus projetos de vida, mas igualmente o sensibilize para as artes, transmita valores fundamentais e abra espaço à formação de novos quadros para o avanço do conhecimento.

É preciso que se aproveite o espaço da sala de aula não apenas para informar o estudante, mas para formá-lo como um homem culto ou em processo de aquisição cultural. Não podemos abrir mão do saber filosófico e artístico acumulado em milênios, trocando tudo pelas novidades cibernéticas, inegavelmente bem-vindas mas que não bastarão jamais para a formação integral do homem. Entretanto, comparando os avanços e retrocessos da humanidade, contabilizando o deve e o haver, medindo falhas e acertos, para onde pende a balança da História no campo da educação? Caso se incline para o lado das perdas, sempre temos a chance de responsabilizar as gerações que nos precederam. Mas, e daqui para a frente? É importante não deixar que os jovens de hoje cometam os erros que cometemos por nossa própria culpa, ou fomos levados a cometer pelos formadores das nossas mentalidades. Por isso, a escola de amanhã deve ser pensada hoje. A educação do futuro, em todos os seus níveis e complexidades, é um desafio que se impõe aos que agora transmitem valores e ensinamentos em salas de aula.

É certo que as novas gerações muitas vezes derrotam-se a si mesmas. Isso, porém, não diminui a responsabilidade que nos cabe como educadores, a despeito de todos os obstáculos conhecidos. Aqui estamos, inconformados com o passado e com o presente, buscando modelos que efetivamente pluralizem a educação nos dias vindouros. E uma educação plural não pressupõe apenas o ensino de múltiplos modos de pensar a realidade. Educação plural é também, e talvez sobretudo, a educação que visa o geral, o todo, e não apenas uma parte da sociedade. Com isso em mente e enfrentando sem abatimento as atuais dificuldades, talvez possamos legar uma escola melhor e um mundo mais justo e mais belo aos que vierem depois de nós.

O cenário que todo educador deve ter em mente para os dias vindouros é uma combinação de imaginário, descoberta e sentimento do mundo. A Ciência e a Tecnologia tornaram a vida mais longa e mais produtiva. A Arte fez a vida mais bonita, animou o espírito, aguçou a sensibilidade. E o estudo das Humanidades produziu capítulos fundamentais na história do mundo. Não há lugar melhor para a convergência desses fatores que a universidade - cujo caráter plural é o mais alto predicado.

Leonardo da Vinci conseguiu uma síntese entre arte e ciência. Usando as mesmas mãos que pintaram tantas telas imortais, chegou a antecipar-se em séculos ao futuro, desenhando as formas do submarino e do helicóptero. Albert Einstein tocava violino e formava discípulos de suas teorias. Ele nos mostrou que não há um meio absoluto para julgar o universo e que tudo é relativo. Mas, olhando a história cultural a partir do Brasil, não precisamos ir tão longe para encontrar um exemplo de grande cientista envolvido com a arte. O professor Mário Schenberg, já morto, um dos maiores cientistas da nossa Universidade em todos os tempos, escrevia sobre Artes Plásticas enquanto ajudava a desenhar o mapa do universo. Pioneiro da Física Teórica e da Astrofísica Moderna em nosso país, ele ajudou, no efeito Urca, a explicar o nascimento de estrelas supernovas. Mas também pode ser apontado como descobridor de grandes pintores brasileiros, pois organizou as suas primeiras exposições individuais e estimulou decisivamente suas vocações.

Schenberg, na história da Universidade de São Paulo, é um símbolo da interação entre o fazer artístico e o fazer científico. Em seu trabalho "Pensando a Física", ele ampliou ao máximo as possibilidades da intuição ao dizer que se tornava impossível captar a realidade "sem uma fantasia poderosa e aberta aos maiores paradoxos".

As mentalidades convencionais sempre julgaram o paradoxo como um recurso exclusivo dos artistas. Mas seres especiais como Einstein, Da Vinci e Schenberg passeavam livremente entre as galáxias do conhecimento, negando as demarcações e abrindo caminho para um território integrado.

Quem não lembra as pesquisas no campo da psiquiatria, estimulando o exercício da pintura entre os seus pacientes? O profundo mistério do inconsciente, vindo à tona em formas e cores, ensejou novas atitudes na avaliação de doenças mentais. Isso nos remete àqueles que elegeram a fantasia como um dos instrumentos para a descoberta científica. Disse o nosso professor Schenberg: "A imaginação fantástica pode tornar-se um guia para a ação mais eficaz do que o simples raciocínio lógico, no mundo de hoje e, sobretudo, no de amanhã".

Do ponto de vista pedagógico, há quem defenda um modelo que aprofunde o domínio da matemática e das ciências, tendo em vista serem matérias vitais para qualificar a mão-de-obra e simultaneamente despertar vocações científicas. Temos dúvidas sobre a aparente lógica dessa proposta. Se entendemos a ciência como o domínio sistemático do saber, podemos dizer que ciência é tudo que se aprende nos bancos escolares, incluindo as Humanidades. A rígida categorização do termo sempre remete às ciências naturais, aplicadas, experimentais e outras formas de conhecimento adquiridas pelo estudo.

O ensino deve abranger todas as disciplinas, inclusive a arte. Esta categoria certamente não-científica é tão importante para a humanidade como se o fosse. Os desafios, portanto, são iguais para todos os professores que, neste novo século, terão diante de si uma geração extremamente abastecida de informações e com um espantoso domínio das novas tecnologias informacionais. Por isso, além do conhecimento específico da matéria ensinada, o professor deve ter acesso às mesmas fontes que o seu aluno pode usar fora da sala de aula.

Educar significa formar lideranças, agentes de mudanças, homens e mulheres dispostos a assumir riscos para construir uma vida melhor. A universidade que todos queremos tem nos valores humanos uma dimensão fundamental. Cada instituição deve agregar ao seu papel pedagógico a obrigação de formar cidadãos críticos. Configurando-se como refúgio de valores ela poderá oferecer aos estudantes algo mais que um diploma e habilidades profissionais.

Vivemos um tempo violentado pela mais selvagem materialidade — o que explica essa desesperada "corrida para a fé" que se manifesta em todo o mundo, com aspectos benéficos ou preocupantes. Benéficos, quando tornam os homens conscientes das suas limitações terrenas; preocupantes quando os empurram para os caminhos do fanatismo. Neste quadro, a difusão de valores, exercida principalmente pelas Humanidades, assume importância vital, no espaço em que se formam as concepções de vida.

É importante qualificar os valores a que me refiro, de modo a não serem tomados como preceitos superficiais de "educação moral e cívica". Valores não se ensinam como se fossem disciplinas curriculares, até porque isso pressupõe que os mestres são virtuosos por definição e os estudantes apenas aprendizes ou seguidores dos seus padrões éticos.

Os valores aqui lembrados devem ser construídos coletivamente na vida em academia. Quando, por exemplo, nos reunimos para discutir políticas públicas e direcionar a nossa competência técnica em favor de soluções mais justas para os problemas nacionais de saúde, emprego ou meio ambiente, estamos praticando os valores da solidariedade.

Valores não são apenas conceitos abstratos a serem invocados em cerimônias universitárias. O pluralismo, a excelência, a solidariedade e o universalismo devem permear ações concretas. Devem circular nas veias da universidade, garantindo a sua existência e a sua verdadeira natureza.

A natureza da instituição acadêmica oferece ao estudante a observação permanente do conflito das idéias, que é um dos mais apaixonantes fenômenos da vida intelectual. Com os elementos recolhidos nesta observação cotidiana o jovem constrói livremente o seu projeto de vida, desenha o seu perfil de cidadão pensante, aprende a compreender a diversidade. A discriminação, a injustiça, o preconceito e a intolerância, tão presentes na vida em sociedade, têm espaço mais restrito na vida em academia. Isso não se dá porque nascemos melhores do que outros concidadãos, mas em decorrência do convívio respeitoso a que nos habituamos com as mais variadas tendências de pensamento.

Enquanto não incorporar este ponto à sua missão acadêmica, uma universidade não merecerá por inteiro esta denominação. A palavra universidade, em sentido largo, não traduz apenas um conjunto de escolas voltadas para o progresso científico. A universidade é também uma instância formadora de indivíduos capazes de ampliar os horizontes da sociedade em que atuarão.

O empobrecimento da vida cívica na moderna sociedade de consumo, tão lamentada pelos críticos da cultura liberal, assume proporções ainda mais perigosas em países jovens como o Brasil. Neles, a escassez de oportunidades cria perigoso espaço para a ambição desmedida, a inveja, a disputa feroz, a falta de coesão social. A universidade, nesse contexto, tem um enorme papel corretivo e civilizador a exercer. O culto aos valores é o caminho certo para desempenhar este papel. Nenhuma outra área, dentro da academia, possui meios mais eficazes para disseminá-lo do que a área das Humanidades.

Comete-se, neste início de século, o grande equívoco de supor que as Ciências Humanas tiveram o seu papel diminuído, em virtude da revolução tecnológica. Não houve isso e jamais o haverá na história do conhecimento. Nenhuma civilização, por mais avançada que seja no domínio da tecnologia, poderá prescindir de estudos nas áreas de Filosofia, Antropologia, Sociologia e Ciências Sociais de modo geral. Não se trata de qualquer restrição de papel e sim da sua ampliação, como propôs um dos luminares da Universidade de São Paulo na área de Humanidades. O nosso professor emérito Octávio Ianni sugere uma redefinição do papel atual desta área. Ele afirma que a globalização, a despeito de todas as suas inconveniências, enseja uma espécie de renascimento neste campo de pesquisa. Diz Ianni que até mesmo a interpretação do passado, iluminado por uma nova luz, pode ser revista. As condições históricas sofreram tamanhas alterações que novos nexos estabeleceram-se entre o passado, o presente e o futuro.

A globalização é talvez o fenômeno mais intensamente discutido nos meios acadêmicos em todo o mundo e certamente constitui um divisor de águas. Satanizado ou santificado como se fora uma ideologia, impõe-se como evento histórico irrevogável, com os efeitos que conhecemos. Efeitos benéficos ou perversos, dependendo naturalmente da ação dos governos, empresas ou grupos sociais. E, dentre estes, aquele que detém um papel crítico insubstituível, que é o segmento acadêmico.

Foram abolidas as fronteiras tradicionais entre países e surgiram outras, que um mestre das Humanidades, o filósofo Michel Serres, chama de "fronteiras porosas". Esta abolição é um fenômeno de face dupla. Embora favoreça o sonho da ciência mundialmente compartilhada, também pode representar, no plano cultural, a imposição aos países mais fracos, pelos mais fortes, de suas formas de agir, pensar e viver. Pode representar o desgoverno das finanças, pois os fluxos de capitais especulativos, como sabemos, vêm escapando ao controle dos Estados nacionais. A globalização pode representar não uma nova ordem, mas uma nova desordem mundial, absolutamente destituída de valores.

Vemos, nesse terreno, largo espaço para a intervenção construtiva das Humanidades. Cabe à consciência acadêmica, em todos os países, fixar as bases de uma solidariedade transnacional. Cabe-nos achar a ética do futuro e buscar meios de submeter o processo de globalização aos limites necessários. A História sempre acaba impondo limites, mas a História também é fruto de ações humanas. A melhor expectativa que podemos ter do século XXI é que faça da globalização inevitável uma força dinamizadora das transformações sociais e não apenas o que tem sido até agora.

Uma função essencial da universidade é ensinar a pensar. A formação profissional ladeia este objetivo e de nenhum modo está acima dele. Não cabe, no locus acadêmico, qualquer predomínio de uma escola sobre outra. Não vejo lógica no discurso que aponta escolas nitidamente profissionalizantes como mais úteis à sociedade que as demais, cujos alunos, depois de formados, não são facilmente absorvidos pelo mercado de trabalho. Trata-se de um discurso equivocado e simplista. A universidade é uma instituição formadora de mentalidades. Esta, nenhuma outra, é a sua grande missão. Entendo, portanto, que cabe às Humanidades, em parceria com as gestões universitárias, redefinir seu papel dentro da academia e buscar novos meios para alargar o seu espaço no universo da pesquisa.

Jacques Marcovitch é professor-titular da Faculdade de Economia e Administração da USP e secretário de Economia e Planejamento do Estado de São Paulo. Foi reitor da Universidade de São Paulo no período de 1997-2001.

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  • MARCOVITCH, Jacques. A universidade (im)possível São Paulo: Futura/Siciliano, 1997.
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    Texto apresentado pelo autor no painel "Las Humanidades", das "Jornadas sobre Iberoamérica y Espanã - La Universidad en la sociedad del siglo XXI", organizado pela Universidad Complutense de Madrid, pelo Instituto de Estudios Internacionales e pela Fundación BSCH, em junho de 2001.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      21 Mar 2005
    • Data do Fascículo
      Dez 2002
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