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A disputa pela água em São Paulo: Entrevista com Gerôncio Albuquerque Rocha

ÁGUA

A disputa pela água em São Paulo

Entrevista com Gerôncio Albuquerque Rocha

O GEÓLOGO Gerôncio Albuquerque Rocha, natural de Palmeira dos Índios, Alagoas, afirma em entrevista concedida à revista Estudos Avançados que, na atualidade, os grandes problemas ligados à água, principalmente na região metropolitana de São Paulo, não acontecem por obra da Natureza. "São todos, na origem, problemas ligados ao modo de apropriação e utilização da água, cuja função social é quase sempre colocada em segundo plano", diz. Os problemas aos quais ele se refere são a má utilização da água, a disputa entre os grandes consumidores prejudicando o interesse geral, e a poluição generalizada que ameaça o meio ambiente.

Autor de Um copo d'água (Editora Unisinos, 2002), Gerôncio Albuquerque Rocha é, desde 1972, funcionário do Departamento de Águas e Energia Elétrica (DAEE), de São Paulo. Leia, a seguir, os principais trechos da entrevista concedida no dia 13 de fevereiro de 2003. (Marco Antônio Coelho e Dario Luis Borelli)

Estudos Avançados – Quais os principais problemas da água no Brasil em geral e na região metropolitana de São Paulo em particular?

Gerôncio Albuquerque Rocha – No Brasil, com exceção do Nordeste seco, existe abundância de água doce, mas esta água vem se tornando escassa em várias bacias. De modo generalizado, os dois maiores problemas são: a poluição dos rios e represas por esgotos domésticos e industriais; e a má utilização da água. Há uma disputa cega pela água entre os principais setores usuários: irrigação, abastecimento público, indústria e setor hidrelétrico.

A região metropolitana de São Paulo (localizada na bacia hidrográfica do Alto Tietê) é uma mostra dessa situação, levada ao paroxismo. Aqui a urbanização intensa e o uso desordenado da água acarretaram quatro grandes problemas: as enchentes, a poluição extrema dos rios, córregos e represas, a vulnerabilidade dos mananciais e a produção de energia elétrica com desperdício das águas.

Estudos Avançados – Como as universidades colaboram com a administração pública para a solução dos problemas da água na região metropolitana de São Paulo?

Gerôncio Albuquerque Rocha – O convite de Estudos Avançados aos professores da USP, Ricardo Toledo e Mônica Porto, para participar do dossiê (leia texto nesta edição), me parece oportuno, porque eles foram os coordenadores da elaboração de um plano da bacia do Alto Tietê.

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A Universidade tem um potencial muito grande em todas as áreas, mas pela primeira vez ela se engaja na análise da situação dos recursos hídricos, de uma bacia complexa como a da região metropolitana. Nesse projeto há muitas pessoas da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo, da Escola Politécnica, do Instituto de Geociências e de outros institutos. Uma equipe numerosa, portanto, em que cada um contribui com sua especialidade e vivência. Essa foi uma experiência interessante, porque embora o Alto Tietê já venha sendo estudado há muito tempo faltava uma abordagem integrada dos problemas da bacia. Essa equipe, de certo modo, avançou nisso.

Três grandes problemas se constituíram em desafios no sentido de apontar diretrizes futuras, havendo sido pedido no plano um horizonte de dez anos, até 2010. A primeira coisa é a garantia de água para o abastecimento da população; a segunda são diretrizes mais eficazes de controle das enchentes, que chegaram a um nível catastrófico em São Paulo; a terceira, a proteção dos mananciais. Além disso, como um desdobramento, apresentou-se um quarto desafio: o combate à poluição das águas.

Racionalização do uso da água

Estudos Avançados – Que medidas poderiam ser colocadas em prática para haver uso mais eficiente da água na região metropolitana de São Paulo?

Gerôncio Albuquerque Rocha – Há duas coisas que agravam o abastecimento de água em São Paulo. Por um lado, a perda de água no sistema e, por outro lado, a falta de racionalização de seu uso. A questão da perda está relacionada à falta de investimento na manutenção da estrutura de distribuição. Às vezes confunde-se a perda de água com sua falta na bacia.

Há mais de cinco anos ocorreram problemas sérios de rodízio de água na região metropolitana, a ponto de as pessoas terem água potável em casa apenas duas vezes por semana. Isso atingia sempre a periferia, cerca de três milhões de pessoas, por volta de 1994 e 1995.

Esse problema era associado à falta d'água nos reservatórios, até que técnicos concluíram que o essencial era os problemas de redes que não chegavam a lugares elevados, e, quando chegavam, não tinham pressão suficiente. Ou seja, faltavam reservatórios pequenos de meia encosta. Em suma, a questão estava ligada mais à manutenção do sistema. A partir daí começaram a investir em manutenção. Hoje, a Sabesp fala que acabou com os rodízios. Talvez não tenha acabado, mas diminuiu bastante.

Há, além disso, muita perda de água. Há cerca de dez anos uma empresa francesa fez um levantamento e constatou que no sistema de abastecimento metropolitano, havia uma perda total de 44%, dividida em duas categorias: 22% de perda física (vazamentos na rede, nas conexões prediais etc.) e 22% eram perdas "de faturamento" da empresa (ligações clandestinas). Hoje eles dizem que houve uma redução para 18% dessa perda física.

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Temos, também, o problema do desperdício: nós todos gastamos muita água. A agricultura na região do Alto Tietê consome o dobro do que seria necessário para manter a mesma produtividade. Há um diagnóstico recente dos técnicos do Instituto de Pesquisas Tecnológicas de São Paulo sobre o cinturão verde na região de Mogi das Cruzes, em São Paulo. Esses técnicos não só fizeram os experimentos de campo, mas, depois de um certo tempo, promoveram uma jornada de trabalho com os representantes dos principais irrigantes, demonstrando que com o consumo de metade da água os agricultores aumentariam a produtividade e economizariam fertilizantes.

A reutilização da água limpa que sai das estações de tratamento de esgotos é, sem dúvida, uma forma de racionalização, não só nos processos produtivos, mas também nos serviços municipais (lavagem de ruas, regamento de praças etc.), evitando o consumo de água potável. Isso está sendo feito, mas ainda em escala modesta.

O trabalho pela racionalização do uso de água tem de ser procedido junto ao usuário. O segundo passo tem de ser em cada residência. Pessoas ligadas à educação ambiental (e concordo com elas) afirmam que a grande linha de investimento dos governos e das organizações sociais são as crianças, pois são mais sensíveis às questões ambientais.

O caso dos mananciais

Estudos Avançados – Que medidas o poder público e a sociedade podem tomar no sentido da preservação dos mananciais? Sabemos que ainda há invasões nestas áreas, particularmente nas de Guarapiranga, Billings e também na Cantareira.

Gerôncio Albuquerque Rocha – É interessante situarmos geograficamente a bacia do Alto Tietê. O rio nasce em Salesópolis, a uns 100 km daqui; é seccionado em Pirapora por uma barragem. Esse pedaço da bacia é o Alto Tietê, abrangendo 34 municípios na região metropolitana de São Paulo. Nele vivem 17,5 milhões de pessoas. Um enorme aglomerado humano numa área relativamente pequena, menos de 6.000 km2, talvez a segunda maior em densidade demográfica do mundo. Ao norte e ao sul da bacia estão as formações florestais: na serra da Cantareira e na serra do Mar. Uma região com um padrão de chuvas muito bom, considerado elevado, com uma média de 1.500 mm por ano; e na fronteira com o topo da serra do Mar esse índice chega até a 3.000 mm por ano. O rio Tietê, correndo de leste para oeste, e os seus afluentes, todos com uma drenagem centrípeta, formam uma imensa planície, ao longo do processo geológico.

Aziz Ab'Saber descreveu muito bem o sítio urbano de São Paulo no início dos anos de 1950. Para mim, do ponto de vista da caracterização geográfica, ainda é o grande trabalho sobre a bacia. Ele mostra como a planície de inundação chega a ser quarenta vezes a largura do rio. É uma várzea que tem uma função importantíssima para a acomodação de cheias. O processo de urbanização que sobreveio, principalmente depois dos anos de 1950, é que foi acarretando disputa pelo espaço entre a cidade e as águas do rio. Esse primeiro grande conflito está na origem dos problemas das enchentes, principalmente a partir dos anos de 1970, quando a urbanização se tornou vertiginosa, sempre às custas das margens do Tietê e de seus afluentes: Aricanduva, Tamanduateí, Pinheiros.

A segunda questão no processo de urbanização, principalmente nos últimos trinta anos, foi o processo de expulsão da população do centro para a periferia. A região central já estava consolidada na década de 1960. Em paralelo com o boom da industrialização nos anos de 1970, o processo foi tão descontrolado, e ao sabor de loteadores, que a população acabou sendo empurrada para a periferia da cidade. Ora, exatamente na periferia da cidade estão os mananciais (os principais, a Billings e a Guarapiranga). Nos anos de 1990, houve uma expulsão efetiva da população pobre para as periferias. Isso está nos dados do censo e dá para visualizar em mapas. E aí vem a questão da proteção dos mananciais – um claro conflito histórico.

Temos esses dois mananciais na região Sul, e temos os das cabeceiras do Tietê na região de Salesópolis, Biritiba, Paraitinga. Mananciais um pouco mais protegidos porque a urbanização não avançou significativamente para aquela região. A Billings e a Guarapiranga são os mananciais que apresentam maior risco. Na região devem viver três milhões de pessoas. A maior parte dessa urbanização vem de muitos anos, é o que se chama hoje de urbanização consolidada. Às vezes, à beira da represa, existem construções protegidas de alvenaria e que originalmente já eram irregulares face à legislação da época. A lei de proteção de 1975 nunca deteve o avanço da urbanização, apesar de uma de suas premissas fundamentais ter sido exatamente isso.

Desde 1997 há uma nova lei de proteção. A antiga era válida para a região metropolitana de São Paulo; a nova vale para todo o Estado. Ela tem princípios gerais, mas prevê que cada manancial tenha uma lei específica de proteção. E esse é exatamente o processo que, de 1997 para cá, tenta-se colocar em prática. A primeira proposta de lei específica para a Bacia do Guarapiranga está para ser aprovada na Assembléia Legislativa. O processo de elaboração dessa lei foi diferente da anterior. Ela foi discutida amplamente entre os órgãos do Estado, das prefeituras e das organizações da sociedade civil. Houve consenso sobre as diretrizes dessa lei nova. A lei geral prevê que em cada manancial seja estabelecido um Plano de Desenvolvimento e Proteção Ambiental, com uma discriminação maior das atividades ecologicamente sustentáveis. Como nessa área há restrições às atividades econômicas; recursos são previstos para compensar os municípios onde há mananciais. Então, a nova lei prevê que esses municípios sejam recompensados porque são produtores de água.

Agora há, na figura da lei, o plano, o esquema de gerenciamento e fiscalização local e mecanismos financeiros a serem investidos na recuperação de áreas degradadas. Do ponto de vista legal e institucional está sendo um trabalho complicado construir esse mecanismo com participação mais democrática, mas estão sendo criados mecanismos para a proteção efetiva dos mananciais. Mas há quem assegure que essa defesa somente se efetivará se houver um movimento muito forte dos municípios e da sociedade civil organizada, e principalmente da população pobre que vive à beira de mananciais.

A questão ultrapassa a ótica dos recursos hídricos, assim como os quatro problemas que levantei no início. No âmbito de nosso Comitê de Bacia, no ano de 2000, fizemos algumas reflexões coletivas e chegamos a uma conclusão: os problemas de recursos hídricos não podem ser enfrentados isoladamente. Eles estão intrinsecamente associados ao uso do solo, ao sistema viário e de transportes e principalmente à questão da habitação, ou seja, a outras políticas públicas. Sob este aspecto, a administração pública está atrasada, porque ainda não conseguiu organizar um amplo fórum de gestão metropolitana.

Na questão específica da proteção dos mananciais há esses instrumentos sobre o quais falei e também mecanismos que poderiam ajudar numa estratégia que pudesse ser em sua defesa. Uma represa como a Guarapiranga é constituída por alguns pequenos córregos e há áreas em torno deles que ainda não estão desmatadas (chamadas de áreas produtoras de água). Tratando-se de uma região altamente estratégica para a produção de água, seria válido, por isso, que o poder público adquirisse, cercasse e cuidasse dessas terras que ainda estão protegidas, para evitar que algum particular, que hoje é dono dessas terras, faça mau uso delas.

A questão do Guarapiranga

Estudos Avançados – Você propõe que o Poder Público compre terras na área da represa do Guarapiranga?

Gerôncio Albuquerque Rocha – É uma política para que o próprio poder público, e no caso específico da Guarapiranga, a Sabesp, que é quem se utiliza do manancial, invista uma parcela de seus recursos na aquisição de terras. Trata-se de um mecanismo usado em outros países com eficácia, porque a primeira interessada é uma estatal que, para proteger seu manancial, adquire o máximo de terrenos em volta dele para assegurar que eles não sejam ocupados indevidamente.

Estudos Avançados – Seria uma espécie de Área de Proteção Ambiental?

Gerôncio Albuquerque Rocha – A figura da APA já existe, mas o poder público não consegue cuidar dela porque a terra ali dentro ainda é do proprietário, do particular, que geralmente não a utiliza. Há medidas sugeridas e há mecanismos legais de proteção dos mananciais, mas a defesa efetiva depende muito do envolvimento da própria população. O que tem ocorrido muitas vezes é que se joga a culpa na população. Há uma tendência atual de algumas administrações de fazer a reurbanização naquelas urbanizações consolidadas (aliás, se usa nomes mui elegantes para não se chamar diretamente de favelas). Ou seja, dotar essas áreas de arruamentos e de serviço de água e esgoto, que a lei antiga não permitia sob o pretexto de não induzir a ocupação.

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A polêmica do Rodoanel

Estudos Avançados – Você acha que o prosseguimento do Rodoanel, tanto no que diz respeito às represas, quanto em relação à alça Norte, pode ser negativo para a defesa do meio ambiente na região metropolitana?

Gerôncio Albuquerque Rocha – Gostaria de deixar claro, como uma preliminar, que há debates que são levantados, mas que de tempos em tempos ficam adormecidos. Para mim, mais importante que o Rodoanel é a questão, quase centenária, da produção de energia elétrica por meio da Billings. Do ponto de vista da proteção dos mananciais, esse é o grande desafio.

Quanto ao Rodoanel, eu vi os estudos iniciais (os quais, aliás, por enquanto, são bem superficiais), assisti às exposições perante as nossas câmaras técnicas do Comitê do Alto Tietê e, nós mesmos do Comitê, promovemos no final do ano um debate no Instituto de Engenharia, onde estiveram presentes representantes da Dersa e outros convidados. Nosso debate foi centrado na questão dos possíveis impactos: Rodoanel e mananciais. Mas no debate houve questionamentos anteriores sobre a própria necessidade do Rodoanel. O trecho Sul passa pelos braços das represas Billings e Guarapiranga; os terminais do trecho Norte chegam bem perto da represa Paiva Castro, que armazena e transfere para a Capital cerca de metade da água para o abastecimento da região metropolitana. Além disso, o trecho Norte corta, pelo traçado proposto, a serra da Cantareira.

Nos últimos tempos, tem havido audiências públicas e no Comitê nós pretendemos avançar nessa discussão. Uma coisa ficou clara – o traçado proposto pelo Dersa precisa ser revisto em vários pontos. No trecho Norte, claramente, e no Sul também, porque houve uma opção no traçado (talvez para diminuir custos) de chegar a estrada mais próxima das áreas de mananciais e menos das áreas já urbanizadas. Também não estão claros na proposta os ressarcimentos para a proteção do manancial. O projeto continua polêmico na forma como foi proposto. A meu ver, teria de se buscar novos traçados, se for uma decisão irrevogável. Lamentavelmente, não tenho os conhecimentos necessários para afirmar se a grande obra é necessária ou não. Mas várias pessoas e especialistas em transportes a questionam, e por inteiro, não por ameaçar os mananciais e sim por ser desnecessária, por ser um investimento de cinco bilhões de reais, com poucos resultados.

Erros de determinadas políticas

Estudos Avançados – A sensação que temos, principalmente na região Sudeste, talvez por causa da região Amazônica, é que as pessoas consideram a água uma fonte de recursos inesgotáveis. Já existe uma mudança de mentalidade a respeito desse entendimento?

Gerôncio Albuquerque Rocha – Essa visão da água como recurso inesgotável está sendo desfeita pela realidade. Há situações críticas em várias bacias. Mas na Amazônia a abundância é evidente. Na medida em que o processo de uso irracional da água foi gerando problemas nas outras bacias, problemas de escassez, de falta de água para beber, acho que (mas não tenho parâmetros para medir isso) a população já entende que a água não é tão farta e que não pode ser desperdiçada. Meu medo é que os grupos econômicos e alguns segmentos da administração pública continuem com essa visão, fazendo políticas inadequadas de aproveitamento das águas. Essa visão é mais perigosa porque condiciona políticas. Por exemplo, nosso Código de Águas é de 1934 e continua vigente. Em muitos tópicos ele deixa claramente definida a prioridade do abastecimento público na política de aproveitamento de água. E depois é que são colocados outros usos, como a produção de energia elétrica. Ou seja, um uso não pode anular o outro.

Mas nossa história de administração pública mostrou que esses princípios, ao longo dos tempos, foram desobedecidos. Ou seja, desde o início sempre houve um setor que assumiu uma hegemonia muito grande, o setor hidrelétrico, que se impôs sobre outros setores. Se o abastecimento público tiver de ser prejudicado em detrimento da energia elétrica, será prejudicado. A navegação também. Temos várias barragens ao longo de rios (o Paranapanema é um caso) em que não foram feitas eclusas, porque na época ficaria uma obra mais cara e também porque a navegação naquele trecho do rio não seria imediata. As barragens foram feitas sem eclusas, eliminando a possibilidade de navegação num trecho da divisa de São Paulo com o Paraná, onde o escoamento de grãos é fundamental. Havia entendimento entre os dois governos para usar aquele trecho do Paranapanema como hidrovia. Contudo, o setor elétrico se antecipou porque a produção de energia era algo que se queria viabilizar naqueles tempos.

Outra coisa: uma das condicionantes do Código de Águas proclama a necessidade da livre circulação dos peixes. Quando você vai fazer uma barragem, essa é uma coisa elementar, todos fazem escadas para os peixes, mas isso nem sempre acontece: temos barragens sem escadas que prejudicam a reprodução destes animais, afetando a piracema.

O uso da Billings

Estudos Avançados – O uso da água da Billings para Henry Borden está suspenso? Você tem receio de que uma decisão administrativa permita esse uso? Não acredita ser um caso esquecido?

Gerôncio Albuquerque Rocha – Essa utilização está suspensa desde 1989, por um preceito da Constituição Estadual. Mas essa ameaça não é um caso esquecido e assim pensam os que debatem essa questão. O esquema original planejado em 1930 era muito inventivo. Com a construção da Billings, inverteu-se o curso do rio Pinheiros, com o bombeamento de água do Tietê. A água da Billings descia pela serra (cerca de 700 m) a fim de produzir energia na usina Henry Borden. Essa energia, hoje, talvez não represente nem 5% da energia da região metropolitana, mas sempre foi um trunfo para o setor energético, porque a represa está ali perto da cidade e a usina também no pé da serra. Mas, com o processo de poluição, o que passou a ser bombeado foi esgoto e a Billings passou a ser uma depositária de esgoto. O chamado corpo central da represa ainda é uma avenida para veicular o esgoto do Tietê. Mas a Constituição de São Paulo proibiu bombear água contaminada para mananciais. Até entrar em vigor (automaticamente deveria estar em vigor) se passaram uns quatro anos de disputa, porque o setor energético ignorava isso. Até que se chegou a uma solução conciliatória: houve uma decisão de governo, de três secretarias (recursos hídricos, energia e meio ambiente) estabelecendo algumas regras. Por exemplo, pode-se bombear excepcionalmente, ou seja, no período chuvoso, para diminuir enchentes rio abaixo. Além disso, pode-se bombear grandes quantidades de águas poluídas nos dias chuvosos rio acima (no Tietê e no Pinheiros). O fato é que há a proibição, mas a permissão continua condicionada.

O que está por trás disso é que nesses setenta anos, as condições mudaram totalmente. Antes a energia era uma prioridade, esse esquema era prioridade e foi importantíssimo para o desenvolvimento econômico de São Paulo e de cidades vizinhas Mas hoje essa água é altamente estratégica para o abastecimento público. A grande irracionalidade não é o que se produz de energia, é o quanto se verte de água no esquema antigo (até 100 m3/s, quase toda a vazão do rio). Porque só 10%, no máximo 20%, são utilizados em Cubatão, para o abastecimento da Sabesp. A maior parte, até 90%, vai para o mar. Como pode, numa bacia como a do Alto Tietê, se dar ao luxo, a pretexto de um lucro momentâneo de produção de energia, desviar uma boa parte de suas águas para a vertente marítima? É um desperdício que não se justifica. No passado não havia problema de água. Porém, hoje temos o problema de abastecimento, para o qual essa água é preciosíssima.

Há iniciativas recentes que mostram que todos devemos ficar com a pulga atrás da orelha. Há dois anos o setor elétrico, a Emae (Empresa Metropolitana de Água e Energia), que é quem está operando esse esquema depois da privatização, lançou um edital conhecido como Projeto Flotação. Foi considerado um projeto prioritário do governo. Aliás, o próprio título do edital é: Venda de Energia Elétrica Adicional por conta da recuperação das águas do Pinheiros.

É claramente colocado como um negócio. Como está proibido o despejo de água poluída na Billings, ele se propõe a tratar a água do Pinheiros pelo método de flotação, que se estiver dentro dos parâmetros admissíveis pelo Conama (água – classe dois) não haveria problemas em jogá-la na represa. Por conta disso, esse volume adicional de água tratada corresponde a um volume adicional de energia. Quem quiser fazer esse negócio vai produzir um tanto de energia a mais e, evidentemente, vai lucrar com isso.

O que é isso senão um atalho, uma tentativa do caminho mais curto para manter o mesmo esquema? Na verdade, não são as águas do Pinheiros, são as do Tietê. Equivale a tratar as águas gradativamente em volumes maiores e bombear continuamente mais de 50 m3/s para produzir energia e jogar a água no mar. É uma lógica que se impõe, entra e sai governo.

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Uma aposta otimista

Estudos Avançados – Ao debater essas questões vitais de São Paulo, como o senhor encara o futuro?

Gerôncio de Albuquerque Rocha – Sou esperançoso, não gosto das visões catastrofistas. Permita-me citar um pequeno texto que escrevi há três anos.

São Paulo é Azul

Vista de cima, a mais de 700 km de altura, a metrópole paulistana – revelada no espectro visível da imagem do satélite LANDSAT – é de um marrom acinzentado invadindo o verde da vegetação; porém, quando a imagem é processada fora do espectro visível, São Paulo é de um azul celeste.

Ao rés do chão, São Paulo é multicor: o cinza viscoso dos rios e córregos; o cinza fuligem das nuvens de poluição; os pigmentos verdes dos poucos parques e praças; o marrom avermelhado dos loteamentos e construções; e as cores várias da "cidade dos mil povos". Predominam as cores do desencanto: o lixo em profusão; as enchentes catastróficas; as águas sujas e tantas outras sujeiras. Parece que o ambiente urbano despreza as pessoas.

Ora, gente e ambiente não podem viver separados. Nos últimos anos, a sociedade tenta dizer isso aos governantes e, agora, parece que se deu conta de que não adianta esperar. O jeito é juntar as energias positivas – tanto dos governos (Estado e Municípios), como das organizações e movimentos dos cidadãos. Multiplicam-se as iniciativas locais para cuidar da rua, do bairro, do pedaço; para exigir do poder público que faça a sua parte, e, sobretudo para demonstrar que é possível ter uma vida melhor.

Pois então – como mensagem de esperança e de estímulo aos nossos filhos e netos e, também, de desafio aos governos –, fica decretado: São Paulo é azul.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    08 Ago 2008
  • Data do Fascículo
    Abr 2003
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