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Circular (ou não) em São Paulo

Resumos

Este artigo discute os conflitos existentes na questão da circulação na Região Metropolitana de São Paulo, mais exatamente no município de São Paulo. As contradições entre os diversos atores (empresários de ônibus, transportadores autônomos, transportadores de carga, motociclistas, pedestres e usuários) são analisadas, assim como as medidas necessárias para garantir a viabilidade da circulação na metrópole. Também são relatadas medidas e dificuldades encontradas pela Prefeitura de São Paulo para reorganizar o transporte público.


This article examines the conflicts involved in circulating in the São Paulo metropolitan region, more precisely in the city of São Paulo. The contradictions between the various players (bus company operators, independent van drivers, freighters, motorcyclists, pedestrians and users) are here analyzed, as well as the measures required to assure the feasibility of moving around in the metropolis. Also included is an account of the actions and problems of the municipal government in attempting to reorganize public transportation


SÃO PAULO II

TRANSPORTE

Circular (ou não) em São Paulo

Carlos Zarattini

RESUMO

Este artigo discute os conflitos existentes na questão da circulação na Região Metropolitana de São Paulo, mais exatamente no município de São Paulo. As contradições entre os diversos atores (empresários de ônibus, transportadores autônomos, transportadores de carga, motociclistas, pedestres e usuários) são analisadas, assim como as medidas necessárias para garantir a viabilidade da circulação na metrópole. Também são relatadas medidas e dificuldades encontradas pela Prefeitura de São Paulo para reorganizar o transporte público.

ABSTRACT

This article examines the conflicts involved in circulating in the São Paulo metropolitan region, more precisely in the city of São Paulo. The contradictions between the various players (bus company operators, independent van drivers, freighters, motorcyclists, pedestrians and users) are here analyzed, as well as the measures required to assure the feasibility of moving around in the metropolis. Also included is an account of the actions and problems of the municipal government in attempting to reorganize public transportation

Não é novo o problema da circulação na cidade e na Região Metropolitana de São Paulo. Desde os anos de 1960, a expansão das periferias e o grande número de automóveis circulando geraram congestionamentos e penosas viagens no transporte coletivo. Nessas quatro décadas, a única medida que amenizou essa situação dramática foi a implantação, a passos lentos, de três linhas de metrô. Os congestionamentos continuaram grandes e só não pararam de vez a cidade por conta de ações operacionais e implantação de tecnologias de controle do trânsito pela CET (Companhia de Engenharia de Tráfego) e por medidas como restrições à circulação nos horários de pico (rodízio municipal).

A cidade com 10,5 milhões de habitantes e uma frota de veículos em torno de cinco milhões está inserida em uma Região Metropolitana de 17,5 milhões de pessoas e concentrando 60% das empresas multinacionais instaladas no Brasil e 34% das quinhentas maiores empresas privadas brasileiras. Uma complexa rede de serviços modernos e de alta tecnologia, especialmente os corporativos e financeiros, e a liderança na produção de informação e cultura é responsável pela geração de um PIB (Produto Interno Bruto) da ordem de US$ 80 bilhões, que corresponde a 14% do PIB brasileiro. No entanto, trata-se de uma cidade com altos índices de exclusão e desemprego, o que faz com que a maioria da população não usufrua dessa riqueza.

Sem dúvida, um dos fatores que impede não apenas o desenvolvimento da cidade, mas também a democratização das suas possibilidades é o problema da circulação. Diversas teses e pesquisas já demonstraram que a falta de acessibilidade no transporte público (baixa oferta na periferia, más condições dos veículos, tarifas altas, entre outros) é uma das causas da opção pelos automóveis na classe média e nos estratos mais altos dos trabalhadores. O tempo médio gasto em uma viagem pelo transporte coletivo (49,7 minutos) é 2,3 vezes maior do que se realizada com automóvel (21,2 minutos).

Portanto, é evidente que a melhoria do transporte público é uma questão-chave para resolver, ao mesmo tempo, duas questões: a redução dos tempo gasto pelas pessoas em sua circulação e a melhoria da acessibilidade de toda a população, em especial dos mais desfavorecidos. Ter um transporte público de qualidade é a única possibilidade de garantir a circulação na cidade. Dessa forma, evita-se a ampliação do uso do transporte individual e é possível garantir a diminuição do tempo gasto com deslocamento para a maioria da população.

Do ponto de vista da técnica não há muitas dúvidas do que deve ser feito. A expansão das linhas do metrô para atender aos grandes fluxos de viagens, a melhoria do transporte por ônibus, garantindo a exclusividade em uma ou mais faixas do sistema viário (corredores, faixas exclusivas etc.), o atendimento dos pequenos fluxos (em especial na periferia e no centro) por veículos de menor capacidade, a integração operacional e tarifária de todos os modos de transporte, a ordenação da circulação dos veículos de carga, a implantação de controles para a circulação e estacionamento de veículos particulares etc.

Integração institucional

Se existe consenso no que diz respeito à técnica, também existe muita divergência em outros aspectos. Um deles é a divisão das competências entre Estado e Município, não resolvida pela legislação que rege a Região Metropolitana. O Município é o responsável constitucionalmente pelo transporte no seu território, é o poder concedente do transporte municipal. O Metrô de São Paulo, apesar de ter como acionista majoritário o Governo do Estado, é uma concessão municipal. As linhas intermunicipais (que circulam entre cidades da Região Metropolitana) devem ter autorização municipal para circular no seu território. As rodoviárias que recebem passageiros de distâncias maiores também têm seu funcionamento regido pelo Município.

Por outro lado, é evidente que o Município não pode tomar decisões que afetam a toda a circulação na Região Metropolitana sem que leve em conta os interesses de todos os municípios e da região como um todo. Essa dupla gestão (Município e Estado) é fonte de intermináveis conflitos. As linhas e estações do metrô são definidas exclusivamente pelo Estado e o Município não é consultado. O resultado mais recente foi a inauguração da Linha 5 (Capão Redondo–Santo Amaro) que, devido a indefinições no que diz respeito a tarifas e integração com o sistema de transporte municipal, transporta apenas quinze mil passageiros por dia, tendo custado cerca de US$ 700 milhões.

O sistema de trens da CPTM não teve definida suas tarifas de integração com o Município de São Paulo e com qualquer outro dos municípios da Região Metropolitana, fazendo com que a demanda continue baixa. O caso mais flagrante é o da chamada Linha Sul, que liga Jurubatuba a Osasco e que corre paralela ao rio Pinheiros e ao eixo da avenida Faria Lima. Nessa linha, a capacidade de transporte é de quinhentos mil passageiros/dia, mas atinge apenas cinqüenta mil. A marginal do Pinheiros continua congestionada.

As linhas intermunicipais já tiveram diversos planos de troncalização, isto é, construção de terminais nos municípios onde têm origem e a concentração dos passageiros em veículos maiores, transitando por vias de maior capacidade até os principais subcentros da cidade de São Paulo. Esses planos nunca saíram do papel e o que se vê é uma infinidade de linhas saindo do diversos bairros dos municípios vizinhos, congestionando o sistema viário municipal, degradando os subcentros de bairros como Pinheiros, Lapa, Santo Amaro, Santana e ainda competindo na disputa dos passageiros que realizam viagens municipais (com origem e destino no Município de São Paulo). As linhas intermunicipais têm suas tarifas definidas pela distância que percorrem (tarifa quilométrica) e por definição devem ser mais caras que as tarifas municipais, no entanto, quando adentram a cidade de São Paulo, têm seus valores ajustados pela tarifa local, de modo que possam concorrer com as linhas municipais.

O Governo do Estado elaborou um Plano Diretor de Transporte para a Região Metropolitana, o chamado IPTU 2020, com definições de planejamento para duas décadas. No entanto, as decisões de investimento continuam centralizadas no Estado, quando ocorrem nas suas empresas, ou descentralizadas nos municípios, quando são de sua alçada. Isso faz com que o planejamento não tenha uma implantação integrada, ocorram desperdícios de recursos e a eficácia dos investimentos seja reduzida.

A necessidade de uma nova Lei da Região Metropolitana de São Paulo que regule seu funcionamento é premente. Questões como o saneamento, habitação, segurança e, evidentemente, transporte, devem ter soluções metropolitanas. No caso dos transportes é necessário, inclusive, que se discuta a criação de uma Agência Metropolitana de Transportes que regule, organize e operacionalize o transporte em toda a Região Metropolitana.

Interesses em conflito

Mais complicados ainda se tornaram os problemas de ordem "política". Não aqueles político-partidários das disputas eleitorais ou preeleitorais, mas sim aqueles que tratam de conflitos econômicos entre os diversos interesses que convivem na cidade. Pois são exatamente esses interesses que agem no sentido de, por incrível que pareça, deixar tudo como está.

É possível localizar claramente alguns desses conflitos. A disputa entre o transporte público e o individual surge a todo o momento em que se implanta alguma medida que privilegie o transporte público no sistema viário. Apesar de ser claro e evidente que se transportam muito mais pessoas nos ônibus, quando se estabelecem faixas exclusivas que vão garantir maior velocidade para essas pessoas, surgem os protestos daqueles que utilizam os automóveis. Ou mesmo quando se reduzem os espaços para o estacionamento nas vias públicas para ampliar o espaço de circulação.

O transporte público coletivo também tem seus conflitos com o transporte coletivo privado. É o caso dos ônibus de fretamento que vêm de outros municípios ou mesmo de dentro do próprio Município de São Paulo. Boa parte deles realiza um transporte clandestino, sem regulação alguma. Fazem uso do sistema viário conflitando com os coletivos públicos e estacionam em regiões centrais da cidade enquanto esperam seu horário de retorno aos bairros ou cidades de origem. Além de disputar com o transporte público o espaço, esse sistema desregulamentado ainda absorve um grande número de passageiros.

Outra disputa que existe pelo espaço viário se dá entre carros e motos. O número de motos tem se ampliado exponencialmente graças à sua agilidade e tem sido o meio de transporte preferencial para a entrega de pequenas cargas ou serviços. Milhares de empresas de "moto-boys" surgiram nos últimos anos e muitas delas exploram seus trabalhadores vinculando seus rendimentos ao número de entregas. A pressa e a circulação sem cuidados levam a um crescente número de acidentes envolvendo motoqueiros.

A disputa entre os veículos de carga e os veículos em geral também é um dos problemas a ser equacionado. Existem basicamente três tipos de carga circulando no município. As cargas de passagem, que se utilizam o sistema viário municipal para atingir seu destino fora da cidade, as que chegam ou saem da cidade e as que circulam dentro da própria cidade. As cargas de passagem são as principais responsáveis pelos congestionamentos no chamado Anel Viário Municipal, que inclui as marginais do Tietê e do Pinheiros. O projeto do Rodoanel, quando completo, deve retirá-las desse sistema viário. O segundo e o terceiro tipos terão soluções que envolvem desde os horários de entrega (preferencialmente noturno), implantação de terminais de carga dentro e fora da cidade e áreas e horários de restrições. Não se pode esquecer que restringir a circulação de cargas interfere diretamente no processo produtivo da metrópole, muitas vezes onerando custos e, outras, impedindo a própria existência de algumas atividades.

Mas os conflitos não se restringem aos vários tipos de veículos. Todos acabam entrando em conflito com os pedestres, que são os que mais sofrem com a falta de segurança no trânsito. Morrem atropeladas mais de seiscentas pessoas por ano na cidade, mas cada vez que o poder público implementa alguma medida que busca aumentar a segurança ocorre uma grita. Típica é a famosa discussão sobre a "indústria das multas" que combate o avanço tecnológico dos radares e máquinas fotográficas. Esses equipamentos possibilitam a exatidão na mensuração da velocidade e também a prova concreta da infração. Foi com eles que se conseguiu baixar o número de acidentes no trânsito em todo o Brasil.

A única defesa dos pedestres é o poder público. É por isso que deve atuar firmemente para garantir o respeito às regras de trânsito e, com isso, aumentar a segurança. Caso se omita, talvez deixe de ser criticado pelos órgãos de imprensa, mas, seguramente, estará contribuindo para o aumento dos acidentes e mortes.

Por fim, a expansão da circulação de forma geral também entra em conflito com o meio urbano como um todo. O aumento do fluxo de veículos altera os usos urbanos e, conseqüentemente, a vida das pessoas. Ruas tranqüilas deixam de sê-lo ao ter seu uso intensificado como rotas alternativas aos congestionamentos. Avenidas são degradadas quando se implantam projetos de transporte sem levar em conta seus usos, como ocorreu na Nove de Julho/Santo Amaro. Desapropriações alteram bairros inteiros para implantação de equipamentos de transporte (o caso mais significativo foi o metrô na zona leste o qual, praticamente, destruiu o bairro do Brás). Até mesmo a implantação de pontos de ônibus podem valorizar ou desvalorizar um ponto comercial ou residencial.

A Crise no Transporte Público

A Prefeitura de São Paulo, a partir de 2001, resolveu enfrentar o problema central da recuperação do transporte público, pois este era o elemento fundamental para que se atuasse sobre a questão da circulação como um todo.

Naquele momento, a perspectiva futura do sistema de transporte regular por ônibus (as empresas) era terrível. O número de passageiros vinha caindo desde 1996 e, com eles, a rentabilidade do sistema. Várias são as razões dessa queda: a implantação de terminais de integração na região central, que possibilitava economia para os usuários que podiam trocar de linha sem pagar uma segunda tarifa, mas não reduzia o custo das empresas; o aumento das linhas intermunicipais e a concorrência com as municipais; a ampliação das linhas e veículos do sistema "bairro a bairro" (os antigos ônibus clandestinos, regulamentados no governo Maluf); a proliferação do transporte clandestino por meio de "peruas" que chegou a quinze mil veículos.

Mas se se aumentava a concorrência às empresas regulares por um lado, por outro o formato do contrato entre a São Paulo Transportes (concessionária única do sistema municipal de transportes) e as empresas operadoras, induzia a uma situação cada vez pior.

O contrato inicial havia sido firmado em 1991 por ocasião da municipalização do sistema. Era um contrato onde as empresas eram remuneradas basicamente pelo custo operacional e não pelos passageiros transportados. Com esse tipo de contrato, a administração Luiza Erundina buscava aumentar a oferta de transporte na periferia, o que de fato ocorreu.

No entanto, esse tipo de contrato exigia um órgão administrativo forte e uma fiscalização eficiente. Não foi o que aconteceu nos dois governos seguintes. A CMTC foi privatizada e a SPTrans, sua sucessora, passou a ser apenas gerenciadora. Não houve uma racionalização do sistema e os empresários pressionavam a gerenciadora a aprovar novas linhas, muitas vezes concorrentes com a de outras empresas, para aumentar seu custo e, conseqüentemente, sua receita.

Os custos de fato aumentaram, e as tarifas idem. O serviço, no entanto, só fazia piorar. A frota não era renovada, não havia fiscalização eficiente sobre os horários, não se privilegiava o aumento da velocidade dos ônibus no trânsito. As lotações clandestinas surgiram, assim, nas brechas do sistema regular, onde o atendimento é pior ou mais demorado.

A solução passou a ser a injeção de subsídios do tesouro municipal. Entre 1997 e 2000 a Prefeitura aportou cerca de R$ 1 bilhão para as empresas de ônibus, mas nem por isso o sistema melhorou. Ao contrário, no final de 1998 houve uma nova reformulação nos contratos, com a fixação dos percentuais de cada empresa na arrecadação total de acordo com o estabelecimento de um "custo padrão" e de um "passageiro padrão". Fixados os percentuais criou-se a chamada "pizza" – apelido do novo contrato em decorrência da sua similaridade com os chamados "gráficos do tipo pizza". A partir daí, muitas empresas passaram a reduzir seus custos operacionais, diminuindo partidas, mas mantendo seu "custo padrão". O resultado não poderia ser outro: queda ainda maior no número de passageiros e aumento crescente do número de lotações clandestinas. E mais subsídio...

Ao assumir, o novo governo, em 2001, buscou rapidamente uma alternativa para a crise. Uma opção seria a reconstituição de uma empresa pública que operasse parte do sistema. Essa alternativa foi descartada, pois não havia recursos suficientes para tal no tesouro municipal e mesmo o BNDES tinha suas linhas de crédito fechadas para empresas públicas. A alternativa que restava era manter a operação em mãos de empresas privadas e reorganizar o sistema de forma a melhorar seu padrão de qualidade.

O novo modelo de transporte

O novo modelo proposto parte de um rearranjo técnico e institucional, em que se acomodam os interesses dos empresários de ônibus, mas também dos autônomos (operadores de "bairro a bairro" e lotações), dividindo o serviço e eliminando os conflitos de disputa por linha. Ao mesmo tempo, prevê a implantação de corredores de ônibus em eixos com alta demanda, respeitando os usos locais, e terminais e estações de transferência que possibilitem a ampliação das viagens integradas.

Nesse novo modelo, as empresas serão responsáveis pelas "linhas estruturais" – as que transportam os passageiros para além da sua região, em direção ao centro ou a outras regiões. Os autônomos serão os responsáveis pelas linhas locais – as que circulam dentro de uma mesma região. A integração entre as linhas poderá ser feita por meio de um cartão eletrônico – o "bilhete único" – que permitirá a utilização de mais de um veículo dentro da mesma viagem, com o pagamento de apenas uma tarifa.

Dessa forma, eliminam-se os conflitos entre autônomos e empresas e se racionalizam-se as linhas, garantindo a redução dos custos do sistema e, conseqüentemente, uma menor pressão sobre a tarifa. A operação com veículos menores na periferia, onde a demanda é menor, permitirá a redução dos intervalos e do tempo de espera. E a operação racionalizada nos corredores principais permitirá uma redução de veículos ociosos, aumentando a velocidade comercial e reduzindo o tempo de viagem do passageiro.

Uma visão esquemática do novo sistema: as linhas deixam de realizar longas viagens dos bairros ao centro e se dividem entre linhas locais e estruturais.

No mapa, como são as atuais linhas e como se subdividirão as linhas locais e estruturais na Zona Leste.

Evidentemente, a implantação desse novo sistema exigirá a construção de um novo arranjo institucional. Para isso, após intensas batalhas na Câmara Municipal foi aprovada a Lei 13.241/2001, que estabelece um sistema de concessões para as linhas estruturais – desde que os concessionários realizem investimentos em infra-estrutura – e permissões nas linhas locais – sem necessidade de investimentos dos operadores além dos seus próprios veículos.

A SPTrans passará a ser instrumento de fiscalização e planejamento de um Órgão Regulador a ser criado. Esse Órgão Regulador será responsável pela gestão dos contratos e terá relativa independência em relação ao Poder Concedente – Secretaria Municipal de Transportes/Prefeitura Municipal. Uma nova empresa de economia mista será criada para gerir a arrecadação do sistema. Vender créditos, arrecadar e pagar as empresas e os autônomos de acordo com o valor contratual definido na licitação, por passageiro transportado.

Os terminais e as estações de transferência deverão ser modernizados em relação aos atuais terminais. A comunicação com o usuário será dinamizada com informações em tempo real dos horários de partida dos veículos. E a operação das linhas será controlada centralmente, viabilizando estratégias operacionais como a rápida substituição de veículos quebrados, a fuga de congestionamentos e até mesmo ações de segurança pública em caso de assaltos e outros eventos.

Esses equipamentos de transferência, os corredores de ônibus e a implantação de operações "via livre", de preferência ao transporte coletivo, também foram aprovados pela Câmara Municipal junto com o Plano Diretor. Ou seja, estão inseridos numa visão ampla da cidade que envolve outros aspectos da dinâmica urbana além do transporte.

Os resultados da Operação Via Livre demonstram que com baixo custo é possível melhorar significativamente a velocidade do transporte coletivo.

As dificuldades de implantação

Apesar de amplamente negociado, esse novo modelo enfrentou e enfrenta inúmeras dificuldades para ser implantado. Ao interferir em interesses econômicos enormes, movimenta forças sociais e políticas. O sistema de ônibus regular arrecadou durante o ano de 2002 cerca de R$ 1,400 bilhão, arrecadação à vista ou com defasagem de apenas cinco dias (no caso de passes). Os autônomos do "bairro a bairro" e "lotação" por estimativa arrecadaram – não existe controle oficial sobre sua receita – cerca de R$ 550 milhões. Isso à tarifa de R$ 1,40, vigente até janeiro de 2003.

A primeira batalha deu-se com regulamentação dos "perueiros" clandestinos. Cerca de quinze mil veículos operavam na cidade de forma totalmente descontrolada. Com a implantação de 425 linhas regulamentadas foi possível legalizar de forma provisória seis mil veículos. Desses, chamados "lotações regulamentadas", era exigida vistoria semestral, habilitação regular do condutor, impedimento de substituição por motorista não autorizado, implantação de sistema de controle de freqüência e cumprimento do trajeto na linha oficializada.

Para se chegar a isso, o Governo Municipal teve de enfrentar inúmeras manifestações de protesto, queimas de ônibus, ataques contra fiscais e até mesmo o assassinato de três deles, após seqüestro. A imprensa, não raro, postava-se ao lado dos clandestinos, como se houvesse uma luta de oprimidos contra opressores e não uma ação de governo para regulamentar um serviço essencial.

Outras batalhas importantes deram-se em relação à implantação da infra-estrutura necessária à operação do sistema. Comerciantes da Lapa resistiram à construção de um terminal de ônibus, pois lhes retirava uma área de estacionamento. Também comerciantes resistiram à implantação da Operação Via Livre na rua Teodoro Sampaio, alegando que seria um corredor de ônibus similar ao da Santo Amaro. A Operação foi implantada com sucesso operacional e o comércio continua funcionando normalmente. A mesma polêmica ocorre, agora, em relação à mesma Operação Via Livre na avenida Rebouças, onde moradores e comerciantes protestam contra um suposto corredor.

Mas a batalha principal se dá em torno do processo de licitação das empresas de ônibus. O objetivo desse processo é o de adequar os contratos à nova Lei aprovada pela Câmara Municipal e, ao mesmo tempo, estabelecê-los a longo prazo, de forma a garantir investimentos mais consistentes de renovação e modernização da frota de veículos.

Os empresários resistiram primeiramente à retirada dos subsídios e às modificações nos contratos que desmontavam a chamada "pizza", ampliando a parcela da remuneração relativa aos passageiros transportados. Essa resistência era oferecida de uma maneira peculiar. Empresas não realizavam os pagamentos aos trabalhadores que, imediatamente, paralisavam a operação, colocando a Prefeitura em dificuldade, já que é a responsável pelo transporte público. Essa prática vem sendo investigada pelo Ministério Público e tudo indica que era devidamente arquitetada entre alguns empresários e sindicalistas.

Além da paralisação dos serviços que jogava a cidade no caos, as pressões contra a implantação do projeto da Prefeitura ocorriam por meio do não cumprimento de metas por parte de algumas empresas, como por exemplo, a manutenção e renovação da frota. Elas simplesmente não recuperavam seus veículos e não compravam outros para substituir aqueles com mais de dez anos de uso. Apesar do aumento do número de multas aplicadas nas empresas pela SPTrans, muitos órgãos de imprensa não compreenderam que havia um conflito entre a Prefeitura e os empresários e agiam como se, ao contrário, existisse um conluio.

Na Câmara Municipal também surgiram pressões para que os interesses dos empresários prevalecessem. Primeiro, durante a votação da nova lei, foi feito um esforço para que fosse incluído um artigo que prorrogava os contratos vigentes indefinidamente e que se reduzisse o número de autônomos ou até os eliminassem. Depois, houve todo um esforço para que os subsídios orçamentários voltassem, ainda que não melhorassem a operação.

A cada vez que a Prefeitura resistia a essas pressões e conflitos, novas investidas ocorriam. Para se realizar as audiências públicas necessárias para o processo licitatório, a Prefeitura e a Assembléia legislativa tiveram seus auditórios destruídos por "militantes sindicais", que protestavam contra um suposto desemprego causado pelo novo sistema. Quando da visita de empresários de outros Estados à Prefeita para conhecer o processo de licitação iniciou-se greve em várias empresas. Quando da entrega das propostas para o licitação, em janeiro de 2003, os sindicalistas decretam greve geral pelo não recolhimento do FGTS e INSS pelas empresas. Apenas coincidências.

O chamado "mercado de transporte" no Brasil é dominado por monopólios locais. Normalmente, empresas de fora não disputam o mercado fechado pelas empresas locais. Quando se procura abrir o processo licitatório para que novas empresas participem, a reação é sempre de se impedir que ele caminhe. Da mesma forma que ocorreu em São Paulo, alguns anos atrás Belo Horizonte viveu situação parecida. Nas demais capitais importantes do país o processo nem sequer é iniciado, na maioria das vezes.

A quebra desse monopólio acabou se dando pelo fenômeno dos "perueiros clandestinos" que, com extrema agilidade, ocuparam as áreas onde o sistema era mais debilitado, tendo para isso, num primeiro momento, o apoio popular. Evidentemente, essa não é a solução para que haja um sistema de melhor qualidade. O transporte, como todos os chamados monopólios naturais, tem o seu espaço de concorrência no processo de licitação e deve ser severamente fiscalizado e regulado de forma a garantir os direitos dos usuários.

O término do processo de licitação é ainda uma das batalhas que o poder público deve enfrentar em São Paulo. A implantação exigirá muito esforço e perseverança. Dificuldades operacionais vão surgir e podem engendrar uma nova onda de clandestinidade que, se não for combatida, pode inviabilizar todo o esforço feito até agora. Além disso, devem ser repensadas as relações contratuais com os operadores, sejam eles autônomos ou empresas. Não podem ser toleradas atitudes que envolvam sonegação de tributos ou de direitos trabalhistas, pois são o primeiro passo para o surgimento de uma cumplicidade entre sindicalistas e seus patrões, que acabam gerando pressões contra o poder público, sempre em detrimento da população.

O direito à acessibilidade

Desde 2001 a Prefeitura de São Paulo vem enfrentando o desafio de ampliar o direito à acessibilidade para toda a população. O projeto de remodelação do transporte público é central e é envolvido por diversos outros.

O mais importante deles é a ampliação da atuação da CET, não apenas do ponto de vista territorial, mas também para além da circulação do automóvel, como era sua tradição, participando da operação do transporte público, da gestão de uma política de estacionamentos na cidade, e ampliando a segurança no trânsito, em especial a dos pedestres.

A regulamentação do sistema de fretamento por meio de Decreto vai permitir a melhoria da qualidade e da segurança desse sistema, exigindo posturas mínimas de operação, sem que se crie uma disputa com o sistema público. Da mesma forma, por meio de Decreto, estabeleceu-se uma regulamentação para o sistema de transporte através de motocicletas – o "motofrete", que regulamenta a atividade, as empresas e os motoqueiros, passando a impor um novo tipo de comportamento no trânsito.

As portarias do DSV que regulamentam horários para a circulação de cargas nas regiões centrais já está em vigor e são o primeiro passo para a implantação de um amplo Plano de Mobilidade de Bens e Serviços capaz de reduzir o número desses veículos nos horários de pico, bem como reduzir os custos de transporte, que aumentam os das mercadorias.

Os planos de investimento em infra-estrutura com a implantação de novos corredores que não levem à degradação do uso urbano, vias livres, terminais e estações de transferência, além da implantação do bilhete único, podem garantir a diminuição do tempo gasto pelos paulistanos no transporte e no trânsito.

Mas restam ainda muitas tarefas. A elaboração de um único projeto que envolva o Estado e os 39 Municípios da Região Metropolitana é fundamental para que esse esforço dê certo e se estabeleça um novo padrão de circulação na metrópole. A ampliação das linhas metroviárias e a recuperação das ferroviárias podem estabelecer um novo padrão de deslocamento metropolitano, mas que só poderá funcionar se estiver integrado operacional e tarifariamente aos sistemas municipais.

Para que isso ocorra, é urgente que se abra o debate sobre a reorganização da Região Metropolitana e as formas institucionais necessárias para que os planos não apenas saiam do papel, como tragam benefícios reais para a população. E, ao mesmo tempo, que se tenha apoio político para levar adiante os enfrentamentos decisivos às mudanças necessárias para a afirmação do poder público na gestão do sistema de transporte público.

Texto recebido e aceito para publicação em 13 de junho de 2003.

Carlos Zarattini foi vereador de São Paulo (1995-1996), deputado estadual (1999-2003) e secretário municipal de Transportes de São Paulo (2001-2002).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    17 Fev 2004
  • Data do Fascículo
    Ago 2003

Histórico

  • Aceito
    13 Jun 2003
  • Recebido
    13 Jun 2003
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