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O último legado de Clóvis Moura

NOTAS

O último legado de Clóvis Moura

João Baptista Borges Pereira

CLÓVIS MOURA era uma personalidade transitiva, se é que se pode usar tal expressão para definir a sua admirável capacidade de ser, simultaneamente, sem embaralhar os limites, branco e negro, militante e intelectual, historiador e sociólogo, jornalista e cientista social.

Do ponto de vista racial, ele era mestiço, resultado de duas linhagens: uma nórdica, outra afro. Embora seus traços revelassem muito mais a sua ascendência branca, ele preferiu assumir-se como negro. E foi como tal que participou ativamente de todas as iniciativas que buscavam alterar as condições desfavoráveis do negro na sociedade brasileira, entre as quais ganha relevo o Movimento Negro Unificado (MNU), no início da última década de 1980.

Embora autoconfessadamente negro e militante, nunca permitiu que a sua reflexão intelectual fosse, de alguma forma, contaminada por tais características. Esta foi uma das lutas admiráveis de Clóvis Moura: a luta pela objetividade científica e a luta para não trair, por assim dizer, seus compromissos políticos com a gente que ele elegera como sendo a sua gente.

Sua derradeira contribuição foi o Dicionário da escravidão negra no Brasil, a ser publicado brevemente pela Edusp.

Clóvis Moura, como que prevendo a sua morte, que ocorreria às vésperas do Natal, solicitou-me, há alguns meses que, pelo menos, lhe desse a conhecer o prefácio que a seu pedido eu fizera e que transcrevo a seguir:

Clóvis Moura é um cientista social brilhante e disciplinado que sempre correu por fora da academia – solto, livre, nas franjas da interdisciplinaridade –, ainda que a academia brasileira tenha constantemente solicitado a sua presença em eventos, conferências, seminários e, especialmente, em exames de teses na qualidade de professor "notório saber", título que há anos lhe foi outorgado pela Universidade de São Paulo.

E, assim, trabalhando nessa nesga não-institucional, onde as costumeiras dificuldades de pesquisador aumentam, consideravelmente, Clóvis Moura foi construindo, ele com ele, nos recantos de sua rica biblioteca, vasta e notável obra – histórica e sociológica – sobre a saga heróica do negro-escravo e do negro-quase-cidadão na sociedade nacional. Todos os estudiosos da questão racial brasileira estão familiarizados com seus livros, cujos títulos constam obrigatoriamente das bibliografias dos estudos que vão surgindo, por se constituírem em referências indispensáveis às reflexões científicas sobre essa temática a um só tempo tão apaixonada e tão apaixonante.

Como que coroando essa extensa trajetória intelectual, o historiador Clóvis Moura presenteia-nos, agora, com o seu Dicionário da escravidão negra no Brasil, elaborado, solitariamente, ao longo de trinta anos. Casualmente, esse estudo parece vir compor uma tendência intelectual-editorial que se observa atualmente entre nós, de se publicarem dicionários sobre aspectos ou temas específicos da vida nacional. Tais são os dicionários de sobrenomes, gêneros, fotografias, filosofia, fatos e personagens de períodos históricos brasileiros etc. Embora expressando o momento atual de preocupações por essa espécie de literatura, esses dicionários transcendem as históricas questões de língua para se constituírem em inventários de conhecimentos críticos a respeito de temas negligenciados pelos registros de uma historiografia linear, ortodoxa.

O dicionário elaborado por Clóvis Moura desenha-se, admiravelmente, nesse painel. O fôlego de historiador, já testado em seus numerosos livros, está presente nas centenas de verbetes (alguns são verdadeiras teses) que não apenas sistematizam e complementam o que se sabe sobre o regime escravocrata, mas trazem informações que irão permitir ao leitor formar uma opinião mais nuançada a respeito desse sistema de exclusão – humana, social e cultural – que dominou, soberano, durante quase quatro séculos da história brasileira.

O autor trabalha com dois mundos que se complementam, embora quase sempre se distanciem num jogo dialético inerente ao próprio sistema. De um lado, o Brasil escravocrata, com seu arcabouço jurídico-legal a legitimar o escravismo e as suas passagens históricas – simpáticas e não-simpáticas ao regime –, com seus atores sociais mais expressivos e seu esquema de poder senhorial hegemônico, quase sempre sinônimo de mundos dos brancos. De outro lado, o Brasil escravizado, constituído de negros anônimos, que constroem a nação com seus braços, lutam, a seu modo, pela sua emancipação e pela dissolução do regime servil, enquanto preservam, criam ou recriam os elementos culturais que iriam mais tarde, séculos depois, dar a marca do que viria a ser a chamada e aclamada cultura brasileira.

Jornada difícil para autores que, como Clóvis Moura, se propõem a resgatar e dar visibilidade a fatores e atores sociais fugidios, apagados que foram das cenas históricas privilegiadas pela historiografia convencional.

É como se Clóvis Moura trabalhasse com o direito e o avesso da história para, a partir daí, dar ao leitor uma visão mais orgânica e mais crítica desse cruel período da sociedade brasileira, cujas marcas se prolongam até os dias atuais.

João Baptista Borges Pereira é professor emérito da USP. Presidente da Comissão Permanente de Políticas Públicas para a População Negra da USP.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    08 Ago 2008
  • Data do Fascículo
    Abr 2004
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