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A propósito da utilização de células-tronco embrionárias

ÉTICA E CIÊNCIAS DA VIDA

A propósito da utilização de células-tronco embrionárias

Marco Segre

A DISCUSSÃO ÉTICA quanto à utilização de células-tronco de pré-embriões produzidos mediante reprodução assistida, seja pela fertilização in vitro, ou com as técnicas emergentes de clonagem (clonagem terapêutica), passa inevitavelmente pela delimitação do instante no qual quisermos atribuir a um conjunto de células o respeito devido à vida. A retirada de células-tronco produz a morte desse "conjunto de células": daí, fulcro das polêmicas, é quanto a podermos produzir esses pré-embriões com o fim específico, não de gerarmos novos seres humanos, mas sim de fabricarmos "remédios" contra patologias graves, como a doença de Alzheimer, o síndrome de Parkinson, leucemias etc. É sabida a capacidade das céculas-tronco desencadearem a formação de tecidos variados, sendo inestimável o valor dessa capacidade para se reporem, no "vivo" (caso dos doentes portadores das moléstias já referidas) tecidos e órgãos vitalmente prejudicados. A polêmica passa também pela preocupação de que a utilização dessas novas técnicas possa levar, progressivamente, a uma "desumanização", com dano irreparável ao respeito à vida, vigente em nossa cultura.

São esses aspectos que passaremos a discutir, na busca de contribuir para seu deslinde e normatização da prática biomédica.

A sempre renovada discussão referente ao momento no qual o embrião humano passa a "merecer" respeito à sua vida e integridade, apenas comprova a aleatoriedade e o caráter pragmático da caracterização do início da vida. Esta observação encontra esteio, por semelhança, na recente mudança do conceito de morte, quando a morte encefálica, por motivação essencialmente utilitária, foi identificada com morte.

Assim como o desenvolvimento das técnicas de transplantes de órgãos vitais, a partir de doadores "mortos", passou a exigir a redefinição do momento de morte, para que esses fossem viáveis, o desenvolvimento das técnicas de reprodução assistida está estimulando um questionamento do momento de início da vida, para que, pelo destino que não se sabe qual dar aos embriões excedentes, este outro avanço científico (a reprodução assistida) não seja obstaculizado.

Com relação a esse aspecto, é fácil perceber o quanto a caracterização do momento de início da vida no instante da fecundação do óvulo, mormente nos países em que o aborto é crime (conceitua-se aborto, ainda, pelo menos no Brasil, como toda interrupção do processo gestacional), dificulte e mesmo impeça o desenvolvimento de novas técnicas de reprodução assistida. As técnicas de reprodução assistida (RA), intervindo na junção dos gametas masculino e feminino, produzindo-se um embrião (ou pré-embrião, como muitos preferem denominar, nessa fase), requerem a replicagem desses "conceptos" para que haja expectativa de êxito com sua implantação no útero: há, portanto, praticamente sempre embriões excedentes, que habitualmente são congelados, mas cuja utilização para se dar prosseguimento ao processo concepcional é muito improvável. Assim, como, aliás, também ocorre nas situações em que clinicamente se indica a redução embrionária (proteção da vida da mulher gestante, que não pode suportar mais do que um número definido de fetos), há que se encontrar uma forma, que a lei avalize, de se poderem descartar embriões. E, para que isso possa ocorrer, será necessário que se modifique o conceito de momento de início da vida, uma vez que, na maioria dos países, o direito à vida é cláusula pétrea das Constituições (exceção seja feita, conforme já se referiu, aos países em que, embora se reconheça como momento de início da vida a fecundação, permite-se a prática do aborto).

É, portanto, indispensável que se altere o conceito de momento de início da vida, visando aos referidos objetivos absolutamente pragmáticos, ou que se abram exceções legais que permitam a inutilização de embriões - ou, de sua utilização para outros fins, e é este, especificamente, o assunto de que iremos tratar, neste artigo - ou, então, finalmente, que se proíbam todas essas novas técnicas, que, ao menos em princípio, visam à busca de melhor qualidade de vida para pessoas que desejam procriar! Absolutamente inaceitável é, entretanto, o caráter retrógrado de conceituações e leis existentes, a menos que se deseje, como ocorre no conto "O aprendiz de feiticeiro" - no caso específico da reprodução assistida – que o homem, tendo o poder de replicar embriões ao seu talante, não os possa destruir, quando eles não fossem ser aproveitados, tornando-se, portanto, vítima de seu "feitiço".

Afinal, a vida é um continuum, que, mesmo abstraindo-nos das crenças atinentes à espiritualidade, poder-se-ia considerar tendo seu início material nos pré-gametas e seu fim na esqueletização do cadáver. Milhares de trabalhos já foram escritos sobre a partir de quando e até quando se reconheça que um ser humano é pessoa (e este, certamente, não será um deles), mas é absolutamente evidente o caráter inerente a uma cultura, aleatório e pragmático da tentativa de se estabelecer esses limites.

Ademais, as condições instrumentais em que se produz laboratorialmente um ovócito - pelo "encontro" dos gametas, e construção de uma célula diplóide a partir de duas haplóides -, bem como a possibilidade de se replicar esse produto, configuram um universo totalmente diferente daquele da fecundação "natural". Pretender-se estender os conceitos vigentes quanto ao "ínício da vida" - dogmaticamente no instante da concepção - a essas novas situações, artificiais, já configura uma perversão lógica, realizada sob o pretexto de se quererem incluir na proteção oferecida aos seres humanos em formação, esses conjuntos celulares, originados dessa forma. A perversão torna-se mais evidente no momento em que até mesmo a fecundação - pela clonagem, a partir de células diplóides - se torna dispensável, para o objetivo de se produzirem conjuntos celulares, virtuais fontes de células-tronco.

Essas considerações tem a finalidade de trazer à tona o autoritarismo obscurantista de setores que, sob o disfarce da religião, obstaculizam o avanço científico, corrompendo a meta de se obter uma qualidade de vida melhor para o maior número possível de pessoas. Pretender-se o suporte da ciência – pinça-se, apenas, o que interessa, como o fato de, na fecundação, se estar constituindo a bagagem genética do que poderá vir a ser um novo ser – na tentativa de se eternizarem subjetivismos dogmáticos.

Dentro da óptica "autonomista" que expusemos, pode-se perguntar: por que colocarmos tantas barreiras a uma futura construção de clones humanos?

Por que, se tivermos bem claros - e respeitarmos - os valores que desejamos preservar (entre os quais destacam-se o respeito à vida e à sua qualidade, a rejeição de todo tipo de dominação ou subjugação, a tentativa de administração equilibrada do confronto individual versus coletivo etc.), veríamos com tanto "pânico" a eventual implementação de um avanço científico deste porte?

Mas surgem também outras perguntas. Fará sentido, no plano moral, abrir tanta polêmica sobre a possível licitude da clonagem, recalcando, ou -pior - menosprezando as tragédias dos extermínios, os sofrimentos sem fim nos regimes autoritários, as iniqüidades sociais aterradoras e as discriminações implicadas por políticas eugênicas racistas?

Afirma-se que não existem, até o momento, pesquisas científicas fidedignas sobre as NTRAs (Novas Tecnologias de Reprodução Assistida) para que possamos ter segurança de que não se gerarão portadores de anomalias congênitas sérias e que não prejudiquem a qualidade de vida de seus portadores. Esta é uma objeção importante, pois implica o controle social rigoroso sobre toda pesquisa com seres humanos e a proteção dos sujeitos vulneráveis pelo Estado. Aí está a brasileira Resolução nº 196/96, emanada do Conselho Nacional de Saúde, que submete à Comissão Nacional de Ética em Pesquisa (Conep) os protocolos de pesquisa (para aprovação, ou não) em matérias temáticas, como é o caso da reprodução humana.

Mas, vinculados como estamos, em nosso País, à normatização totalmente fora de sintonia com os avanços da RA (quando se pense que ainda se proíbe a manipulação e o descarte de embriões produzidos in vitro), como pretender que se acumule conhecimento suficiente para empreender futuramente uma clonagem de seres humanos?

Tratando-se de um horizonte novo, que se descortina, são dificilmente previsíveis as virtuais aplicações dessa e de qualquer nova técnica. Quando, de acordo com a lenda grega, Prometeu "roubou" (produziu) o fogo, ele certamente não tinha a perspectiva da sua extraordinária descoberta, nodal para a história da Humanidade. Por analogia, pode-se razoavelmente perguntar: serão os clones humanos produzidos tão-somente para a replicação genética de pessoas, atendendo ao desejo (compreensível) de sujeitos isolados ou de casais estéreis? Provavelmente não. Tratar-se-ia, então, da tentativa de o Homem alcançar a imortalidade? Pode-se considerar essa expectativa vã, uma vez que a identidade genética não é determinante da personalidade (como muito bem se vê nos gêmeos univitelinos) e, mais radicalmente, a repetição genética nada tem que ver com a continuação da subjetividade.

E a produção de órgãos, visando à realização de transplantes, não será também ela uma perspectiva terapêutica capaz de produzir um extraordinário salto no aumento da qualidade e quantidade de vida do ser humano? Poder-se-á objetar que a "produção" de seres humanos, ainda que para fins terapêuticos, é uma violência contra um dos inestimáveis valores de nossa cultura: a vida. Mas o que significa "fazer violência" à vida quando pensamos em toda a história da medicina, da saúde pública, da educação e, de forma mais geral, em toda a história da cultura e da técnica humanas? Não deveríamos pensar no ser humano como um ser que transforma a realidade em realidade para si, adaptando-a a seus desejos e projetos, pois isso faz parte de sua segunda natureza que transforma a primeira natureza constituída por sua biologia?

Ademais, havendo vida, a partir de que momento e/ou sob quais condições consideramos a existência de um sujeito, a quem atribuiremos direitos? Tendo em conta a legitimidade prima facie de construirmos nosso futuro e desestigmatizando sentimentos morais incrustados em nossa cultura, não poderíamos pensar na construção de clones sem estruturas nervosas (que não podem, portanto, sofrer, evitando assim eventuais objeções sencientocêntricas) que, por semelhança, compararíamos a corpos em estado de morte encefálica, e que certamente não consideramos pessoas e sim "banco de órgãos"? Em suma, cabe reiterar que certamente não serão as técnicas em si que nos levarão a um "inferno ético", supostamente implicado pela vigência do imperativo tecnológico e o correspondente niilismo dos valores. Por isso, consideramos que não devemos aprioristicamente temê-las, e sim monitorar cuidadosamente a sua aplicação.

Face às premissas supra, está clara a nossa posição francamente favorável à utilização de células-tronco, a partir de pré-embriões produzidos in vitro, sejam eles resultantes de fecundação ou de clonagem. A importância desse avanço científico e tecnológico tem, ao que tudo indica, enorme valor terapêutico. A possibilidade de se tratarem (e curarem?) doenças como leucemias, mal de Parkinson, Alzheimer, a par de se poderem desenvolver órgãos que poderão ser utilizados em transplantes, é uma perspectiva alentadora no sentido de melhorar a qualidade e alongar o tempo de vida de muitas pessoas.

O poder de decisão quanto ao destino desses pré-embriões é questão também importante, parecendo-nos apropriado que ele deva ser de seus "pais". Esta não é uma "questão menor", pois está em jogo a autonomia dos "doadores de células" embora ela deva vir depois da discussão conceitual de "a partir de quando se respeite um conjunto de células como vida humana".

Concluindo, queremos que esteja transparente que não é nossa pretensão, com as reflexões expostas, ofender os juízos sobre valores de pessoas, grupos étnicos ou religiões. Muito menos de criar normas coerentes com nossas posições. Nem poderíamos.

Os progressos científicos serão aceitos ou recusados segundo os já mencionados fatores culturais, e/ou religiosos. De forma tão democrática quanto possível. Mas também entendemos ser nosso papel, na bioética, o de expor e defender posições que consideramos importantes para a vida e a saúde humana.

Biblografia

SCHRAMM, F. R. "¿Por qué la Definición de Muerte no Sirve para Legitimar Moralmente la Eutanasia y el Suicidio Asistido?, Perspectivas Bioéticas, Barcelona, Gedisa, 6(11): 43-54, 2001.

SEGRE, M. "A propósito da utilização de células-tronco". Revista Eletrônica Comciência, 2004. [www.comciencia.br/reportagens/celulas/11.shtml]

———— Conferência sobre clonagem proferida no Superior Tribunal de Justiça, Brasília, nov. 2001.

———— "Os embriões". Conferência apresentada no Encontro Luso-Brasileiro de Ética em Ciências da Vida, Lisboa, jun. 2001.

———— e SCHRAMM, F. R. "Quem tem medo das (bio)tecnologias de reprodução assistida?" Bioética, vol. 9, nº 2, 2001, pp. 43-56.

Texto recebido e aceito para publicação em 7 de julho de 2004.

Marco Segre é professor do Departamento de Medicina Legal, Ética Médica, Medicina Social e do Trabalho da Faculdade de Medicina da USP, membro da Conep (Comissão Nacional de Ética em Pesquisa), membro de CoBi (Comissão de Bioética do HC/FMUSP) e presidente da Sociedade de Bioética de São Paulo (SBSP).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    08 Ago 2008
  • Data do Fascículo
    Ago 2004
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