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Dinâmica evolutiva em roças de caboclos amazônicos

Resumos

AS ROÇAS DE CABOCLOS são unidades de agricultura de derruba e queima de populações tradicionais nas terras firmes dos trópicos brasileiros, geralmente associados com florestas. Elas são derivadas de sistemas indígenas com algumas modificações introduzidas pelos africanos e portugueses. Neste trabalho, analisamos a estrutura de comunidade dessas roças e o papel dos fatores biológicos e culturais em manter e aumentar a variabilidade genética na mais importante espécie plantada nas roças, a mandioca (Manihot esculenta). Há um alto grau de diversidade nas roças e muitas espécies que estão normalmente presentes, como mandioca, batata-doce, inhame, ariá, araruta, cupá, amendoim, apresentam o que tem sido chamado de habilidade de combinação ecológica, o que significa que elas otimizam o uso dos fatores ambientais e recursos, minimizando a sobreposição de suas arquiteturas. A variabilidade de mandioca é ampliada pelo banco de sementes em áreas previamente ocupadas, cruzamentos interespecíficos e intervarietais, facilitada pelo arranjo das plantações escolhido pelos caboclos. Depois de criada, a variabilidade é fixada através de clonagem vegetativa, o método de reprodução comum não apenas da mandioca, mas também de outras espécies da roça, a maioria perene e apresentando "disjunção agronômica", ou seja, reprodução e produção efetivada por diferentes órgãos da planta.

Amazônia; Botânica; Agricultura; Cultura Cabocla


THE "ROÇAS DE CABOCLOS" are the slash-and-burn agricultural units of traditional populations dwelling in the lowlands of the Brazilian Tropics, generally in association with forests. They are derived from the indigenous system with some modifications introduced by the Africans and Portuguese. In this paper we analyse the community structure of the "roças" and the role of biological and cultural factors in maintaining and augmenting the genetic variability in the most important species planted in roças, the cassava (Manihot esculenta). There is a high degree of diversity in the "roças" and the several species that are normally present, like cassava, sweet-potato, yams, arrowroot, ariá, cupá and peanuts present what has been called ecological combining ability, meaning that they optimize their use of environmental factors and resources by minimizing the overlap of their architectures. The variability of cassava is amplified by the seed bank in previously occupied sites, interspecific crossings and intervarietal crossings - facilitated by the planting arrangements chosen by the "caboclos". After being created, the variability is fixed through vegetative cloning, the usual reproduction method not only of cassava, but also of the other species of the "roça", mostly perennial and showing "agronomical disjuntion", that is, reproduction and production effected by different organs of the plant.

Amazon; Botany; Agriculture; Native Brazilian Culture


DOSSIÊ AMAZÔNIA BRASILEIRA I

Dinâmica evolutiva em roças de caboclos amazônicos1 1 Esta foi a última conferência do Prof. Paulo Sodero na Amazônia. Texto transcrito e editado por Ima Célia G. Vieira (pesquisadora do Museu Goeldi) e Giancarlo C. X. Oliveira (professor do Departamento de Genética da Esalq-USP), ambos ex-orientados do Prof. Paulo Sodero, no curso de mestrado em Genética e Melhoramento de Plantas na Esalq-USP, em Piracicaba.

Paulo Sodero Martins+

RESUMO

AS ROÇAS DE CABOCLOS são unidades de agricultura de derruba e queima de populações tradicionais nas terras firmes dos trópicos brasileiros, geralmente associados com florestas. Elas são derivadas de sistemas indígenas com algumas modificações introduzidas pelos africanos e portugueses. Neste trabalho, analisamos a estrutura de comunidade dessas roças e o papel dos fatores biológicos e culturais em manter e aumentar a variabilidade genética na mais importante espécie plantada nas roças, a mandioca (Manihot esculenta). Há um alto grau de diversidade nas roças e muitas espécies que estão normalmente presentes, como mandioca, batata-doce, inhame, ariá, araruta, cupá, amendoim, apresentam o que tem sido chamado de habilidade de combinação ecológica, o que significa que elas otimizam o uso dos fatores ambientais e recursos, minimizando a sobreposição de suas arquiteturas. A variabilidade de mandioca é ampliada pelo banco de sementes em áreas previamente ocupadas, cruzamentos interespecíficos e intervarietais, facilitada pelo arranjo das plantações escolhido pelos caboclos. Depois de criada, a variabilidade é fixada através de clonagem vegetativa, o método de reprodução comum não apenas da mandioca, mas também de outras espécies da roça, a maioria perene e apresentando "disjunção agronômica", ou seja, reprodução e produção efetivada por diferentes órgãos da planta.

Palavras-chave: Amazônia, Botânica, Agricultura, Cultura Cabocla.

ABSTRACT

THE "ROÇAS DE CABOCLOS" are the slash-and-burn agricultural units of traditional populations dwelling in the lowlands of the Brazilian Tropics, generally in association with forests. They are derived from the indigenous system with some modifications introduced by the Africans and Portuguese. In this paper we analyse the community structure of the "roças" and the role of biological and cultural factors in maintaining and augmenting the genetic variability in the most important species planted in roças, the cassava (Manihot esculenta). There is a high degree of diversity in the "roças" and the several species that are normally present, like cassava, sweet-potato, yams, arrowroot, ariá, cupá and peanuts present what has been called ecological combining ability, meaning that they optimize their use of environmental factors and resources by minimizing the overlap of their architectures. The variability of cassava is amplified by the seed bank in previously occupied sites, interspecific crossings and intervarietal crossings – facilitated by the planting arrangements chosen by the "caboclos". After being created, the variability is fixed through vegetative cloning, the usual reproduction method not only of cassava, but also of the other species of the "roça", mostly perennial and showing "agronomical disjuntion", that is, reproduction and production effected by different organs of the plant.

Keywords: Amazon, Botany, Agriculture, Native Brazilian Culture.

As roças de caboclos amazônicos

O OBJETIVO DESTE texto é descrever brevemente a história natural das roças de caboclos. Deseja-se apresentar aqui um resumo histórico e, mais especificamente, obter algumas conclusões do ponto de vista de domesticação de plantas, em especial do processo de dinâmica evolutiva dentro dessas roças. A ocorrência desse tipo de roça repete-se em todas as áreas do Brasil, com uma uniformidade extremamente grande. Interessante notar a uniformidade de estrutura, de tamanho, e de composição, indicando uma raiz comum, embora, obviamente, apresente certas variações locais. A história da roça começa na pré-história e modificou-se com o passar do tempo, com o acréscimo de uma série de componentes. A roça é representante do tipo de agricultura de derrubada e queima ou de pousio ou agricultura de coivara, em que o índio e o caboclo abrem uma clareira dentro da vegetação primária ou em diferentes estágios de sucessão e ateiam fogo. Dessa maneira, ele incorpora nutrientes ao solo e aí estabelece uma comunidade de plantas que apresenta heterogeneidade de espécies. Conseqüentemente, a roça apresenta duas características fundamentais. A primeira é que ela é uma associação de diferentes espécies, e cada uma delas tem sua história, isto é, parte dos componentes chegou antes dos colonizadores, e envolve plantas domesticadas em outras regiões da América do Sul, que não as terras baixas dessa área. Desse modo, alguns componentes são andinos, outros centro-americanos, e vários componentes foram, muito provavelmente, domesticados nas terras baixas. Alguns componentes foram trazidos pelos colonizadores, enquanto outros foram trazidos pelos africanos. Mais do que a diversidade de origens, entretanto, impressiona o fato de que não se trata de uma composição de espécies totalmente aleatória, como mostramos a seguir.

Usando um conjunto heterogêneo de espécies, os padrões da composição são determinados pelo que se pode chamar de habilidade de combinação ecológica. Esses padrões são variáveis, mas apresentam um núcleo de elementos comuns muito consistentes. Numa mesma roça coexistem espécies que apresentam arquiteturas diferentes, isto é, diferentes alturas de planta, tipos de ramificação e de composição foliar, o que nos sugere a utilização de estratos diferentes de luminosidade. A habilidade de combinação ecológica define os padrões de associação abaixo da superfície do solo também. Há sistemas radiculares diferentes em combinação: sistemas tuberosos e fasciculados, que exploram profundidades de solo diferentes. Dessa forma, a associação de espécies minimiza a competição e maximiza a utilização de recursos, que são limitados. Acima do solo, maximiza a utilização de energia solar que incide nessas áreas e, abaixo, maximiza a utilização de água e nutrientes.

Padrões de domesticação

Dentre as espécies de plantas cultivadas presentes em roças, um grupo foi, muito provavelmente, domesticado nas terras baixas da América do Sul: mandioca (Manihot esculenta), batata-doce (Ipomoea batatas), taioba ou taiá (Xanthosoma sp.), ariá (Maranta lutea), araruta (Maranta arundinacea), inhame ou cará (Dioscorea alata), cupá (Cissus gongylodes) e amendoim (Arachis sp.). O amendoim merece um pequeno parêntese. Por amendoim entenda-se aqui a espécie Arachis velozolicarpa, uma espécie filogeneticamente distante de A. hypogea. A espécie A. velozolicarpa pertence à secção Extranerve do gênero Arachis, que é exclusiva do Brasil. O Arachis velozolicarpa, que tem características morfológicas diferentes do Arachis hypogea, é cultivado por pelos menos três grupos indígenas do oeste do Mato Grosso, incluindo os Nambiquara. Entre as características excepcionais de A. velozolicarpa está o teor extremamente alto de triptofano, muito maior que o de qualquer variedade cultivada de A. hypogea.

Embora pertençam a famílias muito diferentes, como Euphorbiaceae, Convolvulaceae, Araceae, Marantaceae, Dioscoriaceae, Vitaceae e Leguminosae, as espécies associadas na roça apresentam uma série de características básicas em comum, que criam uma coerência ou uniformidade agroecológica nesse sistema agrícola. Apenas o cupá e o amendoim deixam de se enquadrar completamente nesse padrão, que não é, mais uma vez, aleatório. As características comuns dessas espécies serão discutidas a seguir.

Em primeiro lugar, são todas espécies perenes, ao contrário do que prevaleceu em áreas de clima temperado e mediterrâneo, onde plantas anuais de ciclo curto, como os cereais e as leguminosas, formam a base da dieta. Nas terras baixas da América do Sul prevaleceram as plantas perenes, embora elas possam ser cultivadas em um sistema agrícola anual. Em segundo lugar, todas elas têm propagação vegetativa, inclusive o Arachis velozolicarpa. A propagação vegetativa é o método usado pelas populações humanas para plantio e multiplicação do material, mas o sistema sexual nunca foi eliminado. Todas as espécies florescem, têm fecundação e fertilização e produzem frutos. Conseqüentemente, são espécies que podem, de modo alternativo, ser propagadas sexuadamente, via semente. Em algumas dessas espécies, como é o caso da mandioca, o homem provavelmente introduziu a reprodução vegetativa, porque nenhuma das outras espécies do gênero tem reprodução vegetativa. Em outras espécies, como as do genêro Arachis, que possui crescimento rizomatoso, a reprodução vegetativa é anterior à domesticação e passou a ser usada como prática agrícola de propagação subseqüentemente.

Uma outra característica agronômica comum é a parte comestível principal da planta. Com exceção do cupá e do amendoim, em todas as espécies citadas a raiz ou o tubérculo, isto é, os órgãos subterrâneos, são os consumidos pelo homem. Mesmo no caso do amendoim, em que é a semente o órgão comestível, os frutos penetram no solo para maturar e precisam ser arrancados de lá na colheita, como a mandioca, a araruta e as outras. Embora em algumas espécies a parte aérea possa ser consumida também, como por exemplo as folhas da mandioca, a sua importância econômica e nutricional é negligenciável comparada à da raiz. O uso de órgãos subterrâneos é uma adaptação cultural dos agricultores dos trópicos em resposta aos problemas de armazenamento inerentes a climas quentes e úmidos. Nesses climas, produtos de colheita armazenados se deterioram muito rapidamente. Em contraposição aos grãos, as raízes não precisam ser colhidas todas ao mesmo tempo numa estação específica. As plantas podem ser deixadas intactas na roça por longo tempo, e as raízes podem ser colhidas gradualmente, à medida que sejam necessárias. O ritmo de colheita é então ditado pelo homem, e não pela planta, pois o armazenamento é feito na natureza (armazenamento pré-colheita, que seria uma contradição em termos, para outros tipos de agricultura) e o abastecimento de alimentos pode ser garantido para o ano todo, prescindindo de um sistema artificial de armazenamento agrícola.

O armazenamento pré-colheita, embaixo da terra, apresenta como vantagem adicional um maior grau de proteção contra a predação, que é um dos problemas clássicos de outros tipos de agricultura, particularmente a cerealicultura nos trópicos. Como conseqüência do uso predominante dos órgãos subterrâneos, não há competição entre as partes usadas para a reprodução das culturas, que são os caules e gomos (órgãos aéreos), e as partes usadas para a alimentação (órgãos subterrâneos), o que proporciona uma maior flexibilidade para o sistema agrícola. Poderíamos falar de uma disjunção agronômica entre a produção e a reprodução. O agricultor pode propagar uma planta antes mesmo de colher o produto dessa planta. No caso de grãos, como milho, trigo, arroz, isso já não acontece: o homem tem que deixar de consumir uma parte dos grãos para usar como propágulo para o próximo plantio.

No sistema agrícola da roça, baseado na propagação vegetativa, o agricultor geralmente planta logo depois que colhe. Como a produção não é concentrada numa única época, para evitar o problema do armazenamento, o plantio tampouco é concentrado. Em termos demográficos, isso causa uma heterogeneidade etária dentro da roça, isto é, as gerações são sobrepostas.

Como indicamos acima, os sistemas agrícolas tradicionais desenvolvidos em regiões temperadas e secas diferem bastante daqueles desenvolvidos nos trópicos úmidos. As civilizações dos climas temperados e secos domesticaram cereais para obter uma fonte de carboidratos. Nos trópicos úmidos, em vez de cereais, as civilizações foram baseadas em raízes e outros órgãos subterrâneos. Uma forte corroboração dessa tendência histórica de natureza ecológica provém da não domesticação do arroz na zona neotropical. O gênero Oryza, ao qual pertence o arroz, tem cerca de 22 espécies, algumas diplóides e outras tetraplóides, distribuídas em vários grupos genômicos (Oliveira, 1993). Um desses grupos, o AA, que só ocorre no estado diplóide, compreende várias espécies e abrange todos os continentes tropicais, com uma a três espécies diferentes por continente. Na África, a espécie O. glaberrima foi domesticada a partir do ancestral selvagem O. barthii, e na Ásia a espécie O. sativa, o arroz consumido no mundo todo, foi domesticada a partir de O. rufipogon/ O. nivara. Na América Tropical, em cujas terras baixas (Amazônia, Pantanal, Planície Costeira) a espécie O. glumaepatula é extremamente abundante, nunca ocorreu a domesticação do arroz. Ele é colhido em pequenas quantidades, para consumo esporádico por algumas comunidades, mas nunca plantado.

A domesticação de uma planta como essa seria relativamente fácil e resultaria na evolução de um complexo de espécies ou raças formado da espécie selvagem, da espécie domesticada e da invasora produzida por introgressão entre as duas primeiras. Tal complexo jamais foi encontrado nas Américas e seria muito interessante se evidências arqueológicas fossem encontradas indicando pelo menos a existência de um período, ainda que breve, de tentativa (frustrada) de domesticação no passado.

Estrutura da variabilidade em roças

Outra característica dessa roça, além da diversidade de espécies e a grande diversidade intra-específica, é o grande número de variedades dentro de cada uma dessas espécies. A mandioca foi escolhida como espécie-modelo inicialmente, por razões óbvias. É a cultura que tem a maior distribuição nas terras baixas da América do Sul. Historicamente, sempre foi fonte energética para essas populações, e apresenta uma diversidade extremamente grande. Alguns poucos trabalhos investigaram a diversidade de variedades de mandioca em tribos indígenas: 46 variedades ou etno-variedades nas roças dos Kuikuro (Carneiro, 1986); mais de cem variedades entre os Aguaruna (Boster, 1984); quarenta variedades entre os Desana (Kerr, 1986); 137 variedades entre os Tukano (Chernela, 1986). Como é produzida tanta variabilidade? Para entender esse problema, a metodologia escolhida envolve o enfoque co-evolutivo, de interação homem-planta. As modificações que as plantas sofreram foram feitas pelo homem, e elas mesmas alteraram a estrutura dessas populações humanas. A tentativa de entender o processo de geração de variabilidade dentro da espécie vem sendo feita através do estudo da dinâmica evolutiva dessas roças, associando os componentes de manejo que o homem desenvolveu nessa agricultura de derrubada e queima e os componentes da história vital da espécie cultivada. A metodologia envolve o estudo da influência dos componentes de manejo sobre a reprodução, a dispersão de sementes, a formação de bancos de sementes, e assim por diante.

Esse trabalho utiliza o que se pode chamar de uma amostragem estratificada. A roça é usada como unidade biológica básica, mas ela é parte de uma estrutura maior, hierarquicamente organizada em níveis sucessivos de complexidade. A roça é aquela unidade onde os eventos micro-evolutivos ocorrem. A roça normalmente está dentro de uma comunidade onde existem outras roças, e essa comunidade, que é também uma unidade cultural, é o segundo nível de amostragem. Nesse modelo há a possibilidade de fluxo gênico entre populações relativamente isoladas, condicionado pelo comportamento humano, através da troca de materiais. O terceiro nível hierárquico é a unidade macrogeográfica, composta de diversas comunidades de roças, envolvendo fluxo gênico a distâncias muito maiores. Resumindo, o modelo é composto de uma unidade biológica básica, a roça, uma unidade cultural e uma unidade geográfica, e diversos estudos de casos reais foram iniciados de modo que a comparação de situações diferentes pudesse ser usada para testar a existência de um padrão comum. Os casos escolhidos foram: (a) o grupo dos Txicão no Xingu e no Tocantins; (b) populações de caboclos e Tucanos na região de Barcelos, no Amazonas; (c) populações de caboclos em Rio Branco e em Roraima; (d) populações de caboclos nas regiões de Óbidos, Santarém e Monte Alegre (PA); (e) populações de caboclos na região de São José, em Goiás e (f) caiçaras e caboclos da região de Iguape e Eldorado, em São Paulo. O número total de etnovariedades de mandioca identificadas nesses grupos é de 220. Isto nos conduz à questão: de onde vem tanta variabilidade, e como ela é mantida?

O processo de manejo influencia a biologia da espécie cultivada. Ao abrir uma clareira na mata, introduzindo ali a mandioca, o homem estabelece uma população com limites genéticos e demográficos definidos. São conhecidos a densidade da população, a sua composição em termos de diversidade ou heterogeneidade (número e tipo de variedades) e o arranjo espacial desses indivíduos. Entretanto, a abertura da clareira, que é a perturbação de uma vegetação primária ou secundária, estimula a invasão de outras espécies relacionadas ou não ao material cultivado, e é isso que vem nos sugerindo a possibilidade de que pelo menos algumas espécies tenham sido domesticadas já em associação com outras. Portanto, as espécies que compõem a comunidade da roça teriam surgido por domesticação simultânea de espécies invasoras de clareiras, guiada pela habilidade de combinação ecológica daquelas espécies.

Processos microevolutivos

Quando o homem abre uma clareira e introduz a mandioca, segue-se a invasão de espécies do mesmo gênero Manihot que pertencem à vegetação circundante. A possibilidade de fluxo gênico entre a cultivar e as invasoras e a conseqüente criação de variabilidade genética na cultivar dependem do sistema reprodutivo da mandioca e da capacidade de intercruzamento das espécies envolvidas. Embora o agricultor ignore a reprodução sexual da mandioca e a propague de maneira exclusivamente vegetativa, o sistema sexual da espécie permaneceu intacto. A mandioca é monóica e protogínica com flores masculinas e femininas na mesma inflorescência. As flores femininas abrem-se duas semanas antes das masculinas, impedindo a autopolinização dentro de inflorescência. Isto não provoca, no entanto, a alogamia obrigatória, pois cada planta tem diversas inflorescências, que florescem em tempos diferentes. Portanto, dentro de uma mesma planta, o pólen das primeiras inflorescências pode fecundar as flores femininas das inflorescências tardias. Além disso, muitas das plantas presentes numa roça são clones, devido à prática agrícola de propagação vegetativa, e os cruzamentos entre essas plantas têm o mesmo efeito de autopolinizações. A freqüência desse tipo de cruzamento sofre a influência do arranjo espacial das plantas adotado pelo agricultor, que segue critérios outros que não a estratégia de polinização. Portanto, com relação à reprodução sexuada, pode-se dizer que o arranjo é inconsciente. Foram encontrados três tipos diferentes de arranjo espacial nas roças:

  1. Na maior parte das roças o arranjo é completamente

    aleatório, isto é, as plantas são simplesmente misturadas.

  2. Menos comumente, o agricultor junta o solo em montículos, para aumentar a concentração de nutrientes e melhorar a drenagem onde ela é naturalmente pobre. Em cada montículo, ele planta três a quatro manivas (segmentos do caule), muitas vezes pertencentes a diferentes variedades, ou genótipos, e, mais raramente, a mesma variedade. Esse é o chamado arranjo

    agregado ou

    colonial.

  3. O mais raro arranjo é o

    segmentado, em que cada variedade é plantada em bloco numa parte da roça.

Os arranjos mais comuns acima descritos maximizam a probabilidade de cruzamento entre variedades, diminuindo as distâncias entre variedades diferentes. Nós usamos marcadores isoenzimáticos para determinar a taxa de cruzamento e a distância de dispersão de pólen em dois ensaios de campo. A distância máxima de polinização nas nossas condições experimentais foi de aproximadamente vinte metros, sendo que a maior parte dos cruzamentos ocorreu dentro de um raio de aproximadamente dez metros da planta-mãe. Assim, a polinização intervarietal é altamente provável na maioria das roças, porque as variedades são plantadas a distâncias menores que a distância máxima de polinização.

A amplificação da variabilidade genética na roça é auxiliada ainda por mais dois fatores integrados, a biologia das sementes e o sistema de coivara adotado pela maioria dos caboclos, índios e caiçaras, em que as roças são abandonadas após o solo ter-se esgotado, e retomadas após vários anos, quando as capoeiras já restauraram a fertilidade.

A mandioca tem frutos explosivos, que expelem as sementes a distâncias médias de seis metros, podendo chegar a catorze ou quinze. A dispersão das sementes por explosão está completamente fora do controle dos agricultores, que não as usam nem colhem, e é, pois, aleatória em direção.

Ao contrário das sementes de gramíneas e leguminosas domesticadas, que são usadas como propágulos para o plantio da estação seguinte, as sementes de mandioca, inhame, batata-doce e outras não perderam a dormência. Não há seleção para perda de dormência porque a propagação é feita através de manivas, e isso possibilita a formação de bancos de sementes no solo.

Para estudar o banco de sementes, escolhemos roças de duas localidades do litoral do Estado de São Paulo: Pedrinhas, uma comunidade caiçara na Ilha Comprida; e Ivaporunduva, um antigo quilombo numa região montanhosa do Vale do Ribeira. A proximidade dessas comunidades permitiu que as visitássemos freqüentemente durante quatro anos. Situadas no domínio da Mata Atlântica, as roças se distribuem por hábitats que variam de restingas a floresta de encosta. Foi retirada a camada superficial do solo, até dez centímetros de profundidade, e foram encontradas até dez sementes de mandioca por metro quadrado. Em alguns casos, foram encontradas sementes de batata-doce na mesma amostra; em outros casos, sementes de inhame.

Dois métodos foram usados para estimar a idade dos bancos de sementes, ambos indiretos. Em primeiro lugar, obtinham-se informações dos agricultores locais sobre o ano em que as roças tinham sido abandonadas num determinado local. Depois, analisava-se a composição florística e o estado de desenvolvimento da capoeira e cruzavam-se os dados. Estimativas de dez, quinze e 25 anos foram obtidas, que devem ser tomadas como idades mínimas de banco, pois muitas sementes podem ter-se incorporado ao banco bem antes de a roça ter sido abandonada.

Depois de dez ou quinze anos, os agricultores voltam à mesma área e derrubam e queimam a vegetação para reinstalar a roça. Com a perturbação, as sementes do banco de mandioca, que ainda retêm uma taxa variável de viabilidade, germinam e formam uma população de plântulas. Monitoramos uma dessas áreas por três anos, contando as plântulas emergentes por ano, e verificamos que, dentre quarenta mil plantas da roça formada, 32 eram provenientes de sementes. Considerando-se que esse é um processo que vem recorrendo por séculos ou milênios, esse número é bastante significativo e indica que há uma constante entrada de indivíduos originados por reprodução sexuada na roça.

Como já fizemos notar, a abertura de clareiras permite a invasão de espécies selvagens de Manihot, algumas delas próximas de M. esculenta, e os cruzamentos com elas são uma fonte adicional de variabilidade para a cultivar. Empregando eletroforese de isoenzimas, conseguimos evidência de fluxo gênico entre a cultivar e as espécies selvagens. Como exemplos de coexistência entre a cultivar e as espécies selvagens colonizadoras, podem-se citar as roças do Marará no Rio Branco, em que M. tristis (ou M. esculenta sp flabelifolia, sensu Allem, 1989) compunha 10% da população; as roças do litoral de São Paulo, que contém M. pilosa; e as roças dos Ka'apor, tanto as em uso como as abandonadas, que contêm pelo menos três espécies selvagens (Ballé, 1994).

Em síntese, a amplificação da variabilidade da mandioca está relacionada a um conjunto de mecanismos básicos. O primeiro é essencialmente cultural, e consiste na simples introdução ou troca de variedades cultivadas dentro da comunidade e entre comunidades, como já descrito por antropólogos em diversas comunidades. A invasão de espécies selvagens, possibilitada pelo sistema de coivara, introduz mais variabilidade primária no âmbito da roça. A existência de todo esse material dentro da roça, mais o padrão de arranjo espacial das plantas, permitem que tanto a hibridação inter como a intraespecífica, que são os mecanismos-chaves, produzam recombinantes, ampliando a variabilidade genética. Como essa variabilidade está contida nas sementes produzidas, ela fica, num primeiro momento, armazenada no banco de sementes, e é adicionada no ciclo agrícola seguinte, depois de permanecer dormente no solo, enquanto a capoeira se regenera. As sementes do banco se enquadram em três tipos: as resultantes de hibridação interespecífica (mormente por introgressão), as resultantes de hibridação intraespecífica (entre as variedades) e as resultantes de autofecundação (geitono-gamia e cruzamento entre clones). Quando as sementes finalmente germinam, elas sofrem tanto pressão de seleção natural como artificial, ambas intensas. Os dois primeiros tipos de sementes apresentam heterose, ou vigor de híbrido, enquanto o terceiro apresenta forte depressão por endogamia, típico de plantas alógamas. As plantas endogâmicas são geralmente fracas e pouco competitivas nos primeiros estágios de vida. Geralmente, nesse estágio, as roças precisam ser carpidas até três vezes para eliminar os competidores. As plantas endogâmicas que sobrevivem às primeiras etapas são geralmente eliminadas pelo homem na fase adulta, pois não dão manivas boas. As plantas que sobrevivem até a idade adulta, inclusive as heteróticas, passam então pelo crivo da seleção perceptiva (sensu Boster, 1985), isto é, só são escolhidas para propagação vegetativa, e, portanto, incorporadas à coleção de variedades, se apresentam alguma característica distintiva e nova. É interessante notar que ele exerce claramente uma seleção consciente, que é feita no momento da colheita desse material, quando ele separa as manivas para o plantio no próximo ciclo. A variabilidade nova, portanto, é fixada integral e imediatamente pela propagação vegetativa, dando origem a novas variedades. Note-se que a reprodução vegetativa está ausente em todas as espécies selvagens do gênero Manihot, e evoluiu durante a domesticação de M. esculenta. O surgimento de propagação vegetativa no cultivar implicou basicamente a mudança da estrutura morfológica do caule e dos ramos e o acúmulo de carboidratos nesses órgãos, caracteres que podem ser usados como diagnósticos na identificação do cultivar.

Taxonomia popular e diversidade genética

Um de nossos interesses é compreender a taxonomia popular das variedades de mandioca. Como vimos, as roças de mandioca são extremamente heterogêneas morfológica e bioquimicamente, e os caboclos têm uma grande sensibilidade para identificar as variedades e denominá-las. Os caracteres usados na diferenciação das variedades são principalmente a estrutura das folhas, a forma dos folíolos, a coloração das folhas, a coloração e o comprimento dos pecíolos, a forma e a coloração dos brotos, e a coloração das raízes. Como um parêntese, note-se que a coloração das raízes, que pode ser branca, creme, amarela (caroteno) ou vermelha (licopeno), é objeto da preferência cultural das comunidades. Há aqueles que preferem farinha branca, aqueles que preferem farinha amarela, e assim por diante.

O talento taxonômico do caboclo é extremamente refinado, como demonstra uma comparação entre o sistema classificatório de caboclos do Rio Negro e aquele gerado independentemente por análise morfométrica multivariada (distância euclidiana) de 32 caracteres. Há uma concordância muito estreita entre os dois sistemas. Estudos semelhantes utilizando enzimas, RAPD (Random Amplified Polimorphic DNA) e RFLP (Restriction Fragment Length Polymorphism) estão em andamento em nosso laboratório. Dos 32 caracteres, oito foram responsáveis por cerca de 80% da variação encontrada, sendo seis desses caracteres relacionados ao sistema radicular. Disso poder-se-ia concluir que o sistema caboclo de classificação fosse fortemente baseado na morfologia da raiz. Curiosamente, o caboclo usa predominantemente caracteres da parte aérea em sua taxonomia, e estes não apresentam correlação alguma com os caracteres de raiz, uma discrepância que não se conseguiu explicar ainda.

Como exemplo da acurácia do sistema taxonômico caboclo, podemos citar a atitude de um caboclo da região do Rio Negro, que, indagado sobre o nome de uma variedade lá coletada, respondeu que não a tinha batizado ainda, pois era um material novo. Ele percebeu acertadamente que se tratava de uma planta originada de semente, diferente de suas variedades tradicionais. Durante a germinação, ele notara que a planta "tinha duas orelhinhas", referência indiscutível aos cotilédones, e ele sabia que só plantas originadas de semente apresentam esse tipo de folha. Ademais, pode-se confirmar a informação averiguando a existência de sistema radicular pivotante, típico de plantas originadas de sementes.

A diversidade varietal é visível em quaisquer das roças visitadas, e as evidências dos mecanismos geradores de diversidade são razoavelmente fortes. Mas quanta variabilidade realmente existe na roça e quão superior ela é em relação à das plantações comerciais? Para responder a essas questões, a variabilidade morfológica de diversas roças de mandioca foi avaliada em ensaios de campo na Esalq, em Piracicaba, e alguns parâmetros genéticos foram estimados para caracterizá-las. Embora não caiba aqui uma descrição aprofundada dessas análises, vamos citar uma comparação feita entre uma variedade comercial melhorada amplamente cultivada no sul do país e variedades amostradas em seis roças de Carvoeiro, no Rio Negro (AM). A roça mais rica em variabilidade tinha onze etnovariedades. Vários caracteres foram usados na avaliação, entre eles o peso de raízes, o peso de parte aérea e o número de raízes. O peso de raízes em kg, por exemplo, variou muito pouco em torno da média de 3,91 na variedade comercial, mas apresentou uma amplitude que ia de 0,15 a 6,88 nas etnovariedades. Há nove raízes em média na variedade comercial, com baixo desvio padrão, enquanto nas etnovariedades esse caráter varia de 1,7 a 16. Os valores de herdabilidade e de coeficientes de variação genética são extremamente elevados nas etnovariedades, isto é, grande parte da variação fenotípica apresentada no experimento é causada por variabilidade genética, em comparação com a variabilidade ambiental.

Conclusão

Normalmente se associa às populações humanas tradicionais o mero papel de mantenedoras da diversidade genética. De fato, seus sistemas agrícolas funcionam como bancos de reserva gênica. Porém, esse papel vai muito além, pois elas também geram e amplificam 'a variabilidade num processo contínuo. Quando essas populações são obrigadas a interromper esse processo por problemas das mais variadas naturezas, como conflitos agrários, migração forçada ou construção de represas, ocorre não só uma perda de variabilidade como também uma cessação do processo evolutivo que a gera. Não se pode deixar de levar isso em conta ao se discutir políticas de conservação in situ de diversidade genética.

Notas

Bibliografia

Texto publicado originalmente em Vieira, Célia Guimarães et al. (orgs.). Diversidade biológica da Amazônia. Belém, Museu Paraense Emílio Goeldi, 2001, pp. 369-384.

Paulo Sodero Martins foi professor do Departamento de Genética da Escola Superior de Agricultura "Luiz de Queiroz" (Esalq-USP). Faleceu em julho de 1997.

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  • 1
    Esta foi a última conferência do Prof. Paulo Sodero na Amazônia. Texto transcrito e editado por Ima Célia G. Vieira (pesquisadora do Museu Goeldi) e Giancarlo C. X. Oliveira (professor do Departamento de Genética da Esalq-USP), ambos ex-orientados do Prof. Paulo Sodero, no curso de mestrado em Genética e Melhoramento de Plantas na Esalq-USP, em Piracicaba.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      08 Ago 2008
    • Data do Fascículo
      Abr 2005
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