FLORESTAN FERNANDES
Florestan Fernandes e o radicalismo plebeu em Sociologia
Gabriel Cohn
EM 1945, o jovem Florestan Fernandes escreveu um texto que viria a ser um dos artigos mais lidos da fase etnológica de sua carreira. Relatava ele a vida do índio bororo Tiago Marques Aipobureu, caso exemplar daquilo que a literatura sociológica da época denominava homem marginal, situado entre duas culturas, sem pertencer a nenhuma delas. Trata-se daquela figura a que se aplica frase de timbre inconfundível do grande discípulo de Florestan que foi Octávio Ianni (na medida em que Florestan teve discípulos, e na medida em que Ianni aceitasse essa condição em relação a pessoa alguma, mesmo o mestre que deveras admirava). Perguntado acerca de amigo que se revelava perturbado e confuso, Ianni (que não invoco aqui por acaso) explicou, com o sorriso maroto e compassivo que o caracterizava: "Ele estava aqui, e foi para lá; mas parece que sua alma não está nem aqui, nem lá". Também naquele texto de Florestan sobre um homem em busca da sua identidade pode-se discernir um traço que raramente assomava na sua escrita disciplinada e severa: uma profunda simpatia humana pelo personagem, tal como somente se repetiria nos retratos da vida de populações negras perdidas entre a escravidão despótica e a liberdade abandonada, naquela que talvez seja a sua mais bela obra, sobre a integração do negro na sociedade de classes.
O aspecto pungente da situação de Tiago consistia, claro, em ele não ser um bororo marginal no mundo dos brancos mas sim, tendo retornado ao seu mundo social de origem, ter-se convertido em marginal no seu povo. É nessa trama de referências culturais frustadas que ele é levado a sempre procurar sua alma do lado errado. Dificilmente essa experiência da busca de identidade nos interstícios de dois mundos terá deixado indiferente o jovem cientista em formação aos 25 anos, quando ele próprio procurava o seu lugar em condições difíceis. Aqui, porém, já podemos encontrar os traços básicos da trajetória que Florestan buscaria imprimir à sua vida, tal como se exprimiria na sua produção intelectual e na sua inserção na vida pública. Longe de espelhar-se de algum modo no dilaceramento do seu personagem, Florestan parece ter encontrado neste objeto de pesquisa, como depois saberia encontrar em tantos outros, uma advertência, um desafio e um programa de trabalho. A advertência seria contra qualquer incorporação autocomplacente das vicissitudes da própria biografia na conduta efetiva na vida; o desafio consistiria em dinamizar (para usar um dos seus termos prediletos), em preencher criativamente de energia as formas de percepção do mundo e as alternativas de ação que sua experiência própria iria descortinando; o programa de trabalho, finalmente, se traduziria na resolução de, confrontado com alternativas que se apresentassem como exclusivas e que poderiam paralisá-lo na escolha desse ou daquele papel a ser desempenhado, optar sempre por preencher a ambos, saturando-os (outro termo predileto seu) com seus significados próprios. Nenhuma concessão ao refluxo à subjetividade, pois, mas busca insaciável de aprendizado e de sentido para a ação em tudo que o mundo lá fora oferecesse. Uma posição, em suma, fundamentalmente plebéia perante o mundo: enérgica, intransigente, sobretudo insaciável no empenho em apreender (outro dos seus termos) no pensamento e na ação tudo o que o novo mundo social lhe sonegava. Por detrás disso está aquilo que dará a marca distintiva ao trabalho de Florestan: é nesses mesmos termos que ele conseguiria organizar, mais uma vez, de modo criativo, enérgico e voltado para a saturação dos conteúdos, a sua percepção sociológica e histórica do mundo, também nas grandes análises em nível macro a que dedicaria sua obra madura. Tudo isso no contexto biográfico da contínua busca de "saturar de sentido" os "papéis" que identificava como constitutivos do seu trabalho, expressos com inteira nitidez e com clara indicação da sua intrincada rede de relações na abertura de escrito de 1954, sobre relações culturais entre o Brasil e a Europa, ao se apresentar como "um brasileiro que é sociólogo por profissão e socialista por convicções políticas".
Essa passagem de uma visão pessoal socialmente condicionada para um programa de pesquisa ganha forma numa peculiar modalidade de absorção e criação conceitual. Em primeiro lugar (de novo, uma construção que evoca o estilo de Florestan: sua colega e amiga, a antropóloga Gioconda Mussolini, dizia que nos seus escritos sempre transparecia um quadro sinótico em primeiro lugar, em segundo lugar, por um lado, por outro lado), isso se manifesta no predomínio de uma específica imaginação espacial sobre a dimensão temporal nas análises. Esse mestre da reconstrução histórica vê o passado não como um fluxo, mas como um campo de oportunidades que numa configuração determinada se abriam à ação racional e consciente dos homens, assim como o presente é um campo de forças em pugna pela dinamização e efetivação de tendências estruturais, e o futuro é um conjunto de possibilidades suscetíveis, em grau que compete à análise avaliar, de intervenção com base nas condições presentes. Sobretudo, a referência ao passado jamais é feita nos termos de um jogo da memória (como em Gilberto Freyre, seu grande antípoda): é muito mais um inventário de obstáculos na construção do presente e na projeção para o futuro.
A ênfase nos obstáculos estruturais no lugar da rememoração descansada das raízes de que brota a experiência social vivida encontraria ressonância decisiva nas concepções de outro grande sociólogo marginal, igualmente preocupado com a institucionalização da ciência social na sua sociedade de referência. Refiro-me, é claro, a Émile Durkheim, em quem igualmente uma energia voluntariosa impregnava análises do mais sóbrio cunho funcional e estrutural. A ele deve-se uma das chaves do arsenal analítico de Florestan, na idéia de que, dado um certo tipo de organização da sociedade, ele tende intrinsecamente a se realizar do modo mais acabado ao longo do tempo. Em Florestan, essa idéia do tipo para o qual sociedades complexas tendem de modo irreversível revelou-se das mais fecundas, quando empregada ao seu modo, como que a contrapelo: na identificação dos obstáculos que se opõem à plena realização da tendência objetiva. Sempre atento para o jogo das oportunidades estruturalmente abertas mas perdidas na ação dos agentes históricos, Florestan aproxima-se nisso de um traço marcante de outro grande contemporâneo seu, certamente mais "de cima" socialmente do que plebeu mas não visceralmente senhorial como Gilberto Freyre, o terceiro de um fascinante grupo de intérpretes do Brasil que se distribuíam por amplo espaço intelectual e social: Celso Furtado, para quem tantos momentos cruciais da formação e do desenvolvimento econômico do Brasil resultavam de atos falhos dos agentes decisivos. (Os outros dois, que completariam esse grupo, seriam Antonio Candido e Raymundo Faoro; algum dia alguém ainda há de traçar o retrato das formas de pensamento radical na época, do radicalismo plebeu de Florestan ao radicalismo senhorial de Freyre uma primeira aproximação foi feita há exatos trinta anos por Carlos Guilherme Mota). No caso de Celso Furtado, o ponto a ser examinado, com relação a Florestan Fernandes, seria o da distinção entre a análise dos efeitos imprevistos de atos dotados de racionalidade no seu âmbito de uma racionalidade imperfeita, portanto em obras do primeiro, e a reconstrução, pelo segundo, da incapacidade estrutural de agentes históricos, como a burguesia brasileira saída na grande transição entre a condição colonial e a dependência, de aproveitarem oportunidades intrínsecas à sua condição de classe, que com isso também não se efetiva plenamente. (A questão, escreve Florestan em frase lapidar ao tratar do "desenvolvimento como problema nacional", tema caro a Furtado, é "compreender objetivamente por que um país colonial se converte numa nação dependente)".
Na perspectiva de Florestan, é essencial a tensão entre as tendências objetivas no sentido da plena realização de um determinado tipo de ordem social (burguesa, competitiva, capitalista no caso brasileiro) e os obstáculos de caráter histórico e estrutural que se antepõe a isso. É nela que se localizam as forças sociais em pugna pelo controle dos processos que darão à sociedade a sua feição em cada etapa do seu desenvolvimento. A maneira que ele encontra para figurar esse jogo de forças na sua dinâmica própria não é a do embate puro e simples, mas a de relações que se movem em círculos, dotados ou não, quando "viciosos" de capacidade de desenvolvimento, formando circuitos abertos ou fechados (esta última modalidade, que identificou em momentos decisivos do caso brasileiro, deu título a um dos seus livros). Essa tensão é criativa, opõe-se a quaisquer processos de mera acomodação adaptativa, coisa que constitui seu mais fundo objeto de aversão. Revelando-se impossível a integração plena num padrão socialmente aceitável, não se completando os circuitos senão para bloquear o movimento seguinte, cabe trabalhar pela margem, já que o centro carece de força dinamizadora das oportunidades históricas, e fazer o que cabe a quem vem de fora sem ter o conforto de estar instalado de antemão: saturar as relações tensas entre as condições anteriores e os cenários futuros possíveis de sentidos para permitir a intervenção racional e não meramente voluntarista até porque "o grau de racionalidade de uma ação social, seja ela econômica ou de outra natureza, depende da estrutura do campo em que o agente atua socialmente", como ele dizia em 1967 naquilo que viria a ser o seminal ensaio sobre sociedade de classes e desenvolvimento, publicado em 1972.
Trabalhar na margem para vencer a condição marginal; visar ao centro sem instalar-se nele; buscar sempre identificar as condições objetivas para a aplicação de "técnicas democráticas de intervenção na realidade social" na busca de novas formas de organização compatíveis com a realização de todas as suas potencialidades, sem exceção eis um belo e sério programa, longe de estar concluído.
Recebido em 10.10.05 e aceito em 13.10.05.
Gabriel Cohn é professor do Departamento de Ciência Política da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP e presidente da Anpocs (Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Ciências Sociais). @ gcohn@uol.com.br
Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
10 Jun 2008 -
Data do Fascículo
Dez 2005