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Destaques da biblioteca indisciplinada de Guita e José Mindlin

RESENHAS

Destaques da biblioteca indisciplinada de Guita e José Mindlin

Neusa Dias de Macedo

De um olhar técnico à obra e autor

DESDE CRIANÇA, Mindlin foi um apaixonado por livros e leitura. Predistinado, por certo, a ser um renomado colecionador de livros raros e de vir parar no Brasil, e ter casado com a doce Guita, especialista em restauro e encadernação.

Na idade madura, completando 77 anos de encantamento à bibliofilia, deve ter passado por obstáculos e imprevistos ao buscar aqui e ali, em mercado caro, um determinado exemplar raro. Foi exímio consultor de catálogos de famosos livreiros e impressores europeus, como também manteve contatos contínuos com célebres companheiros de métier, sendo um deles o saudoso Rubens Borba de Moraes, que fraternamente doou a ele a sua também rica biblioteca de livros raros. Crê-se que tenha passado problemas técnicos de organização de biblioteca e arquivo pa-ra ordenar e acomodar a sua coleção tão especializada quanto mais crescente e majestosa se tornava.

Esse livro, organizado empiricamente, teve o concurso de uma fiel equipe familiar e atenciosos especialistas. Entendo que foi perfeitamente adaptável ao espaço físico da edição e aos interesses de um especialista de obras raras. O consulente vai se impressionar de ver à sua frente uma documentação tão imensa como bem ordenada. A luta deve ter sido maior para a seleção propriamente dita das 762 espécies bibliográficas que compõem a "Brasiliana", de um lado, e "Além da Brasiliana", de outro.

Até alguém apontar para a criteriosa amostragem de Biblioteca in disciplinada como Torre de Babel. Trata-se de uma representação de pequena parte da coleção total, em vários idiomas, produzindo um grande efeito.

É bem selecionada; privilegia raridades brasileiras e do mundo todo, com destaques em diversas épocas, com documentos gráfico-visuais em várias tipologias. Como é obra que se baseia em diferentes disciplinas do conhecimento, acaba sendo, no bom sentido, uma miscelânea humanística.

Enfim, o mais importante, principalmente para o nosso país, é o fato de que o nome e o trabalho — do menino-leitor-José, já passados os 77 anos de luta pela bibliofilia — esteja sendo glorificado com essa publicação primorosa. E mais ainda: dentro de pouco tempo, a sua biblioteca particular estará sendo aberta à visitação pública. Justa homenagem, pois, a quem tem representado tanto para São Paulo, como para o Brasil e ao estrangeiro.

Cidadãos comuns e estudiosos em geral terão, agora, a oportunidade de ver de perto essa famosa coleção. Com isso, a Universidade de São Paulo estará rendendo maior enriquecimento à população brasileira e a visitantes de todo os países que amam o saber, a cultura e as obras raras diferenciadas.

Finalmente, vejo Mindlin em tripla dimensão: a) o menino-exemplo: leitor preocupado em formar uma biblioteca; b) o homem-colecionador: inquietado em se especializar em bibliofilia; c) o homem-maduro convicto de sua espe-cialidade: um dono de imensa e rica biblioteca que, todavia, por sua índole cidadã, quer repassar conhecimentos e achados, como também quer doar sua coleção a uma universidade para que mil comunidades não só possam visitá-la, mas utilizá-la.

Por fim, voltando atenção ao livro recém-publicado, orgulha-se de que organizações consideradas de Primeiro Mundo na área da pesquisa, informação e editoração, como Edusp, Fapesp e Biblioteca Nacional os Destaques da biblioteca de Guita e José Mindlin, por ser também um marco do adiantamento bibliográfico e visual, merece uma descrição técnica.

Da organização do livro às informações bibliográficas

Organização, bem acertada, em dois volumes, com 554 páginas. Projeção e produção gráfica bem-pensadas, proporcionando beleza visual deslumbrante. Categorias dos documentos escolhidas a dedo, tendo como diretiva as experiências e preferências notáveis do autor. Envolve matéria, cujos tópicos classificatórios ocorrem numa ordem de conhecimentos, país de origem, época, detalhes de encadernação, bem como por algum tipo de espécie documentária ligada a raridades. O princípio de seleção, também, se atém à natureza de documentos especiais que irá compor um livro de espécies raras, e que facilitem a busca de usuários.

Destarte, os dois volumes que formam essa publicação especializada apresentam a seguinte organização:

Volume 1 — "Apresentação": Pedro Corrêa do Lago (Fundação Biblioteca Nacional), e "Introdução": José Mindlin. "Programação da matéria": Literatura brasileira; História, Viagens, e outros. Manuscritos históricos e literários; Tipografia no Brasil; Periódicos; Livros científicos e didáticos; Iconografia; Livros de artista. Inclui 560 espécies, em 505 páginas.

A cada item ou capítulo, há uma rápida apresentação de Mindlin. O material iconográfico — configuração nas páginas de rosto e/ou de outras partes que identificam a obra selecionada — é variado em cores e aspectos, formalizando um contínuo diversificado de ilustrações gráfico-visuais, que sugestiona o leitor e o leva para alta imaginação.

Volume 2 — Há rápidas apresentações pelo autor a cada capítulo. Contém incunábulos, iluminuras e manuscritos; Arte da tipografia: grandes impressores; Portugal: História da literatura; Literatura estrangeira e história; Desenhos, gravuras e livros ilustrados; Curiosidades; Encadernações. Numeração das espécies a partir do n.561 a 760, das p.311 a 513. "Índice onomástico", p.502 a 513. Pode ter faltado uma indexação por assuntos.

Ilustrações e lindos grafismos percorrem a obra toda, desde a capa e a página de rosto até sua finalização. Quatro fotos de ambientes da biblioteca focalizam estantes de livros e, numa pose especial do casal, Guita e José parecem estar convidando o leitor para conhecer o aprazível ambiente interno da mansão Mindlin.

Além das apresentações do autor aos vários "capítulos" da obra, uma espécie de animação cultural de dezenas de folhas impressas é lançada aos olhos e à mente desta analista e, logicamente, ao futuro leitor. Esse impacto ocorre tanto pela documentação histórico-cultural e trabalhos tidos pelo autor e grupo assessor na organização da tal obra como, também, pela beleza dos desenhos, figuras, cenas, dedicatórias, escritas manuais, iluminuras, ambientes típicos de cada espécie tipográfica selecionada. Pufff... que emoção com essa amostra da história do livro, e o que dirá vendo in loco a Biblioteca na sua totalidade!!.

Transmitir esse livro pela comunicação eletrônica: heresia!! Essa obra, ou melhor, a Biblioteca in disciplinada, merece, sim, muitas teses, para esmiuçá-la como deve!!

Das referências bibliográficas às ementas de cada espécie

Quanto às referências da amostragem em pauta, elas se apresentam de modo completo, com diferenças a casos específicos, conforme a apresentação das obras e épocas passadas. Na seguinte ordem, são identificadas as espécies bibliográficas: a) autor (sobrenome, nome por completo; b) título e outras informações complementares; c) local de publicação; d) editora ou tipografia ou impressor; e) ano de publicação, em algarismos romanos e arábicos; f) número de folhas e páginas; g) dimensão do documento. No volume 2, a ordem das referências, às vezes, muda por razão das suas especificidades tipográficas.

Na maioria das vezes, o documentalista Mendlin informa, em vermelho, especificidades da espécie bibliográficas e dados pessoais; porém, variando, numa descrição específica, em forma pessoal mais aberta e espontânea.

Exemplo: ANDRADE, Mário — Ensaio sobre a Música Brasileira. S.Paulo: I. Chiarato & Cia. Editores, 1928. 94 p., 1 p.s.n. índice (29,3 x 23 cm)

Pelas dedicatória, se vê que esse exemplar passou por várias mãos: de Mário de Andrade a Couto de Barros, de Couto de Barros a Paulo Duarte, de quem o recebi de presente, lamentando não ter pedido também sua dedicatória no exemplar. A Biblioteca possui outro exemplar, com longa dedicatória — um verdadeiro ensaio inédito — a Antonio Candido, que posteriormente me presenteou com o livro.

Na verdade, tais ementas acabam tomando a forma de impressões tão sugestivas e curiosas do autor, que irão causar ao leitor um outro tipo de leitura para tão monumental amostra de obra versátil no ramo das obras raras.

Finamente, que esta resenha — extraída de uma leitura emocionada, por uma bibliotecária de mais de cinqüenta anos de experiência na área — possa despertar a "leitores a mão cheia" uma consulta encantadora a esse monumento vivo de história, literatura e cultura nacional.

Nem tudo está perdido no país!!

Neusa Dias de Macedo possui formação em Educação, Biblioteconomia e Letras. Foi professora do Departamento de Biblioteconomia e Documentação do CBD-ECA-USP (até 1992). É assessora especial da Federação Brasileira de Bibliotecários, Cientistas da Informação e Instituições (FEBAB). @ — nedima2004@ibest.com.br

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    03 Jan 2008
  • Data do Fascículo
    Ago 2006
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