Acessibilidade / Reportar erro

Dilemas entrecruzados

RESENHAS

Dilemas entrecruzados

José Augusto Pádua

QUEM ACOMPANHOU, ou mesmo participou do debate sobre a questão ecológica na década de 1970, recorda da sua radicalidade e, em muitas situações, da sua agressividade. Os ecologistas adotavam um discurso salvacionista, falando em "fim do futuro", "utopia ou morte", "círculo que se fecha", "antes que a natureza morra" e "projeto para a sobrevivência". Uma postura desafiadora que não se limitava aos grupos contraculturais ou de nova esquerda, já que também se expressava na obra de autores perfeitamente inseridos e respeitados no ambiente acadêmico de seus países, como Barry Commoner, Paul Ehrlich, Jean Dorst e René Dumont. O tema da escassez e da sobrevivência, tão presente no pensamento político pré-moderno, de Aristóteles a Hobbes, parecia haver retornado ao mundo ocidental de maneira dramática. Novos dados empíricos e novos paradigmas conceituais desafiavam as bases mesmas do funcionamento das sociedades urbano-industriais e requeriam, mais do que políticas específicas, uma verdadeira transformação civilizatória.

É importante observar que esse tipo de crítica radical emergia no momento em que o mundo ocidental auferia os resultados de uma seqüência de décadas gloriosas de crescimento econômico e de desenvolvimento social no pós-guerra, construindo o que foi classificado como "sociedades afluentes". Emergia também, em sentido histórico mais profundo, na rebarba do chamado "500 year-boom", quando processos de expansão horizontal, como a colonização européia da América, ou vertical, como a difusão da produção mecanizada e do consumo de combustíveis fósseis, fundamentaram a idéia de um rompimento das barreiras físicas ao desenvolvimento e alimentaram a hegemonia de correntes de pensamento político e econômico, à esquerda ou à direita, calcadas na idéia do crescimento ilimitado e da superação do reino da necessidade. Não é de estranhar, portanto, a agressividade da resposta às críticas ecologistas. Empresas de grande ou pequeno porte desdenharam dos argumentos ecológicos e reagiram aos inimigos do progresso e da geração de empregos. Intelectuais comprometidos com o paradigma do crescimento ilimitado escarneceram dos "profetas da ruína" e defenderam, como no título de um livro de Julian Simon, a continuada existência de uma "Resourcefull Earth".

Não é difícil perceber a mudança de contexto observada a partir da década de 1980. O fato notável é que, sem uma transformação decisiva na tendência dos indicadores globais de crise ambiental, muito pelo contrário, o debate perdeu radicalidade e situou-se cada vez mais na proximidade do centro político. As causas dessa mudança, mais do que na superação dos problemas apontados na década de 1970, devem ser buscadas no plano institucional e intelectual. Em primeiro lugar, criaram-se canais institucionais, do nível global ao local, para assumir e enfrentar, mesmo que de forma parcial, os problemas ambientais cuja realidade foi crescentemente reconhecida. O próprio setor empresarial, de maneira algo tardia, assumiu uma posição conciliatória e reformista, em maior ou menor escala. Seja no âmbito da imagem pública, em muitos momentos calcada na simples "maquiagem verde", seja no das mudanças reais nos padrões de produção, promovidas pela chamada "modernização ecológica", ocorreu um claro esforço político de negação da clivagem capital versus planeta. A criação e difusão social do conceito de "desenvolvimento sustentável", no entanto, a partir de 1979, foi um fator decisivo, tornando-se ao mesmo tempo criador e criatura dessa mudança de contexto.

Como é comum entre os conceitos-chave que servem como ímãs para o centro político, possuindo grande poder de agregação e de reorganização positiva do embate social e ideológico, a idéia de "desenvolvimento sustentável" caracteriza-se por uma forte abertura semântica. Na perspicaz formulação de Eric Hobsbawm, citada no livro de José Eli da Veiga que será comentado adiante, o conceito é "convenientemente sem sentido". Mais do que buscar rigor conceitual, porém, é preciso entender o contexto político. Nas palavras do próprio José Eli,

tudo o que é ambíguo e vago no uso da expressão "desenvolvimento sustentável" pode ser entendido como opção deliberada por uma estratégia de institucionalização da problemática ambiental no domínio das organizações internacionais e dos governos nacionais.

Mas o fato é que o alto nível de imprecisão, aliado a uma poderosa expansão no uso social do conceito, acabou por transformá-lo em um "assim é se lhe parece". O desenvolvimento sustentável passou a significar o que cada setor ou grupo social gostaria que ele significasse (de acordo com os diferentes recursos políticos e as diferentes capacidades estratégicas de cada um deles na batalha pela opinião pública). Talvez a definição mais irônica e divertida foi dada pelo representante de uma pequena ONG durante os debates da Eco-92: se o "desenvolvimento" podia ser entendido como "qualquer investimento capitalista", o desenvolvimento sustentável significava "qualquer investimento capitalista de uma empresa dotada de um bom departamento de relações públicas".

Ocorre que, como a história moderna nos ensina, os conceitos-chave do centro político não possuem duração eterna, especialmente quando não conseguem organizar um enfrentamento efetivo, mesmo que não definitivo, dos problemas concretos que lhes deram origem. Na falta de uma substância real, em relação à capacidade de formulação e de ação política, os realinhamentos de centro costumam ser frágeis e provisórios. O resultado, por vezes, pode ser a emergência de um radicalismo ainda mais agressivo. Mas no que se refere ao debate sobre o desenvolvimento sustentável, ao menos no curto prazo, esse não parece ser o cenário mais provável. A tese logrou obter aceitação ampla, quase hegemônica, neste início de século XXI. Ou seja, o pressuposto de que é possível encontrar um caminho positivo de superação do colapso ambiental, de continuidade duradoura do processo de globalização, sem abrir mão das conquistas reais (mesmo que profundamente desiguais) da civilização moderna. Não resta dúvida, contudo, de que a demonstração prática dessa tese sofrerá cada vez maiores desafios, mesmo em relação à precisão conceitual e programática, nos próximos tempos. Pode ser, aliás, que ela se revele ilusória, como indica o ceticismo radical das recentes previsões de James Lovelock sobre o cenário de uma humanidade reduzida a quinhentos milhões de pessoas vivendo na região ártica, que continuará mais ou menos habitável no rastro do aquecimento global...

De todo modo, a aposta positiva vem inspirando esforços intelectuais e políticos legítimos e relevantes. Um dos eixos desse esforço encontra-se na percepção de que os elementos políticos positivos da aceitação generalizada do conceito de desenvolvimento sustentável — o consenso teórico de que o desenvolvimento humano precisa de uma base geográfica e biofísica sólida e segura, superando o viés flutuante e a excessiva abstração de muitas teorias sociais e econômicas contemporâneas — podem se perder no blá-blá-blá e na incapacidade política dos seus defensores. Em outras palavras, a imprecisão que foi provisoriamente eficaz no sentido de acumular adesões políticas amplas está se esgotando. A superficia-lidade, seja teórica seja política, não é sustentável em uma situação histórica na qual persistem, na verdade se agravam, problemas dramáticos como a deterioração das condições ecológicas planetárias e a incapacidade do desenvolvimento global para superar as enormes privações da maior parte da humanidade, engessado que está em uma situação estrutural de obscena desigualdade nos padrões de consumo.

Mesmo assim, negar o conceito de desenvolvimento sustentável, com base no que acabou de ser dito, seria contraproducente. Por mais que seja problemático e frágil, foi ele que triunfou historicamente (ao menos no curto prazo). O desafio que realmente importa é o de enfrentar os prospectos de um desenvolvimento humano eqüitativo no seio de um planeta cuja complexa ecologia conhecemos cada vez mais. Para isso, é preciso aproximar criatividade e realismo na busca de novos projetos políticos que superem o utopismo inconseqüente e a complacência com o status quo da globalização realmente existente. Ao discutir a substância do desenvolvimento sustentável, reaparece o cenário de conflitos e disputas sociais e ideológicas que o consenso superficial havia "superado". Mas é exatamente nesse mundo real que os caminhos de sustentabilidade, se é que eles existem, precisam ser construídos.

No contexto intelectual brasileiro, um dos autores que vêm enfrentando com mais consistência esse desafio é José Eli da Veiga. Em seu livro Desenvolvimento sustentável: o desafio do século XXI, de 2005, e agora nesse Meio ambiente e desenvolvimento, voltado para um público mais amplo, manifesta-se um esforço intelectual notável, tanto no sentido do rigor teórico quanto no da responsabilidade humana diante dos dilemas que o momento atual coloca para a nossa estranha espécie. Esse Homo sapiens que, como gostam de lembrar Edgar Morin e Leonardo Boff, muitas vezes se parece mais com um Homo demens.

Na contribuição de Veiga ao debate, aparecem duas qualidades que já se manifestavam na carreira intelectual do autor como economista rural e analista das mazelas da realidade agrária brasileira e mundial: o enfoque histórico na análise econômica e a perspectiva de longa duração (como exemplificado, por exemplo, no livro O desenvolvimento agrícola: uma visão histórica, de 1991). Infelizmente, diz o autor, "a maioria dos economistas foi levada a acreditar que a ciência que deveriam praticar não é histórica" e que "em vez de atentarem para as relações entre história das sociedades humanas e história natural, preferem que a economia mimetize ciências fundadas na experimentação, como a física, a química e a biologia molecular". Seria interessante lembrar, nesse ponto, como escreveu William McNeill, decano dos historiadores globais norte-americanos, a ironia de que até nessas últimas ciências vem-se adotando cada vez mais um enfoque histórico, reconhecendo a "seta do tempo" como fundamental para entender a realidade física e química do universo e do planeta.

Grande parte do pensamento econômico, contudo, permanece encastelada em uma pretensa universalidade abstrata e desencarnada que de nada serve para pensar o imperativo da sustentabilidade (tão diversificado quanto a realidade do planeta e da humanidade). Cabe lembrar, além disso, já que senti falta no trabalho de uma referência ao livro de Joan Martinez Alier que trata exatamente do assunto — La economia y la ecologia, publicado em espanhol em 1991 —, que uma corrente importante de pensadores econômicos do século XIX e início do XX, como Podolinsky, Clausius, Geddes e Pfaundler, estava buscando dialogar com a biologia e a termodinâmica, construindo uma teoria da produção e da circulação de bens mais colada na realidade biofísica do mundo. Autores que acabaram soterrados pela hegemonia neoclássica e monetarista. Ou seja, a economia crescentemente abstrata, mais do que uma verdade cientifica evidente, é fruto de uma vitória político-intelectual historicamente datada.

Na qualidade de historiador ambiental, entretanto, uma área que, entre outros fundamentos, busca justamente subverter o horizonte estreito de seis mil anos estabelecido pela historiografia para a superação da chamada "pré-história" — costumamos ironizar que a história, assim como as ciências sociais, em geral, são as únicas que continuam presas ao tempo bíblico —, me agrada muito o diálogo do autor com a longa duração. Concordo plenamente com a tese de que a discussão sobre a sustentabilidade humana no planeta — pois é disso que se trata, já que a Terra seguirá seu curso de qualquer forma, com ou sem nossa presença, por mais alguns bilhões de anos — requer uma abordagem ampla sobre a trajetória de nossa espécie, para além dos poucos séculos de experimento urbano-industrial. É o que Veiga faz, por exemplo, no capítulo "Uma longa história", que busca sintetizar cerca de dez mil anos de trajetória das sociedades humanas na ecosfera terrestre. Uma macrovisão que revela o fato de que processos rápidos de crescimento econômico, muitas vezes acompanhados de problemas ambientais locais, são bem mais antigos do que se imagina. Mais ainda, quando falamos hoje de desastres ecológicos e colapsos civilizatórios, não estamos mais falando de suposições teóricas. A historiografia vem reconstituindo uma série de exemplos concretos do passado, que precisam ser examinados. A trajetória efetiva da humanidade, mesmo considerando os seus pontos de descontinuidade e inflexão radical, deveria ser considerada a base mais sólida para pensarmos o desenvolvimento sustentável.

Cabe mencionar que o livro se constrói a partir de um conjunto de discussões pontuais, organizadas em seções. Ao contrário de adotar uma estratégia argumentativa seqüencial, com começo, meio e fim, ainda mais em se tratando de um livro para o grande publico, Veiga apresenta um mosaico de dados, indicadores e formulações de autores cruciais, sempre temperado por comentários e reflexões pessoais. Com base nesse método, discute uma ampla gama de temas, começando com uma avaliação crítica dos novos indicadores de desenvolvimento humano e terminando com uma reavaliação do próprio conceito de desenvolvimento. O resultado logra passar para os leitores, pelo menos para aqueles que tenham a sutileza de assim perceber, o caráter tateante da reflexão atual sobre desenvolvimento e meio ambiente. Mais do que apresentar a "verdade" sobre o desenvolvimento sustentável, o livro revela a existência de uma busca coletiva, um esforço de muitas vozes e práticas no sentido de encontrar caminhos econômico-ambientais dotados de maior sanidade humana e racionalidade ecológica (não apenas instrumental, mas principalmente substantiva).

Concordo com o autor que, por mais que possamos admitir os elementos culturais e ideológicos, incluindo etnocêntricos, presentes na idéia de "desenvolvimento", ela não perde seu valor político no ambiente de um mundo profundamente desigual e cheio de privações em relação a saúde, educação, condições de vida etc. O que está vivo na idéia do desenvolvimento é justamente o direito da humanidade, em suas diferentes expressões, melhorar suas condições de vida e realizar suas potencialidades. O que está morto, ao contrário, entre tantos outros aspectos superados da fé desenvolvimentista, é a ilusão teórica de que flutuamos acima da natureza, de que o imperativo ético já mencionado seja realizável por meio de um instrumental de pensamento antropoexclusivista (já que, a meu ver, o pensamento humano é inescapavelmente antropocêntrico).

É fundamental reconhecer que todas as nossas ações ocorrem sempre através de lugares e recursos específicos da ecosfera de um planeta determinado, dotado de características e limites próprios, fundado em redes biofísicas complexas, ao mesmo tempo poderosas e frágeis. Repensar de forma crítica e aberta, com base nesses pressupostos, as linhas gerais da ética e da política do desenvolvimento humano, abrindo mão de dogmas e "verdades" fáceis, é a tarefa essencial delineada por esse novo livro de José Eli da Veiga. Trata-se de uma contribuição importante para que a temática seja tratada entre nós com necessária seriedade e preparo intelectual. Cada leitor bem informado, por certo, pode discordar de pontos específicos, ou da maneira como determinadas situações históricas e correntes teóricas foram abordadas no trabalho. No cômputo geral, porém, as produções recentes do autor devem ser saudadas como um verdadeiro salto de qualidade na reflexão brasileira sobre o tema.

José Augusto Pádua é professor do Departamento de História da Universidade Federal do Rio de Janeiro e autor do livro Um sopro de destruição: pensamento político e crítica ambiental no Brasil escravista — 1786-1888 (Jorge Zahar Editor, 2002). @ — jpadua@terra.com.br

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    03 Jan 2008
  • Data do Fascículo
    Ago 2006
Instituto de Estudos Avançados da Universidade de São Paulo Rua da Reitoria,109 - Cidade Universitária, 05508-900 São Paulo SP - Brasil, Tel: (55 11) 3091-1675/3091-1676, Fax: (55 11) 3091-4306 - São Paulo - SP - Brazil
E-mail: estudosavancados@usp.br