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Pequeno grande homem

RESENHAS

Pequeno grande homem

Luís Francisco Carvalho Filho

EM 1975, o franzino e sisudo procurador de Justiça Hélio Bicudo, interessado em publicar Meu depoimento sobre o esquadrão da morte pela Editora Nova Fronteira, seria recebido por Carlos Lacerda, "descalço, de calças jeans, busto desnudo, com vários colares de ouro", em um apartamento do antigo Hotel Jaraguá, na região central da cidade de São Paulo.

A cena, absolutamente insólita pela vestimenta escolhida pelo anfitrião para um encontro formal, é ainda mais saborosa pela reação de Lacerda à exibição dos originais do livro que, enfim, por falta de alternativa em tempos de regime militar, seria editado pela Comissão Justiça e Paz: "– Você não vai tirar carteira de valente às minhas custas...".

Em Minhas memórias, de Hélio Bicudo, a pessoa privada está, sim, presente na narrativa. Além de um curioso caderno de fotos, do qual se destaca a imagem de um elegante cavaleiro (1999), aqui e ali aparecem sinais de uma vida familiar austera e religiosa, reminiscências da infância, a Revolução de 32, o irmão soldado, as primeiras leituras, o noivado, o gosto pelas corridas – "Tive que correr de sapatos" e "ganhei" –, lembranças singelas, como a da casa de Igarapava, "muito aquém dos nossos sonhos", ou a da casa de Franca, "que nos proporcionou bastante conforto", ou a de um amigo e companheiro de viagens com "visão conservadora do mundo", ou ainda a do fracasso de suas "pequenas lavouras" de café, pêssego e laranja. Mas, como se a trivialidade pudesse de alguma maneira comprometer a importância da obra, concebida para ter significado histórico e moral, o livro é cerimonioso e econômico com o que é íntimo e reúne, sobretudo, as recordações de uma pessoa pública.

É uma carreira de seis décadas, desde a primeira experiência como promotor público em uma pequenina cidade do interior paulista até se afastar do PT ("dentro" dele, "sonhar ficou impossível"), e se declarar, aos 84 anos de idade, na luta "para a construção de uma sociedade mais justa". Bicudo diz que pensou em ingressar no Exército, mas abandonou a idéia por não alcançar a altura mínima exigida ("permaneci baixinho, chegando a apenas 1,58 metro"): certamente, a história hoje contada seria bastante diferente.

A figura de Hélio Bicudo simboliza o processo de transformação do Ministério Público no Brasil na segunda metade do século XX. Era uma instituição atrelada ao Poder Executivo. Deixou de ser. Seus agentes atuavam burocraticamente, como acusadores de plantão, e alguns promotores, como Bicudo, perceberam a possibilidade de tutela de direitos difusos e de interesses de pessoas marginalizadas, ignorados pelo arcabouço jurídico ou simplesmente desconsiderados por um ambiente judicial elitista. Esses esforços pessoais resultaram em uma instituição extremamente fortalecida e vigilante, apesar de seus desvios e defeitos.

O promotor Bicudo sempre foi uma pedra no sapato. Fazia aquilo que considerava ser o seu dever funcional, sem medo de contrariar, literalmente, os interesses do bispo, dos médicos da Casa de Saúde, do fazendeiro, das elites locais, dos amigos da cafetina da região. Mais tarde, já na capital, participaria de uma equipe de promotores que tentou emparedar o estilo imoral de governar, hoje folclórico, de Adhemar de Barros.

O livro começa com a narrativa do episódio que no imaginário de Carlos Lacerda daria "carteira de valente" a Hélio Bicudo: as investigações do Esquadrão da Morte, organização clandestina formada por policiais, liderada pelo todo-poderoso delegado Sérgio Paranhos Fleury, o mesmo da repressão política, e que foi responsável pela matança autoral e sistemática de dezenas de marginais na Grande São Paulo.

Objetivamente, naquela altura da vida, Bicudo não precisava mais se engajar nesse tipo de caso, desconfortável sob todos os aspectos. Já tinha alcançado o auge da carreira profissional, era politicamente próximo de Carvalho Pinto, de quem fora assessor no governo de São Paulo e no Ministério da Fazenda, exercia outras atividades de prestígio, como a de editorialista do jornal O Estado de S. Paulo, tinha um punhado de filhos para criar. Enfim, poderia aguardar a aposentadoria tranqüilamente, acomodar-se ao establishment... Mas não ficou quieto, exigiu que o Ministério Público de São Paulo atuasse contra a quadrilha e foi designado para realizar as investigações. Meteu a mão no vespeiro e resistiu às ameaças sofridas. Os principais desdobramentos das apurações iniciadas por Bicudo e seus parceiros foram a acusação criminal contra o delegado Fleury e outros policiais graduados, por homicídio, e a chamada Lei Fleury, aprovada às pressas, para que o delegado não fosse preso preventivamente como exigia a legislação da época.

A partir desse momento, Bicudo iria se consagrar como militante incansável dos direitos humanos. Aposentado do Ministério Público em 1979, participaria de uma série de entidades, entre elas a Comissão Justiça e Paz de São Paulo, a Comissão Teotônio Vilela e a Comissão Interamericana de Direitos Humanos, com sede em Washington, para a qual foi indicado por Fernando Henrique Cardoso.

Quixotesco, Hélio Bicudo formulou, na década de 1980, recurso com base no direito canônico contra a condenação ao silêncio do teólogo Leonardo Boff, imposta pelo Vaticano, sustentando que a Congregação para a Doutrina da Fé havia incidido em "erros formais e substanciais". E como se o Vaticano fosse uma instância sensível à influência leiga, subscreveu, depois, petição contra a atitude do papa de dividir a arquidiocese de D. Paulo Evaristo Arns para reduzir seu poder territorial.

O último caso de repercussão pública em que se envolveu foi o da eliminação de doze delinqüentes do Primeiro Comando da Capital (CCC) pela polícia paulista, na rodovia "Castelinho", em 2002, durante o governo Alckmin.

Se aparentemente Bicudo foi derrotado em muitos dos seus embates profissionais (Adhemar e Fleury jamais seriam punidos, as nossas polícias não deixariam de matar ilegalmente etc.), além do efeito simbólico e didático de sua militância histórica, criando, muitas vezes, constrangimento para autoridades brasileiras no exterior, há um resultado concreto da sua atuação política que merece registro. É de sua autoria o projeto aprovado pelo Congresso Nacional (Lei n.9.299/96), depois de árdua luta contra a impunidade e contra o corporativismo, que estabelece a competência da Justiça Comum para o julgamento dos crimes dolosos contra a vida de civis praticados por policiais militares.

Quando trata do Partido dos Trabalhadores (PT), o livro de Hélio Bicudo é capaz de gerar certo sentimento de melancolia. O autor não esconde o tom ressentido e apresenta algumas pistas dos motivos de seus desencontros partidários.

Se a figura de Bicudo foi politicamente útil, por exemplo, para "contrabalançar a imagem de sindicalista radical" na campanha de 1980 ao governo do Estado de São Paulo, como vice na chapa encabeçada por Lula, em diversos episódios ele foi jogado para escanteio por não fazer parte do esquema hegemônico ou por não tolerar, dentro do PT, aquilo que o partido não tolerava em outras esferas da vida nacional.

O fato é que Bicudo reclama da falta de apoio partidário na campanha de 1986, quando foi candidato ao Senado. Reclama de pelo menos dois vetos pessoais de Lula contra a sua pessoa: o primeiro, para não assumir, como seria natural, do seu ponto de vista, a presidência do PT, no final da década de 1980; e o segundo, quando convidado a assumir a Secretaria de Negócios Jurídicos durante o governo de Marta Suplicy em São Paulo (era vice-prefeito), razão pela qual habitaria "o limbo da prefeitura". Reclama da falta de apoio incisivo da bancada do partido na luta que empreendeu na Câmara dos Deputados contra a impunidade da Polícia Militar. Reclama da sua exclusão do processo de composição da chapa de Marta Suplicy quando ela tentou se reeleger, da descortesia com que foi tratado pelos dirigentes partidários. Reclama do ambiente político quando assumiu interinamente o cargo de prefeito após a derrota de Marta: "Chego a pensar que a intenção de muitos era entregar o município com todas as deficiências possíveis, criando desde logo dificuldades para o prefeito eleito, José Serra". E reclama, finalmente, de uma promessa não cumprida pelo governo Lula, que, em compensação, ofereceu-lhe uma sinecura, "uma oportunidade de lazer" em Paris, que soube recusar.

Em Minhas memórias, Hélio Bicudo revela alguns arrependimentos. Da vida íntima, lamenta ter se desfeito da intensa correspondência que manteve com a namorada Déa, depois sua mulher. Da vida pública mais remota, relembra, criticamente, o fascínio que sentiu, assim como outros companheiros de assessoria, pela possibilidade de Carvalho Pinto assumir a Presidência da República na crise decorrente da renúncia de Jânio Quadros, "tomar o poder e consertar o Brasil", o que significaria a ruptura da ordem constitucional.

Em relação a episódio mais recente, Hélio Bicudo faz questão de um "Mea culpa, ainda que tardio". O militante Paulo de Tarso Venceslau denunciou a atuação suspeita de Roberto Teixeira, compadre de Lula, junto a prefeituras governadas pelo partido. Segundo Bicudo, designado para coordenar a sindicância interna, Teixeira "usava o nome de Lula para obter contratos", mas existiam dúvidas sobre o "alegado envolvimento do presidente de honra do PT". Para preservar a imagem de Lula e da "esquerda", Bicudo optou por não aprofundar a investigação: "Hoje é absolutamente claro para mim que foi um erro". Como se sabe, o resultado desse processo na Comissão de Ética do PT seria a expulsão de Paulo de Tarso e a absolvição de Roberto Teixeira.

Hélio Bicudo se afastou formalmente do PT em setembro de 2005, inconformado com a falta de "liberdade de expressão" interna (referindo-se especificamente à expulsão da senadora Heloisa Helena), com o "desastre" da administração federal petista – "quando vejo a política social em prática, lembro-me dos coronéis do século passado" –, com o "crescimento pífio" da economia, com as "negociatas para arcar com os gastos de campanhas eleitorais", com a "renovação cosmética dos órgãos executivos" da legenda, com a "velha prática de procurar bodes expiatórios, bois de piranha para salvar o gado corrupto".

Assim é Helio Bicudo: intransigente, radical, corajoso, utópico, cheio de fé. O estilo de suas memórias é simples, despretensioso, bem concebido, gostoso de ler. Podemos eventualmente discordar de suas análises ou de seus julgamentos pessoais, invariavelmente severos. Podemos estranhar o sentimento de orgulho não disfarçado por tudo aquilo que fez. Podemos sentir até a falta de algo que, por motivos políticos, deixou de contar em suas memórias. Mas não há como não admirar esse pequeno grande homem.

Luís Francisco Carvalho Filho é diretor da Biblioteca Mário de Andrade, advogado, autor de O que é pena de morte (Brasilense, 1995), Nada mais foi dito nem perguntado (Editora 34, 2001) e A prisão (Publifolha, 2002). @ – lfcarvalhofilho@uol.com.br

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    26 Out 2007
  • Data do Fascículo
    Abr 2007
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