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Contra o estigma moderno do nostálgico

RESENHAS

Contra o estigma moderno do nostálgico

Ana Cecilia Olmos

PODE SER um lugar-comum afirmar que os estudos de cultura da América Latina, impulsionados pelo afã de questionar os pressupostos estabelecidos de uma modernidade que padroniza o processo histórico, visam refletir sobre as experiências históricas alternativas que sobrevivem na heterogeneidade cultural do continente. Embora seja um lugar-comum, é conveniente reiterá-lo, dado que esses estudos de cultura ativam, uma e outra vez, um instigante receio ante as representações de mundo impostas por uma consciência racional moderna que avassalou qualquer expressão da diferença. Com esse livro que se debruça sobre as representações do passado na literatura hispano-americana do século XX, Marcos Piason Natali ativa, mais uma vez, esse gesto de inconformidade que questiona as versões monolíticas da cultura moderna e se propõe recuperar uma experiência de modernidade multifacetada nas suas diversas vozes.

Para tanto, Natali desdobra uma rigo-rosa análise sobre a nostalgia que, entendida como um modo especificamente moderno de dar forma ao passado, lhe permite desmantelar, com singular agudeza, as concepções instituídas do conceito e abrir um espaço para a manifestação de formas alternativas de se relacionar com o passado e os mortos. Certamente, a escolha dessa questão não é aleatória. Com ela, Natali penetra no âmago de uma experiência de modernidade que, no seu caráter secularizador, fez da mudança, da novidade e do futuro os traços definitórios do processo histórico. Como afirma o autor, "é quando o movimento da história passa a ser visto como necessariamente emancipador, progressivo e racionalmente compreensível que o apego ao passado pode ser condenado como uma aberração política e um obstáculo irracional" (p.13). Na contramão desse pressuposto histórico moderno, Natali analisa as conseqüências políticas, estéticas e éticas dessa condenação à nostalgia, e postula, a partir de um corpus literário hispano-americano, formas diferenciais de se relacionar com o passado que desmontam os princípios de uma temporalidade que se projeta, implacável, em direção ao futuro.

Como ponto de partida de sua análise, Natali recupera a etimologia da palavra nostalgia e traça uma genealogia moderna do conceito. Criada pelo médico suíço Johannes Hofer em 1688, a palavra, do grego nostos (voltar para casa) e algos (sofrimento), isto é, a impossibilidade de saciar o desejo de voltar para casa, surge como uma expressão nova para se referir a uma vivência já existente. Após sua definição no campo do discurso científico, Natali desenha o percurso do conceito descrevendo sua consolidação como uma doença da memória na Europa dos séculos XVIII e XIX, sua abertura a uma dimensão política nas filosofias iluministas da história (Kant e Hegel) e, posteriormente, no pensamento de Marx, e, por último, seu declínio e reformulação em termos de melancolia e depressão nas perspectivas psicanalíticas de Freud. O cuidadoso traçado dessa genealogia atende tanto a uma perspectiva cronológica que delimita o surgimento, a consolidação e o declínio da idéia de nostalgia, quanto a uma perspectiva transversal que não descuida os deslocamentos do conceito pelos diferentes campos disciplinares. Nesse sentido, a reconstrução genealógica da idéia de nostalgia que Natali realiza deixa claro que os pressupostos racionais que sustentavam o discurso da ciência, da filosofia da história e das teorias políticas e psicanalíticas da Modernidade relegaram o conceito ao campo do doentio ou do reacionário, na medida em que revertia o caráter progressivo e emancipador dos tempos modernos.

O que interessa destacar, no entanto, é que essa genealogia do conceito funciona, na reflexão de Natali, como uma lúcida estratégia analítica que lhe permite, em um primeiro momento, delimitar um campo de saberes que a Modernidade sancionou sobre si mesma para, logo a seguir, desestabilizá-lo, ao colocar em jogo discursos alternativos que põem em xeque o efeito uniformizador de um conhecimento que se postula como verdadeiro. Em outras palavras, ante a pergunta sobre a possível existência de outras formas de apego ao passado que não se limitem ao reconhecimento de vestígios fantasmagóricos que trabalham contra o progresso histórico, o autor demanda uma legitimidade para a literatura como discurso que pode assumir formas diferenciais de se relacionar com o passado e subverter as perspectivas evolutivas dos saberes modernos e seus critérios de precisão, verossimilhança e objetividade.

Natali sabe, como explica Foucault, que o traçado de uma genealogia conceitual supõe não apenas a definição de um campo positivo do saber, senão, sobretudo, a desestabilização de uma instância teórica unitária a partir de lugares de enunciação alternativos. Nesse sentido, essa proposta de leitura encontra momentos de excelência crítica nas páginas em que aborda títulos-chave da ficção latino-americana do século XX: Pedro Páramo de Juan Rulfo, Paradiso de José Lezama Lima e En estado de memoria de Tununa Mercado. Nessas narrativas, Natali visa analisar as diversas formas de representação que pode assumir o passado e, fundamentalmente, trazer ao debate o caráter político e ético dessas, sem esquecer a singularidade estética que as particulariza.

A leitura de Pedro Páramo segue as pegadas de uma noção progressiva do tempo histórico que, embora se apresente camuflada no anacronismo do mítico, não deixa de denunciar a incorporação inevitável de uma cultura periférica à lógica do mercado capitalista. Contra as leituras eufóricas que reconheceram nessa narrativa uma das versões mais acabadas do realismo mágico, Natali indaga a dimensão desencantada que permeia o romance para pensá-lo como "um tratado contra a nostalgia", que traz à tona as posições críticas da modernidade ao sustentar, nas reiteradas e sempre fracassadas buscas de uma origem, que o retorno é impossível porque o passado que se anseia nunca existiu. Porém, a leitura proposta vai além dos rastros do desencantamento que permeia o romance, para reconhecer, na sua energia desmitificadora, a possibilidade de redenção da literatura como um discurso legítimo que dá conta das ruínas de uma modernidade que se torna barbárie no seu próprio processo de aperfeiçoamento.

Ao analisar as formas de representação do passado em Paradiso, a proposta de leitura de Natali torna-se mais ousada ainda, na medida em que não evita o embaraço que a religiosidade de Lezama Lima sempre representou para a crítica literária latino-americana. Sem perder de vista o catolicismo do escritor cubano, Natali indaga as formas de representação que assume o passado e a relação com os mortos em uma narrativa que resiste aos lugares de enunciação do desencantamento moderno e instala a possibilidade da transcendência. Não obstante, cabe destacar que, na sua perspicaz leitura, o autor não limita essa possibilidade de transcendência às feições de uma devoção religiosa; pelo contrário, procura ressignificá-la, e, para tanto, a desloca em direção de uma concepção particular da imagem poética que se configura, então, como uma instância reveladora de outras dimensões do real. Liberada de toda lógica causal e seqüência temporal, a imagem poética lezamiana pode recuperar "o potencial criativo do passado" e superar, assim, o estigma moderno do nostálgico.

As páginas dedicadas a En estado de memoria debruçam-se sobre uma das questões mais relevantes para os estudos de cultura da América Latina das últimas décadas: a relação da literatura com a construção de uma memória que dê conta do horror que instauraram os sistemas repressivos das últimas ditaduras militares. Natali indaga na narrativa de Tununa Mercado a posição discursiva dos sobreviventes, no que diz respeito às possibilidades de elaborar essa experiência de perdas e mortes segundo o modelo freudiano do luto. Apelando a Lévinas, o autor questiona os pressupostos psicanalíticos e assinala a insuficiência de uma perspectiva teórica que se subtrai ao debate ético acerca da responsabilidade e da justiça perante o acontecido. Com absoluta pertinência, Natali propõe uma leitura da narrativa de Tununa Mercado como "testemunho do rosto do outro" que explicite a desconfiança no modelo psicanalítico freudiano. Nesse sentido, o autor não deixa de assinalar o uso que as políticas públicas fazem desse modelo nas suas tentativas de administrar a memória dos mortos. Em outras palavras, ao analisar as formas que esse passado de horror assume em En estado de memoria, Natali não esquece, como afirma Luis Gusmán, que não devemos confundir a eficácia simbólica do luto com a justiça.

Essa rápida passagem pelos capítulos do livro pretende apenas destacar o gesto crítico que o sustenta, isto é, o caráter inusitado de uma leitura que visa questionar não só as interpretações já consagradas da crítica literária, mas também os pressupostos racionais de um campo de saberes que a Modernidade sancionou sobre si mesma. Com esse propósito, Natali transita, com peculiar destreza, por textos teóricos, filosóficos, críticos e ficcionais, apagando as fronteiras dos discursos sem desconhecer as especificidades que os definem. Trata-se de um provocativo jogo de desierarquizações discursivas que se acentua com um sugestivo anacronismo que lhe permite ler Rulfo em sintonia com Marx, Lezama Lima em diálogo com Michelet, ou Tununa Mercado em tensão com Freud. Nesse sentido, a reflexão crítica de Natali foge a periodizações habituais para se movimentar, com absoluta pertinência, pelo campo mais amplo da configuração de um pensamento moderno, isto é, sobre a Modernidade e inscrito nela.

Por último, poderíamos dizer que o livro de Natali chega para nos lembrar que a crítica literária concentra-se no estudo da especificidade da palavra poética, mas que não precisa acabar nela; pelo contrário, pode ir além e, como explica Jameson, fazer das perspectivas histórica, sociológica e política o horizonte absoluto de toda interpretação. Na inteligente leitura que esse livro propõe das formas de representação do passado nos discursos da Modernidade, isto é, das diversas políticas da nostalgia, explicita-se a finalidade última da prática crítica: desvelar a suposta naturalidade das significações tradicionais, desmascarar seu sentido histórico, seu caráter de código social. Em síntese, o livro de Natali não se propõe apenas como um eficiente estudo de crítica cultural latino-americana, ele é uma lúcida demonstração da vitalidade de uma cultura crítica que não renuncia ao exercício de uma razão refutadora que indaga o mundo histórico ou, como afirma Nicolás Casullo, que não cessa de se perguntar: por que essa história e não rotundamente outra?

Ana Cecilia Olmos é professora de Litera-tura Hispano-Americana na FFLCH-USP. @ – anaolmos@usp.br

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    06 Nov 2007
  • Data do Fascículo
    Ago 2007
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