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A hora e a vez de derrotar o Crime Organizado

DOSSIÊ CRIME ORGANIZADO

A hora e a vez de derrotar o Crime Organizado

Entrevista com Getúlio Bezerra Santos

NOS ÚLTIMOS meses, a Polícia Federal (PF) vem se destacando no país em conseqüência do combate à corrupção em diversos setores da vida nacional, assim como na luta contra quadrilhas brasileiras e estrangeiras que atuam no comércio de drogas e de armas. Tendo em vista essa trajetória e a pesada responsabilidade da PF na repressão ao Crime Organizado, estudos avançados solicitou ao Dr. Paulo Lacerda, diretor dessa instituição, uma entrevista.

Em resposta, o Dr. Paulo Lacerda encarregou o delegado Getúlio Bezerra Santos, atual diretor de Combate ao Crime Organizado da PF, de responder ao questionário que lhe foi enviado. A entrevista foi nos dada por telefone, no dia 21 de agosto último. Em resumo, essas foram as principais informações transmitidas pelo delegado Getúlio Bezerra Santos. (Marco Antônio Coelho)

ESTUDOS AVANÇADOS – A existência do Crime Organizado parece um dado novo na vida brasileira. Esse fato estaria ligado à maior difusão do tráfico de drogas e de armas em nosso país? Outros fatores – como a superlotação nas prisões – também contribuem para o desenvolvimento do crime organizado no Brasil?

Getúlio Bezerra Santos– O Crime Organizado não é assim tão novo. O cinema norte-americano e a televisão já o mostravam há muito tempo – com o Al Capone e Os intocáveis, por exemplo. E não tínhamos aqui nenhum Muro de Berlim ou Muralha da China que nos protegesse dessas manifestações.

Temos o seguinte conceito de Crime Organizado: trata-se de crimes de grande potencial ofensivo, praticados por grupos criminosos organizados, permanentes ou duradouros, que buscam incessantemente vantagem financeira e que debilitam o Estado. Esse é apenas um conceito amplo porque não há uma definição legal. Acredito que o Brasil deverá acatar as recomendações da Convenção de Palermo, da qual é signatário, para melhor tipificar o conceito.

Com certeza, o tráfico de drogas, como modalidade do que chamamos de Crime Organizado, tem merecido destaque e grande visibilidade em todo o mundo pelos malefícios que acarreta. Agora existem manifestações do Crime Organizado que se tornam invisíveis à repressão pelo nível de sofisticação e seu alcance. Refiro-me aos crimes praticados contra a administração pública e o mercado financeiro, ações que debilitam mortalmente o Estado, e esses crimes devem ser combatidos com todos os nossos esforços. Daí as críticas anteriormente feitas à Polícia Federal, por não ousar atuar em determinadas áreas contra determinados tipos de crime.

Agora passamos a adotar uma nova postura sem medo de utilizar elevadores panorâmicos e realizar buscas em ambientes refrigerados. Essa foi a mudança na PF e em outras instituições que vêem que esses crimes não são intocáveis, mesmo porque hoje temos uma responsabilidade muito grande para com a sociedade.

A situação do tráfico de armas não é muito clara, pois a maior parte das armas que circula no Brasil é fabricada aqui mesmo. Nessa questão somos vulneráveis, não só pela falta de fiscalização, mas porque o Brasil é quase um continente. Evidentemente, há falhas nessa fiscalização. Porém, atente-se para o seguinte: a fronteira entre os Estados Unidos e o México, mesmo sendo muito monitorada (não passa nem uma formiga sem ser vista por algum monitor), ela também é vulnerável. E leve-se em conta que nossa fronteira com a Bolívia é mais extensa que a fronteira dos Estados Unidos com o México.

A visibilidade da atuação do Crime Organizado, que se observa no interior dos presídios, pode ser considerada como uma bomba anunciada que estava para explodir a qualquer momento. Na Convenção de Palermo, a ONU classifica isso de um "grupo estruturado". São criminosos confinados que em nome de uma falsa solidariedade assumiram o comando dos presídios, por falta da presença do Estado. Por isso chamo de previdência das prisões.

Como eles têm má-índole e a maioria é formada por condenados, vivendo numa situação quase patológica, eles se organizaram para continuar praticando crimes, fazendo uma falsa proteção de familiares de presidiários, no ambiente da proteção de gangues, como o Primeiro Comando da Capital, o PCC, que virou até grife. Esse tipo de crime repercute e incomoda, mas não é ele que debilita o Estado. O que nos enfraquece são fatores como a corrupção, a sonegação de impostos, o desvio de verbas públicas, a lavagem de dinheiro, porque o Estado fica sem recursos para resolver todos os problemas.

O aperfeiçoamento da Polícia Federal

ESTUDOS AVANÇADOS – Em relação a esses crimes que agora estão mais visíveis, o senhor não acha que deveria haver modificações no posicionamento do Estado em relação ao crime organizado? Por exemplo, dando outros instrumentos legais para a PF combater mais ativamente crimes como o tráfico de armas e de drogas?

Getúlio Bezerra – Havia por parte desses criminosos a certeza de que os órgãos de repressão do Estado eram destinados a só prender os "pés de chinelo", seguindo o velho exemplo de que a polícia dos senhores feudais era usada para prender os escravos fugitivos. Enfim, até mesmo a polícia achava ser impossível resolver crimes de grande potencial ofensivo, se empenhando na resolução de crimes menores. Jamais se pensou que a polícia pudesse atuar em determinadas áreas.

A principal novidade em relação ao crime organizado é que antes o muro (que dificultava alcançar os criminosos) era muito elevado. Agora, com a ajuda de avanços da tecnologia e a doutrina operacional consolidada da PF, crescemos e podemos ver o outro lado do muro. Então, veja a celeuma que existe quando chegamos aos esquemas milionários de desvio de verbas públicas, às grandes empresas e até aos conglomerados comerciais da moda.

Tudo isso gera, de um lado, apoio da população, que sempre fica indignada quando toma conhecimento das grandes fraudes e da corrupção. Mas, de outro lado, alguns setores acham que passamos dos limites.

Realmente, é necessário haver um aperfeiçoamento dos quadros e de nossas instituições policiais. Mesmo sem politizar a discussão, o fato é que, quando o Dr. Paulo Lacerda assumiu a direção da PF, ele mudou sua estrutura. Por exemplo, quando agregou alguns crimes a determinadas diretorias (como a responsável pelo Crime Organizado) ou ao unir num único setor os crimes relacionados com as drogas, com produtos químicos, com as cargas e a lavagem de dinheiro. Assim, foi possível democratizar mais as verbas que antes eram destinadas preferencialmente para a repressão das drogas e contrabando.

Questões essenciais

Parto de três pilares para a melhoria de nosso trabalho: capacitação dos quadros e aperfeiçoamento das estruturas, integração das instituições policiais e a busca incessante de uma legislação eficaz. Esse investimento na qualidade dos quadros é essencial e creio que essa questão todos compreendem. Devemos fazer uma boa seleção dos policiais e um trabalho de formação adequada, a fim de não termos bandos armados sem doutrina e estratégia. Temos de ampliar o respeito aos direitos individuais garantidos constitucionalmente, e quando houver violações desses preceitos elas devem ser reprimidas.

Convenção de Palermo

Nos últimos anos, o mundo foi colocado diante de uma realidade nova: os sindicatos do crime ultrapassaram as fronteiras geográficas dos países, com o objetivo de obter maiores resultados nas operações delituosas e para assegurar proteção e impunidade a seus agentes. Essa mudança de comportamento decorreu da multiplicação do fluxo de mercadorias, serviços e pessoas entre os países, em conseqüência do aprofundamento do processo de globalização.

Em razão disso, a comunidade das nações entendeu a importância da criação de acordos internacionais para uma ação conjunta contra o crime transnacional organizado. Em 9 de dezembro de 1998, a Assembléia Geral da ONU determinou a criação de um comitê de trabalho com o fim específico de elaborar uma convenção internacional para enfrentar esses crimes.

No ano seguinte, em dezembro de 1999, realizou-se em Palermo, Itália, uma reunião de alto nível para a assinatura da Convenção das Nações Unidas contra o Crime Organizado Transnacional. Esse documento – a Convenção de Palermo – expressa a compreensão de que os países estão diante de um gravíssimo problema que só pode ser eliminado mediante uma ação conjunta da comunidade das nações.

A Convenção de Palermo foi adotada pelas Nações Unidas em 15 de novembro de 2000, na Assembléia Geral do Milênio. Ela é suplementada por três documentos que abordam áreas específicas de atuação do crime organizado:

• protocolo para prevenir, suprimir e punir o tráfico de pessoas, especialmente mulheres e crianças;

• protocolo contra o contrabando de imigrantes por terra, ar e mar;

• protocolo contra a fabricação ilegal e o tráfico de armas de fogo, incluindo peças, acessórios e munições.

No artigo 2º, o tratado firmou a seguinte definição:

Para efeitos da presente Convenção, entende-se por: a) "Grupo criminoso organizado" – grupo estruturado de três ou mais pessoas, existente há algum tempo e atuando concertadamente com o propósito de cometer uma ou mais infrações graves ou enunciadas na presente Convenção, com a intenção de obter, direta ou indiretamente, um benefício econômico ou outro benefício material.

Diversas questões foram tratadas nesses acordos exaustivamente analisados pela ONU. Assim, entre elas, ficou estabelecido que os países se comprometem a criminalizar a lavagem de dinheiro e a instituir um sistema de controle de instituições bancárias e que não podem deixar de tomar as medidas apropriadas sob a alegação de normas de sigilo bancário. O problema da corrupção também foi abordado nos documentos e neles estão propostas para agravar as sanções contra esse tipo de crime. A Convenção trata também de aspectos relacionados com a extradição de criminosos e a transferência de presos, respeitando a legislação nacional dos países.

Como o Congresso Nacional de nosso país aprovou, em maio de 2003, o texto da Convenção de Palermo, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva, pelo Decreto n.5.015, de 12 de março de 2004, sacramentou a adesão do Brasil a esse documento do Direito Internacional.

A integração das instituições policiais é básica, mas isso não significa ajuntar tudo como num saco de gatos. As polícias militares estaduais são preparadas para atuar no policiamento ostensivo. A Polícia Civil dos Estados está mais sujeita a influências políticas e sofre com a precariedade de meios. Mas todas devem ser estimuladas e incentivadas, inclusive resolvendo seus problemas salariais, porque elas são essenciais nas funções de segurança pública.

Quanto à legislação, é óbvia a limitação que temos. Por exemplo, há um exagero no uso do sigilo bancário e fiscal. Entendo que devemos flexibilizar o acesso às informações protegidas por meio da transferência de responsabilidade de dados entre autoridades policiais e fiscais. Alguns não aceitam esse procedimento, e recordo que, no Supremo Tribunal Federal, o ministro Nelson Jobim afirmou que o sigilo bancário e fiscal no Brasil não é exacerbado, e sim sacramentalizado. Avançamos muito na solução desse problema, mas é indispensável acabar com a burocracia, a fim de facilitar as investigações. Não pretendemos inventar nada. Há os exemplos de outros países e as convenções internacionais. Trata-se de copiar as melhores práticas, com pequenas adequações, para abaixarmos o muro a que me referi, deixando mais expostas as elites criminosas.

ESTUDOS AVANÇADOS – O senhor acha que deve haver mudanças na legislação que preside a fiscalização e a apuração da lavagem de dinheiro sujo?

Getúlio Bezerra – A legislação brasileira é uma das melhores do mundo, mas ela é emperrada ainda por certos dispositivos do conjunto da legislação brasileira. É indispensável o acesso mais fácil aos dados protegidos. Além disso, há estudos na área para melhorar ainda mais sua aplicação. Dessacramentalizando o acesso aos dados sigilosos poderíamos avançar mais rapidamente.

O contrabando nas fronteiras

ESTUDOS AVANÇADOS – A documentação da Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) do tráfico de armas demonstra a quantidade de armas que entram pelas nossas fronteiras. O senhor não acha necessário o reforço da repressão a esse tráfico, particularmente da PF, mas também de outros órgãos, como as Forças Armadas?

Getulio Bezerra– O Brasil é um continente. Se partirmos para a idéia de um controle físico das faixas das fronteiras – dezesseis mil quilômetros –, nem o nosso exército, junto com militares da Venezuela, da Argentina e de outros países vizinhos, conseguiria "fechar" fisicamente esse território. Além disso, a questão dessas armas contrabandeadas está superestimada, pois a maior parte delas é produzida no Brasil. Temos alguns focos mais problemáticos, como a fronteira com o Paraguai, em razão do fluxo comercial normal que facilita o ingresso de armas. Todavia, talvez a questão dos portos seja mais alarmante.

Temos uma deficiência gravíssima na PF, e que não vai ser resolvida em médio prazo: a deficiência de recursos humanos. Nossa academia está trabalhando a todo vapor, mas não pode atender a todas as exigências na formação do pessoal necessário. Por isso, caminhamos na direção de um trabalho apoiado sobretudo no uso da inteligência e da maior integração com outras forças de segurança, recebendo aliás o apoio de nossas Forças Armadas. Naqueles pontos em que há maior trânsito, fazemos um trabalho mais efetivo, como na fronteira com o Paraguai. Nas fronteiras da Região Amazônica nosso controle é ainda mais precário. Não adianta tapar buraco e dizer que não há problemas nessa questão das fronteiras, porque falhas existem.

Meio milhão de presos

ESTUDOS AVANÇADOS – Não acha indispensável modificar certas normas que regem o funcionamento dos presídios, no sentido de não permitir a circulação de informações entre presos recolhidos a várias instituições penais?

Getúlio Bezerra – Não sou profissional do sistema penitenciário, mas acredito que se deva começar tudo do zero. Temos quase meio milhão de presos no Brasil, e se encarcerarmos os criminosos que estão soltos, nas ruas, não haveria prisões para todos eles. Precisamos investir nessa questão, mas isso é uma decisão política. Basta vermos como os países tratam seus presos com respeito e investem nesse objetivo. Aqui há uma questão política, pois sempre existe a dúvida se devemos ampliar os investimentos em saúde, educação, estradas etc., ou se investir no sistema carcerário, reabilitação etc. Hoje temos apenas dois presídios federais, mas insisto que todo o sistema penitenciário deve ser reequacionado, pois é uma lixeira humana.

ESTUDOS AVANÇADOS – Existe uma polêmica entre o Ministério Público e as instituições policiais. Não seria melhor estender para o Ministério Público a função de também investigar os delitos?

Getúlio Bezerra – Há muita emoção nessa proposta, o que provoca radicalização por parte de alguns. Se as instituições estão sendo muito demandadas, como é o caso da Polícia Federal, e não conseguem investigar, deve haver maior integração com o Ministério Público. Mas isso com ressalvas: é preciso integrar com independência e trabalhar harmonicamente, sem haver escolha de casos pontuais (alguns selecionam apenas um ou outro tipo de crime) sem querer assumir toda a investigação (de ladrão de galinha a desvios milionários). São muitas opiniões, mas acredito que a mais prática é o Ministério Público ser o titular da ação penal, o fiscal da atividade policial e se integrar ao trabalho da polícia, deixando o Poder Judiciário mais independente e menos envolvido na perseguição criminal. Uma outra tendência é o Ministério Público cercar-se de pessoas requisitadas para fazer investigações isoladas, paralelas e sem integração com o que a polícia está fazendo. Em alguns países os escritórios dessas instituições funcionam no mesmo local.

ESTUDOS AVANÇADOS – Quer acrescentar alguma mensagem a nossos leitores?

Getúlio Bezerra – Temos de ser mais abertos à crítica para aperfeiçoarmos a Polícia Federal. Tenho certeza de que a grande manchete hoje é o nosso erro, pois há uma expectativa grande para acertarmos e recuperarmos o tempo perdido.

Getúlio Bezerra Santos é bacharel em Direito, graduado em 1977 pela Universidade Federal do Amazonas, pós-graduado em 2000 em Metodologia de Ensino Superior pela Universidade de Brasília (UnB). Ingressou na Polícia Federal em 1973, como agente de polícia, e em 1979 concluiu o Curso de Delegado de Polícia Federal, na Academia Nacional de Polícia. É membro do Conselho Nacional de Antidrogas e instrutor dessa academia. Chefiou a Coordenação-Geral de Polícia de Repressão a Entorpecentes. Atualmente é diretor de Combate ao Crime Organizado. Representou a PF em diversos eventos internacionais na Europa, nos Estados Unidos, na África e na Ásia. Possui cursos de especialização, realizados no Brasil e no exterior, nas áreas de Repressão ao Tráfico de Drogas, Gerenciamento de Operações de Inteligência, Controle de Precursores Químicos, Investigação Financeira, Força Tarefa e Técnicas de Ensino.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    11 Jun 2008
  • Data do Fascículo
    Dez 2007
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