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O livro, a matéria e o espírito

RESENHAS

O livro, a matéria e o espírito

Ulpiano T. Bezerra de Meneses

OS ESTUDOS de cultura material, como especialidade acadêmica, tomam por pressuposto a condição corporal do homem e, portanto, a existência de uma dimensão material, física, sensorial, que subjaz à instituição e ao desenvolvimento da vida biológica, psíquica e social. A perspectiva da cultura material, assim, permite, na história, identificar, definir e compreender tal dimensão na organização e dinâmica da vida social – sem se perder em reducionismos nem em explicações causais. Não é de hoje que se discute a cultura material no campo das ciências sociais: desde a segunda metade do século XIX ela vem sendo objeto de reflexão e práticas, principalmente na antropologia, na arqueologia (por força da natureza da documentação exclusiva ou predominante com que trabalha) e na sociologia. Já a história, ela própria, tem sido renitente, sobretudo por causa do viés marcadamente logocêntrico da formação do historiador, embora já não haja dúvidas, hoje em dia, sobre a legitimidade das fontes materiais. Muitas vezes, porém, ainda se pensa numa história da cultura material, mais uma entre as fatias em que se atomiza a disciplina, aqui com seu horizonte restrito ao estudo de artefatos e seus contextos, em vez de se preocupar com a dimensão sensorial que pode iluminar qualquer domínio da história: história social, econômica, política, institucional, cultural, do gênero, das minorias e dos excluídos, das ideologias e assim por diante.

Por isso, foi uma reconfortante surpresa ler a obra de Dom Paulo Evaristo Arns, A técnica do livro segundo São Jerônimo, fruto de uma tese em patrística e línguas clássicas apresentada à Sorbonne (Faculdade de Letras e Ciências Humanas da antiga Universidade de Paris), em 1952. Houve uma edição francesa de 1953, uma italiana de 2005, e mesmo uma brasileira, pela Imago, de 1993, mas que circulou muito pouco. A atualidade do interesse de Dom Paulo pela cultura material – mesmo que em momento algum ele utilize a expressão –, na perspectiva mais fecunda (pelo que permite compreender), faz que seu livro seja contemporâneo de obras recentíssimas de renomados historiadores e pesquisadores do cristianismo primitivo, como Klingshirn & Safran (2007), Hurtado (2006), Williams (2006) e Grafton & Williams (2006). Esses historiadores estão agora palmilhando uma trilha que Dom Paulo foi dos primeiros a abrir.

Apesar da riqueza de reflexão que a obra em exame suscita, eu me limitaria aqui a comentar apenas três tópicos – aliás intimamente associados e imbricados – imbricados nessa eficaz perspectiva de cultura material.

O livro como artefato

O primeiro tópico é precisamente sua escolha seminal: não o conteúdo dos escritos do monge São Jerônimo, mas o suporte físico desses conteúdos: o livro como artefato.

São Jerônimo foi uma escolha pertinente. Doutor da Igreja que viveu na virada dos séculos IV e V (347-420), percorreu áreas imensas do mundo em que se difundia a Boa Nova, de sua Dalmácia natal (hoje Croácia) à Gália, de Roma ao deserto da Síria, de Constantinopla à Palestina. Tradutor da Bíblia do hebraico para o latim (a Vulgata), a pedido do papa Dâmaso, foi o verdadeiro fundador da tradição "acadêmica" dos estudos bíblicos. Além disso, dedicou-se com paixão a produzir e difundir em livro o resultado dos trabalhos seus e de outros eruditos. Por certo, teve predecessores, como Orígenes e Eusébio, mas sua presença foi mais forte.

Na obra de Dom Paulo, o estudo do livro se desdobra num infindável mar de temas, com os quais ele percorre minuciosa e competentemente o circuito completo de fabricação, circulação e consumo do livro na Antigüidade tardia: a composição (crítica interna, ditados, os imponderáveis no trabalho de taquígrafos, copistas e calígrafos, as falsificações, adulterações, correções, roubos de manuscritos), a matéria-prima e os equipamentos (papiro, pergaminho, madeira do liber, tabuinhas, estiletes, penas), as unidades e tipologias (epístolas, comentários, prefácios, tratados, recensões, apologias, coleções etc.), a edição e difusão (empréstimos, comercialização, diálogos, lutas partidárias, grupos de leitores, intrigas religiosas, zelo apostólico, publicações à revelia do autor, papel de intermediários, depositários, e assim por diante), os salários, os preços e os patrocínios (era grande o descompasso entre a pobreza doméstica e os altos custos do livro), os arquivos e as bibliotecas... Tudo isso em capítulos e subdivisões lineares, bem claras, com tratamento rigoroso da terminologia antiga e suas implicações filológicas, aproveitando-se de uma bibliografia erudita, mas mobilizada sem nenhum pedantismo.

À primeira vista, no entanto, poderia alguém se perguntar: como um homem de profunda espiritualidade (afinal, tratava-se do futuro cardeal Arns) poderia ter assim priorizado as coisas materiais? Não vejo contradição nenhuma. Qualquer leitura menos superficial demonstrará que aí se tem, antes de mais nada, a aceitação da corporalidade como condição humana. Aliás, Henri de Lubac (jesuíta francês, cardeal no fim da vida, um dos mais importantes teólogos do século XX) já observara que o Cristo ter assumido integralmente a condição corporal revelava a "honestidade da Encarnação". Conviria acrescentar que, para uma religião revelada, trata-se de uma exigência da historicidade, o divino fazendo irrupção na história, na história dos homens e não numa história paralela.

Assim, Dom Paulo não vai trabalhar o texto de São Jerônimo, mas procura acompanhar as contingências que marcaram a difusão das Escrituras. Parafraseando de Lubac, poderíamos dizer que fazia parte da honestidade da Revelação que ela se tivesse submetido às vicissitudes da condição corporal da vida humana – no livro. Para terminar: o próprio São Jerônimo, no prefácio da tradução do "Livro de Jó", explicitamente associa o trabalho de exegese bíblica ao trabalho manual, exercício monástico, com o fito de justificar, não a atividade física, mas a intelectual.

A forma do livro e o conteúdo

Nestes tempos em que o livro digital parece aposentar qualquer suporte físico, em que se tem escrita sem livro, é salutar refletir sobre o que o livro representou para nossa civilização. Dom Paulo trata da anatomia do livro, mas percebe que ela não é independente de sua fisiologia. A morfologia, os sentidos e o funcionamento do livro são solidários. Os minuciosos quadros de informação que ele monta permitem entrever precisamente nos tempos de São Jerônimo a passagem definitiva do rolo (o volumen de papiro) ao códice, o codex de pergaminho, isto é, o livro de forma cúbica, "tijolo elementar do pensamento ocidental", no dizer de Foucault. O papiro (de origem vegetal) adaptava-se ao rolo, mas para o livro em folhas dobradas o pergaminho (pele de animal) se comportava mais adequadamente. Dom Paulo aponta argumentos para tal substituição, como a praticidade, o preço mais baixo do codex (que já foi chamado de "rolo dos pobres"), em relação ao volumen, o acesso imediato aos trechos procurados etc. Mas também já acentua que a passagem do rolo ao códice assegurava a unidade de composição literária, que não poderia ocorrer no rolo.

Esse ponto de vista é hoje desenvolvido em estudos que procuram entender o livro como forma simbólica. A expressão foi cunhada por Erwin Panofsky, ao propor o estudo das formas como sintomas, que exprimem por si todo um jogo de valores, representações do mundo, modos de pensar, que não são visíveis de imediato. Michel Melot, conservador emérito das bibliotecas nacionais da França, publicou em 2006 um inspirado e fundamentado estudo sobre a história do livro. Ele também toca no problema levantado por Dom Paulo e prossegue: o rolo de papiro desenrola-se indefinidamente, seu conteúdo é um fluxo; assim a mensagem do Velho Testamento tinha nele um vetor apropriado. Já o códice, que nasce da dobra, fecha-se sobre si mesmo, como pretende a mensagem da salvação cristã, que se apresenta como completa, auto-suficiente: a verdade toda está conhecida, deve apenas realizar-se no tempo, até o final. A tela do computador também se desenrola indefinidamente, como no volumen de papiro, aberta sem barreiras para todos os links que multiplicam caleidoscopicamente verdades múltiplas. Dom Paulo intuiu que no livro-códicese pressupõe um espaço circunscrito: por ele a escrita é solidária com seu suporte.

O livro e o cristianismo

Assim, com o cenário montado em A técnica do livro segundo São Jerônimo, podemos avaliar o trabalho cotidiano, concreto, do monge, do scholar e do editor em plena operação. Disso podemos extrair duas considerações relevantes.

A primeira é que o cristianismo intervém e marca fundamente a história do livro – como uma forma de pensar o mundo. Convém relembrar a transição há pouco apontada, do rolo de papiro ao livro dobrado, em pergaminho. Embora seja atestado desde o século I de nossa era, em Roma, o codex teve uma lentíssima aceitação até os tempos de São Jerônimo. Além disso, se quantificarmos os códices anteriores ao século IV, verificaremos que dos 160 fragmentos que chegaram até nós, 158, maioria impressionante, se originaram em meio cristão: são textos do "Evangelho de São João", dos "Atos dos apóstolos", de uma epístola paulina... Já a partir do século IV, momento de expansão do cristianismo, o domínio se torna efetivo: pois não era um vetor apropriado para tornar visível e compartilhar uma certa noção de verdade, fundada numa revelação que já se perfez?

Em conseqüência, o livro que encerra essas verdades pode transformar-se num manual de vida privada, portátil, pessoal, disponível em grande quantidade, fazendo do cristianismo por excelência a religião do livro. Melot compara os comportamentos associados ao livro nas outras duas grandes religiões monoteístas. No judaísmo ele ressalta a natureza de objeto sagrado da Torá; no islamismo, o Corão não é propriamente o suporte da palavra divina, mas mediação inescapável para a onipresença dessa palavra pela recitação: a escrita é mero recurso da recitação. São mais religiões da palavra do que do livro, conclui Melot. No século XV, quando ocorre a grande revolução de Gutenberg, não é coincidência que o primeiro livro impresso seja a Bíblia.

Seja como for, fica patente no estudo de Dom Paulo o papel de Jerônimo na implantação da cultura escrita (e sua autoridade na tradição ocidental) como a atmosfera própria do cristianismo.

Segunda consideração: inversamente, o livro intervém e marca a história do cristianismo. Antes de mais nada, marca na formação de um modo específico de produção de conhecimento que, para simplificar, podemos chamar de estudos bíblicos, postura que fez do cristianismo na Antigüidade e na Idade Média um foco e uma forma de sabedoria. Nessa linha, Dom Paulo revela as habilidades desse sábio que foi São Jerônimo, versado em grego, latim, hebraico, filosofia, filologia, retórica, exegese e o mais que se fizesse necessário. Não sem mérito, pois, é o patrono dos estudos bíblicos e o protótipo do pesquisador eclesiástico. Fica patente nesse passo a importância da produção do livro e da leitura como atividade monástica essencial. Ao mesmo tempo, forma-se um novo público literário – que inclui até mulheres – com o interesse concentrado na Bíblia e preparado para a leitura cotidiana e a meditação noturna.

Jerônimo, entretanto, está atento aos perigos de reificação do livro, risco comparável à transformação das imagens devocionais em imagens sacras, o que foi objeto de intermináveis disputas teológicas, assim como de inúmeros e ferozes episódios de iconoclasmo. No caso do livro, os desencontros foram mais amenos. Dom Paulo dá conta das numerosas advertências do santo, por exemplo, contra o uso do livro como talismã ou objeto de superstições. Ele apresenta Jerônimo, mais que tudo, imbuído da dimensão mística do texto: "não é a pena nem a tinta, nem sequer o volume, e sim ‘o espírito e a palavra de Deus’ que ocuparão o coração dos fiéis" (p.32). Para concluir, Dom Paulo, em uníssono com Jerônimo, reconhece que a materialidade não exclui a transcendência, é seu veículo. E o conhecimento intelectual pode ser instrumento para transformar-se e transformar o mundo.

Somente esses rápidos comentários mostram como foi justificada e oportuna a bem cuidada reedição que a CosacNaify resolveu fazer dessa obra singular e pioneira. Cumpre notar, ainda, a seleção de imagens pictóricas que ilustram a edição, datadas dos séculos XV a XVII, incluindo Caravaggio, Nicoletto Semitecolo, van Eyck, Leonardo, Antonello da Messina, Ticiano, Dürer, Patinir e Jusepe de Ribera. Evidentemente, as imagens não pretendem criar nenhuma ilusão das atividades de São Jerônimo e dos ambientes que as abrigaram. Além do aporte estético, servem como testemunho do impacto do santo monge no imaginário europeu, mais de um milênio após sua morte, e de sua associação ao estudo, à erudição, à meditação, à escrita e, sobretudo, ao livro.

Referências bibliográficas

GRAFTON, A.; WILLIAMS, M. Christianity and the Library of Caesarea. Origen, Eusebius, and the Library of Caesarea. Cambridge, Mass.: The Belknap Press of Harvard University Press, 2006.

HURTADO, L. W. The earliest Christian artifacts. Manuscripts and Christian origins. Grand Rapids: Eerdmans, 2006.

KLINGSHIRN, W. E.; SAFRAN, L. (Ed.) The early Christian book. Washington: Catholic University of America Press, 2007.

MELOT, M. Livre. Paris: L’Oeil Neuf Editions, 2006.

WILLIAMS, M. H. The monk and the book. Jerome and the making of Christian scholarship. Chicago: The University of Chicago Press, 2006.

Ulpiano T. Bezerra de Meneses é professor do Departamento de História da FFLCH-USP. @ – utbm@uol.com.br

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    11 Jun 2008
  • Data do Fascículo
    Dez 2007
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