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O homem sem memórias: nova edição comentada do Fausto II

RESENHAS

O homem sem memórias: nova edição comentada do Fausto II

Helmut Galle

NA TRAGÉDIA do Fausto, esse arquivo abrangente de formas e motivos literários no qual o velho Goethe tentou resgatar três milênios da história humana, abundam os paradoxos. Um deles é que a tragédia termina de maneira pouco trágica, e outro é que nos defrontamos com um protagonista praticamente isento de memória individual. Se algo distingue claramente esse Fausto (freqüentemente chamado de paradigma do homem moderno) do Ulisses (o outro grande modelo da subjetividade ocidental), é essa capacidade de esquecer seu passado. O ardiloso herói grego somente perdura em todas as peripécias da viagem forçada porque vive, nele, a memória da sua procedência e ela lhe serve, ao mesmo tempo, como meta: a esposa e o lar, sua identidade de ser rei de Itaca. Trata-se de um caminho circular, enquanto Fausto apresenta uma trajetória essencialmente linear e seu alvo final permanece vazio em cada uma das etapas. O feiticeiro renascentista nunca dirige os olhos para trás desde que se entregou "ao delírio, ao mais cruciante gozo" na aposta com aquele gênio "que sempre nega", de nome Mefistófeles. Esse homem não acredita que um dia irá dizer ao momento: "Oh pára! és tão formoso!", e muito menos se dedicará à recordação. É programática, nesse sentido, a cena inicial da "Segunda parte" da tragédia. No fim da "Primeira parte", ele abandonara sua amante no cárcere, culpada de assassinar seu filho e aguardando a decapitação. Agora Fausto encontra-se deitado "num prado florido" para ser liberado "das visões de negrura", por meio de um sonho "terapêutico" que elimina todas as lembranças da vida anterior, de Margarida e da culpa que cairia inevitavelmente sobre o herói. Nos cinco atos que se seguem, ele vai correr de aventura a aventura, por espaços de escala momumental e pela profundidade da história, sempre fitando rigorosamente para a frente, sendo "sua parte imortal", finalmente levada às alturas celestes pelos anjos, atraído pelo "Feminil-Imperecível".

Essas últimas citações provêm da grande tradução do Fausto II empreendida por Jenny Klabin Segall entre 1938 e 1967, o ano da sua morte. O trabalho "admiravelmente absolutista e intolerante" (Sérgio Buarque de Holanda) foi publicado em várias edições e saiu agora de forma revisada e comentada por Marcus V. Mazzari, acompanhado do texto alemão, uma bibliografia essencial e desenhos de Max Beckmann. A Editora 34 complementa assim sua "Primeira parte" do Fausto produzida em 2004 com o mesmo tipo de aparato. Juntos, os dois volumes chegam a mais de 1.500 páginas e superam as outras versões do Fausto disponíveis no Brasil por sua aparência estética. Não se trata, porém, de um objeto bibliófilo, cujo valor reside mais na capa. O leitor brasileiro sem profundos conhecimentos do alemão que se propõe a ler a obra-prima de Goethe recorrerá, no futuro, a essa edição, porque o texto em si, tal qual o original, dificilmente se abre à compreensão dos leitores contemporâneos sem intermediação de notas, explicações e comentários.

Essa inacessibilidade deve-se só parcialmente à distância histórica que nos afasta do pensamento e da linguagem do autor de Weimar. Já o público alemão daquelas décadas que se seguiam à publicação póstuma da "Segunda parte"(1832) reagiu com incompreensão e considerava o drama malogrado e impróprio para o palco. É certo que Goethe incorporou, excessivamente, palavras arcaicas e variantes inusitadas que exigiram notas já naquela época e hoje ainda mais. Essa riqueza expressiva infiltra o material lingüístico de uma profundidade histórica que alude constantemente a camadas anteriores do uso verbal e seus contextos sociais. É uma das estratégias poéticas que abrem o significado do drama a dimensões além da cena concreta e da ação em primeiro plano. Nenhum leitor, nem sequer o dedicado estudioso goetheano, pode prescindir de explicações para desabrochar essa dimensão.

No que diz respeito ao vocabulário, a tradução de Klabin Segall, considerada a mais exata por muitos, pode competir com o original. A tradutora utilizou-se de um enorme repertório expressivo que, várias vezes, exige demais da capacidade do atual leitor brasileiro. Estão lado a lado o texto português e o texto alemão. Este se baseia, principalmente, na muito cuidadosa edição de Hamburgo de Erich Trunz, recorrendo somente em alguns casos (bem justificados) a emendas de acordo com a edição de Frankfurt de Albrecht Schöne, considerada atualmente a mais fidedigna. O paralelismo exato dos versos permite que o alemão e o português se comentem mutuamente. Nos trechos em que a solução da tradutora difere muito das palavras do texto de partida encontra-se uma nota explicativa. O texto de Klabin Segall quer obedecer a uma dupla fidelidade: aproximar-se ao significado das frases alemães e, ao mesmo tempo, reproduzir os versos e sua multiplicidade métrica por formas análogas da poesia portuguesa. Por conseguinte, o metro e a rima exigem, muitas vezes, alterações do sentido. Ademais, nota-se algo como a "angústia de influência": parece que a prioridade temporal de Agostinho D’Ornellas proibiu que Klabin Segall aceitasse as soluções do poeta português que, freqüentemente, são simples e fiéis, enquanto a variante da tradutora brasileira requer uma nota. Isso pode ser constatado nos famosos versos do Vigia Linceu (v.11.288-11.303):

Zum Sehen geboren,

Zum Schauen bestellt,

Dem Turme geschworen,

Gefällt mir die Welt.

[...]

Ihr glücklichen Augen,

Was je ihr gesehn,

Es sei wie es wolle,

Es war doch so schön!

D’Ornellas traduz (11.450-11.465):

Para ver nascido,

A olhar destinado,

Na torre metido,

Do mundo me agrado.

[...]

Vós, olhos ditosos,

Quanto visto havéis,

Por vário que fosse,

Foi belo, direis!

Klabin Segall:

A ver destinado,

À torre preposto,

Vigia jurado,

O mundo é meu gosto.

[...]

Felizes meus olhos,

O que heis percebido,

Lá seja o que for,

Tão belo tem sido.

Klabin Segall evita o início mais exato escolhido por d’Ornellas (a distinção entre "ver" e "olhar"), depois oferece um detalhe mais fiel ("vigia jurado") e completa os versos restantes com uma solução independente, não menos próxima ao original, terminando de forma enfática ("tão belo tem sido"), embora não tão forçada como o faz d’Ornellas ("foi belo, direis").

De maneira semelhante, ela esquivou-se de copiar d’Ornellas no caso das conhecidas linhas finais do drama (12.104-12.111):

Alles Vergängliche

Ist nur ein Gleichnis;

Das Unzulängliche,

Hier wird’s Ereignis;

Das Unbeschreibliche,

Hier ist’s getan;

Das Ewig-Weibliche

Zieht uns hinan.

D’Ornellas:

Tudo que morre e passa

É símbolo somente;

O que não se atinge,

Aqui temos presente;

O mesmo indescritível

Se realiza aqui;

O feminino eterno

Atrai-nos para si.

Klabin Segall:

Tudo o que é efêmero é somente

Preexistência;

O Humano-Térreo-Insuficiente

Aqui é essência;

O Transcendente-Indefinível

É fato aqui;

O Feminil-Imperecível

Nos ala a si.

As palavras enigmáticas cantadas pelo Chorus Mysticus como uma conclusão de todo o drama reproduzem-se com dificuldade em outros idiomas e ambas as traduções não são muito exatas. Klabin Segall começa mais fiel que d’Ornellas ("tudo que é efêmero") – mas pouco justo ao ritmo enxuto do hino litúrgico – e continua substituindo "Gleichnis" por "preexistência". Trata-se aqui mais de uma interpretação livre; o "símbolo" de d’Ornellas seria adequado e Mazzari, nas notas, apresenta a melhor solução para a palavra "Gleichnis": "símile". Da mesma forma, os conceitos que seguem na tradução de Klabin Segall ("humano-térreo-insuficiente", "transcendente-indefinível") soam artificiais e impedem o avanço dos versos, sendo menos simples e apropriados que o "indescritível" e o "feminino eterno" em d’Ornellas. Nesse caso, aparentemente, a tradutora pretendia adiantar o conteúdo filosófico por meio de uma formulação pouco poética.

Os verdadeiros obstáculos para a compreensão, todavia, residem na concepção do drama. Para Harold Bloom, "de todos os mais fortes poetas ocidentais, Goethe parece ser hoje o que está menos ao alcance da nossa sensibilidade". O crítico norte-americano relaciona seu diagnóstico ao juízo de Ernst Robert Curtius, para o qual Goethe é o último representante de uma grande tradição européia que nasce em Homero. Isso pode ser entendido como um reflexo do famoso ensaio de Schiller, que reclama o amigo Goethe como exemplo da "poesia ingênua", quase anacrônico em uma época "sentimental", em termos mais correntes: subjetiva, refletida, romântica ou moderna. Sem negligenciar a contemporaneidade de Goethe com o romantismo europeu e seus traços evidentemente românticos, podemos vincular essa "estranheza" do Fausto II mais ao estilo da velhice, um estilo que não abandona as convicções classicistas, mas transforma-as em algo novo. O autor, convertido em momumento nacional havia décadas, não tomava nenhum cuidado diante das capacidades intelectual, ética e estética do seu público, apostando unicamente em leitores futuros, capazes de sondar o potencial do seu texto. Pode-se dizer que Goethe tinha razão, dado que tantos pensadores posteriores (de Hegel, Marx e Nietzsche a Simmel, Lukács e Bloch) consideraram o Fausto uma fonte para compreender o mundo. O velho autor deu-se a licença de uma textura tracejada em poucas linhas, apontando as idéias e imagens abundantes de forma pouco explicativa.

Isso não implica que a obra seja menos acabada, muito pelo contrário: a experiência artística do poeta de oitenta anos encontrou ao longo dos 7.500 versos cada vez novas soluções surpreendentes. Segui-lo nos saltos da sua imaginação, porém, constitui uma tarefa árdua e que não pode prescindir de guias experimentados. Pode-se acrescentar aqui a observação de que os desenhos de bico-de-pena de Max Beckmann compartilham dessa qualidade. O artista pertinaz realizou essa obra – menos "ilustração" do que comentário paralelo em idioma diferente – no exílio em Amsterdã, traduzindo as cenas do Fausto II em alegorias e imagens do século XX. Essas são tão concretas e genéricas quanto o texto que as inspirou, mas muitas delas já carregam a experiência do sistema totalitário e seus horrores.

Outra característica do estilo do Fausto II – também paradoxal – é a carga alegórica que cria uma superestrutura para as figuras, suas ações e falas. Não que as cenas careçam da concretude tão essencial para a estética de Goethe, que sempre parte do fenômeno particular para nele descobrir o seu aspecto genérico, a verdade geral inerente dos fenômenos. "Temos, no espelho colorido, a vida", diz Fausto no início da sua segunda trajetória (4.727), parafraseando a epistemologia do autor. Essa base materialista e experiencial está presente no Fausto II, mas a dimensão alegórica parece dissolver a coerência da trama no primeiro plano. Trata-se, ainda, de referências veladas a uma visão do mundo que não pertence à bagagem cultural mais comum. Gerações de germanistas se ocuparam em separar os vários estratos de sentido, que se encontram aqui indissoluvelmente emaranhados: a constituição do sujeito autônomo e criativo, uma visão da história ocidental, uma filosofia da natureza, uma estética conciliadora do clássico e do moderno, um extrato do progresso técnico, uma enciclopédia da mitologia antiga e um compêndio das ciências ocultas e naturais, para somente mencionar as camadas mais importantes da composição, exploradas até o momento. A mudança do "pequeno" ao "grande mundo" realizada pelo protagonista na segunda parte do Fausto implica que a perspectiva se desloca do subjetivo para o objetivo, como o autor já explicou em uma das conversas com Eckermann: "Na segunda parte não há quase nada de subjetivo, tudo aparece em um mundo superior, mais amplo, mais claro e menos passional; alguém que não tenha viajado pelo mundo e não passou por algumas experiências não o entenderá".

A nova edição do Fausto II não pode substituir as experiências de vida do leitor, mas o comentário de Marcus Mazzari, pesquisador da obra de Goethe há muitos anos, coloca à disposição as informações necessárias para aproveitar da melhor maneira possível a potencialidade do texto. O comentário vai além das notas lingüísticas, históricas e literárias que esclarecem os elementos obscuros tanto do texto original como das passagens que, na tradução, se afastam demasiadamente do original. Por meio de breves introduções, sobretudo, consegue-se situar cada ato e todas as cenas naquela rede de alusões constituída e completada pelos inúmeros autores da crítica desde o século XIX. É o grande mérito do comentador ter estudado e revisado todas as edições e monografias importantes, canalizando essa torrente de informações em porções bem equilibradas: seus comentários apresentam e acompanham os textos do drama de forma discreta e elucidativa, não privilegiando uma leitura particular, mas abrindo-o ao pensamento dos leitores brasileiros. Assim, o Fausto pode valorizar seu potencial nas terras que, no 5 ato, surgem no horizonte das atividades colonizadoras do protagonista.

Falar de três milênios de civilização representados no Fausto II não era exagero. Ainda que o enredo, principalmente, continue em um Renascimento vago – aquela fase transitória entre a Idade Média e a Modernidade que viu figuras como o histórico Johann Faustus –, o autor integrou aqui todas as experiências relevantes da sua vida, sejam elas mais gerais como o surgimento da burguesia e a industrialização ou mais pontuais como as revoluções francesas (de 1789 e 1830) e as guerras napoleônicas. Se o drama se estende, por um lado, de 1500 até as primeiras décadas do século XIX, Fausto penetra, por outro lado, nos séculos passados até a Grécia arcádica em seu desejo de reunir-se com a beleza ideal, encarnada em Helena de Tróia. Esse encontro entre a heroína clássica e o cavaleiro medieval realiza-se no 3º ato, uma peça em si de extrema ousadia e beleza, o centro e contraponto importante dos atos anteriores e seguintes que desenvolvem a ação no "presente" renascentista na corte do imperador, no laboratório de Wagner, no campo de batalha e, no último ato, na "região aberta", onde Fausto realiza seu projeto gigantesco de drenagem do seu domínio litoral.

A crítica germanística dos últimos anos tem enfatizado cada vez mais esses aspectos "modernos" do Fausto que são múltiplos e complexos. Dessa forma, cabe aqui somente enumerar alguns dos aspectos mais salientes: os efeitos "colaterais" da industrialização, já em pleno andamento naquela Alemanha em transição do feudalismo à sociedade burguesa; as possibilidades técnicas que começaram a lançar mão da criação da vida orgânica (começando com a síntese da uréia em 1828); os meios de reprodução de imagens e as técnicas de ilusão (a lanterna mágica); o mundo do capital (a produção de papel-moeda); as novas formas da guerra pós-revolucionária; a colonização e exploração de toda a terra pelo trabalho humano, organizado por grandes empresários. Fausto é sempre o espírito dinâmico atrás das mudanças, Mefisto o companheiro instigante que apóia com seus dispositivos mágicos que, no plano superior, aludem a possibilidades técnicas já realizadas em 1832. O que menos fascina nessa dimensão lúcida do drama é a capacidade visionária do autor que sabia selecionar de uma vivência do mundo opaco um leque de elementos que muito mais tarde revelaram seu impacto completo. O que fascina mais é sua avaliação do lado pernicioso de acontecimentos aplaudidos pela maioria dos contemporâneos como passos do progresso humano.

Para Adorno, a beleza do Fausto II – quase suplantada por uma falsa monumentalidade de gesso, gerada pela recepção nacionalista a partir da segunda metade do século XIX – se assemelha ao "sentimento de respirar no espaço aberto". Essa qualidade somente podia ser atingida por meio de um equilíbrio entre o horror, o cômico e o sublime. Com direito, a atual avaliação crítica da figura do Fausto identifica, no drama, alusões aos defeitos que se percebem com nitidez na realidade da civilização ocidental. Mas o Fausto, de fato, não é somente a encarnação do mal moderno, pelo menos na concepção de Goethe. A apoteose do grande pecador na última cena – que tão ironicamente pode ser entendida – ainda postula a "salvação" desse homem que é tão extraordinário nas suas ambições e nos seus feitos quanto extremo nos seus erros. A perspicácia do autor proibiu que ele suprimisse as visões preocupadas. Seu protagonista, no entanto, lhe era demasiado familiar, demasiado humano, para condená-lo completamente.

Após as catástrofes da civilização vivenciadas no século XX, desenvolveu-se uma cultura de memória que se opôs com toda força à tendência fáustica de ir adiante sem olhares retrospectivos. A rememoração das vítimas – do holocausto, das ditaduras, do imperialismo, da industrialização e da exploração da natureza – foi institucionalizada na maioria das atuais sociedades democráticas. Mas o curso da civilização ocidental é irreversível e o modelo do homem ativo continua sendo o esquecidiço Fausto. Nem percebemos de que modo qualquer projeto de salvação do mundo está sacrificando, ao mesmo tempo, culturas, seres e biomas que existiram durante éones. A tragédia de Goethe insiste nessa aporia inevitável do homem, incapaz de render-se às forças da natureza e fiel à sua vocação. O texto literário, no entanto, sabe registrar também as imolações e perdas que ficaram para trás. Se a obra literária realmente possui um excesso de sentido, superior às compreensões dos seus protagonistas e do seu autor, esse excesso pode consistir nessa capacidade identificada pelos antigos com a Mnemosyne, mãe das musas. Essa memória literária talvez ofereça o corretivo paradoxal à constituição incurável do homem moderno.

Helmut Galle é professor doutor do Departamento de Letras Modernas da FFLCH-USP. @ – lmut_galle@hotmail.com

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    11 Jun 2008
  • Data do Fascículo
    Dez 2007
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