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A crise internacional e seu impacto no Brasil

TEXTOS

A crise internacional e seu impacto no Brasil

Rubens Ricupero; Luiz Carlos Bresser-Pereira; José Antonio Ocampo; Luís Nassif

Diante da crise financeira que assolou os mercados nos últimos meses, ESTUDOS AVANÇADOS recorreu aos préstimos de alguns de seus colaboradores para trazer ao leitor análises e críticas sobre as implicações desse episódio no mundo e particularmente no Brasil.

Deixamos aqui consignados os nossos agradecimentos aos professores Rubens Ricupero, Luiz Carlos Bresser-Pereira, José Antonio Ocampo e ao jornalista Luis Nassif pela presteza com que atenderam aos nossos pedidos de colaboração.

A crise financeira e a queda do muro de Berlim

Rubens Ricupero

Joseph Stiglitz observou que a crise financeira afetará o fundamentalismo de mercado com força devastadora comparável à que teve a queda do muro de Berlim sobre os destinos do comunismo. A imagem é poderosa, mas o que Stiglitz deixou de dizer é que a ligação dos dois episódios é mais que meramente simbólica. Um e outro constituem expressão da mesma tendência histórica e a queda do muro se insere, mesmo que de maneira indireta, entre as causas da crise financeira. Na verdade, o desaparecimento do contrapeso representado pelo socialismo ajudou a liberar as forças originadoras dos excessos financeiros que iriam desencadear o derretimento do sistema especulativo de anos recentes.

Quase nada se publicou sobre as engrenagens políticas e ideológicas da crise financeira. Chama a atenção o contraste entre a fartura de análises econômicas minuciosas da crise e a ausência ou inexpressividade de comentários dedicados ao quadro político-ideológico que tornou possível seu desencadeamento. A política aparece às vezes como pano de fundo referencial, mas pouco se fala sobre o processo pelo qual setores ligados às finanças conquistaram posição predominante no sistema político dos Estados Unidos e dos principais países ocidentais, colocando o Estado a serviço dos interesses financeiros de maximizar lucros com o mínimo de restrições e fiscalização. O objetivo deste trabalho é tentar reequilibrar, ainda que de modo muito imperfeito e parcial, a assimetria dessas abordagens, suscitando um ou outro aspecto relevante a partir de uma perspectiva política e histórica. Sem, é claro, pretender mais do que apontar ou acenar para alguns elementos merecedores de aprofundamento em estudo mais abrangente e desenvolvido.

O ponto de partida é a profunda mudança sofrida pelo sistema internacional em decorrência dos atentados terroristas de 11 de setembro de 2001. Num balanço escrito dois anos depois da data fatídica, comentei que, em termos sistêmicos, isto é, tendentes a alterar a estrutura da organização das sociedades, a principal conseqüência havia sido "o súbito, intenso e contínuo reforçamento do poder do Estado, sua afirmação crescente perante o mercado e a sociedade civil".

Um dos corolários dessa mudança é que a política e a estratégia tinham voltado, como em tempos de guerra, a adquirir total prioridade sobre a economia. Lembrava que "após os atentados de setembro, o que salvou a economia não foi o livre jogo das forças de mercado [...], mas a injeção maciça de recursos financeiros no sistema e uma bem coordenada redução de juros por todos os bancos centrais dos países avançados, iniciativas levadas a efeito pelo Federal Reserve", portanto um órgão do Estado (Ricupero, 2003).

Amortecidos os primeiros impactos dos atentados, retomado o vigor da expansão econômica depois de 2002, criou-se a impressão de que o mercado tinha recuperado sua autonomia em relação ao domínio da política. Fora desse cenário por excelência do reforço do Estado, parecia que a vigorosa e decisiva intervenção estatal havia sido mais uma exceção episódica e temporária do que antecipação de tendência que se fortaleceria e perpetuaria no futuro próximo. Temia-se no máximo que as novas condições de guerra permanente contra o terrorismo fundamentalista trouxessem pressões adicionais às dificuldades orçamentárias. Não se percebeu no início que o papel do Estado passaria a ser cada vez mais permanente como fator de estabilização de uma situação econômica de crescente desequilíbrio interno e externo.

Para o agravamento dos desequilíbrios concorreu poderosamente a proliferação sem precedentes de instrumentos financeiros e sua estonteante complexidade, não acompanhadas pela capacidade e vontade política e institucional de regulamentação e fiscalização. A melhor e mais acessível descrição que conheço desse processo é uma rigorosa pesquisa transformada em brilhante ensaio por Norman Gall, diretor-executivo do Instituto Fernand Braudel de Economia Mundial. Publicado nos Braudel Papers sob o título Dinheiro, ganância, tecnologia – A festa do crédito e a economia mundial, pode ser facilmente acessado nas versões em português e inglês no site do Instituto. Praticamente todos os dados que utilizarei a seguir foram retirados dessa rica mina de informações e análises que recomendo vivamente ao leitor interessado em panorama mais completo da questão.

O trabalho cita levantamento feito pelo McKinsey Global Institute acerca da fantástica dimensão que assumiu a proliferação financeira. Em 1980, o estoque financeiro no mundo – compreendendo os depósitos bancários, os títulos de dívida privada, de dívida governamental e participações acionárias – era de 10 trilhões de dólares, mais ou menos equivalente ao valor do Produto Interno Bruto (PIB) mundial daquela época. Em 2006, ele passara a 167 trilhões de dólares, quase quatro vezes o produto mundial!

Apenas nesse ano de 2006 o estoque havia aumentado em 25 trilhões de dólares (mais de duas vezes o PIB dos Estados Unidos), expandindo-se em 18%, o triplo do ritmo de crescimento da produção internacional. A economia norte-americana detinha 56% dos ativos financeiros globais; esses ativos, que em 1980 representavam já 450% do PIB dos Estados Unidos, saltaram para 1.000% em 2007!

As reservas de moedas estrangeiras em poder dos bancos centrais tinham evoluído de 910 bilhões de dólares em 1990 para mais de 5 trilhões de dólares em 2006, expressão indisfarçável da aceleração da globalização financeira. Esta última se tornara possível à medida que o ambiente cauteloso e restritivo do imediato pós-guerra havia sido substituído por atmosfera de relaxamento cada vez mais acentuado. Durante um longo período, a lembrança da Grande Depressão mantivera as transações financeiras internacionais debaixo de estrita regulamentação. As operações transfronteiriças eram relativamente pouco freqüentes. A preocupação com a segurança passava adiante do desejo de lucro ou do crescimento financeiro.

Foi só gradualmente que primeiro as economias avançadas, seguidas em graus variáveis pelas menos desenvolvidas, começaram a remover os controles de capital, promovendo a liberalização financeira. A abertura plena da conta capital da balança de pagamentos, isto é, a supressão de todas as restrições ao livre e desimpedido fluxo de capitais, tardou em ser adotada até no antigo bastião do liberalismo da era vitoriana, o Reino Unido, por muito tempo debilitado pela pesada herança da Segunda Guerra.

Alguns países europeus como a França e a Itália conservaram controles de capital até o início dos anos 1990. Ocorreu justamente nessa década a pressão mais sistemática e coordenada para a supressão dos entraves, oriunda do Departamento do Tesouro dos Estados Unidos, devidamente acolitado pelo Fundo Monetário Internacional (FMI). Com um desastrado senso de oportunidade, o Fundo tentou tornar obrigatória a abertura completa da conta capital em meio à crise asiática de 1997, na reunião de outono conjunta com o Banco Mundial em Hong Kong à qual estive presente. Diante da reação, o FMI teve de resignar-se a postergar sine die a implementação da medida.

A década de 1990 tinha confirmado o vaticínio feito pela Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento (Unctad) em seu relatório do começo do decênio. Da crise do México e da Argentina (1994-1995), passando pela que atingiu quase todos os países asiáticos (1997), a da Rússia e do Brasil (1998), culminando com a catástrofe que se abateria sobre a Argentina em 2001, a década se caracterizou pela freqüência, intensidade e pelo poder destrutivo das crises financeiras e monetárias.

Infelizmente o coro triunfal da euforia financeira da época abafou e isolou vozes sensatas como as da Unctad ou de economistas como o professor Jagdish Bhagwati, da Universidade de Colúmbia, que tentaram em vão advertir os governos e a opinião pública sobre as diferenças cruciais que separam a liberalização comercial da financeira. Países com sistemas bancários e financeiros frágeis, dotados de mercados de capital pouco desenvolvidos, com baixa capacidade de regulamentação e de supervisão, correm riscos mortais ao permitirem o livre fluxo dos capitais. Esse perigo se manifesta tanto por meio do ingresso excessivo de recursos, gerando bolhas de investimento e depreciando a moeda local, quanto, no sentido inverso, pela fulminante e maciça retirada em momentos de pânico, dando origem à "morte súbita".

Os custos para reverter a liberalização financeira prematura e cobrir as perdas decorrentes das crises alcançam porcentagens altíssimas do valor da economia, como pudemos ver, perto de nós, por ocasião do colapso argentino de 2001-2002. Com seu humor cáustico, Bhagwati comentou que sair voluntariamente da liberalização financeira prematura é como enviar uma carta pedindo demissão da Máfia...

Como explicar então que vírus dessa periculosidade tenha encontrado terreno tão fértil para sua propagação? É que, longe de se haver beneficiado de alguma tendência inelutável derivada da natureza das coisas, a proliferação financeira constituiu a política oficial perseguida e imposta vigorosamente pelo governo dos Estados Unidos, pelos criadores do Consenso de Washington, pela quase totalidade das organizações e dos bancos internacionais liderados pelo FMI e pelo Banco Mundial. Ela passou, por exemplo, a figurar como uma das condicionalidades obrigatórias dos empréstimos e pacotes de ajuda durante o processo da crise da dívida externa. Não se deveu isso exclusivamente a uma convicção de boa-fé, a uma ideologia equivocada, mas sincera da parte dos economistas e funcionários que povoam essas instituições.

Por trás do Tesouro norte-americano, do Departamento de Estado, do United States Trade Representative (USTR), órgão que negocia os acordos comerciais em nome do governo dos Estados Unidos, esteve invariavelmente presente uma pressão insistente e obstinada provinda do setor financeiro privado dos Estados Unidos. No período em que representei o Brasil nas negociações comerciais e, mais tarde, quando dirigi a Unctad, perdi a conta das ocasiões em que precisei receber delegações do setor financeiro americano interessadas em concessões na área de liberalização dos fluxos de capital.

Não é difícil compreender a motivação que impulsionava essa gente. O setor financeiro norte-americano ou, para abreviar, Wall Street, abarcava, em 1980, uma fração de 10% do total dos lucros corporativos das empresas estadunidenses. Em 2007, essa parcela tinha saltado para 40%! Conseguiram tal proeza apesar de serem responsáveis por apenas 15% do valor adicionado e 5% dos empregos. Não é por passe de mágica, nem por efeito de alguma misteriosa força natural que, em menos de uma geração, se consegue abocanhar assim quase metade da lucratividade do setor empresarial.

Um avanço dessa envergadura sobre o quinhão de outros setores não teria sido concebível sem o ativo e prolongado concurso do Estado, por meio de políticas regulatórias e pacotes de legislação do Executivo e do Congresso, pela adoção de estímulos e favorecimentos de toda ordem, inclusive tributários. A aliança do setor financeiro com o sistema político se concretiza, sobretudo, a partir da chegada ao poder de Ronald Reagan e de Margaret Thatcher, inaugurando a chamada "revolução" neoconservadora precisamente no período sob exame, entre 1980 e os dias que correm.

O arcabouço intelectual e ideológico para sustentar a ofensiva no terreno político havia sido erguido nas décadas anteriores por autores como Milton Friedman e Friedrich Hayek, pelos teóricos do movimento que nos Estados Unidos se denominou de "libertário", em razão da ênfase colocada na mais completa liberdade de ação e iniciativa aos agentes econômicos. Wall Street, que sempre se opôs a qualquer regulamentação e supervisão de suas atividades com a alegação de que a intervenção governamental restringia as oportunidades de negócio e, por conseguinte, de lucros, encontrou em tal filosofia uma ideologia que lhe servia os interesses às mil maravilhas.

A hegemonia do setor financeiro coincidiu com fase de aguda concentração de renda e aumento da desigualdade. Essas tendências estão diretamente vinculadas a um dos postulados da "supply side economics" de Reagan: a concessão de rebates e reduções de impostos às faixas mais elevadas de contribuição.

Ao mesmo tempo se cortavam despesas sociais, encorajava-se a deslocalização de indústrias e sua transferência para países de baixos salários, eliminando muitos dos melhores empregos do setor industrial e acarretando a crescente precariedade do vínculo salarial estável. Não é de admirar que, em termos reais, tenha estagnado o poder de compra dos salários, abrindo caminho para o surgimento dos "working poors", quer dizer, as pessoas que, apesar de terem empregos com longas horas de trabalho, não conseguem ganhar o suficiente para viver de modo decente.

A busca de oportunidades de ganhos para o setor financeiro esteve também na raiz da extraordinária onda de fusões e aquisições de empresas, seguidas de demissões em massa, justificadas sob o manto da necessidade de "criar valor para os acionistas", uma das frases que simbolizaram o espírito da época.

Essas transformações não se deram por geração espontânea; foram o produto de escolhas políticas, da atividade determinante e das decisões do Executivo e do Congresso. Constituíram o resultado da ação política de um Estado a serviço de interesses de setores econômicos influentes, em especial do financeiro. A manipulação ideológica esforçou-se, no entanto, em fazer crer que a evolução não passava de imposição irresistível da globalização econômica, como se esse fenômeno não pudesse ter inspirado respostas e políticas alternativas, conforme de fato ocorreu em outros países.

Em paralelo com as modificações que nos Estados Unidos reforçavam a convergência entre governo e setor financeiro, o colapso do comunismo real e a mudança de rumos na China completaram as condições necessárias para consolidar a hegemonia do modelo em ascensão. O primeiro pôs fim à divisão da Alemanha, da Europa e do mundo em dois blocos ideológicos e militares incompatíveis, possibilitando a unificação em escala planetária dos mercados para as finanças e o comércio. O segundo deu nascimento ao processo que garantiu 25 de anos de crescimento acelerado para a China, em parte graças às exportações ao mercado dos Estados Unidos e ao mecanismo pelo qual chineses e outros exportadores asiáticos financiam os déficits externos americanos com os dólares oriundos de suas exportações.

Mais uma vez, as transformações vieram de escolhas e decisões políticas, não de fatores econômicos autônomos. Sem essas decisões políticas, não se teria criado o contexto que favoreceu a proliferação financeira das últimas décadas. O enfraquecimento da social-democracia, das políticas de pleno emprego, do sistema de previdência e de bem-estar social deixou um vácuo doutrinário que facilitou o domínio ideológico dos fundamentalistas do mercado financeiro.

Mesmo assim, nada aconteceu de forma espontânea, por influência difusa das novas idéias que se disseminavam na atmosfera das culturas das economias desenvolvidas. Cada novo avanço, cada conquista importante do mercado financeiro necessitou da ação estratégica de personalidades ligadas a esse setor por formação, vocação e interesses, mas que ocupavam temporariamente posições centrais no governo, em particular nos órgãos decisórios sobre política monetária e financeira e nas agências regulatórias.

Um exemplo característico do processo pelo qual se tomaram as decisões que desembocaram na crise corrente foi a rejeição pelo Federal Reserve e o Departamento do Tesouro de todas as tentativas de outros setores do governo no sentido de estabelecer um marco regulatório para os derivativos, sobretudo os chamados "derivativos de mercado de balcão" ("over-the-counter"), um dos instrumentos novos de mais atordoante crescimento nos anos recentes. Os derivativos são contratos para transferir riscos entre participantes do mercado, em troca de uma comissão. Desde 1990, explodiram a uma taxa de 32% ao ano, chegando a 530 trilhões de dólares atualmente!

Uma longa e detalhada reportagem do Washington Post de 15 de outubro de 2008, assinada por Anthony Faiola, Ellen Nakashima e Jill Drew, intitulada "What Went Wrong", reconstituiu a luta infrutífera da advogada Brooksley E. Born, então diretora da Commodity Futures Trade Commission (CFTC), para tentar, dez anos atrás, em pleno governo Clinton, prevenir o desastre que a proliferação de derivativos ameaçava criar para a economia americana. Ela enfrentou na ocasião a oposição intransigente de, como diz o jornal, três legendas de Wall Street: Alan Greenspan, presidente do Federal Reserve, Robert E. Rubin, secretário do Tesouro, e Arthur Levitt Jr., diretor da Securities and Exchange Commission (SEC). Embora tenha prestado depoimentos nada menos que dezessete vezes no Congresso, a fim de alertar para os riscos dessa proliferação, a senhora Born foi praticamente proibida de continuar a tratar do assunto e acabou por deixar o cargo logo depois.

Reconstituições similares foram publicadas pelo Wall Street Journal a respeito do esforço de diretor já falecido do Federal Reserve para advertir as autoridades financeiras sobre o perigo do estouro da bolha imobiliária e dos procedimentos adotados em relação à multiplicação da concessão de hipotecas de alto risco ("subprime mortgages").

O que indicam os exemplos relativos aos dois problemas responsáveis pela presente crise é que não foi por falta de advertência ou de conselhos técnicos que se deixaram de tomar as necessárias providências acauteladoras. Nem se deve atribuir a imprevisão e negligência das autoridades à inexistência de conhecimento técnico suficiente acerca das possíveis soluções. A razão da falta de ação oportuna, como fica evidente desses e de muitos outros relatos divulgados pela imprensa americana, residiu na oposição do setor financeiro a uma melhor regulamentação e supervisão, em razão do temor de que isso significasse uma diminuição de oportunidades de negócios.

A falsa alternativa de confiar nos supostos poderes de auto-regulamentação do mercado – máscara ideológica que tanto o republicano Greeenspan quanto o democrata Rubin encontraram para rejeitar os remédios preventivos – revelou-se totalmente ineficaz. Possibilitou, todavia, a continuação por dez anos mais da festa de lucros exorbitantes para o setor a que ambos pertenciam e ao qual, cedo ou tarde, retornariam.

As análises puramente técnicas da crise financeira se limitam a descrever os mecanismos e elementos econômicos que ajudam a compreender a dinâmica dos acontecimentos. Omitem, entretanto, o principal: os fatores de poder, a correlação de forças políticas que permitiu a esses mecanismos funcionarem de modo a pôr em risco a estabilidade do sistema financeiro.

Cem anos atrás, ocorreu no capitalismo americano uma onda de concentração empresarial e financeira semelhante, sob alguns aspectos, ao fenômeno que precedeu o desencadeamento dessa crise. Nos cinco anos entre 1898 e 1902, empresas que representavam aproximadamente metade da capacidade de produção dos Estados Unidos se fundiram ou adquiriram outras companhias. Essa onda alterou profundamente a estrutura produtiva, introduzindo o big business no centro da economia e dando origem a gigantes tão poderosos que terminaram por provocar a criação da Federal Trade Commission e à aplicação mais enérgica da legislação antitruste.

O papel desempenhado pelo grande capital financeiro nessa onda de concentrações impressionou vivamente os contemporâneos e inspirou, entre outras, análises como as do marxista austríaco Rudolph Hilferding. Na época, um dos aspectos que mais haviam chamado a atenção dos observadores tinha sido a contribuição da onda concentracionária para o surgimento de um mercado nacional unificado em todo o território americano, onde antes existiam apenas mercados regionais. A concentração influiu não apenas para o surgimento desse sistema unificado de produção, mas para a emergência de um sistema financeiro integrado.

A rapidez com que a atual crise se propagou, abalando bancos na Inglaterra, na Alemanha, na França, na Bélgica, nos Países Baixos, na Suíça, ocasionando verdadeira catástrofe nacional até na isolada Islândia, revelou que o sistema financeiro já atingiu grau de integração extremamente avançado em dimensão internacional. Os sistemas nacionais de regulamentação e fiscalização mostraram-se ineficazes para impedir que os produtos tóxicos inventados pelo setor financeiro americano contagiassem os que embarcaram na aventura da abolição completa dos controles. Ironicamente, somente escaparam dessa vez (até agora) os países considerados retardatários no processo de liberalização e, por essa razão, menos expostos às tentações dos instrumentos sofisticados e mortais que se espalharam a partir dos Estados Unidos.

A atmosfera intelectual imperante parece pouco propícia ao surgimento de alguma análise que desvende para o nosso tempo o contexto político-ideológico do sistema financeiro, como Hilferding tentou fazer em 1910 em seu Das Finanzkapital. Continua, porém, a ser tão importante como no começo do século XX entender o decisivo elemento de poder que se esconde atrás de fenômenos aparentemente de pura natureza econômica.

Escamotear as condições políticas que asseguraram a posição dominante do setor financeiro na economia dos Estados Unidos, do Reino Unido e de outros países ocidentais é condenar-se a não compreender os formidáveis obstáculos existentes no caminho de uma radical reforma do sistema. Não faz muito tempo, os escândalos de corporações gigantescas como a Enron, no qual estiveram implicados até a medula alguns dos mesmos agentes da crise atual – os bancos de investimentos e as agências de avaliação de riscos de crédito – inspiraram intenso fervor reformista. Chegou-se a acreditar que as providências legislativas e as regras corretivas adotadas, mesmo em termos de transparência contábil, seriam capazes de prevenir o aparecimento de problemas análogos. Não passaram mais de cinco anos para que colapso e escândalo incomparavelmente mais graves abalassem a mesmíssima Wall Street cenário daquele choque.

O que se verificou então e voltará provavelmente a ocorrer é que os defensores de um status quo apenas modificado para torná-lo menos disfuncional detêm poder político muito superior ao dos favoráveis a uma reforma em profundidade. A famosa denúncia do presidente Dwight Eisenhower contra o complexo industrial-militar que dominaria o poder decisório nos Estados Unidos dos anos 1950 teria hoje de ser atualizada. Os que pesam mais no Executivo e no Congresso americanos pertencem agora ao complexo financeiro-político-militar. Num sistema político-eleitoral cada vez mais influenciado por gastos astronômicos, esse complexo inclui qualquer candidato de um dos dois partidos principais com perspectivas reais de chegar ao poder. Basta olhar para os nomes que integram as listas dos assessores econômicos dos dois candidatos às eleições de 2008 para reencontrar muitos dos personagens que se opuseram vitoriosamente a todos os intentos de regulamentar e fiscalizar de maneira mais estrita o sistema financeiro.

No plano internacional, a situação não é diferente. Fala-se muito num segundo Bretton Woods, mas se esquece de que o primeiro só foi possível no contexto da mais terrível guerra total registrada na história, conflito que destruiu o que restava do sistema econômico-financeiro já abalado pela Grande Depressão dos anos 1930. Os Estados Unidos da América, que representavam no fim da guerra mais de 50% de uma economia mundial em boa parte devastada, puderam reorganizar a ordem econômico-financeira de acordo com seus princípios e objetivos. Não obstante, a única reforma profunda introduzida nesse sistema foi o abandono pelo presidente Richard Nixon, em 1971, do sistema de paridade cambial estável referenciada a um valor em ouro, o que fez sem consultar ninguém no momento em que os interesses americanos assim o aconselharam.

A ordem econômica, da mesma forma que a ordem político-estratégica reconstruída em 1945, é expressão de uma determinada correlação de forças internacionais. Os países beneficiados pela presente estrutura do poder político e econômico mundial tendem, como sempre sucede nas relações internacionais, a ser defensores do status quo que os favorece.

Uma reforma autêntica, que reflita com fidelidade as modificações ocorridas no mundo desde o final da Segunda Guerra Mundial, acarretará necessariamente alguma redução no poder relativo das potências que ocupavam, sessenta anos atrás, posição muito superior à que ostentam em nossos dias. Haveria dificuldades extraordinárias para ampliar o restrito número de países que se reuniu em 1944 no famoso hotel Bretton Woods, New Hampshire, e transformá-lo em círculo decisório representativo ao menos em parte dos 193 membros da Organização das Nações Unidas (ONU).

Além disso, um Bretton Woods 2 informal já existiria na atualidade, segundo alguns economistas e consistiria na conhecida relação simbiótica entre os Estados Unidos, de um lado, e a China, Japão e asiáticos, de outro, ligados por dependência recíproca. Não há indícios de que algum dos lados cogite seriamente de pôr fim a essa dependência, que tem sido benéfica a todos eles.

A excepcional gravidade da corrente crise provavelmente obrigará a imposição de mudanças internas e externas, quando mais não seja para assegurar a sobrevivência do regime econômico. No marco interno dos grandes países de economia avançada, haverá um período de alguns anos de intenso ativismo estatal e de sensível interferência regulatória e fiscalizadora, a fim de suprimir os piores excessos. Até que de novo se olvide tudo e, após certo tempo, voltem a surgir outros perigos nascidos da criatividade financeira estimulada pelo apetite de ganho. Ao menos é o que se pode concluir da longa e frustrante história das bolhas e dos escândalos financeiros, desde a especulação em torno das tulipas vários séculos atrás. A essa modalidade da história, talvez mais que a qualquer outra, aplica-se o paradoxo de Chesterton: "History teaches us that History teaches us nothing" ["A História nos ensina que a História não nos ensina nada"].

Externamente, se não se alterar de forma radical a correlação de forças, é difícil imaginar que o governo dos Estados Unidos aceite um tipo de reforma que lhe reduza o poder de modo substancial. Assim como o setor financeiro, temporariamente enfraquecido, não terá outro remédio senão aceitar por algum tempo a presença intrusiva do Estado, de igual maneira, os Estados Unidos acolherão a contribuição de parceiros como os europeus, japoneses, chineses, que lhes ajudem a gerir a crise. Os americanos continuarão, em outras palavras, a defender o status quo que criaram e dominam ainda, embora debilitados pela crise. Não se devem esperar, contudo, transformações profundas, de essência, nesse status quo.

Haverá quem diga que o problema é que esse status quo está em vias de mudar. É verdade, mas até que a mudança chegue a um ponto crucial, subsistirão as condições que, para Gramsci, caracterizavam a crise: o velho não acaba de morrer nem o novo de nascer; nesse interregno, todos os tipos de sintomas mórbidos aparecem.

Recebido em 22.10.2008 e aceito em 23.10.2008.

Rubens Ricupero é diretor da Faculdade de Economia da Fundação Armando Álvares Penteado (FAAP). Foi secretário-geral da Conferência das Nações Unidas para o Comércio e Desenvolvimento (Unctad). @ – mpricupero@uol.com.br

Dominação financeira e sua crise no quadro do capitalismo do conhecimento e do Estado Democrático Social

Luiz Carlos Bresser-Pereira

A crise financeira de 2007-2008 é a mais grave desde 1929. É uma profunda crise de confiança decorrente de uma cadeia de empréstimos originalmente

imobiliários baseados em devedores insolventes que, ao levar os agentes econô-micos a preferirem a liquidez e, assim, cobrarem em vez de renovarem seus créditos, está levando bancos e outras empresas financeiras à situação de quebra mesmo que elas próprias estejam solventes. Entretanto, dada a reação pronta e geralmente competente dos governos de todos os países, que compreenderam a gravidade do problema e pouco hesitaram antes de tomar medidas para aumentar a solvência e garantir a liquidez dos mercados, o pânico que tomou conta dos mercados financeiros em outubro de 2008 não é justificável. A crise financeira necessariamente envolverá recessão, implicará mudança de fortunas e, o que é mais grave, atingirá gravemente as famílias mais pobres tanto nos países ricos como nos em desenvolvimento, mas em breve a razão voltará aos mercados, as bolsas recuperarão parte de suas perdas, e as taxas cambiais voltarão a se estabilizar. Graças, portanto, ao Estado Democrático Social que vem se afirmando no mundo desde o fim da Segunda Guerra Mundial, a recessão que está começando no momento em que escrevo este artigo (outubro de 2008, logo após duas semanas de pânico nas bolsas de valores mundiais) não terá a mesma violência da depressão que resultou da crise financeira de 1929.

Para compreender a crise e tentar prever o que ocorrerá em seguida, entretanto, não basta afirmarmos que o capitalismo é um sistema econômico, além de cego para a justiça social e a proteção do ambiente, inerentemente instável. Isso é verdade, mas também é verdade que por meio do esforço secular de construção de seus respectivos Estados, as nações mais avançadas vêm procurando com êxito reduzir essa cegueira e essa instabilidade. Não obstante todos os altos e baixos, os avanços e retrocessos que as sociedades modernas vêm experimentando, o progresso econômico, social e político é indiscutível, na medida em que por meio da democracia, o Estado, aqui entendido como o sistema constitucional-legal e a organização que o garante, vem se transformando no instrumento por excelência de ação coletiva das nações. O resultado é o Estado Democrático Social construído especialmente na Europa – uma forma de Estado que o neoliberalismo, uma ideologia resultante da coalizão política que denomino "dominação financeira", tentou extinguir desde o momento em que alcançou o poder no início dos anos 1980, sem entretanto lograr seu objetivo: o Estado mínimo e os mercados auto-regulados. Ao invés, essa dominação financeira, demonstrando seu caráter irracional, teve afinal como resultado a crise atual – uma crise que provavelmente determinará a perda da sua condição dominante em favor de coalizões políticas mais amplas e democráticas.

Fatos conhecidos

Há uma série de fatos que hoje estão claros a respeito dessa crise financeira. Primeiro, sabemos que é uma crise essencialmente bancária que ocorre no centro do capitalismo. Não é, portanto, uma crise financeira de balanço de pagamentos – comum entre os países em desenvolvimento que tentavam até os anos 1990 crescer com poupança externa, ou seja, com déficit em conta corrente e endividamento externo. É certo que grandes déficits em conta corrente marcaram a economia americana nesta década em combinação com grandes déficits públicos, e que esses déficits gêmeos não são estranhos à presente crise bancária; por isso a falta de confiança não é apenas nas instituições financeiras e no mercado; é também na economia americana como um todo, gravemente enfraquecida por políticas cambiais e fiscais equivocadas;1 1 Discuti essa questão em Bresser-Pereira (2007). mas esses déficits não são a causa principal da presente crise.

Segundo, sabemos que a causa direta da crise foi a concessão de empréstimos hipotecários, de forma irresponsável, para credores que não tinham capacidade de pagar ou que não a teriam a partir do momento em que a taxa de juros começasse a subir, como de fato aconteceu. E sabemos também que esse fato não teria sido tão grave se os agentes financeiros não houvessem recorrido a irresponsáveis "inovações financeiras" para securitizar os títulos podres transformando-os em títulos AAA, e, em seguida, "garantilos" também irresponsavelmente com o recurso default credit swaps. Sabemos também que as agências de risco, de um lado interessadas em agradar seus clientes, de outro, mesmerizada, como toda a sociedade, pelo aparente êxito da globalização financeira nos países ricos, especialmente nos Estados Unidos e na Grã-Bretanha, não tinham condições de avaliar os riscos envolvidos.

Terceiro, sabemos que tudo isso pode ocorrer porque os sistemas financeiros nacionais foram sistematicamente desregulados desde que, em meados dos anos 1970, começou a se formar a onda ideológica neoliberal ou fundamentalista de mercado. Para o neoliberalismo, os mercados são sempre eficientes, ou, pelo menos, mais eficientes do que qualquer intervenção corretiva do Estado, e, portanto, podem perfeitamente ser auto-regulados. Para essa ideologia que, desde o governo Reagan, se transformou no instrumento do soft power americano, esse era o sistema econômico e mais eficiente, compatível exclusivamente com o Estado Democrático Liberal ainda dominante nos Estados Unidos. Seria o único caminho não apenas para os países ricos da Europa, que haviam construído o Estado Democrata Social, e deveriam agora desmontá-lo, mas também para os países de renda média que, como aconteceu com todos os países ricos na fase correspondente de desenvolvimento econômico, cresceram com um grau de intervenção maior do Estado, no quadro do Estado Desenvolvimentista –, e só mais tarde privatizaram e reduziram essa intervenção. De acordo com a ideologia neoliberal, a alternativa mais avançada da Europa seria "intervencionismo superado", enquanto as estratégias nacionais de desenvolvimento dos países em desenvolvimento, "populismo terceiro-mundista".

Quarto, sabemos que essa ideologia ultraliberal era legitimada nos Estados Unidos pela teoria econômica neoclássica – uma escola de pensamento que foi dominante entre 1870 e 1930, então entrou em crise e foi substituída pela teoria macroeconômica keynesiana que se tornou dominante nas universidades até meados dos anos 1970, e voltou à condição dominante desde então por razões essencialmente ideológicas. Economistas como Milton Friedman, James Buchanam, Mancur Olson, Robert Lucas, Kydland e Prescott apontaram suas armas teóricas contra o Estado, e se encarregaram de demonstrar "cientificamente", matematicamente, que o credo neoliberal era correto, usando para isso os pressupostos do homo economicus, das "expectativas racionais", e da "escolha racional", e um método de pesquisa teórica hipotético-dedutivo que não pode ser dominante em uma ciência social como é a economia.

Quinto, sabemos que esse tipo de teoria econômica não foi utilizado nem pelos formuladores de política macroeconômica nos governos, nem pelos analistas da conjuntura macroeconômica nos jornais e publicações especializadas e nas empresas. Não foram utilizados porque, pragmaticamente, formuladores e analistas da política macroeconômica sabiam que a teoria neoclássica não tem nenhuma força preditiva, e também porque a própria teoria macroeconômica neoclássica reconhece esse fato ao pressupor que os mercados sejam eficientes, dispensando, portanto, qualquer política econômica, a não ser a de ajuste fiscal; o resto deve ser liberalizado, desregulado, já que os mercados seriam auto-regulados. Como os governos e os analistas precisavam orientar sua política monetária, continuaram a usar o instrumental keynesiano de forma pragmática. Os experimentos macroeconômicos neoclássicos foram reservados para os países em desenvolvimento. Já em relação à microeconomia – ou seja, à teoria do funcionamento dos mercados –, o comportamento foi outro, porque, embora a microeconomia marshalliana não constitua um modelo dos sistemas econômicos reais, é um bom instrumento para a análise de mercados desde que não pressuponhamos que esses caminham para o equilíbrio geral (Marshall, 1920).2 2 Observe-se que Marshall – o único grande economista neoclássico – adotou o método hipotético-dedutivo, mas o fez para desenvolver uma microeconomia instrumental, apropriada para compreender abstratamente mercados, e apenas um instrumento para uma análise macroeconômica dos sistemas reais. Sobre esse tema, ver Bresser-Pereira (s. d.) É da microeconomia neoclássica e do seu modelo maior – o modelo de equilíbrio geral – que derivam a eficiência intrínseca e o caráter auto-regulado dos mercados. Foi, portanto, com base nessa área da teoria econômica que se promoveu irresponsavelmente a desregulação dos mercados financeiros. No caso da política macroeconômica, portanto, os países ricos liderados pelos Estados Unidos lograram escapar de suas recomendações, reservadas aos países em desenvolvimento que aceitaram a ortodoxia convencional; não escaparam, porém, da prescrição microeconômica desreguladora – e assim acabaram por agir como o escorpião que morde sua própria cauda.

Sexto, quando vemos agora o Estado surgir em cada país como a única tábua de salvação, como o único possível porto seguro, fica evidente o absurdo da oposição entre mercado e Estado proposta pelos neoliberais e neoclássicos. Um liberal pode opor a coordenação do mercado à do Estado, mas não pode se colocar, como os liberais se colocaram, contra o Estado buscando diminuí-lo e enfraquecê-lo. O Estado é muito maior do que o mercado; é o sistema constitucional-legal e a organização que o garante; é o instrumento por excelência de ação coletiva da nação. Cabe ao Estado regular e garantir o mercado, e, como vemos agora, servir de emprestador de última instância.

Capitalismo profissional e Estado Social

Em meio à crise financeira global, o presidente Lula, ao receber em Toledo o prêmio Dom Quixote em 12 de outubro de 2008, declarou que este é o momento da "volta da política e do Estado". Tem razão o presidente. Depois de trinta anos de irracionalidade neoliberal ou ultraliberal, a sociedade mundial está sendo agora obrigada a se dar conta de que a política é a expressão da liberdade humana, e o Estado, a projeção racional dessa liberdade.

Vivemos hoje na era do capitalismo do conhecimento, da globalização, da dominação financeira, mas vivemos também nos tempos do Estado Democrático Social e, portanto, da democracia. O capitalismo do conhecimento (ou profissional, ou tecnoburocrático) é o estágio do capitalismo que começa após a Segunda Guerra Mundial, no qual uma nova classe profissional trabalhando em grandes organizações públicas e privadas passa a partilhar poder e privilégio com a classe capitalista. A globalização, por sua vez, é a forma que esse capitalismo do conhecimento assumiu, depois dos trinta anos gloriosos (1945-1974); é o momento na história no qual todos os mercados se abriram e que os Estados-nação ou países passaram a ser a única unidade político-territorial soberana cobrindo toda a superfície da terra.3 3 Ou seja, terminou o tempo dos impérios. Estes são a unidade político-territorial por excelência das sociedades pré-capitalistas, ou sociedades agrário-letradas, como argumentou Ernest Gellner (1983), mas, durante especialmente o século XIX, uma forma transitória de imperialismo já nos quadros do capitalismo da qual a expressão maior foi o Império Britânico. O Estado Democrático Social, finalmente, é a forma de Estado ou o regime político que se tornou dominante especialmente na Europa na segunda parte do século XX, sucedendo o Estado Democrático Liberal da primeira metade desse século, e o Estado Liberal do século XIX.

O capitalismo profissional não envolve necessariamente "dominação financeira", isto é, uma coalizão política reunindo uma "aristocracia" de agentes financeiros altamente qualificados tecnicamente com uma burguesia rentista vivendo de aluguéis, juros e dividendos, mas foi isso o que ocorreu até que a presente crise financeira, provavelmente, viesse marcar seu fim. O neoliberalismo, por sua vez, foi a ideologia que essa coalizão financeira, dominante desde os anos 1980 nos Estados Unidos e na Grã-Bretanha, usou para justificar seu poder e seu privilégio. A teoria econômica neoclássica, finalmente, foi a teoria arrogante por trás do neoliberalismo e da dominação financeira, buscando demonstrar científica e matematicamente a eficiência dos mercados e seu caráter intrinsecamente auto-regulado.

Em outras palavras, durante trinta anos, uma classe de profissionais ou de golden boys das finanças aliou-se a acionistas capitalistas e à classe média conservadora e, empunhando a bandeira do Estado mínimo e da desregulação, alcançou a dominância ideológica primeiramente nos Estados Unidos e na Grã-Bretanha, sob a liderança de Ronald Reagan e de Margareth Thatcher. Inspirada por intelectuais neoliberais que desde os anos 1960 vinham reduzindo a política à lógica do mercado, a nova coalizão política declarou a "guerra do mercado contra o Estado". Buscava, assim, enfraquecer o Estado, primeiro porque era colocado em pé de igualdade com o mercado; segundo, porque poderia aproveitar essa brecha para enriquecer.

A irracionalidade da Dominação Financeira

A guerra era irracional porque, ao invés de se limitar a eventuais excessos de intervenção do Estado na economia, atacou o próprio Estado. Porque ignorava que o Estado é a instituição maior de cada sociedade – que é o resultado do esforço secular de construção política de um sistema constitucional-legal e de uma administração pública que o garanta. Ignorava que é por intermédio do Estado que os homens e as mulheres, no exercício da política, coordenam sua vida social, estabelecendo suas instituições normativas e organizacionais fundamentais, entre as quais a democracia e o mercado. O mercado se torna realmente significativo como instituição complementar na coordenação da sociedade apenas com a emergência do capitalismo. Por isso, o capitalismo será chamado de economia de mercado. A coordenação econômica de uma sociedade caracterizada por uma crescente divisão do trabalho e, portanto, por uma enorme complexidade só é possível se o Estado contar com a colaboração do mercado nessa tarefa.

Essas verdades elementares foram ignoradas pelos golden boys da classe profissional financeira, quase todos treinados em escolas de economia neoclássicas. Eles não compreenderam ou não quiseram compreendê-las ao pretenderem substituir o Estado Social e efetivamente regulador por mercados auto-regulados. Não era a verdade que lhes interessava, mas o ganho econômico, que foi enorme. Para se ter uma idéia, nas bolsas americanas, as empresas financeiras representavam 5,2% do valor total de mercado nelas financiados; em 2007, essa percentagem tinha se multiplicado por mais de quatro, alcançando 23,5%.4 4 Cf. The Economist, 18 de outubro de 2008, p.76.

Mas será mesmo necessário falar em profissionais das finanças associados a capitalistas rentistas? Não é mais simples explicar o fenômeno apenas com a classe capitalista? Não creio, entretanto, razoável essa explicação. Basta ver as remunerações extraordinárias recebidas pelos altos executivos, e, mais geralmente, pelos agentes financeiros profissionais. Em sua edição de 19 de outubro de 2008, a manchete do Le Monde era: "O enriquecimento dos banqueiros causa escândalo", completada, na página 9, pelo título "Disciplinar as remunerações colossais de Wall Street". A matéria, além de reportar os diversos planos que os governos começam a considerar para controlá-los, informava, a título de exemplo, que em 2007 a remuneração do chief executive officer dos bancos Goldman Sachs, JP Morgan Chase e do Bank of America foi, respectivamente, de 53,5, 30,4 e 16,4 milhões de dólares. E informava ainda que a remuneração média dos funcionários do Goldman Sachs foi nesse ano de 662 mil dólares, enquanto a remuneração média dos trabalhadores americanos foi de 50 mil dólares. Não nos enganemos com a expressão "banqueiros" aplicadas aos três primeiros. Essa expressão não se aplica mais a membros da classe capitalista ou burguesa, que cada vez mais se torna inativa e se contenta com dividendos. Os banqueiros atuais são membros da classe profissional que galgaram suas altas posições e obtiveram suas incríveis remunerações de forma meritocrática, na medida em que se prepararam técnica e politicamente para isso. Naturalmente, seus enormes ganhos os transformam em capitalistas, mas é importante não confundi-los com uma parte deles que continua a se originar na própria classe capitalista.

A crise financeira de 2007-2008 está associada à dominação financeira, ou seja, a uma coalizão política particular que se aproveitou da globalização comercial, ou seja, da abertura de todos os mercados de bens, para lograr também a globalização financeira, e assim enriquecer. Entretanto, essa estratégia terminaria, necessariamente, em crise, porque era essencialmente irracional: porque pretendia substituir o Estado pelo mercado. Buscava, assim, contraditoriamente, voltar ao século XIX em que o Estado era mínimo, correspondendo a menos de 10% do PIB, ignorando que o Estado Social representa hoje cerca de 40% do PIB. Ao agir assim, revelava-se uma coalizão reacionária por não compreender que esse objetivo era inviável em sociedades democráticas modernas nas quais os cidadãos demandam do Estado toda uma série de serviços ou de seguranças. E – o que é mais grave – a dominação financeira não compreendeu que para coordenar as sociedades complexas de hoje – as sociedades do capitalismo do conhecimento – não bastam mercados cada vez mais eficientes: torna-se necessário um Estado cada vez mais capaz e mais democrático. Existe uma estreita relação entre o grau de desenvolvimento econômico e de complexidade de uma sociedade, e a capacidade que seu Estado deve ter de coordená-la ou regulá-la. Não é enfraquecendo, mas fortalecendo o Estado que realizamos os grandes objetivos políticos de liberdade, justiça e bem-estar. Ao não compreender essas verdades básicas, o neoliberalismo nos levou à atual da crise. Será por meio da política e do Estado que a superaremos.

Por que não se limitar a uma análise econômica?

Mas há ainda uma questão. Ao invés de discutir a dominação financeira e os golden boys tecnoburocráticos, não seria mais simples ficarmos com uma abordagem exclusivamente econômica, e afirmarmos que o capitalismo é intrinsecamente instável? Que as ondas de especulação e as bolhas financeiras são inerentes a ele? Ou, em outros termos, não seria melhor simplesmente repetir com grandes economistas como Marx, Keynes, Galbraith e Minsky que, dada a cobiça dos seres humanos, o capitalismo é caracterizado pela especulação financeira e por grandes auges e correspondentes crashs desde a crise das tulipas na Holanda, no século XVII? Galbraith, por exemplo, em seu livro de 1979, nos fala sobre a loucura repetitiva de todas as crises:

Embora a especulação se baseie em recursos emprestados, ela precisa ser sustentada por aqueles que dela participam. Se a poupança estiver crescendo rapidamente, as pessoas irão investir um valor marginal menor na sua acumulação; elas estarão propensas a arriscar parte deste valor na expectativa de um retorno muito mais lucrativo. A especulação poderá levar mais facilmente a uma crise após um período substancial de prosperidade, do que nas fases iniciais de recuperação de uma depressão.

Não tenho nenhuma discordância em relação a essa perspectiva, cuja apresentação mais completa foi realizada por Hyman Minsky (1986). Segundo o grande economista pós-keynesiano, a instabilidade financeira é inerente ao capitalismo porque os investimentos dos empresários estão baseados nas expectativas de lucro e na disponibilidade de crédito. Esperam sempre receitas superiores aos custos, lucros superiores aos custos financeiros, mas nesse processo está envolvido um elevado risco, porque as receitas são incertas, enquanto o custo dos empréstimos é conhecido. No início do ciclo, porém, existe demanda represada e as empresas vêem confirmadas suas previsões. As posições vão se tornando cada vez mais alavancadas. Entretanto, na medida em que as empresas se endividam, elas vão se tornando cada vez mais vulneráveis a mudanças não previstas na taxa de lucro, de juros ou de câmbio. Em um dado momento, as expectativas mudam de direção, mas as empresas continuam a se endividar, agora de maneira Ponzi, apenas para pagar juros. Entretanto, no momento em que o desencontro entre o realizado e as expectativas se torna muito grande, a contração do crédito e a crise financeira se tornam inevitáveis (Minsky, 1986).

Desvio irracional

Essas análises são corretíssimas. Entretanto, para compreender a crise atual, quando eu adiciono a variável estrutural de classe social – o capitalismo do conhecimento – e uma variável política – o Estado Democrático Social – e defino a crise não apenas como uma crise financeira, mas também a crise da coalizão política estabelecida entre capitalistas rentistas e profissionais financeiros, o que estou afirmando é que existe nessa crise uma contradição que não existia nas crises do capitalismo industrial ou clássico. Neste, a figura dominante era a do capitalista individual ativo – do empresário schumpeteriano – motivado pela vontade de realização pessoal, pelo lucro, pela acumulação de capital e pelas fusões e aquisições que expandem o seu poder e demonstram seu êxito pessoal. Já era um agente "racional", que busca os meios mais adequados para atingir o fim desejado, mas sua racionalidade além de instrumental é limitada. Conforme Keynes nos lembrou, o investimento depende não apenas da diferença entre o lucro esperado e a taxa de juros, mas também dos animal spirits dos empresários. Se ficarmos apenas com esse personagem em nossa história, concluiremos que não há esperança de o capitalismo vir a se estabilizar. Que é e sempre será um sistema econômico instável.

Se, entretanto, incluirmos o profissional no quadro não apenas como dirigente da empresa, mas também da própria organização estatal, a perspectiva muda. O profissional é um técnico, é um especialista, é alguém cujo poder deriva fundamentalmente de seus conhecimentos e de sua capacidade de tomar decisões racionalmente. A cobiça também o assalta e o assombra na empresa, mas ele é teoricamente mais resistente a ela porque sabe que os controles sociais são mais poderosos. Nas organizações públicas, ele associa sua vontade de subir na hierarquia do Estado ou de ser eleger com os princípios do interesse público.

Por sua vez, o quadro político do Estado Liberal é muito diferente do quadro do Estado Democrático Social. Enquanto o empresário schumpeteriano é regulado frouxamente pelo Estado Liberal, hoje os profissionais tanto privados quanto públicos operam no quadro de um Estado Democrático Social – um estado poderoso porque expressa a vontade política das três grandes classes do capitalismo contemporâneo – a capitalista, a profissional e a trabalhadora; é o resultado dos compromissos, das concessões mútuas, a que essas classes chegaram para construírem um regime político democrático. Os agentes financeiros, portanto, operam hoje em ambiente político no qual a responsabilização de todos é muito maior, seja porque, formalmente, as sociedades democráticas dispõem cada uma de um Estado mais capaz do que o Estado Liberal, de um Estado dotado de grande poder de regulação e de fiscalização, seja porque informalmente toda a sociedade e a sua imprensa têm maior capacidade de controle ou responsabilização social.

O Estado, desde a intuição genial de Hegel, sempre foi a expressão da razão humana. Não porque ele seja intrinsecamente racional – sabemos perfeitamente que isso não é verdade –, mas porque o Estado é a grande construção racional em que estão envolvidas as sociedades modernas. O Estado antigo era um Estado a serviço exclusivo de uma aristocracia militar e religiosa, e a primeira forma do Estado moderno; o Estado absoluto teve essa mesma característica, mas sua duração foi pequena. Já no final do século XVII começava a ser substituído pelo Estado Liberal, que no século XIX se tornou dominante. Foi essa forma de Estado que afirmou os direitos civis ou as liberdades e garantiu o Estado de direito, mas era ainda um Estado burguês, dominado por uma minoria. No século XX, a partir da garantia de sufrágio universal, a democracia passou a ser o regime político dominante nos países mais avançados – o que significou uma ampliação considerável do pacto político por trás do Estado. O Estado deixava de ser liberal para se tornar democrático. A esse Estado Democrático, entretanto, correspondia ainda uma democracia de elites no termos descritos por Schumpeter (1950): as nações ou sociedades civis dos Estados-nação modernos passaram a ser coordenadas pelo Estado Democrático que, na segunda metade do século, se tornou Estado Democrático Social. Esta forma de Estado foi o resultado de um longo e difícil processo histórico; foi o resultado da política, essa aqui entendida como o exercício da liberdade para organizar o Estado e governá-lo de acordo com o interesse público. Sua tarefa foi a de regular o capitalismo – um novo e poderoso sistema econômico coordenado pelo mercado, um tigre forte, flexível e dinâmico, mas cego para os grandes objetivos políticos da modernidade: a segurança, a liberdade, o bem-estar, a justiça social e a proteção da natureza. A política e a sua construção – o Estado Democrático Social – foram a resposta encontrada.

Por essas razões, seria razoável pensar que o mundo já teria condições políticas de evitar uma crise como essa que estamos atravessando. Como, porém, essa previsão não se revelou verdadeira, não obstante todo o avanço social (representado pela emergência da classe média profissional) e político (representado pelo Estado Democrático Social); como a dominação financeira, usando a ideologia neoliberal e a teoria econômica neoclássica como sistema de legitimação ou justificação, logrou assumir o poder no Estado Democrático e aumentar de forma extraordinária sua participação no excedente econômico produzido pelo capitalismo, devemos concluir que ela própria, e a crise que produziu, não é a tendência geral do desenvolvimento capitalista, como muitos afirmaram, mas um desvio; é antes uma anomalia, uma irracionalidade, do que a regra. É o resultado de uma coalizão política perversa – a dominação financeira – que uniu em uma aventura reacionária um setor da classe profissional (os profissionais ou golden boys financeiros) à classe capitalista. Não é uma fase histórica do capitalismo como são o capitalismo profissional e a globalização, mas um retrocesso irracional que provou ter vida curta. A dominação financeira, por meio do consenso de Washington ou da ortodoxia convencional, como prefiro denominar, causou grandes prejuízos aos países em desenvolvimento que adotaram seus conselhos e pressões. Afinal, entretanto, essa coalizão política não poupou os países ricos – especialmente aqueles que mais se deixaram encantar pelo neoliberalismo e mais se envolveram na especulação financeira irracional que resultou na crise financeira de 2007-2008.

Conclusão

O que esperar para o futuro próximo? Qualquer previsão é arriscada, mas, em meio à turbulência da crise, devemos lembrar que o restante da classe profissional, os capitalistas mais orientados para a produção e os trabalhadores não perderam a cabeça. O enfraquecimento do Estado almejado pelo neoliberalismo não foi bem-sucedido a não ser em alguns países mais pobres5 5 Sobre o enfraquecimento dos países pobres pelo neoliberalismo, ver o livro do conservador (mas não neoliberal) americano Francis Fukuyama (2004). e nos países de renda média latino-americanos como o Brasil. Fracassou nos próprios países ricos, onde o Estado Social não foi desmantelado, e a carga tributária não foi diminuída mas ligeiramente aumentada nos últimos trinta anos, e nos países dinâmicos da Ásia que mantiveram seu Estado Desenvolvimentista. Agora, os Estados que as respectivas nações construíram em cada país são a única e grande fonte de segurança para todos. Seus políticos, que também se deixaram levar pelo canto da sereia neoliberal, já compreenderam o erro em que incidiram e, preocupados saudavelmente com suas reeleições, estão tomando medidas de curto prazo – e logo estarão tomando medidas também estruturais – para corrigir o problema. Uma ampla reestruturação do sistema de governança financeira mundial está em marcha.

Os agentes econômicos, amedrontados, não obstante, estão resistindo a recuperar a confiança, apesar das medidas fortes que os governos estão tomando em todo o mundo. Dois fatores, além da própria gravidade da crise, contribuíam para a profundidade da desconfiança no momento em que escrevo este trabalho: de um lado, o enfraquecimento da hegemonia americana nos anos 2000 não apenas em razão dos déficits gêmeos, mas também da guerra do Iraque, dos abusos contra os direitos humanos, e da instrumentação da democracia como forma de dominação; de outro, um erro grave e pontual cometido pelo Tesouro americano: não ter salvo o Lehman Brothers. Bancos grandes não podem ir à falência; o risco de crise sistêmica é muito grande. Foi a partir dessa decisão que o quadro financeiro mundial entrou em franca deterioração. O salvamento da AIG no dia seguinte, o pacote de 700 bilhões de dólares para dar solvência aos bancos, a decisão da Grã-Bretanha e depois da área Euro e dos Estados Unidos de capitalizar os bancos, nacionalizando-os parcial e provisoriamente, e as garantias dadas aos depositantes, além do aumento forte da liquidez, e as baixas dos juros coordenadas mostram que, no quadro da globalização, as nações estão sendo capazes de montar um sistema político e de coordenar suas ações, mas ainda não lograram devolver estabilidade aos sistemas financeiros.

A resistência dos mercados financeiros às ações dos governos é uma demonstração de sua irracionalidade – de seu clássico comportamento reflexivo e de manada. Mas, afinal, a confiança voltará, e a crise ficará na história. Deixará graves cicatrizes para os Estados Unidos, que não se revelou à altura do poder hegemônico que alcançou em 1989, a partir do colapso da União Soviética, e foi a origem da crise. Implicará prejuízos para todos, mesmo recessão nos países ricos durante provavelmente cerca de dois anos. Mas não teremos nada parecido com a depressão dos anos 1930, porque, naquela época, o governo americano demorou quase quatro anos para agir. Agora, usando instrumentos keynesianos e pragmáticos, não apenas o governo americano, mas todos os governos relevantes financeiramente estão agindo imediatamente, e com força. E são governos que têm por trás de si Estados fortes, democráticos, dotados de legitimidade política e de recursos fiscais vultosos. Não há razão para que não sejam, afinal, bem-sucedidos, e a confiança seja recuperada.

Notas

Referências bibliográficas

Recebido em 22.10.2008 e aceito em 23.10.2008.

Luiz Carlos Bresser-Pereira é professor emérito da Fundação Getúlio Vargas, São Paulo. @ – lcbresser@uol.com.br/ www.bresserpereira.org.br

O colapso do sistema financeiro mundial

José Antonio Ocampo

O espetáculo do colapso financeiro mundial foi deprimente. Já faz mais de um ano desde que se desencadeou, e passou mais de um mês desde a fatídica semana iniciada no domingo 14 de setembro com a falência de um dos cinco grandes bancos de investimento norte-americanos (Lehman Brothers) e o resgate de outro (Merril Lynch; outro, Bear Stearns, tinha sido resgatado em março), e continuou, no começo desta semana, com o fechamento do mais antigo fundo do mercado monetário (Reserve Primary Fund), arrastado pela falência do Lehman, o resgate da principal empresa de seguros (AIG) e a venda forçosa dos ativos do principal banco de poupança e crédito (Washington Mutual) e um dos maiores bancos comerciais (Wachovia; muitos outros, menores, faliram nos últimos meses). Na quarta-feira 17 e na quinta-feira 18 de setembro, o sistema financeiro dos Estados Unidos esteve a ponto de um colapso total e se desencadeou a virtual paralisação do crédito interbancário e da emissão de notas promissórias (commercial papers). Durante essa semana, desencadeou-se também a seqüência de falências de bancos europeus que ainda não chegou ao fim.

Fomos muitos os que dissemos durante vários anos que os sistemas financeiros são incapazes de auto-regulação e, portanto, que as medidas de liberalização financeira contêm o germe da crise. A história destas últimas é, com certeza, tão velha quanto os bancos, mas sabemos que a freqüência das crises financeiras e, em geral, a instabilidade financeira alcançaram os níveis mais altos da história desde os anos 1970. Mas, sem dúvida, essa crise é a "prova contundente" de que, infelizmente, tínhamos razão.

A explicação básica é muito simples e foi analisada há várias décadas por Hyman Minsky, um grande intelectual norte-americano, hoje na moda mas ignorado pela ortodoxia econômica obcecada durante várias décadas por desenvolver sofisticados modelos matemáticos para demonstrar a suposta eficiência dos mercados. O problema fundamental é que, à medida que os picos avançam, tende a aumentar a confiança e os agentes financeiros tomam, por isso, posições cada vez mais arriscadas, isto é, envolvem maior endividamento em relação ao capital que possuem (maior "alavancagem", para usar a expressão técnica). A lógica desse modo de operação é contundente durante os picos porque permite obter grandes ganhos com pouco capital, graças à inflação que se autogera dos preços dos ativos. O pico termina, portanto, com níveis de endividamento excessivo por parte de todos os agentes e com escassa capitalização das instituições financeiras. Essa combinação semeia a semente das falências dos devedores e dos intermediários financeiros e a queda vertiginosa dos preços dos ativos.

Diante da obstinação dos fatos e, em particular, do colapso que atingiu a maior parte dos países em desenvolvimento no fim do século passado, a ortodoxia econômica aceitou que as medidas de liberalização financeira deveriam estar acompanhadas de melhor regulação e supervisão prudente. Mas essa prédica não foi aplicada no centro do capitalismo financeiro que continuou desregulando seu próprio sistema, eliminando em 1999 as fronteiras entre os bancos de investimento e os bancos comerciais que haviam sido estabelecidas nos anos 30 do século passado e liberalizando os requisitos de capital dos bancos de investimento em 2004, o que os levou a dobrar os níveis de alavancagem nos anos seguintes.

Não houve, além disso, nenhuma regulação sobre as "inovações financeiras", como as hipotecas de baixa qualidade (hipotecas subprime), a sua securitização ou a proliferação de derivativos financeiros, entre os quais se destacam os novos contratos de derivativos de crédito denominados "credit default swaps" que o multimilionário Warren Buffet chamou de "armas financeiras de destruição em massa". Tampouco houve nenhuma regulação sobre os novos intermediários, como os fundos de hedge que se transformaram no centro de venda a descoberto de ações dos intermediários financeiros. Isso, somado ao fato de que muitos agentes não-bancários (o "sistema bancário na sombra", como tem sido denominado) foram se especializando na alteração de prazos (captar recursos no curto prazo com emissões de bônus para emprestar ou investir em longo prazo), uma função que tradicionalmente foi realizada pelos bancos comerciais e que se torna muito problemática durante as crises por conta dos saques de depósito. De fato, no caso dos bancos comerciais esse problema só foi solucionado graças à difusão dos seguros de depósitos.

As soluções que foram elaboradas durante vários meses se concentraram em um dos problemas específicos: a provisão de liqüidez. Somente há pouco, as soluções se concentraram em um segundo problema: facilitar a venda de ativos de risco e, especialmente, em um terceiro e, aliás, mais importante: a recapitalização das entidades financeiras. Sem esta última não haverá uma recuperação do crédito, mas isso tampouco será o resultado automático da capitalização do sistema financeiro, por isso a reativação do crédito deve ser considerada como um quarto objetivo.

As linhas de crédito que os bancos centrais estenderam foram consideráveis (somente o Fed já outorgou créditos acima de um trilhão de dólares) e com custo cada vez mais baixo, mas isso não solucionou a raiz do problema que é manter pelo menos as linhas de crédito de curto prazo que são a fonte de liqüidez do setor produtivo. Por isso, o Fed deu um passo absolutamente excepcional ao aceitar fornecer empréstimos em troca de notas promissórias (commercial papers) sem garantia.

A compra de ativos de risco ou "tóxicos", como têm sido denominados, foi o centro da atenção do pacote de resgate de 700 bilhões de dólares aprovado pelo Congresso dos Estados Unidos, em um agitado debate no qual o partido do governo deu um espetáculo deplorável de divisão interna e que foi aprovado graças ao apoio da oposição. A compra desses ativos evita que continuem se depreciando, mas apresenta sérios problemas de ajuste de valor e não soluciona o problema principal que é a falta de capital das entidades. Por pressão do partido da oposição, a lei também incluiu a possibilidade de que o governo adquira ações nas entidades financeiras. No futuro, essa pode ser a medida mais importante.

O pacote mais coerente e compreensivo foi o divulgado pela Grã-Bretanha no dia 7 de outubro, ao anunciar que as entidades deveriam se capitalizar daqui até o final do ano e que o governo estava disposto a conceder capital adicional, adquirindo ações preferenciais de até 50 bilhões de libras esterlinas. A isso se soma um fundo para adquirir ativos ilíqüidos no valor de 100 bilhões de libras esterlinas e outro de 250 bilhões de libras esterlinas para garantir novas dívidas de médio e longo prazos, com o propósito de contribuir para a reativação do crédito, em particular do interbancário.

Em todas as crises financeiras, o Estado aparece sempre como o único agente capaz de garantir a confiança e injetar capital. Por isso, as nacionalizações temporárias de entidades financeiras são comuns, ao que se deve somar agora a possibilidade de compra de ações preferenciais. Essa solução tem a vantagem adicional de permitir ao Estado recuperar parte ou mesmo a totalidade dos recursos no futuro, vendendo suas participações acionárias quando a situação melhorar. Apesar da rejeição da direita norte-americana, os fatos apontam para essa solução. Na verdade, já foram nacionalizados dois gigantes hipotecários (Fannie Mae e Freddie Mac) e a principal seguradora (AIG), e, sob a pressão das circunstâncias e o anúncio do pacote britânico, o governo dos Estados Unidos anunciou no dia 14 de outubro um programa de resgate muito similar ao britânico que inclui injeção de capital nas entidades financeiras e garantias para novos créditos, especialmente interbancário.

Um dos problemas principais foi a falta de coordenação das autoridades internacionais, salvo na provisão de liqüidez por parte dos bancos centrais. O espetáculo foi particularmente vergonhoso na Europa e chegou a gerar uma deplorável competição entre diferentes países ao tentarem reter os depósitos. A necessidade de uma melhor institucionalidade mundial para lidar com a globalização financeira nunca foi tão evidente, e mesmo de uma nova institucionalidade européia e norte-americana. Somente diante dos fatos foi possível uma dupla coordenação, européia e do G7, durante o final de semana dos dias 11 e 12 de outubro, tendo como marco, no caso do G7, as reuniões anuais do Fundo Monetário Internacional (FMI).

Os mercados "emergentes" foram arrastados pela crise com a forte saída dos capitais que tinham entrado em massa até meados do presente ano. Esse processo obedece tanto à sensação de que as ações desses mercados estavam sobrevalorizadas como à necessidade de liquidar os investimentos para obter os recursos líqüidos de que precisavam muitos fundos nos Estados Unidos para enfrentar os saques de depósito e para cancelar créditos garantidos por ações. Mas, em geral, não há crises financeiras internas, a não ser em poucos casos, como o da Rússia, que de fato teve que anunciar o seu próprio pacote durante a semana fatídica. Embora a América Latina não tenha permanecido alheia ao colapso das bolsas e das moedas gerado pela saída de capitais, existe uma boa possibilidade de evitar agora as crises financeiras internas que a prejudicaram no passado.

A radicalização das medidas de resgate, graças à difusão do pacote britânico, tem a possibilidade de deter a sangria que é a seqüência de falências e paralisação dos créditos interbancário e comercial. De qualquer forma, não sabemos ainda se a injeção de capital público nas entidades financeiras será suficiente e se a "nacionalização parcial" que isso implica vai funcionar. Mas há muito caminho pela frente. Os efeitos reais só estão começando a ser sentidos agora. A recessão generalizada do mundo industrializado já começou e pode durar algum tempo, em razão do severo problema do endividamento das famílias nos países anglo-saxões e do tempo que leva para que o crédito se recupere depois das crises (de três a cinco anos, levando em consideração as crises do mundo desenvolvido). De fato, a evidência de que as pressões recessivas estão se espalhando pelo mundo todo impediu que ocorresse a recuperação generalizada das bolsas após os anúncios do G7, da Europa e dos Estados Unidos de pacotes de resgate recentes, muito mais compreensivos que os anteriores. A herança que as fortes perdas dos fundos de pensão privados deixarão (estimada em dois bilhões de dólares nos Estados Unidos) será também objeto de debate em breve.

E, é claro, restará o debate mais importante de todos: o da regulação financeira do futuro, que deverá incluir o manejo das interconexões entre os mercados de distintos países e os problemas que provêm da maior concentração da indústria bancária, um dos resultados evidentes da crise. As novas regras de regulação bancária emitidas pelo Comitê de Basiléia parecem agora parte da história porque os modelos de auto-regulação do risco nos quais se baseiam demonstraram ser parte do problema, não da solução. É isso o que evidencia a falência e agora o desaparecimento do, até há pouco, prestigioso sistema bancário norte-americano.

O professor Joseph Stiglitz indicou há algumas semanas que essa crise era para o fundamentalismo de mercado o que a queda do muro de Berlim foi para o comunismo. Tomara que tenha razão, mas suspeito que, ao menos nos Estados Unidos, o poder financeiro e as forças do fundamentalismo continuam muito vivos. A política é que deveria se impor sobre o mundo financeiro, recorrendo aos interesses gerais e não aos particulares que até agora têm dominado a regulação financeira em todo o mundo.

Recebido em 22.10.2008 e aceito em 23.10.2008.

José Antonio Ocampo é professor no programa de Ph.D. da Columbia University (EUA). Foi subsecretário-geral para Assuntos Econômicos e Sociais das Nações Unidas no período do mandato do então secretário-geral Kofi Annan. Anteriormente, foi secretário-executivo da Comissão Econômica das Nações Unidas para a América Latina e o Caribe (Cepal). Obteve o título de Ph.D em economia e sociologia pela Universidade de Yale (EUA). Colombiano, ele também exerceu diversos postos no governo de seu país, como ministro da Fazenda e Crédito Público da Colômbia (1996-1997) e da Agricultura e Desenvolvimento Social (1993-1994). @ – ocampo.joseantonio@yahoo.com Tradução de Diego A. Molina. O original em espanhol, "El colapso del sistema financiero mundial", encontra-se à disposição do leitor no IEA-USP para eventual consulta.

Economia brasileira: de volta para o futuro

Luís Nassif

Desde o século XIX, o mundo tem convivido com duas formas de coordenação econômica. Uma delas, a do mercado financeiro, a "haute finance",

conforme a expressão do economista Karl Polanyi, no seu A grande transformação, de 1940. A outra, a coordenação entre nações em torno de instituições e acordos internacionais. O primeiro modelo começa a vigorar no século XIX, conduzido especialmente pelos Rotschild, na Inglaterra. Praticamente morreu com a Primeira Guerra Mundial, mas só foi enterrado com a crise de 1929.

Trata-se de uma utopia fascinante, porém falsa. Defende o livre fluxo de capitais, a queda das barreiras comerciais entre países e o princípio da "lição de casa". Se os países emergentes praticarem políticas cautelosas nas contas públicas e não colocarem empecilhos ao livre trânsito dos capitais, haverá um transbordamento natural dos países ricos para os mais pobres, trazendo a paz e o desenvolvimento mundiais.

Houve uma grande batalha ideológica em cada país em que o modelo foi implantado. Friedrick List talvez tenha sido o pensador que, na primeira metade do século XIX, formulou as críticas mais consistentes contra os ensaios desse modelo, a teoria das vantagens comparativas, que convalidava o livre comércio entre nações, tratando de modo igual países em estágios desiguais de desenvolvimento.

O modelo de financeirização mundial foi conseqüência do mesmo impulso que leva ao livre comércio. Mas foi extraordinariamente estimulado por dois fenômenos. O primeiro, as grandes inovações tecnológicas exigindo muito capital para serem desenvolvidas. O segundo, o sistema financeiro internacional aproveitando a oportunidade para exercitar a criatividade especulativa até o limite. O modelo gerou inúmeras ferramentas financeiras que serviam muito mais para a especulação com as novas invenções, criando bolhas especulativas sucessivas.

Em cada país, os aliados naturais desse modelo eram, externamente, o grande capital nacional que já havia sido exportado. Há pouca pesquisa histórica. Mas, em meu livro Os cabeças de planilha, levantei alguns indícios que sugeriam que, já no século XIX, havia um volume considerável de capital brasileiro exportado e "lavado" na City londrina. Provavelmente dinheiro de subfaturamento de exportações, de golpes contra o Estado nacional e outras formas de acumulação ilegais. Esse dinheiro ia para Londres, era depositado nos bancos londrinos e retornava ao Brasil na forma de capital externo.

Internamente, havia uma arquitetura política composta pelos mesmos personagens que voltariam à cena nos anos 1990. O agente articulador desse capital era o banqueiro ou gestor de fundos. No século XIX, conselheiro Mayrink, conde de Leopoldina, e um conjunto de banqueiros que, após o Encilhamento, foram denominados "os barões ladrões da rua do Ladário".

Na outra ponta, os partidos políticos aliados. Fazendo o meio-campo, os economistas servindo no governo – no Encilhamento, Rui Barbosa; nos anos 1990, os economistas do Real.

No século XX, Daniel Dantas, outros gestores menos polêmicos como Jorge Paulo Lehman e os economistas do Real fazendo o meio-campo – e atuando nas duas pontas, como banqueiros e como intermediários desse modelo.

Cabe a esses economistas monitorar as transações políticas e financeiras entre as partes. Aos partidos políticos e governantes eles fornecem a utopia do suposto conhecimento das últimas ferramentas do pensamento econômico mundial. Por sua vez, são os agentes que costuram e direcionam os favores políticos aos detentores do grande capital; que, em contrapartida, ajudam no financiamento de campanhas ou outras formas de influência política sobre a economia.

No início da República, os favores se davam na área de concessões, nas regras de monetização da economia (conferindo poder de emissão a bancos aliados) e de ampliação de limites de endividamento público. No Plano Real, nas privatizações, na monetização da economia (conferindo liquidez apenas aos detentores de dólares) e no âmbito do endividamento público.

Esses economistas cumprem esse papel e se beneficiam financeiramente do modelo implantado. Rui Barbosa saiu do governo sócio de quatro empresas do conselheiro Mayrink; os economistas do Real enriqueceram ou tocando seus próprios bancos ou intermediando negócios da privatização.

A adesão a esse modelo pressupunha alguns princípios de política econômica, como garantir o livre fluxo de capitais, a estabilidade da moeda, o equilíbrio orçamentário, retirando recursos de outros setores do orçamento para assegurar o endividamento progressivo e o pagamento de juros sem risco.

No século passado, a estabilidade da moeda era assegurada pelo padrão- ouro – só se podia emitir tendo como contrapartida reservas em ouro.

A partir desses princípios, com a economia mundial plenamente integrada a coordenação dos mercados se dava por intermédio do Banco da Inglaterra, secundado por outros bancos centrais de grandes países europeus. Se a Inglaterra tinha problemas de liquidez, aumentava os juros, sugava ouro do mundo inteiro, provocando crises de liquidez nos demais países.

Foi um período marcado por crises cambiais sucessivas, movimentos especulativos de monta e pelo fato de ter matado a oportunidade de um salto de desenvolvimento nos países que aderiram plenamente a ele – como o Brasil. Mas, de qualquer modo, havia uma coordenação financeira global.

Quando esse se autodestruiu, pelo excesso de especulação, criou-se um vácuo no sistema de coordenação global. Tentou-se a criação da Liga das Nações, em vão. Seguiu-se uma etapa de "cada um por si", com conseqüências desastrosas para o mundo. Os Estados Unidos iniciam esse movimento, de "jogar o prejuízo para o vizinho". Com o mundo entrando nessa espiral de fechamento, o resultado foi uma enorme crise global que se seguiu ao crack de 1929.

Paradoxalmente, o Brasil se saiu bem do episódio, ao ser conduzido pelo grande estadista da história, o Sr. Crise. Com a moratória da dívida externa, no início do governo Vargas, cessou o livre fluxo de capitais. Os recursos acumulados no período não tiveram alternativa a não ser descer para o mundo real dos empreendimentos privados. Parte deles ajudou a capitalizar as empresas que participaram do grande processo de substituição de importações, iniciado na época. Parte fluiu para o sistema bancário, ajudando rapidamente a transformar as Casas Comissárias em casas bancárias e, em seguida, em bancos. Por meio do sistema bancário, contribuíram para a renovação da economia brasileira.

Acordos de troca de mercadorias com a Alemanha e a Itália asseguraram o fluxo de importações. Depois, o clima de guerra estimulou os Estados Unidos a atuarem com concessões, visando reduzir a influência do Eixo.

Apenas no pós-guerra, o mundo descobriu um novo modelo de coordenação de nações, com a criação da Organização das Nações Unidas (ONU), de um novo sistema de coordenação cambial, do Fundo Monetário Internacional para acudir países com problemas transitórios de desequilíbrio externo e o Banco Mundial para bancar investimentos estruturais.

Não se pode dizer que o Brasil tenha entrado de forma satisfatória nesse modelo. De partida, a moeda brasileira estava supervalorizada. Todo soluço de crescimento, dali em diante, resultava em crises cambiais complexas, que perduraram até fins dos anos 1960 – para serem retomadas no final dos anos 1970.

Internacionalmente, esse novo modelo de articulação sobreviveu até 1972, quando Richard Nixon decretou o fim da paridade dólar-ouro. Seguiu-se uma etapa de desregulamentação gradativa dos mercados internacionais que atinge seu ápice neste ano de 2008.

O grande capital brasileiro começou a entrar no circuito nos anos 1980. Começou a sair mais intensamente do país no final dos anos 1980. A saída acelerou após o bloqueio de cruzados do governo Collor. A partir da gestão Marcílio Marques Moreira, o país caiu de cabeça nesse novo modelo.

O ápice se deu com o Plano Real, no qual os economistas forçaram uma notável apreciação do real – possivelmente com o propósito de permitir ganhos no mercado futuro de câmbio.

Nesses anos todos, houve um predomínio flagrante da ideologia de mercado sobre todos os outros aspectos da vida do país. Tudo foi deixado para segundo plano, obras de infra-estrutura, investimentos públicos, gastos públicos relevantes.

Agora, com o fim do modelo, há uma enorme discussão pela frente, fundada em algumas dúvidas fundamentais e alguns handicaps centrais.

A maior delas é se o mundo conseguirá produzir rapidamente um novo modelo de coordenação entre nações, ou prevalecerá a autodefesa do cada um por si? É uma batalha fundamental, mas que levará ainda alguns meses para ser definida. Quanto mais tempo demorar para se definir, maior será a recessão mundial.

Em relação ao Brasil, a crise suscita uma discussão fundamental: qual será o padrão de desenvolvimento, daqui por diante?

Alguns aspectos terão que ser levados em conta. Primeiro, a escassez de capital externo daqui para frente. Segundo, a redução substancial no volume de comércio mundial. Esses dois fatos induzem a se buscar a solução internamente.

O país possui um conjunto formidável de ativos para trabalhar. O primeiro deles é o fator demográfico – extremamente favorável ao país. Nos próximos anos se terá a maior parte da população em idade ativa.

O segundo é o desenvolvimento de políticas sociais sofisticadas, com a construção de bancos de dados, indicadores, que estão permitindo ampliar substancialmente a eficiência dos programas de transferência de renda. Esses programas não apenas permitem revitalizar a economia, com a criação de um mercado de consumo popular, como estimular ações integradas com o setor privado.

A Câmara Brasileira da Indústria da Construção (CBIC), por exemplo, montou uma parceria com o Bolsa Família. Consultou o cronograma de obras do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), estimou a quantidade de mão-de-obra necessária em cada cidade e região. Depois, analisou o banco de dados do Bolsa Família, identificou 200 mil pessoas com potencial para aprender funções na construção civil. E acionou o sistema Sesi-Senai, o Fundo de Amparo ao Trabalhador (FAT), o Ministério da Educação e o do Trabalho para programas de treinamento. É uma interação inédita e típica de países socialmente avançados.

O terceiro são as enormes oportunidades de investimento representadas por quatro frentes principais: as obras de infra-estrutura, o pré-sal, o binômio energia-alimentos e a exploração racional da Amazônia.

O quarto é o imenso estoque de capital acumulado nos últimos anos com o cassino financeiro. Nesses anos, o país desenvolveu competência para análise de projetos e operações de capitalização de empresas. Agora, chegou a hora de esse capital cumprir um papel econômico da maior relevância.

Tem-se material suficiente para o país sair dessa crise com um dos grandes players mundiais. Dependerá apenas da maior ou menor visão estratégica não só do governo, mas também dos diversos centros de pensamento estratégico, para convergir para uma solução de consenso que assegure a retomada do desenvolvimento.

Recebido em 22.10.2008 e aceito em 23.10.2008.

Luís Nassif é jornalista e blogueiro. Foi membro do Conselho Deliberativo do Instituto de Estudos Avançados da USP (2005-2007). @ – luis.nassif@gmail.com

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  • SCHUMPETER, J. Socialism, capitalism, and democracy 3.ed. New York: Harper & Brothers, 1950.
  • 1
    Discuti essa questão em Bresser-Pereira (2007).
  • 2
    Observe-se que Marshall – o único grande economista neoclássico – adotou o método hipotético-dedutivo, mas o fez para desenvolver uma microeconomia instrumental, apropriada para compreender abstratamente mercados, e apenas um instrumento para uma análise macroeconômica dos sistemas reais. Sobre esse tema, ver Bresser-Pereira (s. d.)
  • 3
    Ou seja, terminou o tempo dos impérios. Estes são a unidade político-territorial por excelência das sociedades pré-capitalistas, ou sociedades agrário-letradas, como argumentou Ernest Gellner (1983), mas, durante especialmente o século XIX, uma forma transitória de imperialismo já nos quadros do capitalismo da qual a expressão maior foi o Império Britânico.
  • 4
    Cf.
    The Economist, 18 de outubro de 2008, p.76.
  • 5
    Sobre o enfraquecimento dos países pobres pelo neoliberalismo, ver o livro do conservador (mas não neoliberal) americano Francis Fukuyama (2004).
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      16 Nov 2009
    • Data do Fascículo
      Dez 2008
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