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Um historiador comunista

RESENHAS

Um historiador comunista

Lidiane Soares Rodrigues

LIGAR AS DUAS pontas da vida e estabelecer um sentido entre elas. Eis um desafio básico, posto a todo biógrafo, enfrentado por Lincoln Secco em Caio Prado Júnior. O sentido da revolução, que vem a lume pela coleção "Paulicéia" da Boitempo (2008).

Desde logo, alguns procedimentos evidenciam que se trata de um historiador que assume o papel de biógrafo. Isso se entrevê na ambição de apreender a totalidade do indivíduo – "é o homem por inteiro que nos atrai" – e no reconhecimento de que escandir seus múltiplos papéis – "historiador, geógrafo, filósofo, economista com formação em direito, paulista de família tradicional" – não impede que ele escape "a cada aproximação" (p.11). Outrossim, o biógrafo poderia ter se satisfeito com a leitura dos numerosos trabalhos dedicados a Caio Prado Jr., porém, como se verifica ao longo dessas páginas, ele buscou fontes primárias, como os Anais da Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo, além de entrevistas e cartas – em tempo: não utilizadas por outros autores.

O biógrafo não pode, contudo, estabelecer o sentido dos dois extremos da existência humana – vida e morte – sem muita sensibilidade para os dilemas vividos pelo biografado. Lincoln Secco alia ao dever de historiador essa visão compreensiva e empática da qual não pode se desfazer o biógrafo. Talvez por trabalhar de maneira criativa essa empatia, seja indisfarçável no biógrafo alguns dos gostos que partilha com o biografado. Por exemplo, o gosto pela geografia e a sensibilidade aos deslocamentos no espaço, saliente na cuidadosa narrativa das viagens de Caio Prado Jr. Aliás, nele, esse gosto se traduziu em viagens pelo mundo e pelo Brasil, que, em particular, se tornaram oportunidades ímpares para o conhecimento da nossa gente e das coisas de nossa gente. É famosa sua asserção (algo de braudeliana há nela): "o Brasil exibe seu passado numa simples viagem pelo território" (p.171).

A partir do núcleo em torno do qual "girou a maior parte de suas inquietações", a política, Lincoln Secco apresentou Caio Prado Jr. em cinco atos, que outros leitores diriam capítulos: "Os anos de formação"; "O parlamentar"; "O revolucionário", "O historiador"; "A questão agrária". A personagem aparece em cinco atos, pois há alguma gradação na apresentação desses papéis que não expressa apenas a cronologia ordinária da vida, mas a sedimentação do "sentido da revolução", o que justifica o título do livro. Dito de outro modo, se não são estritamente lineares os capítulos, em sua composição expressam um crescendo que vai da formação à maturidade intelectual e política, essas assumindo a feição daqueles papéis, segundo a sequência da disposição apresentada das atividades nas quais se empenhou. Ratifico, na própria organização e apresentação do material biográfico revela-se a intenção introdutoriamente confessa do autor que quis fazer

uma exposição da trajetória pessoal, política e intelectual de Caio Prado Júnior, com destaque para sua relação aparentemente conflituosa com seu partido. Procurei entender, no contexto dos anos 1930, o significado de sua adesão ao marxismo e ao PCB, e, em cada contexto seguinte, a razão de sua permanência no partido. (p.13 – grifos meus)

Esse propósito anima a busca pela formação, consolidação e sedimentação do historiador comunista que foi Caio Prado Jr., para Lincoln Secco (p.12). Buscar a experiência social na base daquela rara, sofisticada e admirável combinação entre lucidez de análise e paixão revolucionária, na conformação de um "sentido da revolução" como processo, move o biógrafo.

Essa perseguição faz de cada capítulo um ato. E em cada ato, encaminhar o enredo. Assim, atenta o autor à decepção com a "Revolução de 30" – que lhe rendeu a primeira prisão, e resultaria em "inquietações cada vez mais fortes que não cabiam no leito estreito da política oligárquica e mesmo no da sua dissidência (o Partido Democrático)" (p.29). E ainda, cuida de escandir o "marxismo próprio" de seu personagem, bem como de precisar o "significado da adesão" ao comunismo. Cabe, aliás, um breve comentário acerca desse ponto. A excepcionalidade de Caio Prado Jr. encontra-se num metro lançado ao que há, em matéria de marxismo, antes e depois dele. Ora, em relação aos que vieram antes, e aos coevos, não se restringe à reprodução da teoria da Internacional Comunista. Em relação aos que vêm depois, distingue-se pela simplicidade – assim qualifiquemos na falta de palavra melhor para designar a ausência de elucubrações conceituais, jargões reificados nos rincões dos grupos de estudos de O capital, mais afiados na leitura dessa obra do que na crítica ao capitalismo, na certeira tacada de Paulo Arantes. Uma boa história intelectual do marxismo terá que se ver com um problema básico proposto por esse trabalho para a trajetória de Caio Prado Jr., mas especialmente nesse ponto. Se acertando o ângulo de análise, vemos o homem no interior de seu tempo, ligado a ele de muitas maneiras, como compreender as inovações que sua obra inaugura?

Decerto, a figura excepcional que é Caio Prado Jr. não fica menos admirável por estar enraizada em seu tempo – dimensão que o autor alcança destacando as escolhas individuais no interior de um conjunto de estímulos que, mormente, sua classe social e a cidade, ofereciam-lhe. Assim, a experiência da campanha eleitoral, do "mergulho da discussão cotidiana de problemas concretos da população [...] da legislação, da realidade orçamentária" (p, 69), bem como a experiência parlamentar decepcionante e a subsequente cassação, que acabam por estimular o empenho na "luta cultural" e forjar um "entusiasmo temperado pelo ceticismo da razão" (p.89), que o anima na Gráfica Urupês e na Revista Brasiliense.

Com efeito, aqueles que se dedicam ao estudo da vida e obra de um intelectual que se filie ao Partido Comunista, que se proponha a pensar a revolução e atuar como revolucionário, enfrentam muitos problemas para compreender os vínculos entre tal indivíduo, seu ambiente cultural e a pedra de toque de uma obra nutrida por tal percurso: a arquitetura da relação reforma/revolução. Não bastasse essa observação geral, no caso de nossa vida intelectual e política, tudo parece mais dramático. Pois o exame que leva o autor a vislumbrar em Caio Prado Jr. o "entusiasmo temperado pelo ceticismo da razão" também o leva a afirmar que "ele era fruto da união de uma geração de intelectuais que redescobria o Brasil e da vinculação daquela redescoberta com o proletariado" (p.63). Porém, o que parece afligir todos os que por alguma via se encontrem no raio de objetos aqui tratados é o fato de que todos querem vincular suas descobertas contra a ordem a um proletariado que não vai ao encontro da revolução. É evidente que, em última análise, é em nossa formação social e na anatomia desse proletariado que se encontra a chave do equilíbrio "da paixão revolucionária militante" com a "racionalidade com relação a fins" – perfil de Caio Prado Jr., expresso em sua ação política, que com tom moderado quer reformas estruturais (p.93).

É então dessa perspectiva – do homem excepcional, mas fruto de seu tempo – que pontos inescapáveis e controversos da biografia de Caio Prado Jr. são tratados. Ao menos dois se destacam: a proclamada ruptura de classe é um deles. A franqueza de simples constatações, mas emancipadoras, diria, merece relevo: "Não precisamos aqui aceitar que sua adesão ao comunismo tivesse sido uma ruptura completa com sua classe e com seu conforto material" (p.121). A observação, como outras, convoca futuras pesquisas a dialogarem com mais esse lugar-comum acadêmico quando se fala em Caio Prado Jr. – afinal, como se define uma ruptura de classe? Ou como cada trânsfuga a definiu para si mesmo? Destaco outra controvérsia, indagando: como não reconhecer, que ao falarmos em sua trajetória, além da cisão de classe pela adesão ao comunismo, está em jogo, sempre e inexoravelmente, ainda que não problematizado de maneira explícita, que nosso bastião da inovação historiográfica foi um fiel e disciplinado militante de partido? Expor essa constatação é passo essencial dado pelo texto em tela e que lhe permite esboçar caminhos a serem trilhados, reitero, por pesquisas futuras. Como afirma Lincoln Secco, "é preciso desmistificar o próprio Caio Prado Júnior, indo além de sua visão a respeito daquela relação (com o partido) e também do senso comum que simplesmente contrapõe a imagem do grande intelectual à do partido 'obscurantista' que o perseguia" (p.13).

Por adotar tal orientação, um dos pontos altos do trabalho consiste em assinalar: mesmo a obra produzida no combate às estratégias partidárias dos comunistas, no calor do pós-1964 – A revolução brasileira – "não apagava o fato de que o autor se inseria muito mais naquela cultura reformista que ele criticava do que na nova cultura dos marxismos radicais dos anos 1960". Nela há uma descontinuidade entre o econômico e o político, na medida em que "criticaria a estratégia de alianças de classes do PCB, mas por outro lado separaria o socialismo da luta imediata, como se o movimento fosse tudo e a finalidade nada" (p.116), tal qual Bernstein. A apreciação dessa obra contempla ainda – e o autor é exitoso nesse propósito – a investigação de sua recepção, e dos debates fomentados por ela. Justamente essa visada lhe autoriza afirmar que, se as reformas sociais constituem o programa revolucionário que se extrai do livro, esse traço que "contrariava bastante as leituras esquerdistas da época", "passou despercebido na medida em que o livro foi lido principalmente como crítica ao reformismo do PCB" (p.116). Decerto, as leituras de escritos políticos são condicionadas pelo contexto de sua polêmica. Quantos livros (e autores) não devem a adesão maciça que recebem a leituras que apreendem, apenas ou primordialmente, o que eles refutam, em detrimento de seu conteúdo programático e propositivo?

Deve-se ainda considerar, como cabe numa biografia e no esforço de compreensão de um indivíduo na história, certo tom elogioso para com os acertos de Caio Prado Jr., aliado à generosidade para com seus erros. Um exemplo de cada caso nos basta. É nítida a valorização de sua atuação parlamentar. Se é precisa a caracterização – e a considerar o projeto de criação de um instituto de apoio à pesquisa científica, ela o é (p.83) –, o biógrafo não esconde a intenção do perfil modelar. Como se ele caprichasse na delimitação para servir de inspiração aos militantes, seus leitores:

esteve muito à frente da maioria dos políticos de extrema esquerda que, mesmo recentemente, concebem a atividade parlamentar como mera tribuna de denúncia e crítica (numa leitura extemporânea do leninismo). Ele apresentava propostas de reforma embasadas em estudos calcados nas realidades econômicas e orçamentárias do Estado, sem deixar de revelar um arco amplo de alianças de classes, incluindo a pequena burguesia do comércio e da terra nas suas justificativas para se opor a um imposto que agravava e encarecia o comércio varejista. (p.78)

Quanto à generosidade para com os erros, nutrida na vocação à compreensão que toda biografia convoca, ressalte-se a apreciação dos últimos escritos de Caio Prado Jr. Ele

teria um programa político já defasado, não em relação apenas ao nosso tempo, mas diante de sua própria visão da história brasileira. É como se ele tivesse elaborado um programa político nacionalista, por um capitalismo autárquico como fase preparatória pra o socialismo internacional, em desacordo com um país que, nascido no interior da economia-mundo capitalista, seria incapaz de mudar seu papel estrutural nela. Nesse contexto, as soluções só poderiam ser pensadas no conjunto daquela vasta estrutura global. (p.201)

Convém, contudo, considerar, o que permite esse desdobramento, que hoje fazemos à escala sistêmica – senso comum entre os estudiosos de história, em geral, e da econômica em particular – decerto é fruto de sua obra, porém, o é por conta de leituras e pesquisas que seguiram sua trilha e tentaram ampliar suas sugestões. Essa vertente, mormente associada ao Departamento de História da Universidade de São Paulo, apropriou-se como nenhuma outra de Caio Prado Jr., fazendo dele seu predecessor mais eminente. Quanto ao âmbito político da interpretação, se ela se fazia anacrônica no final de sua vida, vale o belo arremate do biógrafo: "O mundo onde ele nascera era radicalmente distinto daquele em que chegou ao entardecer de sua vida" (p.198).

Esta resenha não pode se encerrar sem duas observações finais. Uma delas, estética e editorial. A seleção das fotografias expôs imagens menos vistas da personagem e de sua família, escolhendo com bom gosto aquelas que dividiriam os capítulos. É válido um olhar atento a esse ponto, em nada menor. Uma segunda observação diz respeito ao irreprimível incômodo do autor para com Claude Lévi-Strauss e o que nos cabe de sua caracterização em Tristes trópicos. Parece haver mais uma defesa de Caio Prado Jr., em face de um suposto "rápido e ácido retrato" que ele receberia, e de uma "descrição jocosa e pouco favorável" da elite paulista que aquele francês conheceu (p.41 e 121). Todos os que já tiveram o prazer de visitar aquelas páginas de Lévi-Strauss devem se recordar do riso envergonhado que o capítulo dedicado à vida cultural paulista nos provoca.

Concordar ou refutar creio que aconteça depois desse incontornável reconhecimento de traços de longa duração de nossos hábitos sociais no trato com a cultura, de resto também observado em nossas raízes no viés de Sérgio Buarque de Holanda. Porém, se o retrato é melancólico pela franqueza com a qual o elabora – por meio de um óbvio e implícito contraste com a vida intelectual francesa de sua formação, que também não escapa de sua verve irônica, patente em "Como se faz um etnógrafo" –, é instigante pensar que da pobreza daquele ambiente, viria brotar um "vigoroso" núcleo universitário, que nele estava Caio Prado Jr. Procurando manter o equilíbrio da paixão revolucionária com a lucidez da análise, com inspiração no Caio Prado Jr. de Lincoln Secco, penso que os que se dedicam à história da universidade, à história do marxismo e aos estudos intelectuais se empenharão no desafio de compreender essa (aparente) discrepância. Talvez gostemos menos do retrato que fizermos de nós mesmos do que aquele que fez Lévi-Strauss. Mas será essa a tarefa da crítica, ou ela não será. Jamais trocar a vida pela autobiografia, a imagem pelo espelho.1 1 Tomo emprestada a expressão de William Nozaki. É toda nossa vida cultural que está em jogo quando nos dedicamos à biografia de nossos intelectuais mais (e menos) diletos.

Nota

Lidiane Soares Rodrigues é doutoranda no Departamento de História da USP. @ – bailadoraandaluza@usp.br

  • 1
    Tomo emprestada a expressão de William Nozaki.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      30 Set 2009
    • Data do Fascículo
      2009
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