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A crise financeira e as previsões dos economistas

DOSSIÊ CRISE INTERNACIONAL II

A crise financeira e as previsões dos economistas1 1 Aula inaugural do Mestrado de Nível II em Economia Pública, ano acadêmico 2008-2009, Faculdade de Economia, Università degli Studi de Roma "La Sapienza", 4 de março de 2009. Agradeço a todos as muitas discussões sobre as diferentes partes desta minha intervenção, e também o auxílio que recebi em muitas de suas passagens, embora seja eu o único responsável pelas teses aqui expostas: Fabio Busetti, Michele Caivano, Eugenio Gaiotti, Alberto Locarno, Sergio Nicoletti Altimari, Patrizio Pagano, Fabio Pagnetta e Stefano Siviero.

Ignazio Visco

Introdução

TALVEZ SEJA cedo para aprender algo com a crise que atingiu a economia global. Ela se mostra grave e disseminada, e seus efeitos, profundos e prolongados. Intervenções de natureza diversa foram ou estão sendo efetuadas nos campos da política monetária, da utilização dos balanços públicos, da revisão das regras e das instituições das quais dependem o bom funcionamento dos mercados e a atuação dos intermediários financeiros.2 2 O autor refere-se a instituições que operam no mercado financeiro, incluindo as bancárias (bancos comerciais e bancos de investimentos) e as não bancárias como sociedades de investimento, fundos de pensão, fundos mútuos, fundos de hedge etc. (N.T.) Este é, certamente, um período de máximo empenho da política econômica – ou da política, simplesmente –, um empenho diretamente proporcional à gravidade da crise. Mas, como é comum a períodos de transição como o atual, este é também o momento em que se começam a reconsiderar os modelos interpretativos utilizados na análise de nossos sistemas econômicos, buscando identificar os motivos subjacentes à falência dos mercados, das políticas econômicas e das próprias previsões dos economistas. Por sua vez, esse re-exame é igualmente necessário para melhor se definirem as intervenções (globais, consistentes, específicas, de efeitos duradouros...) voltadas à superação da crise e a prevenir, na medida do possível – mediante o desenho de novas regras, novas instituições e novas políticas –, que fenômenos tão graves de instabilidade venham a se repetir. Se a saída da crise será árdua e complexa, difícil e laborioso será também o processo de revisão dos modelos de análise teórica e quantitativa, das direções e dos instrumentos de política econômica e financeira, nacionais e supranacionais.

Para começar, podemos – e sem dúvida devemos – nos perguntar quão grave foi o fracasso da análise econômica e, com ela, dos modelos de previsão, mas também por que a política econômica, em suas diferentes dimensões, foi tão lenta e pouco tempestiva em sua resposta aos sinais de alarme aventados pela análise e pelas previsões dos economistas. É isso que gostaria de discutir brevemente aqui, adiantando uma resposta óbvia: se a política econômica tem graves responsabilidades, análises e modelos de previsão também mostraram limites importantes, acerca dos quais é preciso que nos questionemos.

Origem da crise e diagnóstico dos economistas

Até dois anos atrás, a economia mundial passava por uma fase excepcionalmente longa de crescimento intenso, com oscilações no ritmo de desenvolvimento do produto notavelmente atenuadas em comparação com períodos anteriores, assim como inflação baixa e estável em todas as áreas principais; também graças aos elevados índices de desenvolvimento das economias de grandes países emergentes, as perspectivas de crescimento pareciam, segundo era consenso nas previsões, ainda estáveis e certas. Essa confiança foi gradualmente corroída pelos eventos que se sucederam desde o verão de 2007 até o outono do ano passado, e despencou com enorme rapidez nos últimos meses, abrindo caminho para um forte e generalizado aumento da volatilidade tanto dos mercados como da atividade econômica, bem como para uma incerteza disseminada quanto ao futuro.

Como sabemos, a crise que ora atravessamos manifestou-se inicialmente a partir das dificuldades enfrentadas por intermediários que investiram maciçamente em produtos financeiros "estruturados ", isto é, atrelados ao desempenho de empréstimos hipotecários (e, portanto, dos preços dos imóveis a eles vinculados) concedidos nos Estados Unidos a beneficiários com baixo mérito de crédito (denominados subprime). Essa crise, porém, espalhou-se rapidamente para outros setores do mercado financeiro e, nos últimos meses, para a economia real; o foco da infecção, com efeito, inseriu-se em um contexto mais amplo de fragilidade dos sistemas financeiro e econômico internacionais. Os problemas que apareceram em 2007 nos mercados dos produtos estruturados, vinculados aos empréstimos subprime, desencadearam, sim, a crise, mas as condições para seu surgimento e rápida disseminação haviam se acumulado gradualmente ao longo do tempo. Os elementos de fragilidade e de instabilidade potencial preexistentes já haviam sido, em parte, identificados pela análise e assinalados como possível fonte de perigos.

Grandes transformações econômicas, demográficas e tecnológicas

Nos últimos vinte anos, grandes transformações tiveram lugar, seja na integração das economias e dos mercados, no âmbito da demografia, seja no da inovação tecnológica e financeira. A expansão do comércio internacional de bens e serviços foi veemente, e, com ela, cresceram os investimentos estrangeiros diretos. As economias emergentes da Ásia respondem agora por mais de um quarto das exportações mundiais, o dobro de 1990. Em pouco mais de dez anos, os investimentos diretos passaram de 10% do produto mundial (1995) a 25%, com um aumento similar para as economias avançadas e as emergentes. Aumentou fortemente a integração financeira: em 2007, a relação entre ativos e passivos financeiros no exterior e Produto Interno Bruto (PIB) era igual a 300% nos países industrializados, em comparação com os 140% de 1995; as expectativas que então prevaleciam indicavam crescimento rápido, quer nos países emergentes, quer naqueles chamados em desenvolvimento, expectativas que se vinculavam à progressiva eliminação das restrições à mobilidade dos capitais. A globalização, obviamente, determinou um forte aumento da interdependência entre os países, e, com ela, da probabilidade de transmissão de choques reais e financeiros para além de fronteiras nacionais. Ao mesmo tempo, a maior diversificação dos riscos, vinculada ao aumento da exposição global das carteiras financeiras, deveria ter – ao menos em princípio – provocado uma diminuição da suscetibilidade a perturbações de natureza local.

No plano demográfico, o crescimento populacional, tão marcado nas economias em desenvolvimento, foi acompanhado da tendência a um progressivo envelhecimento da população não apenas nos países industrializados, como também em alguns grandes países emergentes (particularmente a China). Ao aumento da expectativa de vida veio se somar a redução da natalidade, o que determinou um forte aumento do índice de dependência expresso pela relação entre população idosa e população em idade ativa, destinado a prosseguir nas próximas décadas. Resultou daí um redimensionamento das aposentadorias públicas e um maior recurso à previdência complementar, proposta por fundos de pensão, seguros e outros investidores institucionais. Concomitantemente, aumentou a exposição direta das famílias ao risco financeiro: nos três maiores países da zona do euro, a cota dos ativos financeiros das famílias administrada por esses operadores alcançou aproximadamente um terço, com um incremento de 10 pontos porcentuais em uma década.

O desenvolvimento das novas tecnologias da informação e da comunicação, por fim, teve um impacto transversal e crescente em todos os setores econômicos e na sociedade em geral. Isso produziu efeitos relevantes na produtividade e no crescimento econômico, assim como em todos os blocos constitutivos do sistema financeiro: das infraestruturas de pagamento aos intermediários, dos mercados aos instrumentos de investimento. Em especial, aumentou notadamente a securitização das atividades dos bancos e, com ela, a oferta de instrumentos financeiros (denominados "estruturados ": ABS, CDO etc.), de avaliação em geral muito complexa. Do tradicional modelo de intermediação de crédito, passamos, portanto (e em especial nos Estados Unidos), a um sistema em que os empréstimos concedidos são rapidamente transformados em outros produtos financeiros, os quais têm esses empréstimos como seus colaterais (isto é, como seus lastros), sendo, nesse formato, lançados no mercado: é o modelo chamado originate-to-distribute. Esses instrumentos – voltados, em princípio, à redução do risco, redistribuído entre uma multidão de investidores, e ao incremento da disponibilidade de capital e, portanto, da capacidade de empréstimo dos bancos – ajudaram a financiar a expansão da "nova economia", paralelamente à difusão das novas tecnologias. Ao mesmo tempo, eles permitiram reduzir o custo dos empréstimos, sobretudo em razão da compressão dos "prêmios por liquidez".

À complexidade dos instrumentos estruturados, porém, correspondeu uma essencial falta de transparência, particularmente no que tange à avaliação desses instrumentos (na qual papel decisivo era desempenhado pelas agências de rating, não sujeitas a controle maior por parte de reguladores públicos ou órgãos de informação), vinculada a modelos estatísticos e, não raro, realizada com base em dados incompletos e insuficientes. Podemos agora dizer, infelizmente já em plena crise financeira, que comportamentos oportunistas dos administradores, alimentados por um sistema distorcido de incentivos – sobretudo com referência aos esquemas de remuneração e incentivo dos executivos –, impulsionaram a criação de ativos financeiros desnecessariamente complexos e opacos, impedindo, na prática, uma avaliação correta do mérito de crédito e acabando muitas vezes por determinar uma assunção excessiva de riscos.

O crescimento insustentável dos desequilíbrios externos

Nesse contexto, o modelo de desenvolvimento da economia mundial dos últimos anos fundamentou-se no crescente desequilíbrio entre um índice de poupança estadunidense em progressiva diminuição (negativo para o conjunto das famílias) e aquele largamente positivo da China e de outros países emergentes (além do Japão); derivaram daí amplos déficits nas contas dos Estados Unidos com o exterior, e fortes superávits para os países em crescimento rápido, que, por sua vez, passaram a financiar os twin deficits (interno e externo) americanos. A insustentabilidade dos desequilíbrios crescentes nas transações correntes logo ficou evidente, embora variações no valor dos ativos e passivos financeiros tenham contribuído para reduzir a tendência explosiva dos resultados líquidos dos Estados Unidos (Gráfico 1) no exterior . Os riscos ligados a um tal modelo de desenvolvimento, no qual a expansão intensa da maior economia do planeta era financiada com capitais provenientes do resto do mundo – aí incluídos, paradoxalmente, os países emergentes e em desenvolvimento –, foram apontados repetidas vezes, e por diversas pessoas, embora não faltassem observadores menos alarmados ou análises a afirmar a sustentabilidade de desequilíbrios nas contas com o exterior que pareciam cruciais. De todo modo, a possibilidade de que esses desequilíbrios viessem a demandar ajustes rápidos e desordenados, com realinhamentos repentinos do valor externo do dólar a freadas bruscas da demanda interna norte-americana, foi sistematicamente indicada, nas análises produzidas pelas instituições com responsabilidade de policy, como a principal ameaça às perspectivas de desenvolvimento estável da economia mundial.


A crise financeira acabou por eclodir não em decorrência de uma fuga do dólar, mas em razão da crise do mercado imobiliário e da consequente depreciação dos produtos financeiros estruturados. A centelha inicial se inseriu nesse quadro de generalizada fragilidade e se disseminou rapidamente, sem grandes empecilhos; por sua vez, o déficit comercial da balança de pagamentos dos Estados Unidos nada mais é do que a contrapartida da insuficiência de poupança – acima de tudo, das famílias americanas, excessivamente endividadas e tendo boa parte de seu ativo em imóveis (por um bom tempo superestimados), eles próprios garantia de instrumentos financeiros derivados. A freada brusca da demanda nos Estados Unidos estaria sendo acompanhada, de fato, por uma reabsorção daqueles desequilíbrios; a crise impõe agora correção demasiado brusca. Para que essa correção surta efeito e os desequilíbrios venham a ser definitivamente anulados, no entanto, é preciso que a demanda final aumente, em especial no que concerne ao consumo dos países com alto superávit nas transações correntes. Ainda é cedo para concluir que esse será, de fato, o resultado das intervenções em curso; certo é, porém, que a análise econômica identificou corretamente os perigos implícitos nos desequilíbrios mencionados, assim como a inevitabilidade de sua correção, que seria tanto mais traumática quanto mais tardasse sua implementação.

Embora objeto de discussão em diferentes instituições de coordenação internacional, as ações corretivas necessárias para remediar a situação nunca foram empreendidas com suficiente determinação. Ao aumento da demanda final, puxado pela expansão estadunidense, corresponderam aliás, excepcionais índices de crescimento da atividade produtiva e das exportações das grandes economias emergentes (acentuadas por políticas que atrapalharam ou impediram a correção das taxas de câmbio), além de uma pressão inaudita sobre as matérias-primas. Resultou daí, nos últimos anos, em condições de baixa elasticidade nos preços da demanda e da oferta de energia, um incremento igualmente excepcional dos preços nesse setor, e o aumento contínuo também dos superávits comerciais dos países produtores de petróleo (Gráfico 1), elemento adicional de desequilíbrio nos pagamentos internacionais e fonte de disponibilidade de financiamento para a demanda final norte-americana.

A política monetária e os preços dos ativos financeiros e reais

Nas últimas décadas, na ausência de tensões inflacionárias inquietantes, as políticas monetárias haviam se mantido em longa e extraordinária expansão. Ao baixo nível dos juros nominais e reais seguiu-se, além da longa, elevada e estável fase de expansão do produto global, um forte crescimento dos agregados monetários e creditícios. Isso se fez acompanhar de um forte aumento do grau de liquidez dos mercados, por sua vez ligado à inovação financeira e ao considerável crescimento de investidores como fundos de pensão e hedge funds. Decorreu daí uma redução notável e generalizada dos prêmios de risco, que caíram a valores bastante baixos, se comparados historicamente a todos os mercados (acionário, de obrigações privadas, imobiliário). Nas interpretações mais benevolentes, a economia mundial havia entrado em nova fase, a da "grande moderação", caracterizada por um crescimento intenso e desprovido de oscilações significativas, bem como por uma dinâmica de preços ordenada e ancorada em torno de valores médios moderados. A nova fase, argumentava-se, era o resultado da adoção de políticas econômicas orientadas de forma eficaz para a estabilidade macroeconômica, particularmente de políticas monetárias razoavelmente voltadas à contenção das tensões inflacionárias, à manutenção do valor da moeda. Daí teriam derivado perspectivas certas e estáveis, condições propícias para a iniciativa privada e, portanto, para o desenvolvimento econômico.

A essa interpretação (fundamentada em fatores de good policy, termo que em geral a designa na literatura, além de nos supostos efeitos positivos de mudanças estruturais ligadas à difusão das novas tecnologias), observadores contrapunham uma outra: a referida fase de expansão ordenada, longa e de modestas flutuações teria sido, antes, resultado de condições particularmente favoráveis, em especial da ausência de choques adversos violentos e repetidos como os que haviam castigado anos anteriores (good luck). Políticas monetárias expansivas em essência, a incentivar e financiar de fato a assunção de riscos elevados, acabariam por criar, mais cedo ou mais tarde – e em um contexto que, de certo modo, não havia apresentado mudanças radicais em relação às décadas anteriores –, as condições para correções bruscas na hora em que a percepção dos riscos e a propensão a assumi-los tivessem se transformado. Esse perigo havia sido assinalado por diversas partes, que, a partir de 2004, chamaram a atenção sobretudo para a possibilidade de, a uma postura excessivamente desenvolta com relação à assunção de riscos, seguir-se uma reação desordenada e traumática na direção oposta. À luz dos eventos mais recentes, a primeira interpretação das tendências da economia mundial nas últimas décadas parece mesmo demasiado benevolente: se não se pode negar a contribuição da good policy, em particular no que tange aos efeitos sobre as expectativas de inflação em médio prazo, é agora manifesto que talvez tivesse sido mais sábio tomar maiores precauções ante a possibilidade de uma interpretação equivocada, demasiado tranquilizadora, dos eventos.

A queda dos prêmios de risco em diversas ocasiões tem levado os preços de obrigações, ações e imóveis a níveis claramente não justificados pelos desenvolvimentos de suas determinantes fundamentais. Na visão que prevalece, segundo o que geralmente se denomina flexible inflation targeting (e que, em sentido lato, é atribuída por comentadores influentes também à política do Federal Reserve), a política monetária não deve se preocupar em coibir bolhas especulativas no valor dos ativos. O importante é que isso seja levado em conta nas previsões das variáveis mais determinantes na definição do nível geral dos preços, como a expectativa de inflação e o afastamento da demanda final do nível "potencial" da atividade econômica (aquele coerente com a plena utilização dos recursos produtivos). O único instrumento de que a política monetária dispõe (os juros) deveria, portanto, voltar-se para a consecução do objetivo único de manter, de maneira flexível, o valor da moeda, não podendo, ao mesmo tempo, ter por objetivo a contenção do curso dos ativos financeiros e reais. Obviamente, e recordando antigas lições, para evitar os efeitos depressivos que a explosão de uma bolha provoca nos preços dos ativos, a resposta da política monetária deveria ser a rápida redução das taxas de juros e o aumento da liquidez.

Na realidade, os efeitos que os preços dos ativos produzem sobre as decisões de despesas e de investimento de famílias e empresas dependem também dos níveis relativos de endividamento, tanto mais na medida em que esses dependam das garantias expressas pelos bens de capital de que as próprias empresas e famílias dispõem (as famílias, por exemplo, sob a forma de bens imóveis). Isso vale sobretudo para as economias anglo-saxônicas e constitui fator potencial de amplificação não linear dos efeitos acarretados pela variação do valor dos ativos reais e financeiros. Nesse caso, mesmo em consonância com um flexible inflation targeting, a política monetária poderia ser diretamente chamada a coibir fortes variações dos preços desses ativos, sobretudo se levarmos em conta que a probabilidade de um aumento da restrição do crédito por parte dos bancos tende a aumentar com o aumento dos níveis de endividamento. Manter fixas as taxas de juros de policy quando os preços das ações ou dos imóveis aumentam impetuosamente, em um contexto de forte e crescente endividamento de famílias ou empresas, poderia, com o tempo, constituir estímulo adicional a uma bolha especulativa destinada a explodir mais cedo ou mais tarde, com custos que potencialmente poderiam ser de fato graves para a economia em geral.

Com efeito, porém, foi essa a política levada adiante nas últimas décadas pelo Federal Reserve e pelo Banco da Inglaterra, quer diante da forte expansão dos valores acionários no final dos anos 1990 (Gráficos 2 e 3), quer diante daquela dos preços dos imóveis (Gráficos 4, 5 e 6). É preciso dizer que, no primeiro caso, as consequências do benign neglect na fase de ascensão e da forte e rápida redução das taxas de juros, na esteira da redução dos preços, pareceram bastante limitadas (ainda mais se comparadas com o caso muito desalentador da deflação japonesa, que se estendeu por cerca de uma década a partir da primeira metade dos anos 1990). O caso dos imóveis, porém, parece diferente. Por um lado, o aumento de preços, ainda que intenso e prolongado (e provavelmente acima do justificável por fatores fundamentais), é provavelmente menos "explosivo" nos Estados Unidos do que em outros países, como o Reino Unido ou a Suécia (e também a Espanha e a Holanda). Por outro, as consequências devastadoras para os mercados e os intermediários financeiros estadunidenses (transmitidos, depois, para além da fronteira, mediante produtos financeiros estruturados) são o resultado da interação com os níveis de endividamento das famílias, incentivadas a extrair recursos, sob forma de dívida, da valorização das habitações, o que as alçou a níveis de endividamento de valor igual ou superior ao próprio valor do imóvel.






Ao aumento da liquidez e, portanto, da disponibilidade de crédito correspondeu, assim, um forte incremento da alavanca financeira, favorecido também pelo desenvolvimento de novos modelos de intermediação. Já Irving Fisher notara, em 1933, ao reexaminar a Grande depressão, que:

Moeda barata é a causa principal do excesso de endividamento. Quando acreditamos poder obter mais de 100% anualmente, tomando um empréstimo a 6%, somos tentados a contrair dívidas e investir a moeda obtida, isto é, utilizála com finalidade especulativa. esse foi o fator principal do endividamento excessivo de 1929. Invenções e progressos técnicos criaram oportunidades atraentes de investimento e incentivaram a contração de pesadas dívidas. (grifo nosso)

Segundo Fisher, portanto, as grandes crises derivam da assunção de um montante excessivo de dívidas (o que inevitavelmente se faz acompanhar, podemos acrescentar, de uma excessiva assunção de risco), algo que, mais cedo ou mais tarde, é imperativo corrigir. uma vez desencadeado esse processo, a necessidade de reduzir rapidamente os elevados níveis aos quais compeliu a alavancagem financeira contribui para exacerbar a queda dos preços dos ativos, que assume contornos tanto mais violentos quanto mais sua ascensão anterior evidenciou características de uma bolha. Essa queda dos preços, por sua vez, aumenta as dimensões da alavanca financeira, tornando mais onerosa sua reabsorção. Desse perigo, os economistas estavam conscientes havia tempo.

Dos diagnósticos dos economistas às políticas econômicas do período pré-crise

Se os economistas efetivamente apontaram alguns dos perigos que se perfilavam no horizonte, os possíveis focos de infecção e seus mecanismos de disseminação, por que a ação das políticas econômicas foi por um bom tempo lenta, indecisa, não coordenada em âmbito internacional? Em parte, isso talvez reflita o caráter genérico dos sinais de alarme lançados pela análise, a incapacidade de indicar com maior precisão gênese e etapas da crise, e mesmo a própria reiteração das advertências sem que as circunstâncias temidas se materializassem, levando a crer que os riscos de sua concretização fossem vagos e remotos. É possível, no entanto, identificar causas que tenham relação sobretudo com a tomada de decisão das policies, para além da análise econômica.

Em primeiro lugar, até a crise se manifestar plenamente, até aparecer o medo de desdobramentos dramáticos e gravíssimos nos mercados financeiros, faltaram coordenação em âmbito internacional e capacidade de introduzir medidas voltadas a coibir o acúmulo cada vez maior de desequilíbrios nos balanços de pagamentos e os efeitos de um aumento desproporcional da liquidez internacional. Havia decerto consciência do paradoxo que representava o financiamento cada vez maior dos países industrializados com base no superávit das transações correntes dos países em desenvolvimento. Estava claro que isso havia determinado, por um período insolitamente longo, níveis particularmente baixos de juros e volatilidade nos preços dos instrumentos financeiros. Ademais, a política monetária estadunidense, mantida em expansão (por tempo demais) após a breve recessão de 2001-2002, transmitiu à economia chinesa, dado o regime de câmbio prevalente à época, um impulso propulsor cujos sintomas podiam ser lidos em âmbito global nas cotações cada vez mais altas dos preços das matérias-primas. Tudo isso foi discutido repetidas vezes em congressos acadêmicos, workshops de bancos centrais, consultas internacionais e encontros oficiais de ministros e governantes. Mas somente a sensação de extrema urgência que se disseminou no outono passado, após a quebra do grande banco de investimentos Lehman Brothers, permitiu dar início à definição de respostas coordenadas. No futuro, será necessário fortalecer os esforços nessa direção, encontrando-se maneiras apropriadas de traduzir em ação, de forma mais efetiva, as intervenções propostas pelas instituições encarregadas de vigiar a economia internacional.

Também a tranquilizadora e compreensível convicção de que estávamos diante de um mundo novo, aquilo a que se chamou "grande moderação", talvez tenha levado à superestimação da capacidade de o sistema econômico absorver eventuais choques. Essa convicção foi fortalecida pela aparente facilidade com que, a custos em seu conjunto contidos, a economia mundial superou dificuldades anteriores, de aspecto potencialmente ameaçador, como as que se apresentaram no curso dos últimos anos – das crises financeiras dos países do Sudeste Asiático e da Rússia ao crack do hedge fund LTCM; do "estouro" da bolha no mercado acionário em 2000-2001 ao choque causado pelos ataques terroristas de 11 de setembro de 2001. Particularmente, o estouro da bolha tecnológica (denominada dot-com) pareceu ter sido controlado com facilidade, considerando-se as preocupações até sérias que despertou. Reexaminando a posteriori o vulto modesto dos prejuízos causados e a evidente eficácia das contramedidas adotadas, considerou-se poder concluir que o próprio desenvolvimento daquela crise havia confirmado tanto o advento da "grande moderação" como os méritos da good policy.

Como, no entanto, já afirmei, muito se discutiu então, e ainda se discute, se a política monetária não deveria prestar atenção diferente à evolução dos preços dos ativos financeiros e reais e ao crescimento pró-cíclico do crédito e da alavancagem, em alguns casos coibindo com decisão os movimentos aparentemente "excessivos". Para além da dificuldade de emprestar conteúdo empírico a esse termo, é decerto útil interrogar-se sobre os fatores que determinam variações particularmente profundas desses preços, assim como é necessário esclarecer os fatores que tendem a pôr em risco a estabilidade financeira e a amplificar desmedidamente as flutuações cíclicas. Mais do que nos comportamentos, é provável que muitos desses fatores tenham origem nas regras e nos incentivos presentes nos mercados. No caso dos financiamentos hipotecários que deram início à crise por endividamento excessivo que estamos vivendo, por exemplo, dois fatores por certo desempenharam papel crucial: (1) a hipótese de que o aumento contínuo dos preços das casas pudesse permitir uma redução no tempo da relação entre dívida e valor dos ativos subjacentes, e (2) a possibilidade de se obter financiamentos correspondentes a 100% ou mais do valor (loan-to-value) do imóvel hipotecado. Nesses casos, obviamente, e como aliás há tempo já se reconhece (por exemplo, com referência aos fortes aumentos dos preços dos imóveis no Reino Unido, registrados na primeira metade desta década), mais que à política monetária, seria preciso recorrer a instrumentos de natureza cautelar, limitando-se o valor que pode ser utilizado como garantia na contratação de um empréstimo. É preciso que nos perguntemos por que intervenções dessa natureza falharam, mesmo que deixando de lado a não utilização do instrumento monetário (naturalmente como possível instrumento de second best).

Da mesma maneira, é legítimo que nos perguntemos se a confiança na capacidade de os mercados financeiros se autorregularem não teria sido excessiva. Quanto, especificamente, pesou a desistência de exercer um controle mais cerrado sobre muitos setores da intermediação financeira? E isso, mesmo desconsiderando-se a força de lobbies e os fenômenos de excessiva proximidade entre controladores e controlados. Seja lá como for, é evidente que os efeitos de uma mudança de tendência na percepção e na concentração dos riscos foram gravemente subestimados, apesar de múltiplas análises e sinais de advertência terem sido disponibilizados nos últimos anos. Uma desregulamentação excessiva na esfera financeira também foi acompanhada, como já recordei, por extraordinárias inovações. Aumentou demasiadamente a oferta de instrumentos complexos de cobertura do risco, produtos estruturados não raro de difícil avaliação, a não ser por técnicas matemático-estatísticas cuja aplicação requeria que ao menos três condições se verificassem: (1) a disponibilidade de informações elementares, necessárias para definir a qualidade dos produtos (títulos ou empréstimos) dos quais esses novos instrumentos derivavam (em outras palavras, a probabilidade de que empréstimos e obrigações fossem honrados); (2) a validade, essencialmente no tempo e no mundo real, do princípio da arbitragem; (3) um grau suficientemente elevado de liquidez dos mercados. Paira decerto a dúvida sobre se reguladores, banqueiros e investidores se detiveram de fato a considerar a consistência dessas hipóteses fundamentais.

Por isso há muito que fazer no processo de revisão das regras e das instituições incumbidas, mesmo em âmbito supranacional, do bom funcionamento dos mercados, da gestão prudente dos intermediários financeiros e da avaliação dos instrumentos tanto de investimento como de cobertura de riscos. Contudo, de excessos, bolhas especulativas e falências vinculados a comportamentos altamente imprudentes, quando não simplesmente criminosos, o caminho do desenvolvimento econômico e financeiro das economias modernas está repleto. Se, por um lado, o desafio é o de não incorrer no exagero oposto – o de uma regulamentação excessiva e obcecada (tendo em mente que a cobertura do risco, se bem identificado e se possível, é coisa boa e justa) –; por outro, penso que devemos recordar que sempre estamos entre dois grandes perigos: o malogro dos mercados e o das políticas. A tese que considero mais válida é a de que onde mais se errou, precisamente porque havia suficientes evidências em nível macroeconômico para agir tempestivamente, foi na não adoção de políticas resolutas o bastante (além das petições de princípio e dos comunicados do G7) para fazer frente aos desequilíbrios externos que aumentaram com força a partir da segunda metade dos anos 1990 – em essência, desequilíbrios que mostraram, na mais importante região econômica do planeta, uma expansão contínua e intensa da demanda final, sobretudo do consumo, financiada com um excesso de endividamento primordialmente de origem externa; um crescimento, em suma, sem acumulação de poupança.

Para concluir no tocante às políticas, e fortalecer o argumento anterior, considero útil não somente o auxílio de uma interpretação lógica do que levou à grande crise ora em curso, como também uma reconstituição cronológica da sequência dos fenômenos que marcaram os últimos dez, quinze anos. Em síntese extrema, esta é minha proposta (talvez um tanto centrada nos acontecimentos que tiveram lugar nos Estados Unidos...):

A revolução das novas tecnologias da informação e das comunicações deteve a queda progressiva no crescimento da produtividade dos Estados Unidos, e o país retomou sua expansão com índices particularmente elevados na segunda metade dos anos 1990.

No mesmo período, após as crises financeiras que atingiram os países do Sudeste Asiático e a Rússia (1997-1998), e depois do colapso do fundo de investimento LTCM no outono de 1998, a política do Federal Reserve permaneceu essencialmente conciliatória, com forte crescimento da liquidez mesmo ante a perspectiva do chamado bug do milênio do ano 2000.

A euforia da "nova economia", além de compatível com leituras objetivas dos aumentos de produtividade vinculados à adoção e à difusão das novas tecnologias, refletiu-se no consumo das famílias americanas; o endividamento crescia com grande ímpeto, os índices de poupança minguavam, mas os balanços permaneceram essencialmente equilibrados em seu conjunto em razão do aumento da riqueza líquida resultante dos ganhos de capital decorrentes mesmo do fortíssimo incremento das cotações acionárias da bolha dot-com.

O forte crescimento da demanda final e das importações estadunidenses foi se fazendo acompanhar gradualmente do aumento das exportações e do produto de grandes países emergentes, como a China e a Índia, anteriormente em atraso, e de uma tendência ao aumento da inflação norte-americana, à qual, no início da década, contrapôs-se o recrudescimento da política monetária.

A restrição monetária acabou determinando, tarde, o estouro da bolha dot-com, em 2000-2001, com efeitos recessivos aos quais se somou o efeito do gravíssimo choque provocado pelo atentado às torres gêmeas, em 11 de setembro de 2001.

Temendo recessão e deflação como as que haviam prevalecido na década anterior no Japão, o FED tornou a reagir de forma bastante conciliadora, com uma redução drástica dos juros acompanhada de uma política de balanço/macroeconômica fortemente expansiva, que permaneceu igual nos anos seguintes, também em conexão com as operações bélicas no Oriente Médio.

Também a política monetária permaneceu expansiva por um bom tempo, acomodando o retorno a intensos índices de crescimento do consumo das famílias, sem coibir a tendência à aniquilação da poupança e deixando o caminho livre, em condições de ampla liquidez, para a inovação financeira, com a transformação, sobretudo em 2004-2006, do endividamento por contração de empréstimos imobiliários – em um contexto de aumento contínuo dos preços dos imóveis – em produtos estruturados que abriram novos espaços para à atuação dos bancos.

À acentuação do déficit nas transações correntes dos Estados Unidos correspondiam superávits cada vez mais amplos nos países emergentes e no Japão, com um notável acúmulo de reservas oficiais, em um contexto de expansão relativamente moderada e pouco rápida da demanda interna por consumo e por índices de poupança superiores àqueles, ainda que elevados, dos investimentos; também para os países produtores de petróleo se registrava um amplo incremento dos superávits comerciais, dados os aumentos de preço decorrentes da expansão da demanda global.

O aumento da liquidez internacional, ligado aos crescentes desequilíbrios dos pagamentos e à política monetária conciliatória do FED (que, dada a reduzida flexibilidade das moedas dos países emergentes e particularmente do renmimbi chinês, contribuiu para o crescimento da atividade econômica global), determinou um período prolongado, entre 2004 e 2007, de baixa volatilidade dos preços nos mercados financeiros e baixos rendimentos nominais, mesmo para os fortes investimentos nos títulos de renda fixa, por parte quer de investidores institucionais, quer de países que tinham acumulado níveis elevados de reservas, diante de amplos e crescentes superávits nas transações correntes.

Decorreu daí a busca por investimentos – mesmo por parte de bancos internacionais e de outros países ou de intermediários financeiros por eles controlados – com perfis de risco e rendimentos mais altos, aos quais veio atender a oferta de instrumentos financeiros estruturados, com garantia expressa sobretudo, embora não somente, por financiamentos imobiliários concedidos mediante loan-to-value ratios, superiores até a 100%, na expectativa falaciosa de uma tendência ininterrupta de alta nos preços dos imóveis.

A forte expressão da demanda global deu lugar a pressões inflacionárias, às quais as autoridades de política monetária reagiram, até para coibir possíveis efeitos sobre os preços internos decorrentes de aumentos nos preços do petróleo e das matérias-primas determinados por essa mesma expansão; ao aumento dos juros seguiu-se o progressivo esvaziamento da bolha imobiliária, e essa por sua vez se refletia com um efeito dominó nos produtos estruturados, constituídos sobretudo no setor dos empréstimos subprime, com maior risco de inadimplência.

Isso desencadeou, no verão de 2007, a crise financeira, que, apesar da pronta e maciça resposta dos bancos centrais, se transformou pouco a pouco numa crise global, no âmbito dos setores produtivos e das economias.

Nesse quadro, desempenhou papel fundamental uma regulamentação do sistema financeiro arquejante, quando não totalmente ausente em alguns setores do mercado; o comportamento especulativo, o aumento da alavancagem, as pró-ciclicidades de diferentes naturezas existentes até em âmbito institucional, para além das decisões dos operadores, amplificaram os impulsos centrífugos. Em sua base, porém, permanecem os amplos e crescentes desequilíbrios que, não coibidos, foram se afirmando nas transações comerciais e correntes dos países que integram a economia mundial.

Aspectos do malogro das previsões

As previsões macroeconômicas – tanto aquelas elaboradas por analistas privados como as elaboradas por instituições de pesquisa e de políticas públicas, nacionais e internacionais – são geralmente efetuadas mediante modelos estatístico-econométricos estimados com base em "séries históricas", dados relativos ao desenvolvimento passado das variáveis econômicas, financeiras e demográficas que, segundo a teoria, ou a experiência estatística, se destacam na determinação das variáveis que são objeto de previsão. Além dos vínculos sugeridos pela teoria subjacente a eles, esses modelos levam em conta, em diferentes medidas, o papel das instituições, das regras que prevalecem nos mercados, das modalidades de intervenção da política econômica. Se as especificações e os vínculos contábeis existem em quantidade capaz de produzir uma não linearidade que amiúde os modelos econométricos levam em conta, é preciso, entretanto, prestar muita atenção, de maneira essencialmente arbitrária, às não linearidades fundamentais, aquelas ligadas a verdadeiras mudanças de regime e que "não se encontram nos dados". As previsões, portanto, são exercícios condicionais, realizados a partir de determinadas condições iniciais das variáveis endógenas "explicadas" pelo modelo (os dados observados na hora de efetuar a previsão), de variáveis "exógenas" (ou seja, cujos desdobramentos são considerados essencialmente independentes daqueles das variáveis endógenas), de políticas que acreditamos irão prevalecer no futuro, assim como a partir de intervenções voltadas a remediar, na medida do possível, a substancial "linearidade" dos esquemas empregados. Se olharmos para seu desempenho, os erros de previsão de variáveis agregadas como o PIB tendem a ser, embora com limites e exceções, relativamente reduzidos, embora não negligenciáveis (e crescentes em consonância com o crescimento do horizonte da previsão). Isso é o que se pode observar no Gráfico 7, que compara, com referência à Itália, os erros médios de diferentes previsores ao longo do período 1999-2007.


É indubitável, no entanto, que as previsões tardaram a refletir as consequências da crise financeira para o desenvolvimento da atividade econômica. Nos primeiros meses de 2008, quando os mercados interbancários viviam tensões excepcionalmente altas havia já um semestre, contagiando gradualmente outros setores, operadores profissionais recenseados por Consensus Economics avaliavam que o índice de crescimento médio do produto previsto para 2009 estaria próximo de 3% nos Estados Unidos, 2% na zona do euro e 1,5% na Itália. No decorrer de 2008, com a acumulação de reiterados sinais negativos e em piora sistemática quanto ao estado da economia mundial, as estimativas foram, sim, revistas para baixo, mas, até o outono, apenas muito lentamente; ainda em outubro (o mês seguinte àquele da quebra do Lehman Brothers), os analistas esperavam uma dinâmica positiva, embora comedida, do PIB dos Estados Unidos, da zona do euro e da Itália. Ora, à distância de mais de um ano e meio da eclosão da crise, prevê-se uma contração do produto para 2009 da ordem de 2% ou mais em todas as três economias mencionadas. No espaço de um ano, as previsões de crescimento do PIB foram, portanto, revistas para baixo em 4-5 pontos porcentuais; trata-se de correções de relevância extraordinária (Gráficos 8 e 9).



Olhando para os últimos 18 meses, o processo de adequação das previsões pode parecer hoje, com o conhecimento do que veio depois, incapaz de acompanhar o passo da rápida sequência dos acontecimentos, culpado que é de ter avalizado com obstinada miopia, até há poucos meses, a avaliação de que a freada na economia seria breve e de intensidade reduzida.

Os modelos de previsão já passaram por episódios de dificuldade aguda no passado, em especial na presença de choques amplos e nunca antes experimentados; precisamente o esforço voltado para a superação das carências que esses episódios demonstraram constituiu um dos principais impulsos evolucionais no campo do desenvolvimento dos instrumentos de previsão; aspectos e mecanismos anteriormente negligenciados e que se revelaram inopinadamente relevantes foram pouco a pouco introduzidos nas gerações seguintes de modelos macroeconômicos. Ademais, a consciência de que todos os instrumentos de previsão fundamentam-se necessariamente em um conhecimento incompleto e provisório de um mundo em transformação contínua aconselha faz tempo a adoção de uma abordagem fundamentada em uma pluralidade de controles cruzados. De um lado, isso constitui uma espécie de autotutela em relação ao risco de que os paradigmas teóricos subjacentes à representação aproximada da realidade implícita no modelo possam revelar-se particularmente inadequados em situações específicas. De outro, o emprego de diversos instrumentos – dos grandes modelos econométricos na tradição de Klein, Ando e Modigliani aos novos modelos dinâmicos estocásticos de equilíbrio geral (DSGE), passando por modelos sobretudo estatísticos, como os sistemas de autorregressão vetorial (ARV) – permite filtrar e interpretar com maior eficácia a grande quantidade de informações disponíveis, sempre parciais e fragmentárias, quando não contraditórias.

Citando, todavia, Herbert Simon (1981):

As boas previsões têm dois requisitos que muitas vezes são difíceis de ser satisfeitos. Em primeiro lugar, elas requerem uma compreensão teórica do fenômeno a ser previsto, como base do modelo de previsão, ou então fenômenos que sejam suficientemente regulares para poderem ser simplesmente extrapolados. Já que a segunda condição é raramente satisfeita por dados concernentes aos negócios humanos (ou mesmo às condições atmosféricas), nossas previsões serão boas, em geral, apenas na mesma medida em que nossas teorias o sejam. O segundo requisito para a boa previsão consiste em dispor de dados confiáveis referentes às condições iniciais, o ponto a partir do qual se começa a efetuar a extrapolação.

Com efeito, a incubação dessa crise desenvolveu-se por um bom tempo em um âmbito que está fora das capacidades cognitivas dos modelos macroeconômicos, e se caracterizou por uma difusa opacidade quanto às efetivas condições de saúde individuais de mercados e operadores. A presença dos chamados ativos tóxicos nos balanços dos bancos era conhecida; mas se ignorava sua consistência agregada e, mais ainda, sua distribuição entre os intermediários. Se, de um lado, as repercussões macroeconômicas pareciam inevitáveis; de outro, só se tornou possível avaliá-las com maior precisão depois que o alcance das dificuldades do sistema bancário se delineou com clareza no outono de 2008, criando pânico disseminado e um crescimento repentino e generalizado da aversão ao risco. Até mesmo a natureza global da crise só se definiu em época relativamente recente: de início, considerava-se possível, salvo em ou outro caso, que ela viesse a ficar confinada quase exclusivamente no âmbito nacional estadunidense, e que as economias emergentes permanecessem relativamente imunes a ela (hipótese denominada decoupling, por muito tempo considerada plausível por alguns observadores). Só recentemente tornou-se evidente para todos que isso não está acontecendo, que a economia internacional por inteiro está em acentuada piora.

Ainda assim, a incapacidade de prever a evolução da crise ora em curso é inegável. Em minha opinião, ela refletiu sobretudo limitações e carências em três aspectos da prática de fazer previsões a partir de modelos. Em primeiro lugar, na presença de desenvolvimentos excepcionais a ponto de constituírem um momento de descontinuidade com o passado, faltando-lhes, assim, a regularidade estatística a que Simon se referia. Os modelos, estimados com base em dados que pertencem claramente a uma população diferente daquela que é objeto da previsão, deixam de fornecer uma representação confiável do funcionamento da economia, amiúde sem nem sequer produzir indicações úteis para a identificação de intervenções corretivas que poderiam limitar suas inadequações. Em segundo lugar, na fruição das previsões, e muito mais nas recordações que delas se guarda a posteriori, a atenção se concentra inevitavelmente na avaliação numérica (portanto, numa aparência enganosa de precisão segura) do resultado considerado mais provável (a avaliação a que chamamos "pontual"), ao passo que se ignoram ou, de todo modo, se esquecem rapidamente as considerações relativas aos riscos da previsão, os sinais de perigo veiculados por cenários alternativos ao cenário central, que ainda assim constituem um instrumental sistemático das análises que conduzem às previsões. Em terceiro lugar, enfim, a geração corrente de modelos da economia revelou-se falha, sobretudo na representação dos aspectos que mais contam na transmissão da crise hoje em andamento, ou seja, aqueles que concernem às inter-relações entre mercados financeiros e economia real.

Regularidade e descontinuidade

Quanto à primeira das três carências que mencionei, os sistemas econômicos evoluem e se transformam sem cessar, afetados por modificações dos arranjos institucionais, das disposições legislativas e da regulamentação dos mercados, assim como pela introdução de novos paradigmas tecnológicos, de mudanças dos objetivos, de estratégias e modalidades de intervenção por parte das autoridades que formulam as policies. As transformações no quadro de referência das decisões dos agentes econômicos (consumidores, empresas) induzem, por sua vez, mudanças de comportamento. Quando a descontinuidade com o passado é elevada, essas mudanças podem ser de amplo alcance, de tal modo que o passado deixa de ser um guia confiável. Os modelos – que por definição refletem a experiência histórica nos valores dos parâmetros, estimados para as relações comportamentais, calibrados para os mecanismos institucionais – são, portanto, confiáveis nas situações de business as usual, ou seja, até que o sistema por eles descrito não seja submetido a solicitações insólitas. Nessas condições, porém, sua contribuição para a formulação de decisões apropriadas é, pode-se argumentar, limitado. Eles se tornam, ao contrário, não confiáveis precisamente quando, em decorrência do aparecimento de indicações de descontinuidades estruturais, a necessidade de prever o futuro é mais aguda e os benefícios de uma previsão correta são, portanto, mais elevados. A questão é que justamente essas descontinuidades colocam em discussão a utilização dos modelos com finalidades extrapolativas essencialmente mecânicas.

A incapacidade de os modelos enfrentarem modificações nos sistemas que descrevem reflete, em boa medida, as próprias modalidades de representação dos fenômenos econômicos, fundamentadas na utilização de técnicas estatístico-econométricas apropriadas para reproduzir, com base em um número necessariamente limitado de parâmetros, relações suficientemente estáveis no tempo. Eventuais observações anômalas, não coerentes com os mecanismos preponderantemente em uso no período histórico considerado para a avaliação econométrica, são amiúde negligenciadas: seu conteúdo informativo é neutralizado e o modelo não pode, portanto, levá-lo em conta. São, porém, precisamente esses desvios da norma que poderiam, antes, fornecer indicações preciosas sobre o comportamento da economia em condições diferentes daquelas habitualmente predominantes. Por sua vez, a observação episódica de fenômenos excepcionais não permite que se apreendam as inter-relações, não raro complexas, que ligam entre si as variáveis econômicas; só o acúmulo de um número bastante amplo de levantamentos permite obter uma estimativa estatisticamente confiável dos parâmetros de um modelo. Essa limitação reflete uma característica mais geral da análise quantitativa dos fenômenos econômicos: a dificuldade de realizar uma inferência estatística com dados que não sejam frutos de experimentos planejados e diretamente controlados pelo pesquisador. Condições excepcionais não podem ser recriadas à vontade em laboratório, apenas para fins cognitivos; nesse campo, nossa experiência permanece necessariamente limitada, parcial e episódica. É indispensável recorrer, portanto, a informações externas ao modelo, recorrendo, sempre que possível, à experiência histórica, intervindo com base na teoria e no bom senso.

Um obstáculo adicional para que se reconhecesse o aparecimento de problemas de estabilidade e, portanto, para a eventual adoção de intervenções corretivas é dado pela natureza da informação econômica, fragmentária, disponível com atrasos variáveis, caracterizada muitas vezes por uma ampla margem de aproximação, reduzida a seguir, mas em prazos muito longos. Na ausência de informações meticulosas, tempestivas e confiáveis sobre o que está de fato acontecendo, é possível que um episódio de descontinuidade estrutural não seja efetivamente reconhecido como tal, a não ser muito tempo depois de sua primeira manifestação. Essas considerações não implicam, no entanto, que modelos de previsão estruturais (isto é, modelos cujas relações não são mero reflexo estatístico das interações entre variáveis, mas representam em forma quantitativa, ainda que aproximada, mecanismos comportamentais) se tornem absolutamente inutilizáveis após um rompimento (verdadeiro ou aparente) das relações que os compõem.

Para reconhecer eventuais anomalias nas relações entre variáveis (e, portanto, para que possam ser preparadas eventuais contramedidas, adaptando e atualizando os instrumentos disponíveis ou desenvolvendo novos) é, de fato, indispensável que se disponha de um instrumento capaz de representar de modo confiável as relações entre variáveis predominantes em condições de "normalidade". Essa função de sinalização é, já em si, extremamente relevante. Os modelos estruturais, além disso, permitem acompanhar a rede de nexos causais que ligam entre si variáveis de interesse específicas. Por isso, eles não se limitam a sinalizar o aparecimento de eventuais descontinuidades, mas ajudam a identificar em que específica relação comportamental da cadeia causal descrita pelos modelos se manifestaram mudanças com relação ao passado. Torna-se possível, desse modo, circunscrever a região atingida pela descontinuidade, identificando com maior rapidez e facilidade sua possível natureza, e concentrar mais eficazmente os esforços visando à sua superação.

Enfim, uma vez identificada a natureza da possível descontinuidade, a própria estrutura do modelo pode sugerir de que maneira avaliar suas consequências sobre a previsão em si, explorando outras relações ainda válidas. Na crise que hoje atravessamos, nem todas as relações comportamentais dos modelos utilizados foram atingidas na mesma medida; aquelas cuja confiabilidade parece largamente intacta poderão talvez sugerir, à espera de soluções mais sistemáticas e radicais, como corrigir as respostas produzidas pelas relações que, ao contrário, apresentam maiores dificuldades de adaptação à nova situação. É particularmente útil procurar decompor os erros de previsão, ou as revisões das previsões, nos principais fatores que os determinaram: as hipóteses sobre as políticas (especialmente aquelas de balanço, mas também as expectativas de mercado com relação à política monetária); as variáveis exógenas (por exemplo, as hipóteses relativas à evolução dos preços do petróleo ou da demanda mundial, para as quais o Banco da Itália, assim como outros bancos centrais nacionais, só pode seguir, apesar das possíveis diferenças de opinião, as avaliações acordadas no âmbito do sistema do euro); as variações das "condições iniciais", frisadas por Simon (Gráficos 10 e 11).



Para avaliar a importância das condições iniciais, consideremos o Gráfico 12, que reproduz a previsão do crescimento do PIB na Itália, apresentada no Boletim Econômico do Banco da Itália de janeiro passado. Como as pessoas provavelmente recordam, para 2009 ela indicava uma flexão igual a 2%, e uma retomada do crescimento de 0,5% em 2010. Assumia particular importância nesse quadro o prolongamento do resultado bastante negativo estimado para o quarto trimestre de 2008. Na realidade, os dados publicados pelo Istat resultaram, para esse trimestre, ainda mais negativos, reflexo da subestimação, no modelo, da evolução da demanda mundial. Levando isso "mecanicamente" em conta, e mantendo o perfil de uma gradual, mas contínua, saída da crise implícito no exercício de previsão de janeiro, vê-se como, de uma queda do PIB de 2%, passamos para uma queda de 2,6% neste ano.


O caminho mais seguro para enfrentar os problemas gerados pela manifestação de descontinuidade só pode consistir numa melhor compreensão de sua natureza e, portanto, na elaboração analítica e na especificação de modelos cujas relações se fundamentem em parâmetros estáveis no tempo. Assim, o objetivo da pesquisa há de ser a identificação de mecanismos profundos o bastante, que possam ser razoavelmente considerados invariáveis no tempo.

Comunicação e utilização das previsões

Um aspecto que, no contexto atual, demonstrou evidentes carências situa-se entre a produção das previsões e sua utilização: a atenção dos utilizadores finais (autoridades de política econômica, observadores profissionais e grande público) concentra-se na síntese numérica do quadro central ou "de base" da previsão (ou seja, o que é considerado o mais provável), embora os produtos da previsão sejam amiúde articulados de maneira mais rica, incluindo uma avaliação da dimensão e da direção dos riscos que cercam a estimativa pontual. Tal avaliação em geral consiste em relatar os resultados de projeções realizadas com base em hipóteses alternativas, consideradas menos prováveis, mas, de todo modo, dignas de exame, sobretudo em vista do custo macroeconômico, não raro elevado, de sua eventual realização – ainda que relativamente pouco provável. Quase todos os relatórios de previsão dos últimos anos apontaram sistematicamente para o risco de que a evolução da atividade econômica pudesse resultar inferior àquela esboçada pela projeção central, e de que as temidas correções para baixo da demanda e do produto se manifestassem também de forma repentina e traumática. Esses perigos vinculavam-se sobretudo à insustentabilidade dos desequilíbrios globais e a uma repentina tendência à sua reabsorção, com oscilações violentas da atividade produtiva nas principais áreas econômicas, assim como das relações de troca entre elas.

Quando os perigos para os quais repetidos alarmes alertaram parecem jamais se concretizar, é quase inevitável que, com o passar do tempo, esses alarmes sejam ignorados. As consequências dessa postura natural podem, no entanto, ser particularmente graves e de efeito explosivo: à longa acumulação de tensões não raro se seguem explosões, tanto mais violentas e traumáticas quanto mais tardarem a manifestar-se. O ensinamento que talvez tenhamos de tirar da experiência recente é o de que uma previsão sempre deve ser comunicada e acatada em sua inteireza: não só, portanto, seu valor numérico central, mas também as avaliações quanto aos riscos preponderantes, em sua dimensão e probabilidade de se realizar. Quando os perigos associados a cenários alternativos são excepcionalmente graves, ainda que pouco verossímeis, pode ser oportuna a adoção de políticas subótimas – na eventualidade de a previsão central realizar-se –, mas capazes de fornecer uma proteção cautelar no que tange à realização de eventos extremos. Em épocas tranquilas, é por certo desagradável ter de renunciar, com finalidades por assim dizer securitárias, a parte dos benefícios ligados às ações que tendem a ser mais adequadas. Mas os episódios de crise nos lembram que não estarmos preparados para o pior pode implicar custos extremamente elevados. Isso requer não só que os utilizadores das previsões prestem maior atenção à análise dos riscos, mas também que os previsores saibam transmitir com mais força e determinação o próprio recado, modulando adequadamente os sinais de alarme.

A interação não linear entre variáveis financeiras e reais

Enfim, a crise atual manifestou-se em correlação comum cerne particularmente fraco e pouco desenvolvido dos modelos macroeconômicos em uso: o da interação entre as grandezas financeiras e o setor real. É aqui que a observação de Simon relativa à correspondência entre capacidade de previsão e qualidade da teoria "contida" em um modelo assume peculiar validade. O re-exame crítico da experiência histórica indica, entre outras coisas, que as crises financeiras – em particular quando elas, como é o caso presente, atingiram com violência o setor bancário – tiveram em geral consequências severas (profundas e particularmente prolongadas) para as economias reais. Se podemos considerar que a influência das variáveis macroeconômicas (preços, demanda, produto) sobre as financeiras é relativamente bem apreendida pelos instrumentos de previsão disponíveis, nossa compreensão é muito mais limitada e carente no que tange à relação inversa (precisamente a direção principal ao longo da qual a crise até agora se desenrolou), representada amiúde cruamente na maioria dos modelos.

As tensões encontradas pelas instituições de crédito do mercado interbancário na captação de recursos têm evidentemente impacto nas decisões de investimento das empresas e de consumo das famílias. Avaliar esses impactos não é coisa simples, não com os conhecimentos que possuímos no momento. Quem tentou quantificar as consequências da crise esbarrou de imediato nos limites evidentes dos instrumentos ora disponíveis: falta, ou ainda é muito rudimentar, uma representação dos vínculos entre o racionamento dos empréstimos e as variações no valor dos ativos que podem ser utilizados como colaterais, de um lado, e as medidas da economia real, de outro. Essas carências cognitivas são enfrentadas adaptando-se, necessariamente com base em hipóteses ad hoc, os instrumentos existentes; isso é o que foi feito na produção da previsão transcrita no Gráfico 12, no qual se procurou levar em conta a forte queda da confiança que se seguiu à falência do Lehman Brothers. Levanta-se, especialmente, a hipótese de que os maiores custos de captação dos intermediários se refletem numa dinâmica dos juros médios sobre os empréstimos maior do que aquela definida apenas em razão dos jurosde policy, obtidos quantificando-se uma relação entre a exposição ao risco dos operadores financeiros, evidenciada pelo aumento dos spreads das obrigações, e os custos de financiamento para famílias e empresas. Quanto ao efeito de tensões do lado da oferta de crédito, como as que afloraram das informações de caráter qualitativo deduzidas da pesquisa sobre o crédito bancário, procurou-se levá-las em conta em uma relação que associa um índice sintético, construído com base nos resultados dessa pesquisa, aos erros de previsão da equação que explica a evolução dos investimentos em máquinas e equipamentos.

Obviamente recorrer a intervenções ad hoc desse tipo, embora necessário e possível no uso de modelos econométricos como aquele aqui considerado, não pode ser a solução definitiva. Tentativas de ultrapassar esses limites já foram empreendidas por inúmeros pesquisadores que atuam em centros de pesquisa e em instituições responsáveis pelas políticas; os esforços nessa direção se multiplicarão nos próximos anos. Urge sobretudo melhorar ainda a compreensão de como a evolução do quadro macroeconômico influi na estabilidade do sistema financeiro e no estado de saúde dos intermediários bancários, em especial quando se verificam eventos extremos. Avaliações periódicas nesse sentido já são efetuadas, há alguns anos, também no âmbito de projetos coordenados por organismos internacionais; é necessário que também essas averiguações se tornem mais sistemáticas, se intensifiquem e se fortaleçam. Mas a grave dificuldade encontrada pelos modelos econométricos na previsão dos efeitos da crise financeira poderia até levar ao re-exame de alguns paradigmas teóricos relativos ao papel que risco e incerteza têm nas decisões, não apenas financeiras, dos agentes econômicos, particularmente em momentos de fortes desvios das condições normais. Obviamente isso implica discutir questões bastante complexas, como a possibilidade de se recorrer, na medida das probabilidades de um credit crunch (e de seus efeitos não lineares sobre investimentos e produção), aos próprios dados observados no mercado de crédito.

Considerações finais sobre modelos e previsões

Os amplos, e sobretudo crescentes, desequilíbrios nos balanços de pagamento correntes, os índices de poupança demasiado baixos e o endividamento excessivo das famílias americanas, assim como de outros países, bem como o crescimento prolongado e bastante intenso da economia mundial – tudo isso sinalizava havia tempo a insustentabilidade das condições predominantes nos mercados globais e riscos excessivos não negligenciáveis, nem sequer para uma zona como a do euro, essencialmente em equilíbrio nas contas com o exterior e estável no plano monetário. A gravidade da crise daí decorrente foi, no entanto, muito além das previsões, e sua dinâmica enfatizou vazios de informação significativos, sobretudo com referência à atuação das estruturas financeiras e às interações entre finanças e economia. Ainda que não tenham faltado previsões e avaliações particularmente pessimistas, e em alguns casos bastante apuradas – tanto com relação à dinâmica quanto aos efeitos da crise em andamento desde o verão de 2007 –, elas foram quase todas apresentadas, e talvez não pudesse ser de outro modo, como riscos mais ou menos elevados de desvio com relação a uma tendência central decerto negativa, mas não dramática. A resposta das políticas econômicas, ainda que rápida na componente monetária, de amplo espectro na revisão das regras e da governança de mercados e instituições financeiras, e em geral imponente no plano dos balanços públicos, correntes e sobretudo perspectivos, ainda não conseguiu coibir a progressiva perda de confiança, que se desloca cada vez mais dos intermediários financeiros em direção à economia real. É cedo, no entanto, não só para avaliar os efeitos das políticas, como também para tirar lições profundas dos modos e dos prazos que caracterizam uma crise como a atual, que já apresenta dimensões globais. No entanto, o risco de sairmos dela lentamente e com uma retomada de tendência moderada é bastante alto.

Em geral, os efeitos das ações de política econômica não são, de todo modo, imediatos; de hábito, ao contrário, eles se produzem com atrasos até notáveis com relação ao momento das decisões. Para formular decisões de maneira cautelosa é indispensável, portanto, dispor de avaliações perspectivas das condições e das tendências que prevalecerão no futuro. O governo da economia requer, portanto, inevitavelmente, a utilização de modelos capazes de produzir previsões as mais confiáveis; a agregação e a organização de um grande número de informações diferentes; e requer, ainda, que se assinalem a tempo eventuais desvios dos comportamentos predominantes no passado. Sob esse aspecto, sigo convicto de que um modelo econométrico, se utilizado de maneira inteligente e não mecânica, constitui instrumento precioso de avaliação quantitativa.

Quando um instrumento de previsão se demonstra incapaz de fornecer indicações corretas, não é útil concluir que a política econômica deveria deixar de buscar o auxílio dos modelos; não existe, na realidade, nenhuma alternativa viável ao refinamento daqueles existentes, à superação das carências que demonstraram. Isso requer a compreensão da origem e da natureza dos erros e, portanto, o desenvolvimento de esquemas interpretativos originais e técnicas inovadoras que, por sua vez, deverão ser deixados de lado quando choques inéditos trouxerem à luz, no futuro, os limites também dessa nova geração de modelos.

As deficiências dos instrumentos de análise de previsão são claras; as soluções já se deixam, em parte, esboçar; é necessário que os esforços nas direções apontadas sejam rápidos e intensos. O governo da economia não pode abrir mão por muito tempo – muito menos quando o presente é tempestuoso e as perspectivas, incertas – de indicações quantitativas confiáveis, como são aquelas que só modelos afinados pela experiência podem fornecer. Obviamente, para serem úteis à política econômica, as previsões, ainda que condicionais, deverão ser produzidas recorrendo-se também a informações estranhas aos modelos atualmente disponíveis, além de ao julgamento fundamentado na experiência e na reflexão teórica; deverão ser, como disse, "não mecânicas". De fato, ainda não chegou o tempo, auspiciado por Keynes, de considerar o "problema econômico" nos moldes de "um problema para especialistas, como o tratamento dos dentes". Infelizmente, como a crise que nos atingiu demonstra tão bem, ainda não vivemos naquele tempo "maravilhoso" em que os economistas conseguirão "fazer que sejam considerados gente humilde, de competência especifica, no plano dos dentistas".

Notas

Recebido em 24.5.2009 e aceito em 26.5.2009.

Tradução de Roberta Barni. O original em italiano – "La crisi finanziaria e le previsioni degli economisti" – encontra-se à disposição do leitor no IEA-USP para eventual consulta. Revisão técnica de Leda Paulani.

Ignazio Visco é vice-diretor geral do Banca d'Italia. Foi economista-chefe da Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE). @ – bancaditalia@pec.bancaditalia.it

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  • 1
    Aula inaugural do Mestrado de Nível II em Economia Pública, ano acadêmico 2008-2009, Faculdade de Economia, Università degli Studi de Roma "La Sapienza", 4 de março de 2009. Agradeço a todos as muitas discussões sobre as diferentes partes desta minha intervenção, e também o auxílio que recebi em muitas de suas passagens, embora seja eu o único responsável pelas teses aqui expostas: Fabio Busetti, Michele Caivano, Eugenio Gaiotti, Alberto Locarno, Sergio Nicoletti Altimari, Patrizio Pagano, Fabio Pagnetta e Stefano Siviero.
  • 2
    O autor refere-se a instituições que operam no mercado financeiro, incluindo as bancárias (bancos comerciais e bancos de investimentos) e as não bancárias como sociedades de investimento, fundos de pensão, fundos mútuos, fundos de
    hedge etc. (N.T.)
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      11 Mar 2010
    • Data do Fascículo
      2009
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