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Cyro dos Anjos e O amanuense Belmiro

Resumos

O texto aborda a linguagem de essencialidade machadiana de Cyro dos Anjos e, em seguida, parte para uma interpretação de O amanuense Belmiro, livro insuperável na carreira do autor. Enveredando por caminho inédito na fortuna crítica do romance, que é considerável, propõe uma leitura estrutural que subverte a visão que veio se firmando sobre a obra, revelando-a de dimensões bem mais amplas, debaixo de sol forte, como recriação brasileira do quixotismo de Miguel de Cervantes.

Minas Gerais; Idealidade; Quixotismo; Linguagem


The paper discusses Cyro dos Anjos' essentiality on Machado de Assis' language style, and later interprets Cyro's masterpiece O amanuense Belmiro [Amanuensis Belmiro]. Following an unprecedented path through the considerable novel's criticism wealth, this paper takes a structural approach which subverts the signed visions on the work, revealing and broadening its size, under the blazing sun, as a Brazilian Miguel de Cervantes' quixotic recreation.

Minas Gerais; Ideality; Quixotic; Language


LITERATURA

Cyro dos Anjos e O amanuense Belmiro

Rui Mourão

RESUMO

O texto aborda a linguagem de essencialidade machadiana de Cyro dos Anjos e, em seguida, parte para uma interpretação de O amanuense Belmiro, livro insuperável na carreira do autor. Enveredando por caminho inédito na fortuna crítica do romance, que é considerável, propõe uma leitura estrutural que subverte a visão que veio se firmando sobre a obra, revelando-a de dimensões bem mais amplas, debaixo de sol forte, como recriação brasileira do quixotismo de Miguel de Cervantes.

Palavras-chave: Minas Gerais, Idealidade, Quixotismo, Linguagem.

OUVI PELA primeira vez o nome Cyro dos Anjos quando, na companhia de um grupo de jovens, vivíamos a emoção da descoberta da literatura e sonhávamos com a possibilidade de nos tonarmos escritores. O romancista, àquela altura, já se convertera em grande legenda. Havendo ocupado posições de destaque em Minas Gerais, durante o governo de Benedito Valadares, exercia o cargo de presidente do antigo Instituto de Pensões e Aposentadoria dos Funcionários Públicos (Ipase), no Rio de Janeiro, e o seu livro O amanuense Belmiro, que sensibilizou uma geração inteira, por todo lado era apontado como obra-prima. Foi com a emoção de quem se aproximava de um monstro sagrado que me entreguei à sua leitura e, em seguida, passei a devorar Abdias. Procurando entender a experiência do romancista, que sabia como ninguém caracterizar personagens líricos às voltas com o drama da sua adaptação ao mundo de convenções e banalidades cotidianas, aprendi a ter olhos mineiros, a compreender que a sensibilidade não é apenas dom natural, mas constitui, especialmente, uma conquista do espírito.

A maneira de Cyro representar a realidade corria paralela à de Lúcio Cardoso e Cornélio Pena, que noutra vertente ofereciam diverso modelo de mineiridade. A força de radical aprofundamento psicológico e mergulho no inconsciente, destes últimos, contrastava com a leveza da arte de um ficcionista voltado para o cotidiano, preocupado, antes de mais nada, em levantar a imagem sensível do que acontecia à sua volta na capital ainda provinciana. Em nosso empenho de comparar para melhor entender o que desejávamos aprender, pudemos verificar o quanto o grupo mineiro se diferençava dos criadores nordestinos, outra corrente vitoriosa que desde 1930 açambarcava as atenções com uma narrativa de decidida vocação sociológica. Os mineiros concentravam-se na interpretação do ser, impondo certo distanciamento entre o individual e o coletivo. Os representantes do latifúndio da região açucareira extrovertiam-se inteiramente para exprimir formas de estar, o homem em conflito com a terra, mediante uma participação tão grande que a expressão do drama individual já se confundia com a expressão do drama do agrupamento regional. Mesmo Graciliano Ramos, que procurava refratar pela subjetividade os acontecimentos de ordem social - e, em consequência, desenvolvia trabalho de grande rendimento no plano construtivo - não chegaria a representar uma ponte que pudesse, mesmo remotamente, estabelecer ligação entre o que produziam homens que se agitavam ao influxo de forte vitalismo e o que produziam homens desenraizados do viver provisório, voltados mais para a meditação e o espiritualismo.

Tive oportunidade de conviver pessoalmente com Cyro dos Anjos na Universidade de Brasília, onde ele coordenava o Tronco de Letras. Eu dava aulas no setor de Literatura Brasileira. Fizemos boa camaradagem, que não ficou restrita às lides acadêmicas. Graças à vizinhança de quadras - os nossos apartamentos estavam localizados na 306 o meu, na 305 o dele - no período em que o escritor administrava convalescença de acidente cardiovascular, praticamos juntos extensas caminhadas vespertinas. Avançando pelas passarelas cimentadas de edifícios que pareciam sempre as mesmas e conduziam a espaços monotonamente muito identificados, perscrutávamos o passado por ele vivido em Minas Gerais, comentávamos as perplexidades do trabalho no campus, falávamos de literatura e de escritores. Cyro levou-me à gráfica da universidade para mostrar a luxuosa e criativa edição dos 12 poemas coronários, em fase de preparo. O humor sarcástico que em particular se desenrustia, a malícia na contemplação de espetáculos pouco meritórios da conduta humana, a agudeza de observação e de análise conferiam riqueza e exuberância aos desempenhos do grande conversado.

O curso por ele oferecido na universidade era de criação literária. Não tenho informações seguras sobre a orientação que dava às aulas. Como sabia do seu interesse em apresentar para alunos o trabalho de depuração de texto, suponho que o objetivo final da atividade em classe se confundia com a intenção de passar adiante a experiência do seu artesanato de criador. Devia ser qualquer coisa parecida com a prática da transmissão de conhecimentos realizada nas oficinas de arte e artesanato medievais, onde a relação entre mestre e discípulo se desenvolvia por meio da própria fenomenologia do fazer. Naquela época, Cyro havia dado por concluída a elaboração de Explorações no tempo, ocupação obstinada, que fora diariamente enfrentada com o emprego das suas armas mais afiadas e de maior poder de fogo e que não tivera, como era hábito nas suas tarefas de escrita, prazo para terminar. Para ele, a realização de cada página, antes de converter-se em triunfo, constituía uma batalha de vida e morte, desgastante mas necessária, que o fazia sofrer. Confessou-me que certos capítulos desse livro de memórias chegaram a ser reescritos até trinta vezes. As várias versões iam sendo guardadas numa caixa. Era invejável a sua olímpica disposição de não temer jamais recomeçar do zero, de partir infatigavelmente em busca da pureza ideal, da perfeição ideal, mesmo sabendo, por antecipação, que o destino desses valores absolutos seria continuar para serem eternamente procurados. O que o levou a suspender a pena no caso de Explorações no tempo - como de resto acontecia com relação a qualquer texto - foi o reconhecimento da existência de um limite para as possibilidades humanas. Ele se interrompeu ao perceber que as últimas propostas, em vez de significarem avanço, começavam a piorar o escrito.

Cyro dos Anjos foi, entre nós, o mais destacado representante da gloriosa estirpe de torturados pela composição cuja ascendência mais ilustre se encontra em Gustave Flaubert. O entendimento vulgar supõe que a obstinação desse tipo de escritor se exerça apenas no nível raso das preocupações com a construção da frase, a busca do ritmo, da propriedade vocabular e da correção gramatical. Isso porque ainda se pensa muito numa estrutura significante independente de uma estrutura de significado, como se fosse possível, por exemplo, na realidade concreta do ser humano, fazer distinção entre corpo e espírito. O esforço sem tréguas de Cyro dos Anjos, que para muitos poderia parecer incompreensível, visava à descoberta da sua linguagem, quer dizer, da sua maneira de ver a realidade. O desejo da descoberta dessa dimensão é que a movia e o deixava, com estoicismo de verdadeiro asceta, disposto aos maiores sacrifícios.

Trazendo para a interpretação dos fatos forte carga de subjetividade, ele se definia sem dúvida como um expressionista. O seu interesse primordial estava em transmitir uma maneira de encarar o mundo. Na verdade, colocava-se nessa perspectiva com tal rigor que chegava a revelar certa indiferença com relação aos motivos, as provocações externas que o levavam à mesa de trabalho. Tive oportunidade de testemunhar a consequência maior desse posicionamento ao verificar certa autonomia dele com relação ao próprio gênero literário praticado. Foi quando, em Brasília, confiou-me a maneira pela qual optou por escrever A menina do sobrado. Possuía dois projetos, um de ficção, outro memorialístico. Para decidir com qual convinha se comprometer, buscou a solução de tirar a sorte, mediante um jogo de consulta aos arcanos, cujas características não posso mais precisar com segurança. Não me esqueço é do resultado, que se concretizou na mensagem: "É sempre grato recordar". O comportamento punha à mostra a sua concepção de realidade. A despeito de se apresentar com visão racional das coisas e fazer força para iluminar, com o trabalho da linguagem, uma consciência crítica, avaliadora e até desencantada do comportamento humano, o mundo para ele apresentava forte contingente de mistério. A sua escrita convivia com a lógica verossimilhante, com o lírico e, na condição de substrato disso tudo, persistia um potencial de natureza mágica.

O minucioso estudo estilístico que deverá revelar, em termos definitivos, o núcleo da emoção geradora da narrativa de Cyro dos Anjos ainda não foi realizado. Ninguém estará sendo precipitado, entretanto, ao afirmar que o elemento que sobressai de imediato na sua linguagem se relaciona com uma visão mítica da realidade. Trata-se de uma camada sensível que se impõe à leitura mais desarmada. Belo Horizonte - a cidade provinciana da década de 1940, dominada pelo funcionalismo público e vivendo a sua idílica fase pré-industrial, as ruas de pequenas distâncias servidas por bonde, a moldura cinematográfica de montanhas - é um cartão-postal quase utópico que vai se esboçando para a nossa consciência de leitor. O século andava em atraso por aqui. No espaço urbano povoado por seres cheios de compostura tanto no vestir quanto no agir - sobretudo no sonhar -, a classe média procurava administrar o vazio de uma existência sem sentido, por meio do platonismo de amores inalcançáveis e impossíveis.

Há perfeita adequação do instrumental técnico para a expressão desse conteúdo, uma vez que os romances O amanuense Belmiro e Abdias foram concebidos na forma de diário. A subjetividade, que cotidianamente faz o registro do seu envolvimento com a trama, levanta uma concepção de mundo trabalhada por forte carga idealizadora. Quando Cyro deixa a ficção para abraçar o gênero memorialístico, a possibilidade do livre avanço por um tempo interior dilatado acentua ainda mais a tendência anteriormente manifestada. O escritor arrebata a forma do diário das mãos do personagem para assumir em toda a sua abrangência a fala do eu. Essa substituição de autoria foi realizada de maneira quase espontânea, uma vez que a ficção praticada já era de natureza autobiográfica. Confirmando pelo contraste essas observações, podemos considerar o que se passou no caso de Montanha. O relativo fracasso do romance resultou do abandono de uma óptica que nele parecia se confundir com a sua maneira natural de ser. O escritor partiu para a aceitação da crua realidade concreta e histórica, ao tentar retratar o ambiente político mineiro, sem que isso correspondesse a uma evolução da sua linguagem. Acabou caindo nas malhas do modelo narrativo do norte-americano John dos Passos.

Cyro dos Anjos é a expressão mais acabada da linhagem de escritores que veio se formando em Minas Gerais como fruto da cultura regional. O espírito arredio cheio de compostura do nosso povo, a consciência da medida e do desmedido que o leva a refugiar-se na timidez, o apego à ordem e a disciplina como tábua e salvação para enfrentar o mistério que ronda à sua porta deram origem a uma família de laboriosos cultores do texto, de infatigáveis lutadores com a palavra, de conventuais cultores de um estilo refinado que acabou sendo inequívoco sinal de civilização. Permito-me a leitura de trecho de artigo há tempos publicado em que escrevi numa tentativa de levantar as grandes linhas da ficção nesta parte do Brasil.

A fortuna literária montanhesa tem sido feita por um conjunto de escritores cuja mestria artesanal da frase se transforma numa espécie de nossa marca de fábrica. Refiro-me àqueles prosadores contidos e disciplinados, cujos espécimes mais típicos parecem ser Godofredo Rangel, Eduardo Frieiro e Cyro dos Anjos e foram definidos por Antonio Candido como praticante de uma literatura caligráfica, pois a aplicação caprichosa, minuciosa e elegante para o efeito do estilo não deixa de lembrar o amoroso cuidado dos antigos peritos da escrita manual, preocupados com o embelezamento da página.

O esplendor cartesiano da lógica é a virtude mais prezada desses escritores, que estão sempre incansavelmente à cata do termo próprio, da depuração da frase e da elegância do dizer. Há neles uma tendência inegável para certo aristocratismo mental, e, se a esse respeito, a ironia constitui o aliado mais produtivo, a pose de quem deseja "fazer estilo" acaba deixando à mostra o seu rebuscamento. E ao descobrir esse lado maneirista, compreendemos que aquele amor à luminosidade racional nunca conduz às grandes brancuras do ascetismo ou à precisão de um rigor matemático. A amenidade da crônica, o voo rasante do comentário malicioso, a disciplina que mais parece a compostura do pícaro é que conforma a sua verdadeira natureza. Antonio Candido os caracteriza como não machadianos, por entender que são "homens de profundidade demarcada, sem as infindas aberturas para o irracional e o drama", mas creio se impossível admiti-los fora da sombra do patriarca das nossas letras, que foi um gigante de sete faces, podendo se refletir em todos os espelhos. Essa família inteira nasceu fascinada pela postura externa do autor de Memórias póstumas de Brás Cubas e aí permaneceu sem nenhuma tentação mais séria de um escorregão pelos abismos, talvez pelo seu natural pendor para a afabilidade.

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O romance O amanuense Belmiro, obra de estreia, terminou, de forma mais ou menos unânime, consagrada como o ponto culminante da carreira do escritor. Parece inegável, ao escrevê-lo, o criador mineiro estava sendo trabalhado sob a influência de um substrato emotivo nascido da convivência com o maior dos clássicos da literatura espanhola, Dom Quixote de la Mancha, de Miguel de Cervantes Saavedra.

Basicamente, o que Cyro dos Anjos nos apresenta? A história de um homem a caminho da maturidade que, leitor continuado de romances, se torna vítima de um sonho idealizado e, em consequência, se vê arrebatado para fora da realidade cotidiana, com a qual não consegue conviver. À maneira do Cavaleiro da Triste Figura, que elege simples camponesa à condição de mito - Dulcinéia del Toboso, senhora de alta distinção e nobreza - a quem passa a servir, dedicando-lhe as vitórias e conquistas da sua vida aventurosa, o burocrata Belmiro, ao ser tocado pela mão de Carmélia, desconhecida adolescente que dele se aproxima numa festa de Carnaval, dominado por irresistível comoção, em clima de verdadeiro delírio a imagina como a própria encarnação do mito da branca Arabela, que lhe povoara as estórias da infância - "a donzela do castelo que tem uma torre escura onde as andorinhas vão pousar" (Anjos, 1937, p.35) -, e põe-se a partir dali a seu serviço, na condição de apaixonado, dedicando-lhe todos os momentos de um grande desassossego. Até fisicamente Belmiro lembra D. Quixote. O personagem de Cervantes, "rijo de compleição, seco de carnes, enxuto de rosto" (ibidem, p.29), andava por volta dos cinquenta anos. O de Cyro, um pouco mais novo, mas que se acreditava passado em maturidade, espigado, de grande magreza, desconforme, usava colarinho alto e pencenê.

A diferença entre os textos se torna perceptível quando começamos a perceber: o personagem de Cervantes encontra-se no plano da absoluta idealidade, encarando os fatos com a limpeza de olhar que a loucura permite, enquanto o personagem de Cyro, dotado de razão e espírito que jamais abandonam, pisa o chão de uma realidade desconfortável, pela sensação de estar pisando, invariavelmente, a inconsistência da fantasia. No caso de D. Quixote, a ironia do narrador na terceira pessoa comparece para revelar o estado de demência do personagem, conferindo credibilidade à narrativa. No caso do amanuense, o estado de emoção permanente é que produz a verdade psicológica, assegurando autenticidade ao relato de quem fala, sem intermediação, na primeira pessoa, abrindo-se com franqueza para o leitor. Dulcinéia del Toboso é a dama intangível, "princesa e grã-senhora", absolutamente verdadeira, que permanece na retaguarda do herói em estado de impassibilidade e nobreza. A donzela Arabela, ser de imaginação que só em momentos de turbulência dos sentidos convence o seu criador, vacila e flutua com a emoção do anti-herói, desejoso de entregar-se ao sonho e passar a um estado de idealidade, de segurança e paz, mas permanentemente intranquilos, no fundo não consegue se desvencilhar do senso comum, em nenhuma circunstância, sua invariável âncora.

O encontro - a descoberta da eleita - corresponde a um mergulho a quase inconsciência. Arrebatado pela onda de um cordão carnavalesco, branca mão veio se agarrar à sua. Ao erguer os olhos para conferir o rosto da pessoa em contato, o inesperado aconteceu. Experimentou incontrolável choque. Irá anotar no diário que escreve: "Foi uma visão extraordinária. Percebi que descera até a mim a branca Arabela" (ibidem, p.34). Numa entrega desprotegida, de fato delirante, não se contém: "Efeito da excitação do espírito em que me achava, ou de qualquer outra perturbação, senti-me fora do tempo e do espaço, e meus olhos só percebiam a doce visão" (ibidem, p.34). Chegara a perder a noção do acontecido, percebera apenas que, em determinado momento, a mão da moça se desprendera da sua. Pela manhã, ficaria sabendo, sofrera desmaio e, socorrido por desconhecidos, descansava num sofá. Recuperado o senso comum, ao relatar a aventura, deixou escrito: "o episódio do Carnaval me parece um ardil engenhoso, armado por mim contra mim próprio, nesses domínios obscuros da consciência" (ibidem, p.36). Nos dias subsequentes, porém, convivendo com a emoção de permeio com o espírito crítico, voltará a se entregar intensamente à paixão, transitará pelas ruas como um adolescente enamorado. Por intermédio de Gaudêncio, colega da repartição e da roda literária, fica conhecendo o nome da moça, seu endereço, tem informação sobre a família. O sentimento amoroso alastra-se mais ainda a partir dali. Vai conhecer por fora a casa, na esperança de poder rever, de maneira furtiva que fosse, o rosto que passara a ser, para ele, uma visão do paraíso. Deparando com alguém à janela, a reconhece, mas não encontra forças para encará-la, prossegue a caminhar, mais ou menos em fuga. Havendo descoberto, no Minas Gerais, um convite para a missa de trigésimo dia em intenção de Aurélio Dias, pai de Carmélia, rumou para a igreja da Boa Viagem, onde se postou do lado de fora, aguardando a saída da moça. Vai dizer depois: "Desejaria bebê-la com os olhos, obter uma imagem sua que se fixasse, em minha memória ótica, para alimento dos longos dias que passarei sem a ver" (ibidem, p.60). E continua escrevendo: "Entretanto, assim como, quando queremos forçar demasiado a atenção em qualquer coisa, esta coisa nos foge, preocupados que ficamos com a necessidade de prestar atenção, escapou-me uma imagem nítida de Carmélia para só ficar um esboço vago de seu vulto". Lembrando-se da tarde em que passara pela casa da donzela, à Rua Paraíba, observa: "Quando, em um momento propício, ela alçou rapidamente o olhar para procurar o carro da família, desviei sem querer os meus olhos. Por quê essa timidez? Carmélia não me conhece e nem perceberia uns olhos que nela se detivessem furtivamente" (ibidem, p.62). Como se estivesse a praticar um crime, desejando intensamente o que não merecia, e não conseguindo se livrar jamais do agudo senso crítico, percebe que aquela paixão é uma fantasia. Diz para si próprio: "Um homem não se deve entregar, assim, a uma vida inútil, de vagabundo lírico" (ibidem, p.88). Forte é a sua consciência de realidade: "Com uma vaga imagem física, fornecida pela moça [...] e com sombras e luzes, que havia dentro de mim, construí uma Carmélia cerebral que me causava devastações". Mas, de qualquer forma, em momento algum pensa em renunciar ao sentimento insensato que só continua a crescer.

Livro afora, Belmiro permanecerá oscilando entre o sonho e a realidade. Num momento em que, dominado pelo maior enlevo, confidencia a Gaudêncio a aventura completa que está a sufocá-lo, o amigo, cheio de surpresa, observa: "É extraordinário que você tenha conseguido imaginar tanta coisa em torno de uma criatura simples como Carmélia!..." (ibidem, p.110). Aquela razão descontaminada de emoção, de uma pessoa que se encontrava plantada em outra realidade, o faz desabar. A conversa terá, daí para frente, efeito sedativo em seu espírito. Embora continuando com o pensamento dominado por Carmélia, a paixão não será mais a mesma. Consegue enxergar a donzela despida do manto Arabela. Por bom período chega a esquecê-la. Ao ser informado, como sempre por Gaudêncio, que um primo da moça, médico recém-formado, viera morar na casa, sofrerá com a suposição de que havia surgido um rival, porém o ciúme não se tornará intolerável. Estará sempre reconhecendo sua falta de condições para disputar uma adolescente, de resto situada em plano social muito superior ao dele. Quando, passado o tempo, as suspeitas que tivera se tornam realidade, com a notícia do casamento de Carmélia, de fato conquistada pelo primo, a reação manifestada é de conformismo: "minha impressão foi de que se tratava de um fato antigo, já por mim conhecido, cuja divulgação se fazia, agora, com atraso" (ibidem, p.195). O amor se apresenta para ele "tão divirilizado" - um "sentimento tão acompanhado de renúncias prévias" - que acaba se deslocando para o Rio de Janeiro, passivamente entregue a inexplicável sentimento de masoquismo ou de compaixão para consigo mesmo, interessado em assistir ao embarque do casal que partia, em lua de mel, num cruzeiro marítimo. Confessará no diário: "Bem que tenho tido desejo de dizer que ainda amo a donzela, embora sob uma forma diferente, quase como a de saudade da amada que morreu" (ibidem, p.118).

Havendo se contido a ponto de encarar o acontecimento como algo só remotamente relacionado à sua pessoa, não demorou a demonstrar, era grande o esforço desenvolvido para sustentar aquela aparente indiferença. A capa exterior de conformismo mal continha o vulcão do idealismo, incontrolável como não podia deixar de ser, que lavrava em seu interior. Ainda no Rio, num momento posterior, ao aproximar-se do mar que lhe havia roubado a esperança da realização amorosa, entrega-se a repentina emoção transbordante:

Pareceu que do mar me vinha qualquer mensagem, inexprimível por palavras, e contudo inquietante. Uma grande voz confusa se erguia do fundo das águas, arrastando-se como um trovão longínquo. As trombetas do Juízo Final deverão ser, assim, a um tempo distantes e próximas, surdas, mas dominadoras. Ouvi-la-emos é dentro da alma, sem a interferência dos sentidos, tal como ouvimos a voz do mar.

Há, neste, uma inteligência e um anseio de comunicação que compõem quase uma alma para a paisagem marinha. (ibidem, p.261)

Na linguagem do cosmo, "em alto estilo apocalíptico", o gigante das águas lhe mandava sua fala. Belmiro se pergunta: "Por quê o mar nos transporta às reflexões sobre o amor e a morte? O amor e a morte encerrarão o destino do homem? Por quê, também, nos convida ele para a destruição de nossas limitações?". É quando o homem de coração ferido se levanta sobre si mesmo: "Eis que surgiu um Belmiro poderoso e elementar. Um Belmiro dominador, atlântico, ao pé do qual o pobre Belmiro, sufocado entre montanhas, era um verme a rastejar. Este Belmiro avultava cada vez mais no espaço e percorria o tempo, devassando todas as idades..." (ibidem, p.262).

Belmiro e Silviano, cada um a seu modo, são personagens quixotescos no livro. O segundo é o filósofo, o intelectual por definição. Vive abastecendo-se de livros e espalhando livros à roda, em empréstimos aos companheiros. Pela erudição que possui e pelo alto poder de raciocínio abstrato, que não cansa de exibir, nunca desce da arrogância. Plana superior a todos, agredindo e intimidando as inteligências que dele se aproximam. Aquela máscara cai no momento em que o texto revela, ele não é nem destituído de imaginação filosófica, nem vulgar embusteiro, mas um ser que frequentemente se extrapola, perdendo o pé na realidade. Incontida vaidade, devastadora autossuficiência o incompatibilizam com o exercício da autocrítica. Não ultrapassado os limites da razão, o que nos permitiria caracterizá-lo como sósia mais aproximado do Cavaleiro da Triste Figura da concepção cervantina, desprovido quase por completo da virtude do bom senso, ele não deixa de se apresentar um tanto desviado da realidade. O capítulo "Silviano e Seu Plano Decenal" parece ter sido escrito com a finalidade de acentuar esse aspecto. Expondo as linhas gerais de um estapafúrdio diário íntimo - como de costume fazendo uso de pomposa segunda pessoa verbal para demonstrar que se encontrava acima do comum dos mortais -, da maneira mais grosseira e pedante, interrompe um ensaio de elogio do amigo: "Não sejas impetuoso, Porfírio. Sofreia os seus ímpetos! Nada viste, ainda". Belmiro tem a impressão de que, diante dele, se acha "na presença de um ser múltiplo", com o pressentimento de que lida "com algo extra-humano e puramente cerebral", pois enxerga tudo nele, "desde o ridículo até o espantoso" (ibidem, p.74).

O quixotismo de Silviano é ajuda para a compreensão do quixotismo de Belmiro. Ambos se encontram esbarrados na consciência do eterno problema fáustico, definido pelo primeiro com apoio em Salvador Albert: "o amor (vida) estrangulado pelo conhecimento" (ibidem, p.78). Trata-se da compreensão da eterna irrecuperabilidade do fugaz momento que passa e nos vai tornando presenças ultrapassadas pela sucessão das gerações. Silviano se fará mais explícito em encontro posterior, ocorrido em seu escritório. Traduzindo trecho de livro em que Zaratustra, ao atravessar a floresta na companhia de amigos, depara com um grupo de donzelas a bailar numa clareira, comenta: "Elas representam a vida [...], a vida que foge diante do asceta!" (ibidem, p.79). Silviano e Belmiro se envolvem com o sexo feminino tentando, cada qual a seu modo, pelo amor, resistir à voragem destruidora do tempo. Para Silviano, preocupado somente com problemas eternos, a mulher representa "um universal e não um particular", não constituindo senão um "estimulante do pensar" (ibidem, p.128). Ele esclarece com precisão: "Amava, nela, o amor, a vida que foge, a moça-em-flor, a eterna graça" (ibidem, p.131). Ao contrário, comprometido com a temporalidade, é "um particular" - o objeto concreto do desejo - que Belmiro enxerga em Carmélia. A moça constitui para ele, em resumo e totalidade, a exclusiva fonte do sentimentalismo e da emoção. Comparecendo a um baile, levado por Glicério, ao contemplar as jovens que lá se encontram, despenca em melancolia, por se sentir representante de uma geração que já passou. Na verdade, não são aquelas moças que o deixam "com sensação de aposentadoria" (ibidem, p.69). O estado de depressão em que é precipitado vem da lembrança de Carmélia, tornada presente pela visão das moças. Ele deixará escrito: "Ai de nós, os que vamos passando. Receber o calor dos novos seres e sofrer-lhes o contato ainda é pior que o frio de uma velhice que nos espreita. Compreendo a necessidade de fugir às moças-em-flor e fugir de Carmélia" (ibidem, p.68).

Acabamos entendendo com clareza, o que move Belmiro ao largo de toda a estória é seu drama interior. A sensação pessoal de desvalia, acentuada pelo aparecimento da moça a ponto de levá-lo, num momento de crueldade para consigo mesmo, a comparar-se a um cão vadio encontrado na rua. Permanentemente intranquilo, o Cavaleiro da Triste Figura encarnado por ele sofre de amor ou de pena de si. Sofre de amor e de pena de si. Viver em intensa emoção é aventura que afasta a possibilidade de distinções compartimentadas. Na medida em que entendemos, o romance de estreia de Cyro dos Anjos não é somente a estória da problemática paixão do homem maduro por uma adolescente, impõe-se a perspectiva que nos permite enxergar o drama do personagem na sua inteireza. Deprimido, faz da sua pessoa o juízo mais desfavorável. Julga-se passado em idade e fisicamente desgracioso. Sente-se um completo derrotado, não passando de insignificante burocrata numa repartição onde sequer havia o que fazer. Todos ali apenas assistiam ao passar do tempo, aguardando a aposentadoria. Nada o convence de que virá a ter qualquer perspectiva de realização pessoal. Mesmo as pretensões literárias não chegam a convencê-lo. Sustentadas pela convivência com um grupo provinciano de intelectuais que objetivamente não mostra a que veio, acabam por conduzi-lo à atividade secreta da elaboração de um diário íntimo. Num momento de máxima frustração, chega a considerar, teria sido melhor se houvesse seguido o caminho de um companheiro que lhe parecia acabado exemplo de humildade simplória - um ser destituído de ambição e de angústia, por não sofrer nenhum tipo de inquietação. Florêncio, ao aproximar-se dos cinquenta, desfrutava a "vida na sua manifestação mais confiante e tranqüila", apenas assistindo ao arredondamento do próprio ventre, que ganhava "uma expressão honesta e repousante" (ibidem, p.264). Com a lembrança daquele modelo humano só de platitudes, Belmiro se interrogava:

Por quê procurar um sentido individual de existência Há, nas intermináveis chapadas do sertão, pequenas árvores que não dão frutos, nem sombra, nem possuem raízes medicinais. Ali estão, talvez, apenas para compor a paisagem da selva. Não estarei aqui somente para efeito pictórico da massa. (ibidem, p.263)

Após o episódio da grande descarga emocional ocorrida diante do mar, repleto de veleidades, tentando superar a frustração pelo casamento de Carmélia, sente-se transformado num "Belmiro poderoso e elementar, um Belmiro dominador, atlântico, ao pé do qual o pobre Belmiro, sufocado entre as montanhas, era um verme a rastejar" (ibidem, p.262). Mas aquilo não passou de rompante sem nenhuma consequência. Logo desarma-se por inteiro, cai na realidade, toma de novo consciência da sua pouca significação e vai escrever: "A verdade está na rua Erê". A verdade se encontrava na residência de pobre, onde sobrevivia em estado de absoluta modéstia, na companhia de duas irmãs por ele referidas como "as velhas": Francisquinha, fragilizada em sua saúde, padecendo frequentes ataques de demência, e Emília, rude interiorana de vocábulo estropiado e de afetividade um tanto selvagem que, sem policiar o comportamento, anunciava à chegada do irmão, já vem o "escomungado ", já vem o "louco". Ao perceber o começo da desintegração da turma de escritores, Belmiro vê surgir um novo amigo, que significa rebaixamento de nível de suas relações sociais. Será Carolino, o servente da Seção de Fomento Animal, objeto de comentários sarcásticos e brincadeiras desrespeitosas de todos, que passará a frequentar com assiduidade a casa e se entrosará especialmente com Emília, que, pelo pouco polimento, com ele tem afinidade.

Quando a realidade se apresenta mais adversa, Belmiro procura ordenar as lembranças de Vila Caraíbas, com "seu corteja doce de fantasmas" (ibidem, p.18). Em determinada ocasião, decide ir ao encontro desse mundo do passado, no desejo de ter revigoradas as impressões antigas. Achava-se convencido, existira uma quadra em que vivera com dignidade e confiança ao lado de sua gente. O resultado da viagem acaba sendo somente decepção: "O velho Borba já havia morrido, a fazenda passara a outras mãos" (ibidem, p.113). Camila, a moça que o impressionara na juventude, ainda vivia, mas como "sombra miserável de um tempo que passou" (ibidem, p.115). Chocado com o que presenciara, que não correspondia às imagens da lembrança, conclui: "As coisas não estão no espaço", "estão é no tempo" e esse existe "é dentro de nós" (ibidem, p.115, 116). Decide que não retornará à terra natal, concluindo que, para fugir do espaço, a saída é o refúgio no tempo, onde a imaginação pode trabalhar livremente e construir a versão de realidade que venha suprir as nossas necessidades de equilíbrio interno.

Outra muleta por Belmiro utilizada, para obter resultado também defensivo, é a atividade da escrita do diário. A literatura apresentava-se com o poder de reintegrá-lo em si, de recuperá-lo como personalidade. Escreve confortado: "Venho da rua oprimido, escrevo dez linhas, torno-me olímpico" (ibidem, p.253). O diário recebia por transferência os seus problemas, além de se transformar numa espécie de palco interior. Explicava com argumentação convincente: "Parte de nós fica no palco, enquanto outra parte vai para a platéia e assiste. O indivíduo que ficou no palco nos fará rir, nos comoverá ou nos suscitará graves meditações. Mas é um indivíduo autônomo, e nada temos a ver com as suas palhaçadas, suas mágoas, ou sua inquietação" (ibidem, p.253).

Belmiro não consegue se desfazer do sentimento de derrotado, e a disposição de escrever o diário não passa de sintoma disso. Cita trecho de Gregório Maranõn, com o qual se identifica: "No homem adulto a prática do Diário equivale a uma supressão progressiva da personalidade ativa, social de seu autor [...] um Diário equivale a um lento suicídio" (ibidem, p.248, tradução minha).

Recebido em 27.1.2010 e aceito em 23.2.2010.

Rui Mourão é romancista e ensaísta, professor aposentado da Universidade de Brasília. Lecionou nas universidades americanas de Tulane, Houston e Stanford. Dirige o Museu da Inconfidência em Ouro Preto. @ - ruimourao@veloxmail.com.br

  • ANJOS, C. dos. O amanuense Belmiro Belo Horizonte: Os Amigos do Livro, 1937. 293p.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    23 Ago 2010
  • Data do Fascículo
    2010

Histórico

  • Recebido
    27 Jan 2010
  • Aceito
    23 Fev 2010
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