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Euclides da Cunha, a Amazônia e a barbárie

Euclides da Cunha, Amazonia and barbarity

RESENHAS

Euclides da Cunha, a Amazônia e a barbárie

Euclides da Cunha, Amazonia and barbarity

Jaime Ginzburg

A IMENSIDÃO da Amazônia nos dá a escala do seu enigma. Pensar o Brasil a partir do ponto de vista da Amazônia é um desafio de reflexão exigente. O estado atual do debate sobre o assunto inclui perspectivas sombrias de impotência, para as quais as forças econômicas predatórias mais condenáveis controlam grande parte da região. Os problemas não se restringem à ordem política: no campo intelectual e acadêmico, a precariedade e escassez de recursos e dados para lidar com questões referentes à experiência amazônica, em diversas disciplinas, é um fenômeno histórico que merece atenção.

Em 2005, em iniciativa importante, a revista Estudos Avançados publicou, em seus números 53 e 54, estudos voltados para a Amazônia, incluindo pesquisas de diversas disciplinas, ocupadas com questões prioritárias e estratégicas, como desmatamento, sustentabilidade e ecossistemas. Uma das principais linhas de reflexão no dossiê era a exigência de considerar a presença histórica de forças destrutivas no espaço amazônico. No artigo de Ferreira, Venticinque e Almeida, que integra o n.53 da revista, por exemplo, tabelas e gráficos contribuem para a argumentação de que a escala de ocupação predatória exige uma reação. O trabalho de Philip Fearnside, por sua vez, é enfático em sua indignação com a escala do desmatamento, e avalia seu impacto ambiental de modo tão meticuloso quanto alarmante.

A leitura de alguns artigos reunidos pela revista sugere que a Amazônia, em larga medida - com exceção de esforços isolados, episódicos ou individuais -, está abandonada à corrupção, à economia imediatista e à irresponsabilidade. Nesse sentido, o fato de ser disponibilizado um dossiê, como base de promoção de um debate, em termos rigorosos e interdisciplinares, é um fato raro a ser considerado como gesto de intervenção, contrário, em si mesmo, à apatia inerte que se omite perante o desmatamento e o imediatismo.

O extenso espaço geográfico da Amazônia faz parte, de modo fundamental, da experiência histórica e política brasileira. No entanto, estamos longe de compreender com clareza como esse espaço se constituiu ao longo de séculos, como esse presente medonho do desmatamento se relaciona com um passado muito complexo, ou ainda, de que modos as contradições sociais vividas concretamente por quem olha o Brasil a partir do Sudeste ou do Sul se relacionam com o contexto amazônico. Cabe interrogar como a atual instável difusão midiática de estereótipos ecológicos sobre a região se vincula com idealizações oitocentistas fantasiosas a respeito de sua paisagem.

As dificuldades de conferir ao debate sobre a Amazônia no Brasil a merecida consistência estão ligadas a um processo de amnésia histórica. Muito pouco se sabe, no campo acadêmico brasileiro, sobre como a experiência amazônica se constitui em termos históricos e culturais. A tradição de incerteza é desconcertante. O momento presente é ainda caracterizado pela precariedade de condições de compreensão das relações entre a vida intelectual do país e o espaço dessa região.

A área de Letras guarda uma relação peculiar, entre as disciplinas do conhecimento, com a memória coletiva. Percebida a amnésia histórica e seu efeito catastrófico, cabe observar que o interesse de escritores pela região construiu uma base para um debate sólido sobre a inserção da Amazônia na cultura brasileira. Para além do interesse dos escritores, é necessário o movimento do pesquisador de historiografia e crítica, cuja dedicação, pautada tanto pelo repertório largo como pela leitura particularizada, seja capaz de sistematizar a presença da Amazônia em obras literárias, de tal modo que entre em choque com o conservadorismo político que governa a amnésia e a destruição que atingem o espaço.

Os artigos da revista mencionada indicam a necessidade de uma contínua e vigorosa pesquisa na Amazônia, em campos de conhecimento como a biologia, a geografia, a química, a medicina, as relações internacionais, a antropologia, tendo em vista prioridades associadas ao presente, e insuficiências graves na capacidade da sociedade brasileira em lidar com o espaço amazônico.

É insuficiente também o conhecimento da Amazônia em alguns campos de ciências humanas. Há muito a ser feito por historiadores, cientistas políticos e sociólogos da cultura. A insuficiência é abismal quando se refere ao campo das Letras. Embora escritores já tenham se comprometido com o interesse pelo espaço amazônico, a lacuna de uma investigação ampla e sistemática sobre as relações entre a Amazônia e as Letras é decisiva.

Trata-se de uma lacuna que nada tem de casual, e que merece explicação crítica e historiográfica. Outras regiões do país obtiveram há muitas décadas prestígio historiográfico e inserção canônica. Então cabe interrogar se o problema procede. Isto é, faz sentido falar em relações entre literatura e Amazônia?

A pergunta é respondida de modo pleno e afirmativo com a publicação do livro A vingança da Hileia. Euclides da Cunha, a Amazônia e a literatura moderna, de Francisco Foot Hardman. Dentro do livro, há três ensaios que podemos caracterizar como historiográficos. "A Amazônia como voragem da história: impasses de uma representação literária" abre o livro cumprindo a tarefa difícil e de alta relevância pedagógica de sistematizar uma relação de escritores que se dedicaram a abordar elementos da Amazônia, e discute com a devida propriedade como suas contribuições têm propriedades formais específicas. "Antigos modernistas" sistematiza estudos de escritores da passagem do século XIX ao XX, examinando como naquele momento se coloca o exigente problema da interpretação do Brasil. "Espectros da nação: figuras deslocadas entre saudades e soledades", o mais desafiador como construção da forma de ensaio dentro do volume, trabalha com a figura do deslocamento, para articular problemas decisivos da literatura brasileira, incluindo em seu movimento Machado de Assis, Lima Barreto, Mário de Andrade, Oswald de Andrade, Euclides da Cunha e Guimarães Rosa.

O livro se equilibra entre um movimento de focalização em dois objetos de investigação centrais e uma abertura para a reflexão ampla sobre o Brasil e a América Latina. Os objetos de investigação, referidos no subtítulo da obra, são Euclides da Cunha e a Amazônia. O pesquisador já tinha enfrentado larga pesquisa sobre a região em seu trabalho Trem-fantasma, e já naquele livro Euclides da Cunha aparecia, como o engenheiro que fazia planos com seus escritos amazônicos, com um projeto de civilização.

O livro se caracteriza como um volume de crítica literária, centrado em uma reflexão sobre diversos elementos da produção de Euclides da Cunha, em que cabe destacar a presença de observações sobre poemas do autor. Pouco divulgada, a produção poética do autor recebeu de Leopoldo M. Bernucci e Francisco Foot Hardman a organização de uma edição cuidadosa, Poesia reunida (São Paulo: Ed. Unesp, 2009). A edição inclui importantes observações, comentários críticos e notas sobre fontes.

A dedicação de Hardman ao lançamento, em um mesmo ano, de dois volumes voltados para Euclides da Cunha, é uma situação rara no ambiente intelectual e editorial brasileiro. Embora Euclides seja um autor reconhecido, seu estudo é direcionado em geral ao conhecimento particularizado de Os sertões. No excelente ensaio "Brutalidade antiga: sobre história e ruína em Euclides", Hardman mostra conexões em geral pouco perceptíveis entre textos de diferentes gêneros escritos pelo autor, incluindo poemas. Isso permite a inserção de Os sertões em um contexto de elaboração ampla de temas e questões, por parte de Euclides, o que beneficia e qualifica a interpretação de sua obra.

Os leitores de poesia que apreciam comparações e analogias vão se interessar muito pela Poesia reunida. Euclides da Cunha era muito culto, minucioso e ponderado. Por exemplo, a leitura de Cenas da escravidão, de 1884, pode agradar admiradores de Castro Alves: "Rasga as sombras da desgraça" (p.187). Interessados pelo romantismo poderão encontrar em poemas euclidianos ecos de Álvares de Azevedo, Gonçalves Dias, Fagundes Varela. Porém, como explicam os organizadores, seria inadequado restringir Euclides a uma "filiação estética unívoca", pois nele há "tensão entre várias afinidades" (p.42).

O poema "Página vazia", de 1897, formula a problemática - própria para a poesia moderna - de uma relação difícil entre a guerra e a linguagem poética:

Quem volta da região assustadora

De onde eu venho, revendo inda na mente

Muitas cenas do drama comovente

Da Guerra despiedada e aterradora,

Certo não pode ter uma sonora

Estrofe, ou canto ou ditirambo ardente,

Que possa figurar dignamente

Em vosso Álbum gentil, minha Senhora.

E quando, com fidalga gentileza,

Cedestes-me esta página, a nobreza

Da vossa alma iludiu-vos, não previstes

Que mais tarde nesta folha lesse

Perguntaria: "Que autor é esse

De uns versos tão mal feitos e tão tristes"?! (p.276)

Entre a relação de delicadeza estabelecida com a interlocutora e a imagem "aterradora" do que foi vivido no passado, o sujeito lírico revê "na mente muitas cenas", indicação do efeito perturbador do que vivenciou. O final do poema apresenta uma questão provocadora: a autoria de versos tão malfeitos, versos sobre a guerra. Conotativamente, o poema aponta para o problema das causas da guerra, das origens da destruição.

No ensaio "Os sertões como poética das ruínas", sétimo capítulo de A vingança da Hileia, Hardman relaciona o poema "Página vazia" com as imagens do final de "A luta", considerando, com razão, que, nesse poema escrito após o retorno de Canudos, Euclides prefigura "a visão distópica daquele conflito" (p.136).

O trabalho de Hardman se move de modo determinado contra o esquecimento, contra a amnésia política, social e cultural. É assim que podemos entender o interesse pela Amazônia, como confronto pela sua constante exclusão do debate, no campo das questões consideradas prioritárias na cultura brasileira, por parte do universo acadêmico; e o interesse pelos poemas de Euclides, tão pouco estudados e divulgados, consolidando sua integração à produção de um intelectual consagrado mas não suficientemente compreendido.

O duplo movimento do pesquisador se faz rumo a um espaço geopolítico, que inclui a chamada região da Hileia, e a um período de tempo, que inclui a virada do século XIX para o XX. No entanto, não se detém nessas marcações. Move-se, entre o passado colonial e o presente imediato, entre os extremos das fronteiras e os confinamentos sem saída. E com Hardman, a partir de Euclides, "verificamos que vários espaços-tempos se entrechocam na cena contemporânea dessa modernidade de fronteira" (p.79), exigindo para a reflexão sobre o Brasil ponderações sobre as concepções habituais de espaço e tempo, ultrapassando ranços e saturações conceituais.

Como mencionei anteriormente, A vingança da Hileia se caracteriza como um volume de crítica literária. Sobre a perspectiva crítica que adota, é possível traçar alguns comentários. É uma perspectiva francamente interdisciplinar, em que conhecimentos de história social, história intelectual, política econômica, geopolítica e filosofia impregnam as reflexões de modo fluente. Isso ocorre por necessidade interna da atividade de pesquisa e pelos objetos escolhidos, e Hardman lança mão de repertório raro no andamento dos argumentos.

Trata-se de uma perspectiva para a qual as relações entre literatura e Amazônia são relevantes historicamente, e o livro tem o discernimento de assumir uma posição muito firme com relação à passagem do tempo. Observamos no livro manifestações de indignação com o passado recente e o presente. Por exemplo, nas referências ao massacre do Carandiru, aos meninos da Candelária, ao Eldorado dos Carajás, aos sem-terra e sem-teto. E na referência a Galdino Pataxó Hã-Hã-Hãe, e seus "assassinos civilizados" (p.148). Isso significa que Hardman está interessado pela necessidade de articulação recíproca entre conhecimentos do passado e conhecimentos do presente. De fato, o efeito final de leitura de A vingança da Hileia inclui a proposição de muitas interrogações renovadoras de interpretação da sociedade brasileira. Em que medida haveria algo nas forças aterradoras de Canudos que persiste na violência recente adotada no Carandiru e na Candelária?

Provavelmente, um dado fundamental da perspectiva crítica do livro é a sua negatividade constitutiva. Suas categorias mais constantes são ligadas a destruição e descentramento: ruína, deslocamento, impasse, descrença, limite, além das referências constantes à violência histórica.

A escolha da atitude metodológica é oportuna, não há aqui uma teoria unificada a ser imposta ou aplicada mecanicamente, pelo contrário, a reflexão se abre de modo apropriado à conceituação de acordo com as exigências dos objetos em discussão. A ampla e erudita fundamentação bibliográfica inclui críticos com que Hardman tem evidentes afinidades eletivas, e que beneficiaram a construção tanto do vocabulário como da argumentação: Roberto Vecchi, Idelber Avelar, Ettore Finazzi-Agró, Giorgio Agamben e, antes, Walter Benjamin, responsável por formulações originais sobre história, ruína e catástrofe.

A partir de Benjamin desenvolvo a ideia de que o livro de Hardman tem em sua perspectiva um componente melancólico. Há ali muitas perdas não superadas. Não por acaso, vale lembrar, no livro Trem-fantasma, Hardman descreve o escritor Manoel Rodrigues Ferreira como um historiador da melancolia, um sujeito que revisita ruínas de cemitério, lê atestados de óbito, e nesses momentos encontra pequenos detalhes que podem constituir achados históricos.

Creio haver em A vingança da Hileia um movimento similar ao que Hardman atribui a Rodrigues Ferreira, uma vez que categorias negativas - apocalipse, tragédia, violência, deslocamento, ruína - estabelecem fios condutores da reflexão. A ênfase interpretativa, inteiramente consistente com uma leitura competente de Os sertões, é encontrar imagens de catástrofe em diversas produções literárias. A sustentação dessa ênfase está no princípio de que "verifica-se que a barbárie é aspecto constitutivo inerente à vida civilizada moderna. Barbárie civilizada (pelas leis e aparelhos policial-militares do Estado) é o que se tem como prática cotidiana e secular" (p.144). Isto é, a violência tem um papel não casual ou incidental, mas constitutivo dos processos históricos e sociais em pauta.

Com Francisco Foot Hardman, a crítica de Euclides da Cunha chega à maturidade. O pesquisador consegue compreender e descrever com clareza a complexidade, diversidade interna e também as linhas de continuidade fundamentais na produção do escritor. A estratégia de unir a reflexão sobre Euclides com um questionamento sobre o significado da Amazônia foi muito acertada. Quando Hardman descreve o estranhamento que Euclides vivencia em sua experiência no espaço amazônico - ponto que já havia proposto em Trem-fantasma -, sinaliza, em fragmento, um estranhamento que impregna a relação da Amazônia com o Brasil, a ambiguidade de sua inserção, sua enormidade impactante, suas precariedades, sua constituição com tensões. Ao mesmo tempo, apresenta a percepção inteligente e inquieta com que, em diversos gêneros textuais e adotando variados procedimentos formais, Euclides elaboraria imagens críticas e perturbadoras de seu tempo.

O livro libertou o escritor de ser reduzido por hábitos críticos classificatórios a que estávamos acostumados, e recuperou com rigor e precisão inéditos relações de Euclides com o contexto histórico, principalmente com um contexto que no campo da crítica literária é ainda muito pouco trabalhado, o amazônico.

O encontro do estudo de Euclides da Cunha com leituras de Roberto Vecchi e Walter Benjamin permite dar visibilidade às imagens de ruína em diversos textos do escritor. Hardman explica:

na obra de Euclides localizam-se vários traços dessa unidade dramática em que o tema da ruína - eterno retorno da natureza caótica e violenta sobre o tempo histórico dos empreendimentos civilizados da humanidade - aponta, assim, para a condenação desses últimos ao jogo tumultuário e bruto dos elementos, ao choque babélico entre culturas descompassadas em suas paisagens e épocas e ao encadear trágico de fracassos e incompletudes. (p.115)

Essa poética das ruínas se coloca contra a totalização estética. Nesse sentido, um problema fundamental enfrentado, para uma crítica estética e política de imagens do Brasil, é a análise de imagens unificadoras, mitos de unidade nacional. Cito o autor: "Na construção de uma cultura brasileira unitária, apagam-se rastros da violência sob forma de massacre, batismo silenciador ou incorporação dos tiranos ancestrais da sujeição voluntária" (p.140). Mais adiante, dentro da mesma linha de reflexão:

Unificações forçadas e unidades interessadas contra as diferenças socioculturais e contra restos e rastros a serem eliminados da memória, ou então, a serem cristalizados como figurações de um passado já suplantado, ficam fora do grande arcabouço de uma coletividade de destinos superpostos... (p.307)

A mistificação da unidade nacional configura o apagamento da violência, elimina diferenciações, simula homogeneidades e manipula a memória coletiva. Contra a unidade forçada, a interpretação propõe a leitura textual de inspiração benjaminiana, que admite o fragmento como força histórica de teor crítico.

Em lealdade às teses sobre história de Benjamin, que refletem sobre catástrofe histórica, Hardman avalia o trabalho de Euclides da Cunha examinando o problema de como narrar o massacre. Formula o impasse rigorosamente: "Como escrever essa história, como representar a catástrofe sem apagá-la? [...] Mas o narrador não a transcreve. Este é o seu limite" (p.137). Assim como não cabe uma totalização da cultura brasileira, que representaria uma unidade homogênea autoritária, não cabe uma narrativa totalizadora de Canudos, que poderia amenizar o impacto catastrófico do que ocorreu. É no caráter problemático da narração que se observa a desmedida na relação entre a linguagem e a experiência.

Assim como Canudos tem um componente aterrador, também a Amazônia tem algo de excessivo, de desmedido. Hardman comenta em Euclides "o terror sublime diante da grande massa de água e vegetação" (p.67). A natureza hiperbólica, diante da qual os hábitos de percepção e a linguagem coloquial parecem pequenos, convida a pensar o Brasil, de modos imprevisíveis. Para Hardman, "a Amazônia [...] ficaria como fantasma na história do Brasil civilizado, assim como fantasmal na memória de Euclides" (p.80).

Jaime Ginzburg é professor do Departamento de Letras Clássicas e Vernáculas da FFLCH-USP e pesquisador do CNPq. @ - ginzburg@usp.br

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    23 Ago 2010
  • Data do Fascículo
    2010
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