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O princípio primeiro

The first principle

RESENHAS

O princípio primeiro

The first principle

Luiz Armando Bagolin

As DOUTRINAS artísticas antigas, refundadas em algum neoaristotelismo, assim como em obras poéticas também pertencentes à Antiguidade, a aristotélica e a horaciana, especialmente, serviram à composição do ensaio intitulado As belas-artes reduzidas a um mesmo princípio, de Charles Batteux, professor de Retórica, Filosofia e de Poesia grega e latina no Collège Royal de Paris, em fins do século XVIII. Sucedem o Les beauxarts outras obras fundamentais escritas por Batteux ao longo do tempo em que desempenhou as referidas funções, de professor e reitor, tais como o volumoso Cours de Belles-Lettres ou Principes de la Littérature, de 1753, ou o Les Quatre Poétiques, d'Aristote, d'Horace, de Vida, de Despreáux, avec les traductions & des remarques, de 1771, Histoire des Causes Premières, de 1769, além de outros. Não se trata aquele, no entanto, de um tratado de execução para as artes, tampouco pode ser proposto como obra precursora quanto à emergência de estéticas que fundamentam o fazer artístico segundo a noção de vida subjetiva do artista, principal critério, conforme aquelas, para o desenvolvimento das artes na chave do progresso e do devir. Convertido ao conceito de "princípio unificador", das artes, o princípio a que se refere o título da obra não é redutor quanto à implicação das técnicas e dos modelos de imitação, essencializandoos, ao mesmo tempo que se amplifica a atuação da subjetividade e da individualidade como principais móveis da criação poética e artística. não pertence, caso se queira dizer de outro modo, à estética ou à Filosofia da Arte, mas às doutrinas poético-retóricas que pensam as artes, em termos de comparação, paragone, na chave da imitação e do decoro, conforme preceito aristotélico. Confirma-o a própria exposição feita por Batteux no prólogo do As belas-artes:

Após tantas buscas inúteis e não ousando entrar sozinho em uma matéria que, vista de perto, parecia tão obscura, atrevia-me a abrir Aristóteles, do qual eu havia escutado exaltarem a Poética. [...] A máxima de Horácio se achou verificada pelo exame:

ut pictura poesis

. Constatou-se que a poesia era em tudo uma imitação, assim como a pintura. Eu ia mais longe: tentava aplicar o mesmo princípio à música e à arte do gesto, e espantoume a justeza com a qual lhes convinha. Foi isso que produziu esta pequena obra, onde se pressente que a poesia deve ocupar a posição principal, tanto por causa de sua dignidade, quanto por ter sido sua ocasião.

Ao invocar o kairos, a ocasião, ou "o momento oportuno", para a poesia, Batteux subordina a imitação operante em todas as artes àquela produzida pela poesia, construindo o seu discurso, mediante outros princípios, embora não declarados no ensaio, advindos da retórica aristotélica. Apta menos a persuadir do que a desenvolver os meios exigidos para cada caso, com vistas à persuasão, essa retórica provê para Batteux as provas inartísticas, fornecidas pelas leituras de Aristóteles, Horácio, e de outros, assim como as artísticas, com as quais o autor informa o leitor sobre a motivação do ensaio, para o esclarecimento de suas ideias sobre as belas-artes e a poesia, ou para prestação de contas a si mesmo, conforme o que ele relata, encontrada por método ou inventada por cogitação própria. De acordo com Batteux, a natureza fornece o melhor modelo a ser imitado para quem saiba imitá-la bem, quer dizer, convenientemente, sendo, entretanto, um despropósito imitá-la "servilmente", tal como ela é. O conveniente é o bom que, por sua vez, é "digno de ser escolhido em si e por si", segundo aristóteles, ou aquilo que, "pela sua presença, outorga bem-estar e auto-suficiência, [...] ou o que produz e conserva esses bens" (Retórica, I,7). O bom é belo, e é útil, sendo conveniente, por exemplo, que o "mais fácil seja maior que o mais difícil" porquanto sendo em geral "o mais difícil maior que o mais fácil", todavia, é a este último que sempre desejamos. Reduzir, e assim o réduit do título original aqui implicado, as artes a um mesmo princípio implica simplificar as regras, tendendo-se à conveniência do "mais fácil" ou do mais simples, uma vez que o modelo a ser imitado por todas as artes é sempre o mesmo, ou seja, a natureza, em si, bela, boa e útil. Para Batteux, o "juiz nato de todas as belasartes é o gosto", uma vez que o bom gosto nas artes, a par da imitação da bela natureza, é regrado pelo sentimento, ou pelo "gênio", sendo esse o sentimento em conformidade com as coisas naturais. O gosto é para as artes o que a inteligência é para as ciências, essas interessadas pelo verdadeiro, aquelas, pelo que é belo e bom, como expressão do verossímil. "Agradar", "levar ao prazer", sempre foi o seu objeto, constituindo-se as artes os seus "novos objetos", embora o gosto sempre permaneça constantemente o mesmo, uma vez que procede da imitação do "modelo da natureza". Os objetos apresentados pelas artes, segundo Batteux, devem ter "uma relação íntima conosco", despertando o nosso interesse à medida que nosso espírito prova da variedade, assim, multiplicando em nós os sentimentos e as ideias. À arte cabe a função de dotar as diferentes partes desses objetos de um "grau requintado de força e de elegância", fazendo-os parecer como novos, porquanto apresentados de maneira singularíssima, para a audiência ou espectadores, que, por sua vez, compartilham das mesmas doutrinas do "legislador", e julgam o êxito da ficção.

As definições de Batteux sobre "o gosto" coincidem também com as de Montesquieu, que foi incumbido de escrever um verbete sobre esse conceito para a enciclopédia de D'Alembert e Diderot, anotadas em um ensaio inacabado iniciado em 1753. Para Montesquieu, o "gosto é aquilo que nos liga a uma coisa por meio do sentimento". O gosto, adquirido, cultivado, dá a conhecer, para o sentimento, as regras particulares que o "gênio" do artista utilizará na invenção e disposição de seu discurso, comportando-se todas as artes particulares como formas discursivas consoantes à poesia, que é exemplo para Batteux de imitação do belo natural, estendido ao gosto, e, assim, a todas as artes. sendo o "gênio" uma aptidão e uma disposição do ethos do artista na contrafação do modelo natural, por meio da imitação, o "gosto", para Batteux, consequentemente está subordinado ao mesmo princípio, sendo em relação ao mesmo não uma aptidão produtiva, como o "gênio", mas somente apreciativa e legislativa. o "gênio", por sua vez, é uma tópica que também corresponde às doutrinas, não investido ainda da subjetividade psicologizada que o projetará no "romantismo" como principal expoente de arte que se apresente como expressão autônoma e intimista. Para Batteux, a sua função consiste "não em imaginar o que pode ser, mas encontrar o que é", inventando, isto é, achando um objeto já existente com o propósito de imitálo. Trata-se de uma aptidão apropriada ao exercício, principal, de reconhecimento, feito também pelo "gosto", uma vez que na natureza, onde tudo existe, pode ser encontrado o modelo prototípico para as artes que nunca sobrevêm do nada. Ao servir como meios de transporte dos "traços que estão na natureza e apresentá-los em objetos que não são naturais", as artes assumem a direção da produção do verossímil, e não da busca pelo verdadeiro, servindo-se da matéria que a natureza efetivamente lhe oferece. Tal tópica se apresenta em muitos outros lugares, por exemplo, em Kant, na terceira crítica, obra do final do XVIII, quando esse analisa a relação entre "bela-arte, gênio e gosto". Para Kant, do mesmo modo, a arte, usando a matéria da natureza, é capaz de criar como uma outra natureza, e em vista disso propõe: "uma beleza natural é uma bela coisa; a beleza artística é a bela representação de uma coisa" (Crítica do Juízo, 48). Batteux é mais explícito. "O que é uma pintura?", pergunta ele, para em seguida responder: "Uma imitação dos objetos visíveis. Ela nada tem de real, nada tem de verdadeiro. Tudo nela é aparência, e sua perfeição só depende de sua verossimilhança com a realidade".

Divergem os dois autores, sutilmente, quanto à direção determinada para o conceito de "gênio", aptidão natural para ambos, porém, voltada mais à invenção de "ideias estéticas" ou daquelas "ricas em imaginação", segundo Kant, do que algo que se apresenta como uma acurada capacidade investigativa, segundo o autor francês. Talvez possa se propor, aqui, a captura do conceito de "gênio" pela filosofia do final do XVIII, pelo que Kant o determina como a "disposição natural inata" ativa no sujeito, como natureza reflexionante, de onde provém toda regra necessária à produção da bela-arte, dispensando outras regras que lhe sejam alheias. Contingentes, as leituras que se fizeram, sobretudo no XIX e início do XX, dessas e de outras proposições kantianas, serviram às definições mais recentes de arte para as quais a expressão e a criação, principais chaves de entendimento dessas, rondam subterraneamente o autor subjetivo. Batteux, porém, deve ser lido ainda em concordância com as doutrinas neoaristotélicas circulantes à época. Para essas, as artes pertencem ao Intelecto Ativo que é parte da Razão Universal, conduzindo-se como hábitos factivos ou conforme uma recta ratio factibilium, "a reta razão dos factíveis", sendo o gênio uma aptidão que imita, emula e aperfeiçoa, pelo composto imitado, o modelo da natureza, sem deixar o referido composto "de ser natural". É, ao lado do "gosto", o "gênio", um dos critérios da produção artística, não determinante, mas imitativo, por isso condutor quanto à natureza das artes e seus pressupostos, retóricos, de decoro e elegância. Em outras palavras, o "gênio" escolhe e organiza entre os inúmeros objetos naturais, aqueles que são convenientes à invenção e à imitação, na composição das partes da arte à qual o artista se dedica. Por isso, Batteux afirma: "O gênio é como a terra que não produz nada de que não tenha recebido a semente". Servindo-lhe de apoio e alimento, a natureza dispõe a ele as suas riquezas, encarecendo a imitação como operação de reconhecimento dessas, "naquilo que é propriamente arte", ou como construção de um "fundo de verdade", misturada habilmente à ilusão. Lendo Aristóteles, possivelmente a partir da edição comentada da Poética, publicada por André Dacier, em 1692, Batteux redita a comparação entre poesia e história, esta ligada ao verdadeiro, aquela, ao verossímil: "O historiador dá os exemplos tais como são, frequentemente imperfeitos. O poeta os dá tais como deveriam ser. E é por isso que, segundo o mesmo filósofo, a poesia é uma lição muito mais instrutiva do que a história". A imitação prevê a seleção das partes da natureza e também dos fatos assim ditos verdadeiros na efetuação de uma ficção baseada no verdadeiro, vera fictio, associada à composição do pleno artifício, falsa fictio, operação também retórica que, para o autor, é exemplificada pela tópica "inscrição de similitudes". Operante em Plínio o Velho, que é referência para Batteux e todos os outros autores do período, essa tópica é reapresentada pelo nosso autor no exemplo da seleção de belezas, feita por Zêuxis para a pintura de uma deusa, ou pela pintura das batalhas de Alexandre, por Le Brun, ou ainda nas Musas de Hesíodo etc.

A imitação, contudo, somente se completa como perfeição de arte se o estado do gênio, excitando-se, no momento em que se completa a composição, preenche-o como se fosse uma "ideia viva", que o faz se esquecer de si mesmo. Extasiado, o gênio tem, na chave do entusiasmo platônico, redito por Cícero, condições de se unir ao seu objeto, vivendo pelo sentimento os artistas os personagens de suas invenções, "colocando-se no meio das coisas que queiram representar", transportando-se, por exemplo, os pintores, para as cenas de batalha que desejam pintar. Para Batteux, as artes consistem na imitação da bela natureza, que em si é boa e útil, "representada", assim, "ao espírito no entusiasmo". Divididas em três espécies, as "artes mecânicas", as "belas-artes" e as da "eloquência e arquitetura" são as de segunda espécie a receber tratamento que as articula em torno do princípio de imitação poética. Assim, logo após tratar da natureza do gênio e do gosto, Batteux lança-se a analisar a operação do "mesmo princípio" à poesia, suas divisões e gêneros, "à pintura, à música e à dança". Homólogas à poesia, essas artes estão destinadas a se mostrarem juntas ou reunidas, especialmente a primeira, seguida das duas últimas, porquanto a elas cabe a tarefa de "apresentar a imagem das ações e paixões humanas", aristotelicamente. Uma vez que a natureza criou os seus princípios, com o fim de mantê-los unidos, esse é o princípio fundamental ou o primeiro princípio. À arquitetura, escultura e pintura, por sua vez, caberia a missão de armar a cena para o espetáculo ou para a exposição do composto imitado. Para tanto, Batteux propõe para esta última, a pintura, também uma homologia com a poesia, extensível às demais artes. Basta, segundo ele, que se substituam os nomes "poesia, fábula, versificação" pelos nomes "pintura, desenho, colorido". Vistos hierarquicamente como partes da pintura, "desenho e colorido", neste último incluso o claro-escuro, são remissivos à divisão da pintura que circula pelos tratados a ela dirigidos desde pelo menos meados do século XV. Pense-se, por exemplo, na articulação "desenho/claro-escuro/cor", operante em Alberti, depois vigente nas academias de Bologna, Roma e França, e alhures. Articulação que também se instalará mais tarde na Instituição acadêmica brasileira, do século XIX, à luz de reflexão quase sempre estatutária, legível em decretos de nossa burocracia oficial.

Luiz Armando Bagolin é professor do Instituto de Estudos Brasileiros (IEB-USP). @ - lbagolin@usp.br

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    23 Ago 2010
  • Data do Fascículo
    2010
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