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Traduzir Ariosto: um depoimento

Resumos

Traduzir o Orlando Furioso requer não só redescobrir a "loucura" do poema, mas respeitar sua expressão clássica. Essas ideias levam o autor a comentar alguns aspectos de sua tradução.

Ariosto; Orlando Furioso; Poesia italiana; Literatura e loucura; Tradução


Translating Orlando Furioso requires both rediscovering the "insanity" in the poem and respecting its classical expression. These ideas lead the author to commenting on some aspects of his own translation.

Ariosto; Orlando Furioso; Italian poetry; Literature and madness; Translation


DOSSIÊ TRADUÇÃO LITERÁRIA

Traduzir Ariosto: um depoimento

Pedro Garcez Ghirardi

Professor titular de Literatura Italiana na Universidade de São Paulo (USP). Recebeu o "Prêmio Jabuti" (2003) pela tradução de Ariosto. @ – pegg@usp.br

RESUMO

Traduzir o Orlando Furioso requer não só redescobrir a "loucura" do poema, mas respeitar sua expressão clássica. Essas ideias levam o autor a comentar alguns aspectos de sua tradução.

Palavras-chave: Ariosto, Orlando Furioso, Poesia italiana, Literatura e loucura, Tradução.

Dizer que estas reflexões se limitam ao depoimento leva a começá-las por algumas lembranças. Foi aqui, na Universidade de São Paulo, há mais de 30 anos, que surgiu o projeto de traduzir Ariosto. Para o então jovem professor de Literatura Italiana seria o melhor modo de se familiarizar com aquele que, entre os maiores poetas da Itália, era talvez o menos divulgado.

A década era a de 1980. Enquanto lecionava e preparava o doutoramento, concluía minha tradução da Mandrágora, de Maquiavel. Surgiam então entre nós os primeiros cursos de Tradução Comentada e fui chamado a ministrar alguns deles. O atual Prédio de Letras estava ainda em construção: davam-se as aulas nas chamadas "Colmeias", hoje ocupadas por outros serviços da Universidade. Eram aulas vespertinas, frequentadas por poucos estudantes um tanto sonolentos, recém-saídos do almoço no "bandejão": mal se podia prever que em poucos anos os estudos de Tradução teriam crescimento extraordinário. Os alunos de Italiano (e não só esses) anteviam na Tradução o passaporte para outros mundos profissionais. O risco era que as aulas deixassem de lado a tradução literária que, a meu ver, devia receber atenção principal em cursos vinculados a departamentos de Letras. Para que a literatura não acabasse posta de lado, promoveram-se seminários de discussão e tradução de páginas de prosadores contemporâneos. Muitos falavam das obras de Umberto Eco, que por esses anos visitara a USP e lançara Il nome della rosa.

A experiência de classe (em cursos de Tradução e especialmente nos de Literatura) levou-me a confirmar a impressão de que Ariosto era pouco ou nada conhecido. Isso não só entre nós, pois observava há alguns anos um professor da Sorbonne que seu poema é "l'une des oeuvres les plus célèbres (peut-être pas les plus lues) de la Renaissance" (Renucci, 1998, p.52). Pena é que seja assim, não só pela reconhecida beleza da obra, mas pela força surpreendente de sua visão crítica. Tentar transmitir algo dessa visão serviu de estímulo a levar adiante o projeto de traduzir o poema. Na Universidade e no Brasil vivíamos o final de um longo período de autoritarismo político. Era desejo de todos, especialmente as novas gerações, sair de discursos intolerantes, como o que havia sido oficial no país por mais de vinte anos. Ajudar a redescobrir Ariosto poderia talvez ser uma contribuição, por pequena que fosse, para responder aos anseios da juventude naquele tempo de renovação.

Falou-se em redescobrir. Isso porque o Orlando Furioso, quando não esquecido, costuma ser visto somente como exercício magistral de fantasia, obra de "pura literatura", no sentido menos comprometido da expressão. O que quase nunca se observa, a meu ver, é que a beleza da obra, sempre reconhecida, tem raiz numa estrutura poética feita de contrastes. A palavra dominante e a palavra marginalizada, a "razão" e a "loucura" permeiam todo o poema (cf. Ghirardi, 2011).

A falta de atenção a esse ponto central pode talvez explicar por que tão pouco se lê uma obra que nos permite colher alguns dos mais preciosos frutos do Humanismo. O Orlando Furioso opera a desconstrução (como hoje dizemos) de supostas "racionalidades absolutas", a serviço de poderes também absolutos. Bem por isso o poeta começa pela autocrítica. Quem canta as aventuras de Orlando Furioso é alguém que desconfia de seu próprio juízo, que se confessa talvez tão perturbado quanto Orlando (cf. I,2; XXIV, 3).1 1 Esta e as demais citações de minha tradução, salvo indicação contrária, remetem à citada edição de 2011 (Ariosto, 2011). Daqui nasce o socrático sorriso com que o poeta desmascara um establishment que condena as dissidências ao "politicamente correto" do tempo (dissidências rotuladas de "traições", "crimes de lesa-majestade", "heresias" – enfim, "loucuras"). O espaço dado pelo poema ao discurso marginal pode notar-se já nas figuras centrais, que não vêm do mundo clássico, predominante na cultura renascentista, mas sim do mundo fantástico medieval, que resistia nas narrativas populares. Este, aliás, foi um dos sinais da "loucura" do poema, segundo retóricos aristotélicos da época. Foi também um dos segredos de sua imediata popularidade. Outro segredo terá sido a abertura à visão alternativa, "feminina". Desde cedo inúmeras leitoras se reconheceram nas mulheres do Orlando Furioso.2 2 Basta mencionar as histórias de Genebra, condenada à morte por falsa acusação de adultério (cantos IV-VI), de Olímpia, traída pelo homem a quem entregara os bens e a vida (cantos IX-XI) e a memória de opressão que leva à tirania feminina da Ilha das Mulheres (cantos XIX-XX) (cf. Ghirardi, 2011, p.11-12).

O que se acaba de dizer pode talvez sintetizar-se em uma das páginas mais famosas do poema, a viagem à lua. O episódio mostra-nos no relevo lunar montanhas feitas das coisas que perdemos cá na terra. Tudo lá se encontra, menos o que entre nós nunca se extravia. Vale ao menos ler uma das estrofes (XXXIV, 18):

Lungo sarà, se tutte in verso ordisco

le cose che gli fur quivi dimostre;

che dopo mille e mille io non finisco,

e vi son tutte le occurrenze nostre;

sol la pacía non v`è poca né assai;

che sta qua giú, né se ne parte mai.

Ou, em tradução:

Outras coisas que viu, mui numerosas,

Pedem tempo que o verso meu não dura,

Pois lá encontrou, guardadas e copiosas,

Mil coisas de que andamos à procura.

Só de loucura não viu muito ou pouco,

Que ela não sai de nosso mundo louco.3 3 "Lungo sarà, se tutte in verso ordisco/ le cose che gli fur quivi dimostre;/ che dopo mille e mille non finisco, /e vi son tutte l´occurrenze nostre; / sol la pazzia non v´è poca né assai; / che sta qua giù, né se ne parte mai". O trecho se acha traduzido em Orlando Furioso (cantos e episódios) (Ariosto, 2002).

Por versos como esses diria Dom Quixote que "me precio de cantar algunas estancias del Ariosto".4 4 Cervantes, Don Quijote de la Mancha, II, 42. "Cantar", pois a crítica ao discurso absoluto e pretensamente "racional" melhor se expressa pela voz da poesia, linguagem da intuição. Poesia feita de sonoridade quase musical e de imagens que rivalizam com as dos gregos e latinos.

O projeto de traduzir Ariosto foi, pois, indissociável do convite a fazer dialogar o Orlando Furioso com o momento que então se vivia. Era preciso apontar o que chamei de "sequestro da loucura" do poema (Ghirardi, 2001, p.13ss), a conjuração de silêncio de muitos críticos que, exaltando a beleza "formal" da obra, nela veem, quando muito, uma alegoria moralizante. Nessa alegorização, justamente, houve quem denunciasse uma das muitas tentativas de tornar inócuo um poema perigoso, "the most frequent technique to domesticate the Furioso" (Javitch, 1991, p.6, grifo meu). São palavras de um recente crítico que infelizmente nem sempre as relembra no restante de sua argumentação.

Claro está que se o cantor do Orlando Furioso não esconde dúvidas quanto à lucidez de seu juízo, menos poderá escondê-las quem tenta reinterpretá-lo e traduzi-lo. Bem adverte o poeta (I, 7) que o juízo humano muitas vezes erra: "Ecco il giudizio uman come spesso erra!" (I, 7). Seria então incoerente pretender transformar este depoimento em apologia do que, bem ou mal, se conseguiu fazer. Vale aqui lembrar a resposta de um famoso "vizinho" de Ariosto, o grande Fellini. Ao lhe perguntarem como avaliava a obra que criara, confessou que preferia nem sequer voltar a assistir às cenas que levara às telas. Se, ao percorrer canais de televisão, surgiam imagens de seus filmes, ficava perplexo e por vezes se perguntava quem teria feito aquilo tudo: "Ma chi ha fatto questo?".

Falar com certa lucidez do que se traduziu, se não chega a ser impossível, parece talvez até mais difícil do que traduzir. O que se poderá, quando muito, é delinear propósitos inspiradores do projeto e discutir tentativas de resolver dificuldades concretas levantadas pelo texto que se buscou tornar acessível. Dos propósitos já se falou. Quanto às tentativas de solução, creio que bastará fazer referência a dois grandes desafios.

Já disse que esse projeto remonta à década de 1980, quando os estudos de Tradução começavam a firmar-se nesta Universidade. Àquela altura, o que mais parecia despertar interesse dos pesquisadores era o que poderíamos chamar de potencialidade "de ruptura", em qualquer obra por analisar ou por traduzir. Os textos mais em vista eram os que permitissem quebrar padrões consagrados de expressão linguística. Os autores aclamados (de preferência os "não canônicos") eram os que sobressaíam pelo experimentalismo léxico e sintático. Nesse contexto o projeto de tradução de Ariosto não podia despertar interesse imediato. Tratava-se de mostrar como um autor "canônico", fiel à tradição linguística do petrarquismo, justamente assim criticava parâmetros dominantes em seu tempo.

Nesse caráter surpreendente do Orlando Furioso, a tradução encontrava o primeiro grande desafio. Tentar que o processo de transposição alcançasse algum grau de "equivalência" com o padrão linguístico original exigia que as soluções da tradução procurassem priorizar lições dos clássicos de nossa língua. Tentar esse caminho, além de outras objeções que se poderiam mover, seria talvez correr o risco de criar barreiras entre a obra traduzida e o público leitor. Seria preferível fazer concessões mais amplas ao uso coloquial ou mesmo resignar-se a omissões e adaptações?

O que se pode lembrar, a esta altura, é que a linguagem clássica do original não impediu sua popularidade. Sabemos que desde a primeira publicação do Orlando Furioso (1516) até a edição definitiva (1532) o trabalho de revisão, cuidadosamente empreendido pelo autor, resultou em afastamento do falar coloquial de então. As revisões do poema, particularmente a última, promovem o afastamento do italiano mais ou menos dialetal da corte de Ferrara, e ainda mais do vernáculo corrente na região. O que se tem em vista é a linguagem do petrarquismo (aliás, desde 1525 recomendada pelo então respeitadíssimo tratado de Bembo, Prose della Volgar Lingua).

Nem por isso, como se dizia, o Orlando Furioso deixou de ser lido por todos. Sua popularidade o fez querido até de leitores semialfabetizados. Bem conhecido é o caso dos bandoleiros que deixaram de assaltar Ariosto, ao reconhecerem o autor de uma obra que recitavam com entusiasmo. Menos lembrado é que as camponesas italianas cantavam estrofes do poema, enquanto trabalhavam na ceifa. Quem o conta é Montaigne (1946, p.346). Assim, a busca de padrões linguísticos clássicos não deveria, por si só, criar eventuais barreiras entre a obra e os leitores de hoje. É preciso acrescentar que Orlando, Rodomonte, Sacripante há séculos deixaram de ser heróis populares (mesmo assim, sobrevivem na literatura de cordel e em expressões como "rodomontada" e "sacripanta"). É preciso também reconhecer que buscar lições clássicas não assegura que a tradução sempre as aplique do modo mais acessível à leitura atual. Mas isso nunca se deixou de tentar.5 5 As notas às citadas edições de 2002 e 2011 lembram algumas das soluções concretas inspiradas em Camões, no inigualável Padre Manuel Bernardes e em outros clássicos.

Aqui estava, pois, o desafio preliminar. Muitos outros vinham a seguir. Desses basta agora acrescentar um, estreitamente ligado à questão do padrão linguístico. Fala-se da busca de equivalência das rimas, ponto em que a arte do Orlando Furioso é reconhecidamente única. As rimas de Ariosto, encanto de todos os leitores (é bem conhecido o entusiasmo de Voltaire), revelam-se trabalhosas à tradução que busque, ao menos, um vislumbre do original. Vamos a alguns exemplos.

Há um episódio do canto VII em que o jovem Rogério põe em risco seu promissor futuro de guerreiro. Seduzido pela magia da traiçoeira Alcina, Rogério troca as armas por adornos de cortesão que dela recebera: colar e braceletes. Mas Atlante, que o criara como filho, aparece para repreendê-lo, dizendo-lhe, com sarcasmo, que o jovem assim logo chegaria a rivalizar com Júlio César, Alexandre ou Cipião. Os versos (VII, 59) em italiano, são estes:

Questo è ben veramente alto principio

Onde si può sperar che tu sei presto

a farti un Alessandro, un Iulio, un Scipio!

Chi potea, ohimè, di te mai creder questo

che ti facessi d´Alcina mancipio?

E perché ognun lo vegga manifesto

al collo ed alle braccia hai la catena

con che ella a voglia sua preso ti mena.

A força do nome de Scipio (Cipião), que conclui o terceiro verso da estrofe, domina o grupo de rimas dos três primeiros versos ímpares (principio/mancipio/Scipio). À primeira vista o tradutor teria aqui soluções quase óbvias, bastando manter-se o mesmo nome (Cipião) ao fim do verso correspondente. Isso abriria caminho a rimas abundantes (em "ão") e pertinentes (não estaria mal falar em "servidão" e "iniciação" para traduzir mancipio e principio). Mais bem considerado o original, porém, veremos que aqui se alternam rimas inesperadas, tão incomuns quanto os feitos que evocam. Não caberiam, assim, soluções triviais. É preciso acrescentar que, se quiser manter a ordem em que se mencionam os três heróis, a tradução dificilmente evitará a destruição do decassílabo (ou hendecassílabo, no cômputo italiano), pois a sequência de nomes, em português, não é compatível com a desejável distribuição dos acentos métricos.

Diante disso, o que pareceu menos desaconselhável foi dar a posição de relevo, no verso correspondente, não ao nome de Cipião (Scipio), mas ao de Júlio (Iulio). A escolha favorece a construção rítmica e obriga a buscar o melhor efeito entre as poucas rimas possíveis. Desse modo as soluções talvez ficassem menos distantes do que ocorre na estrofe original. Eis, então, traduzidas, as palavras de Atlante a Rogério:

É dos mais altos teu começo! Emule-o

Quem quiser, como tu, chegar depressa

A ser Cipião, ou Alexandre, ou Júlio!

Quem pode crer, oh dor!, que isto aconteça,

Que de Alcina sucumbas ao acúleo?

E por que a servidão mais apareça

Tens no pescoço e braços a cadeia

Com que ela a seu alvitre te meneia.

Ainda no tocante às rimas, o canto seguinte dá exemplo que novamente envolve nomes próprios em posição de fecho de verso (o que não é raro em Ariosto). Temos aqui o exército cristão sitiado e as muralhas de Paris ameaçadas de incêndio pelos invasores. Ameaçado, Carlos Magno recorre à força da oração. É ouvido: desaba uma chuva torrencial que salva a cidade e leva o imperador a reconhecer que nada pode sem o auxílio dos Céus. A estrofe original (VIII, 70) é esta:

Il Sommo Creator gli occhi rivolse

al giusto lamentar del vecchio Carlo,

e con subita pioggia il fuoco tolse,

né forse uman saper potea smorzarlo.

Savio chiunque a Dio sempre si volse

ch´altri non poté mai meglio aiutarlo.

Ben dal devoto re fu conosciuto

che si salvò per lo divino aiuto.

Deixemos por ora comentários de outra ordem, entre os quais a analogia entre duas preces igualmente atendidas: a de Carlos, que, como cristão, aqui se dirige a Deus, e a de Medoro que, como pagão, invoca a Lua, sua deusa (XVIII, 184). Fiquemos, porém, na questão das rimas, que nesta oitava uma vez mais se mostram incomuns. A dificuldade maior, para o tradutor, está em um nome de Carlos (Carlo) que ocupa o fim do verso. Isso contribui para realçar a importância do imperador, ponto culminante da hierarquia da cristandade. Sabe-se, por sua vez, que seu nome não encontra rimas em português. Restaria, então, retirá-lo do final do verso, substituindo-o, digamos, pelo título de "imperador". Essa opção acarretaria rimas abundantes, fáceis e pertinentes (por exemplo, Creatore ou Dio poderiam traspor-se, em posição rimada, como "Senhor" ou "Criador").

Não foi essa, contudo, a solução adotada. Em vista do relevo métrico dado a Carlo e da qualidade das rimas associadas ao nome, tentar preservar algo do original pedia buscar resultados menos comuns. A solução que se adotou acabou inspirada em Os lusíadas (IV, 32). Ao falar da batalha de Aljubarrota, a estrofe de Camões conclui-se com estes versos:

Contra irmãos e parentes (caso estranho!)

Quais nas guerras civis de Júlio e Magno.

A rima camoniana veio abrir aqui caminhos oportunos. Isso porque Carlo é, afinal, Carlos "Magno". A inclusão desse atributo permitiria manter a posição métrica do nome próprio e evitar soluções enfraquecidas. A tradução proposta foi esta:

O Sumo Criador os olhos volve

Ao justo lamentar de Carlos Magno;

Extingue ao fogo a chuva e à terra envolve

(Não é dado ao mortal poder tamanho).

Sábio é quem seu cuidado a Deus devolve:

Terá melhor amparo que o de estranho.

Ao pio imperador o caso ensina

Que deve a salvação à mão divina.

Outro exemplo pode vir ainda do mesmo canto, onde encontraremos uma ocorrência que se repete algumas vezes no Orlando Furioso. Trata-se da rima simplesmente visual (rima all´occhio). O caso curioso surge durante o episódio do sono de Orlando (um dos primeiros sinais de sua progressiva loucura). O paladino sonha e, a certa altura, vive um pesadelo, pois a visão de sua amada Angélica é interrompida pelo vendaval que arrebata a donzela. Diz o original (VIII, 82):

Intanto l´infelice (e non sa come)

perde la donna sua per l´aer fosco

onde di qua e di là del suo bel nome

fa risonare la campagna e il bosco.

E mentre dice indarno – Misero me!

Chi ha cangiata mia dolcezza in tosco? –

ode la donna sua che gli domanda,

piangendo, aiuto e se gli raccomanda.

Nessa oitava, o quinto verso oferece bom exemplo de rima visual. As palavras finais do verso, em negrito (misero/me), embora tenham cada qual sua própria tonicidade, são organizadas como se formassem unidade, com tônica na penúltima sílaba (Miserome). Assim se cria a ilusão de rima perfeita com o fecho dos versos correspondentes. Convinha, se possível, conservar na tradução a ocorrência original. A tentativa levou ao seguinte resultado (também posto em destaque):

E vê o mísero a dama que se some

(Como, não sabe) na borrasca escura;

Então, lá e cá, sai a gritar-lhe o nome

Por veredas do campo e da espessura.

– Infeliz! – vai dizendo – Eu aflijo-me,

Pois quem mudou em fel minha doçura?

Logo escuta, chorosa, sua dama

Que pede auxílio e que por ele clama.

Se passarmos ao canto seguinte, vale mencionar uma das primeiras estrofes (IX, 3). Aqui, como em outros pontos do poema, Ariosto revela gosto pelas rimas governadas por numerais. Nessa cena a tropa adversária dos cristãos, que prematuramente cantara vitória, via-se cansada, a andar sob a chuva. Todos se espalham, afinal, para repousar em magotes de dez, de vinte, de quatro, de sete, de oito ("a dieci, a venti, a quattro, a sette, ad otto"). Procuram dormir como podem. Orlando os espreita, mas não desembainha a espada, Durindana, pois seria desonroso matar à traição os adormecidos. Esta é a estrofe original:

anzi, non attendata, perché sotto

alberi e tetti l´há sparsa la pioggia

a dieci, a venti, a quattro, a sette, ad otto;

chi piú distante e chi piú presso alloggia.

Ognuno dorme travagliato e rotto:

chi steso in terra e chi alla man s´appoggia.

Dormono; e il conte uccider ne può assai:

né però stringe Durindana mai.


O numeral que encerra o terceiro verso (otto) não acarreta escassez de rima em italiano, ao contrário do que ocorre com seu correspondente em português. É claro que o tradutor poderia procurar soluções com outros numerais de maiores possibilidades sonoras ("dez" ou "sete", por exemplo). Mas isso dificilmente se faria sem destruir a beleza do verso, cujo ritmo acompanha o crescer e decrescer dos números. Para essa estrofe (que fala, como se disse, de uma tropa em dispersão) eis a solução que se conseguiu propor:

Mas não fica nas tendas; valhacoito

Dão-lhe árvores e choças, que a tormenta

Lá dez, cá vinte, ou quatro, ou sete, ou oito,

Atira e aos trambolhões desaposenta.

Dorme no chão o triste povo afoito;

Nas mãos se apóia a fronte sonolenta.

Fizera Orlando ali fácil matança,

Mas guarda a Durindana, que descansa.

Das inúmeras surpresas que se oferecem na organização das rimas do Orlando Furioso, lembremos ainda a que se encontra no canto seguinte (X, 76). Prepara-se a revista das forças inglesas e escocesas prontas a socorrer o exército de Carlos Magno. Cria-se na descrição uma teia de variações sonoras. Temos, aparentemente, uma estrofe de rimas construídas com palavras de terminação semelhante. Qualquer afinidade, porém, se desfaz, pela diferente organização das rimas. Nos três primeiros versos pares, essas se dão entre paroxítonas com acento em vogal seguida de consoantes dobradas (ann); nos três primeiros versos ímpares a vogal é seguida de consoante simples (an), mas a rima é dominada por vogal diferente (e), na qual recai o acento da proparoxítona. Vejamos como se organiza a estrofe original:

E finita la mostra che faceano,

alla marina si distenderanno,

dove aspettati per solcar l´Oceano

son dai navili che nel porto stanno.

I Franceschi assediati si ricreano,

sperando in questi che salvar li vanno.

– Ma acciò tu te n´informi pienamente,

io ti distinguerò tutta la gente.

Talvez caiba lembrar, a esta altura, o que quase todos bem sabem: em italiano as consoantes dobradas não são mera reminiscência etimológica, mas soam com nitidez na pronúncia e conservam plena relevância semântica (por exemplo, "fato", que corresponde a "fado" ou "destino", não se confunde com "fatto", "feito"). Estamos, portanto, diante de uma estrofe que imporá ao tradutor, qualquer que seja seu idioma, dificuldades graves de equivalência sonora; em algumas línguas, que não contam com proparoxítonas (como o francês) a perda possivelmente será total; em outras, como a nossa, a perda será menor, mas não foi possível reproduzir na tradução o jogo entre sonoridades consonantais simples e dobradas. Já têm dito os estudiosos que qualquer tradução implica perdas e ganhos. Diante disso, resta procurar reduzir as perdas, preservando o tecido de alternâncias de sons próximos, com diferença de tonicidades. Foi o que assim se procurou fazer:

Depois de terem desfilado, impávidos,

À praia irão e às naves, precavidos.

Os lenhos sulcarão as águas, grávidos

Destes que por exímios são havidos.

Folgam os assediados francos, ávidos

De verem seus domínios reavidos.

– Mas por que disto saibas plenamente

nomearei, uma a uma, cada gente.

A riqueza da criação de Ariosto no tocante às rimas (para ficar no aspecto aqui tratado) mostra-se também no caso frequente de trocadilhos. Notável, a esse respeito, é o final do episódio da copa mágica (XLIII, 44). Ao ser recebido em um castelo, o cavaleiro Rinaldo é convidado pelo castelão a beber o vinho contido em uma taça extraordinária. Quem quer que consiga levá-la aos lábios sem manchar-se pode estar certo de ser amado com fidelidade; mas se o vinho se entornar antes de sorvido, será certa a traição no amor. Embora apaixonado e confiante, Rinaldo recusa-se a fazer a experiência. O dono da taça o elogia, então, dizendo ter sido ele o único hóspede sensato dos muitos que haviam passado pelo castelo. Todos os que aceitaram a taça, a começar pelo dono, acabaram por se arrepender. Assim conclui o castelão, no original:

Il conforto ch´io prendo è che di quanti

per dieci anni mai fur sotto il mio tetto

(ch´a tutti questo vaso ho messo inanti),

non ne trovo um che non s´immolli il petto.

Aver nel caso mio compagni tanti

mi dà fra tanto mal qualche diletto.

Tu fra infiniti sol sei stato saggio,

che far negasti il periglioso saggio.

Não é preciso dizer que saggio, palavra posta em destaque no fecho dos últimos versos, pode entender-se em italiano como adjetivo ("sábio, prudente") ou como substantivo ("experiência, ensaio"). Daí o trocadilho, um dos tantos que surgem no Orlando Furioso. Nesse caso a solução que se propôs (vai também em destaque) foi esta:

Conforto é que, aos maridos quando hospedo,

(E esta casa há dez anos que os acolhe)

Sempre a taça fatídica lhes cedo,

E não encontro um só, que não se molhe.

Por estar consolado, se não ledo,

Basta que eu tantos companheiros olhe.

Só tu, que não a queres, nem a provas,

Entre mil, de ser sábio deste provas.6 6 O episódio se acha traduzido na edição de 2002, citada.

Quase não há trecho do Orlando Furioso que não ponha o tradutor diante de tais desafios. E na incomparável estrofe de Ariosto, justamente chamada de "oitava de ouro" (ottava d´oro) a organização das rimas é um, somente, dos muitos aspectos que requerem constante atenção do tradutor. Mas essas considerações vão longe demais. Anunciou-se um simples depoimento e é tempo de encerrá-lo. Só cabe, afinal, agradecer aos que o leram, com as palavras destes versos de Ariosto (I,3):

Né che poco io vi dia da imputar sono,

Che quanto io posso dar, tutto vi dono.

Nem por vos dar tão pouco ingrato sou,

Pois do que posso dar, tudo vos dou.

Notas

Recebido em 16.7.2012 e aceito em 27.7.2012.

  • ARIOSTO, L. Orlando Furioso São Paulo: Ateliê, 2002.
  • _______. Orlando Furioso São Paulo: Ateliê; Campinas: Unicamp, 2011. t.I.
  • GHIRARDI, P. G. Gravuras, leituras, loucuras: visões do Orlando Furioso. In: ARIOSTO, L. Orlando Furioso São Paulo: Ateliê; Campinas: Unicamp, 2011.
  • JAVITCH, D. Proclaiming a Classic New Jersey: Princeton University Press, 1991.
  • MONTAIGNE, M. de. Journal de Voyage en Italie Paris: Société Les Belles Lettres, 1946.
  • RENUCCI, P. L'Arioste. In: Dictionnaire de la Renaissance Org. Albin Michel. Paris: Albin Michel; Encyclopaedia Universalis, 1998.
  • 1
    Esta e as demais citações de minha tradução, salvo indicação contrária, remetem à citada edição de 2011 (Ariosto, 2011).
  • 2
    Basta mencionar as histórias de Genebra, condenada à morte por falsa acusação de adultério (cantos IV-VI), de Olímpia, traída pelo homem a quem entregara os bens e a vida (cantos IX-XI) e a memória de opressão que leva à tirania feminina da Ilha das Mulheres (cantos XIX-XX) (cf. Ghirardi, 2011, p.11-12).
  • 3
    "Lungo sarà, se tutte in verso ordisco/ le cose che gli fur quivi dimostre;/ che dopo mille e mille non finisco, /e vi son tutte l´occurrenze nostre; / sol la pazzia non v´è poca né assai; / che sta qua giù, né se ne parte mai". O trecho se acha traduzido em
    Orlando Furioso (cantos e episódios) (Ariosto, 2002).
  • 4
    Cervantes,
    Don Quijote de la Mancha, II, 42.
  • 5
    As notas às citadas edições de 2002 e 2011 lembram algumas das soluções concretas inspiradas em Camões, no inigualável Padre Manuel Bernardes e em outros clássicos.
  • 6
    O episódio se acha traduzido na edição de 2002, citada.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      22 Nov 2012
    • Data do Fascículo
      Dez 2012

    Histórico

    • Recebido
      16 Jul 2012
    • Aceito
      27 Jul 2012
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