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Impasses na tradução de poesia

DOSSIÊ TRADUÇÃO LITERÁRIA

Impasses na tradução de poesia

Geraldo Holanda Cavalcanti

Diplomata, poeta, ensaísta e tradutor brasileiro. É autor dos livros de poesias O mandiocal de verdes mãos e Poesia reunida, do livro de ficção Encontro em Ouro Preto (Record) e de memórias Memórias de um tradutor de poesia e As desventuras da graça. É membro da Academia Brasileira de Letras. Traduziu, entre outros, os seguintes livros de poesias: Eugênio Montale – Poesias, seleção, tradução e notas; Umberto Saba – Poemas; Lalla Romano – Poemas; Sandro Penna – Poemas; Attilio Bertollucci – Poemas. @ – geraldo.cavalcanti@gmail.com

RESUMO

O poema não carrega palavras, mas sentidos que são expressos em conjuntos verbais. Giuseppe Ungaretti faz a distinção entre sentido e significação. O sentido se aproxima da epifania; a significação, da explicação. Uma análise do poema Mattina fornece elementos para melhor compreender essa distinção. O poema, ao mesmo tempo, oferece um exemplo da intraduzibilidade de certos textos poéticos. O autor toma, em seguida, o poema L'Anguilla, de Eugenio Montale, como um bom exemplo dos problemas oferecidos pela tradução interposta, no caso demonstrando que pela leitura das suas versões inglesas ou francesas é impossível alcançar uma clara noção do que está contido no original italiano. Na terceira parte o autor apresenta exemplos colhidos na sua experiência de tradução da obra de Salvatore Quasimodo para ressaltar a importância do recurso à leitura das variantes para o correto entendimento da versão canonizada. A quarta parte pretender resgatar a presença do poeta triestino Umberto Saba, pouco conhecido no Brasil, como um dos quatro maiores poetas italianos do século XX.

Palavras-chave: Giuseppe Ungaretti, Eugenio Montale, Salvatore Quasimodo, Umberto Saba, Tradução de Poesia, Intraduzibilidade da poesia, Leitor de poesia, Variantes, Hermetismo.

Pediram-me um depoimento, não um ensaio. Reflexões de quem se tem dedicado à difícil tarefa da tradução de poesia. Isso pode ser duas coisas: uma curta memória de como me fiz tradutor ou alguns registros de experiências concretas no trabalho da tradução. Tomo este último caminho. E me deterei apenas em um ou dois episódios de alguns dos livros que escrevi.

Ungaretti

O poema não carrega palavras, mas sentidos, já se disse, e muito. Não é preciso acrescentar que o sentido da palavra só pode ser percebido no conjunto semântico em que ela se insere. Mas esse sentido, tampouco, é transparente. Se a palavra é polissêmica por natureza, não o é menos a frase, na obra de ficção ou no verso, neste em particular. Ao escrever o poema o autor não está pensando no leitor. Não o faz para comunicar-se. Está em luta consigo mesmo, querendo encontrar a melhor maneira de expressar o que tem em mente, seja o resultado de uma epifania, seja a mera transcrição de um flash semântico que a si mesmo surpreenda como a mais adequada representação gráfica ou sonora do efeito que deseja reproduzir.

Tomemos um exemplo, um único, que pode mesmo ter representado uma fusão desses dois impulsos, o conhecidíssimo poema Mattina, de Ungaretti, possivelmente o mais sucinto na história da poesia universal, que, isso não obstante, não deixa de impactar mesmo o leitor que o tenha encontrado mil vezes: M'illumino / de immenso. Quem quer que o leia ou o ouça – e ao lê-lo o estará ouvindo – porque ele é feito de música, também – não pode deixar de sentir-se movido por sua intensidade, por sua breveza (a palavra precisa ser criada para caber dentro da brevidade do poema), por sua expressividade. E, nesse caso particular, é sua concentração semântica e prosódica que provoca o choque, o espanto, a admiração. Não é impossível encontrar outros fatores. O crítico italiano Romano Luperini, por exemplo, refere-se, também, ao paralelismo fônico-rímico dos dois versículos, inclusive das duplas rimas constituídas pelos sons do "i" e do "o" no início e no fim de cada um deles. Pode parecer irrelevante, mas absolutamente não o é.

Alguns anos atrás, para uma homenagem que o governo italiano desejava prestar a Ungaretti, o Ministero per i Beni e le Attività Culturali, da Itália, tomou a iniciativa de pedir a poetas representativos de cerca de 150 países a contribuição de suas traduções do poema a fim de serem publicados em uma edição comemorativa. Fui um dos convidados. Não sei se a publicação chegou a ser feita. Não tive notícias. Levei algum tempo para dar uma resposta. O que, num poema tão breve, era a causa de seu extraordinário sucesso? Em sua aparente simplicidade, quase que somente duas palavras, a tradução oferecia notórias dificuldades. Onde estava o mistério de sua força expressiva? Examinando-o por vários aspectos, cheguei à conclusão de que estava na sílaba tônica proparoxítona no início do verso, pois dela é que resultava a explosão que nos batia no peito e na imaginação. Mas não bastava isso. Havia um clima sonoro que não permitia que dele nos afastássemos. Não conhecia, ainda, a observação de Luperini, mas tinha a intuição de que era imprescindível permanecermos no registro dos sons iniciais e finais, conservar as vogais nasalizadas, "im", "em", e, sobretudo, não introduzir novas consoantes para preservar sua limpidez sonora. E minha tradução foi: "Ilumino-me / de imenso", que conserva a sílaba proparoxítona, apenas deslocando-a da segunda para a terceira sílaba do verso. Não se trata, obviamente, de uma tradução original. Deve ter sido a da maioria dos poetas que a tenham tentado. Nem tampouco era original a percepção de que o impacto produzido pelo poema estava na sílaba tônica proparoxítona. Haroldo de Campos já o dissera, e propusera, num seminário internacional sobre o poeta, a tradução "Deslumbro-me / de imenso", para guardar, de acordo com ele, a proparoxítona na mesma posição do original, na segunda sílaba. O que quero demonstrar não é a originalidade da minha tradução, mas a sua gênese, como pode ou deve funcionar a mente do tradutor, diante de uma dificuldade concreta: optar pela tradução que conserve o mais essencial de qualquer poema. Obviamente uma solução como essa não é possível numa tradução para o francês, língua na qual não há palavras proparoxítonas. E por essa razão não a quis fazer Jean Lescure na edição bilíngue dos poemas completos do autor para a Gallimard. Tomou-lhe o lugar Philippe Jaccottet, com o resultado desastrado que comentaremos a seguir.

A propósito, não quero deixar de mencionar o que o próprio Ungaretti dizia sobre o objetivo da poesia (do poema) proporcionar não uma "significação", mas um "sentido", o que foge ao tipo de conhecimento produzido pela razão. Encontro nele a melhor explicação de si mesmo, do que entende ser a função do poeta: "La poesia è poesia solo se uno udendola da essa subito si senta colpito dentro, senza immaginare ancora de potersela spiegare, o non ancora indotto a doversi confessare di non potere mai essere in grado di valutarne le manifestazioni, miracoli". Creio que essas palavras me autorizam a duvidar de qualquer tradução que tente "explicar" o que o poeta quis dizer com o seu poema, a de Philippe Jaccottet, por exemplo (Je m'éblouis / d'infini), ou a de Diego Bastianutti (I grow radiant / in the immensity of it all). Neste caso, aliás, a tradução do italiano Bastianutti, desastrada no segundo verso, não o é tanto no primeiro. Com a palavra radiant (tomado de um sentimento bom, intenso, transbordante – Houaiss), está mais próxima do que pode ter sido a intenção do autor do poema do que a dos demais tradutores que usaram palavras relacionadas a deslumbramento (aquilo que provoca fascínio, sedução, encanto, maravilha – Houaiss). A história do poema confirma meu julgamento.


Na verdade, o poema é um fragmento do originalmente escrito por Ungaretti num cartão postal enviado a Giovanni Papini, durante a guerra, e esse original, de quatro versos, dizia: M'illumino / de immenso / con un breve / moto di sguardi, e foi publicado com o título "Cielo e Mare". Em que circunstâncias foi escrito, é matéria polêmica. Em uma fonte encontro que o poeta se deslocava da trincheira na direção de Trieste e se vê de súbito diante de uma praia com o sol nascendo, iluminando a expansão do céu e do mar. A Ledo Ivo, em 1966, disse o autor que o escreveu na trincheira. Não poderiam ser verdadeiras as duas coisas, que a epifania se deu ao chegar à praia e o poema o autor o escreveu, depois, recordando-a, numa trincheira? Mas isso é querer fazer sentido com o que não precisa ter sentido. O que importa é que houve um momento em que foi súbita a visão do sol nascendo, e acrescentar um mar reverberando seus raios de sol sob um céu infinito dá verossimilhança ao que exprime o poema: uma explosão luminosa e totalmente absorvente. E justifica o título, posteriormente retirado precisamente para não ficar demasiado óbvia a razão do poema. O poeta irradia-se, sente iluminar-se, não se deslumbra. Não se trata de um des-lumbramento (sair da sombra), mas de uma epifania.


Montale

Como sabe o leitor, L'Anguilla é o último poema da quinta parte (Silvae) de La bufera e altro, livro que o poeta escreve em sua plena maturidade. É um dos mais bem construídos do autor. O ponto mais alto da lírica italiana do século XX, nas palavras de William Arrowsmith, um de seus mais respeitados tradutores, meu precursor no Premio Internazionale Eugenio Montale, de Roma. E dizendo isso tenho logo que fazer uma ressalva, pois, como outro tradutor americano, John Frederick Nims, Arrowsmith acrescentou dois versos aos trinta do original. Falta menor, talvez, do que a do também americano Robert Lowell que dele retirou dois.

L'Anguilla narra o percurso que faz uma enguia do Báltico ao Mediterrâneo, onde chega para reproduzir. O poema é feito de um único período, como se fosse para ser lido sem interrupção, sofregamente, acompanhando a enguia no seu périplo, e termina com uma indagação retórica que o poeta faz à sua amada, Clizia, sobre se à obstinação da enguia não poderia comparar-se sua determinação em alcançar os próprios objetivos. Tudo no poema é importante, não há uma palavra que não lhe seja essencial. Ora, se tomarmos as traduções feitas por aqueles poetas, e tantos outros mais, para as línguas inglesa, francesa ou espanhola, em nenhum vamos encontrar uma compreensão real do que estavam traduzindo. Um acrescentará a precisão toponímica "Mar do Norte" aos mari freddi de onde parte a enguia; outro substituirá os mares frios por uma descrição do lugar como a residência de dead-pan Icelandic gods (insípidos deuses islandeses); um terceiro traduzirá os afluentes dos rios que a enguia percorre, passando di ramo in ramo e poi de capello in capello por twig to smaller twig; uma francesa transformará a imagem poética numa definição de dicionário suivant l'embranchement qui se diversifie en fines ramures; mais um americano reduzirá a belíssima descrição da enguia como torcia, frusta, / freccia d'amore (tocha, açoite, flecha de amor), a whipstock (cabo de chicote), a Roman candle [sic] (fogo de artifício). Nenhum pareceu consultar um mapa da Itália para seguir o trajeto da enguia dai balzi d'Appenino alla Romagna, traduzindo o verso ravines spilling downhill towards the Romagna, como se os Apeninos não atravessassem a Romagna. Não posso deixar de citar o americano, renomado poeta, que traduziu iride breve por buried rainbow, o mesmo que traduz estuarî por wetlands and marshes (pântanos e charcos) e podemos seguir com mais e mais exemplos de desastradas traduções, nenhuma tão fora do alvo quanto a da francesa já referida que traduz o último verso do poema puoi tu / non crederla sorella? como nieras-tu leur parenté?!

Por que dizer tudo isso? Talvez para reafirmar minha opinião de que não se deve fazer tradução de poesia por língua interposta, ou o risco de se cometer erros é enorme. Claro, há casos em que a interposição pode ser necessária ou inevitável, como quando se trata de línguas exóticas. Em tais casos, a suspension of disbelief é sempre necessária.

Quasimodo

A leitura das notas e variantes é de particular importância para o bom entendimento do poema a ser traduzido. Isso não é possível na maioria dos casos, quando não são disponíveis edições críticas da obra do autor. No caso dos poetas italianos que abordei, não me faltaram, fossem elas as da coleção I meridiani, ou as do editor Einaudi.

Quasimodo alterava substancialmente seus poemas de uma edição para outra, muitas vezes amputando-os de versos inteiros, como foi o caso com o poema intitulado Ed è subito sera, que introduz seu primeiro livro Acque e terre, de 1920. O poema é curto e vale a pena reproduzi-lo na íntegra: Ognuno sta solo sui cuor della terra / trafitto da un raggio di sole: / ed è subito sera. Para mim tem quase o mesmo impacto do poema de Ungaretti já citado. No entanto, não se trata de um poema originalmente concebido como tal. É, simplesmente, o resultado de um recorte feito pelo autor de um poema publicado em edição anterior de Acque e terre, sob o título original de Solitudini, do qual constituía a última estrofe. O poema foi alterado duas vezes, a primeira quando foi separado como poema autônomo, conservando a vírgula ao final do segundo verso e a segunda quando a vírgula foi substituída pelos dois pontos, uma solução que sem dúvida empresta mais força ao poema. Posteriormente, seu primeiro verso serviu de título para a coletânea de 1942.


Às vezes, porém, os cortes efetuados por Quasimodo resultavam em situações embaraçosas para o tradutor. Foi o que me ocorreu quando traduzia o poema Anche mi fugge la mia compagnia, penúltimo poema da mesma coletânea. Quase abandonei o trabalho por não encontrar sentido sintático nos últimos três versos: Forse è mutata pure mia tristezza / come fossi non mio, / da me stesso scordato. Valeu-me, para não desistir, o recurso às notas da edição crítica. O poema tinha tido o título de Osteria até a 12ª edição de Acque e terre. Depois disso foi publicado com alterações e na versão final sobraram para finalizá-lo o primeiro verso da segunda estrofe e os dois finais da terceira. Ora, é nos versos suprimidos que se encontra o que me faltava pare emprestar sentido aos dois últimos versos que haviam sobrado: il sonno m'è strano / dei rovi e dei canneti / come fossi non mio etc.


Saba

Ninguém discute na Itália terem sido Montale e Ungaretti os dois maiores nomes da poesia italiana do século XX. As opiniões se dividem quando se passa aos seguintes, o terceiro e o quarto, alguns incluindo Quasimodo, outros, Saba, invertendo ou não a sua ordem. O crítico americano Joseph Cary suprime da lista Quasimodo e destaca a importância de Saba. Outros nem sequer mencionam a existência do poeta triestino. Não creio fazer muito sentido esse tipo de debate. Indiscutivelmente esses são os quatro maiores nomes e a ordem de importância é secundária.

O caso de Saba é especial. Quasimodo, Montale e Ungaretti representavam o melhor da tradição literária e poética da Itália, originando-se os três no chamado ermetismo italiano, dominante no primeiro quartel do século. Desenvolveram, diz sucintamente seu entusiasta tradutor Joseph Cary, estilos distintamente difíceis, elevados, aristocráticos. Podíamos acrescentar que viveram, igualmente, em cidades centros de grande atividade cultural: Quasimodo, embora siciliano, em Roma, Florença e Milão; Montale, genovês, boa parte da vida em Florença; o alexandrino Ungaretti, em Paris, São Paulo e Roma. Saba nasceu em Trieste e nela viveu quase toda a vida, sua maior estada fora da cidade natal tendo sido os quatro anos vividos em Florença, o que lhe permitiu certo reconhecimento devido, sobretudo, à patronagem recebida de Montale. Tinha, assim, com relação aos demais poetas reconhecidos nacional e internacionalmente, duas desvantagens: a de certo provincianismo, do qual não conseguiu se desapegar, sobretudo numa cidade como Trieste, que tinha uma história muito particular e excêntrica na Itália, e a qualidade mesma de sua poesia. Diferentemente da dos outros três, que provinham de um caldo cultural comum e altamente fundador e evoluíram a partir dessas fortes raízes culturais, a poesia de Saba pouca ou nenhuma influência recebeu do hermetismo italiano. Saba era um realista, cuja poesia, comparativamente mais fácil e transparente, destoava da dos demais. Ele sabia disso e o proclamava, tanto na crítica que fazia aos poetas que, por ambição de sucesso, praticavam uma poesia "mais vasta e transcendente" do que realmente era, quanto ao reconhecer-se periferico e arretrato, na sua poesia direta, simples, que um crítico, sem querer com isso depreciá-la, chamou de completamente evidente, unívoca. Mas não quero enveredar por comparações e juízos críticos e a única razão de inserir essas poucas reflexões sobre a poesia de Saba é apenas mencionar que dele, também, preparei uma antologia bilíngue, no molde das dos demais poetas, com a esperança infundada de torná-lo conhecido no Brasil onde parece não haver vestígio de que ele haja jamais existido. Sua poesia é bela e original, e poemas como A mia moglie e La capra deviam figurar em qualquer antologia geral da poesia italiana do século XX.

Alguém chamou a sua poesia de horizontal, comparando-a com a de Ungaretti, poeta visceralmente vertical. São apreciações cômodas e certamente verdadeiras. Mas não devem ser tidas como valorativas. São apenas descritivas. Saba foi poeta a tempo integral, como seus contemporâneos famosos, mas, à diferença deles, tinha uma concepção transitiva da poesia, não se escondia atrás dela, deixava-a, por assim dizer, à disposição do leitor. O Montale maduro chegou perto disso, mas sua poesia mais "fácil" era escrita mais para si mesmo, páginas de diários, como ele mesmo as chamou. Saba não. Saba queria ser lido e compreendido. E, se possível, amado.

Recebido em 29.8.2012 e aceito em 10.9.2012.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    22 Nov 2012
  • Data do Fascículo
    Dez 2012
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