Acessibilidade / Reportar erro

O papel e a complexidade do liberalismo no Brasil

The role and complexity of Liberalism in Brazil

ENTREVISTA

O papel e a complexidade do liberalismo no Brasil

José Murilo de Carvalho

Professor Emérito da Universidade Federal do Rio de Janeiro, membro da Academia Brasileira de Ciências e da Academia Brasileira de Letras. Publicou, entre outros livros, A construção da ordem: a elite política imperial; Os bestializados: o Rio de Janeiro e a República que não foi; Teatro de sombras: a política imperial; e A formação das almas: o imaginário da República no Brasil. @ – jmurilo@centroin.com.br

ESTUDOS AVANÇADOS entrevistou o historiador José Murilo de Carvalho sobre aspectos diferenciados da ideologia liberal no Brasil. Descartando generalizações e frases feitas, o nosso melhor estudioso da política do Brasil Império e da Primeira República traçou um quadro preciso do sistema eleitoral brasileiro. Leiam-se também as suas reflexões sobre as estreitas relações que o nosso mundo intelectual oitocentista manteve com a cultura europeia. (Alfredo Bosi)

ESTUDOS AVANÇADOS – Em que medida o sistema eleitoral vigente no Brasil Império adotou as normas dos sistemas liberais do Ocidente Europeu?

José Murilo de Carvalho – O modelo da legislação eleitoral brasileira foi o da Constituição de Cádiz (1812), que tinha sido restabelecida na Espanha em 1820. Com algumas adaptações, ele presidiu à eleição dos deputados às Cortes luso-brasileiras de Lisboa em 1821 e à Assembleia Constituinte brasileira de 1822. Tratava-se da constituição mais liberal da Europa da época no que se refere à extensão do direito do voto. Ela adotava, praticamente, o voto universal masculino no primeiro grau da votação, excluídos apenas os eclesiásticos. Essa liberalidade no primeiro grau era reduzida pela existência de mais três graus de votação. A legislação adotada pela Constituição de 1824 limitou a dois os graus da eleição, um passo democrático, mas introduziu alguns pré-requisitos como a renda (muito baixa, 100$ no primeiro grau e 200$ no segundo) e algumas exclusões, como a dos criados de servir. Manteve o voto dos analfabetos e dos libertos. Era, sem dúvida, democrática para os padrões europeus da época. Nesse quesito, começamos bem.

Ao longo do século, em movimento comum a toda a América Ibérica e oposto ao que se dava na Europa, foram sendo introduzidas restrições ao direito do voto, a maior delas em 1881. A lei da eleição direta desse ano reduziu a votação a um só turno e permitiu a eleição de libertos e o voto de não católicos, mas, em movimento oposto, tirou o direito de voto aos analfabetos que compunham 85% da população. A participação eleitoral que, desde a década de 1830, girava em torno de 10% da população total, mais alta do que a de quase todos os países da Europa, caiu para cerca de 1%. A exclusão dos analfabetos foi mantida pela República. Terminamos mal o século. Os 10% de participação só foram superados a partir de 1945, 64 anos depois da lei de 1881.


ESTUDOS AVANÇADOS – O liberalismo econômico pregado na Inglaterra foi assimilado pelas classes dominantes brasileiras ao longo do século XIX. A quem aproveitou essa incorporação de uma ideologia nascida na Europa?

JMC – Essas generalizações, posto que atraentes, se tornam um tanto problemáticas diante de exames mais acurados. O visconde de Itaboraí, por exemplo, pode ser considerado, sem dúvida, membro da classe dominante. Tavares Bastos, dificilmente. No entanto, o primeiro, saquarema de quatro costados, era protecionista na economia e liberal (não intervencionista) no social. O segundo era liberal ortodoxo na economia e intervencionista no social (escravidão, educação). Na política de terras (lei de 1850), os cafeicultores do Rio de Janeiro eram intervencionistas e favoráveis à limitação do tamanho das propriedades e ao imposto territorial. Os liberais de Minas e de São Paulo eram contra as duas medidas. No Conselho de Estado, que abrigava o topo da elite política, predominava a posição protecionista e estatista em matéria econômica, talvez como sobrevivência do mercantilismo do Antigo Regime.

Dito isso, a liberação do comércio e, lentamente, do capital interessava, sobretudo, aos exportadores e à burocracia estatal. Aos primeiros porque favorecia a exportação, à segunda porque a principal fonte das rendas do Estado provinha dos impostos sobre o comércio externo. Esses impostos representavam cerca de 70% das rendas do governo central. Era do interesse da burocracia proteger essa fonte de receita. Mas havia conflito entre os dois grupos quando se tratava do imposto de exportação que no Brasil era muito alto (cerca de 15% da renda alfandegária), em contraste com os Estados Unidos onde o imposto não existia. Os exportadores opunham-se a esse imposto, mas prevaleceram as razões de Estado. No final das contas, quem mais se beneficiava do sistema eram os produtores para o mercado interno que, em matéria de imposto direto só pagavam uma taxa de escravos. No que se refere ao imposto de importação, o sustentáculo da renda do Estado, o conflito era com os interesses ingleses. Dizia-se abertamente no Conselho de Estado que o que era bom para a Inglaterra (a liberação do comércio) não era bom para o Brasil. Enfim, conflitos de interesses por todo o lado, mesmo dentro do que se poderia chamar de classe dominante.

ESTUDOS AVANÇADOS – Após o movimento das independências vitorioso na América Latina, constituiu-se algum sistema ideológico que não tivesse origem na cultura [europeia] ocidental?

JMC – Havia mitologias incas e astecas. Ideologias propriamente ditas, ao que me consta, nenhuma.

ESTUDOS AVANÇADOS – A difusão do liberalismo e do positivismo no Brasil foi um fenômeno puramente local ("farsa ideológica", "disparate"), ou acompanhou as tendências econômicas e políticas correntes em todo o Ocidente?

JMC – O mundo intelectual brasileiro oitocentista sempre esteve muito atento ao que se passava na Europa, sobretudo na França e na Inglaterra. Os debates no Conselho de Estado e os textos dos principais pensadores da época, liberais e conservadores, estão repletos de citações de autores europeus. Mas as citações deviam-se, em boa parte, a um recurso de retórica, o argumento de autoridade. Raramente, talvez nunca, se tratava de cópia acrítica, de macaqueação, de farsa tropical. A recepção do liberalismo, do positivismo, do evolucionismo, era crítica e seletiva, voltada para as preocupações locais. A fascinação com modismos intelectuais europeus, aliás, continua até hoje em nossas Ciências Sociais, na Historiografia, na Filosofia. Qualquer aluno de doutorado se sente obrigado, pelo orientador ou pela pressão do meio, a citar os gurus europeus do momento. Nem por isso, a produção resultante deve ser considerada disparate. No máximo, é pouco original. Para fazer a crítica de nossos antecessores do século XIX teríamos que fazer também uma autocrítica.

ESTUDOS AVANÇADOS – É razoável admitir que se foram consolidando, ao longo do Segundo Reinado, dois movimentos distintos da corrente liberal: um centralista e escravista; outro, democrático e abolicionista? Quais foram as condições objetivas dessa divisão?

JMC – Talvez por viés de historiador, vejo as coisas como sendo um pouco mais complexas. Os grandes debates políticos e sociais do Segundo Reinado deram-se durante a década de 1860. Após 1870, em virtude do surgimento do Partido Republicano, a disputa concentrou-se na questão do sistema político (Monarquia e centralização versus República e federalismo) e da escravidão. O debate econômico reduzia-se ao problema do equilíbrio orçamentário e da política fiscal. Ele só ganhou força depois da proclamação da República, quando se enfrentaram o nacionalismo econômico de Serzedelo Correia, ministro da Fazenda de Floriano, e o liberalismo ortodoxo de Joaquim Murtinho, ministro da Fazenda de Campos Sales. O drama após 1870 foi que, por causa do privilegiamento da questão do regime político (Monarquia versus República), criou-se um divórcio entre o reformismo social monárquico-parlamentar (Nabuco, Rebouças, Taunay) e o reformismo liberal republicano (Bernardino e Américo de Campos). Os próprios reformistas republicanos dividiram-se entre liberais, como os dois citados, jacobinos (Silva Jardim), e autoritários (positivistas), todos em luta contra os reformistas monarquistas. A cisão redundou, após a proclamação da República, no isolamento do reformismo monárquico, no enfraquecimento do reformismo republicano e na vitória do que Rebouças chamou de landlordismo republicano (Prudente de Morais, Campos Sales), acoplado à ortodoxia econômica de Murtinho. Os liberalismos político (república e federalismo) e econômico derrotaram o liberalismo social de republicanos e monarquistas, dividido e sem bases de sustentação política.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    22 Nov 2012
  • Data do Fascículo
    Dez 2012
Instituto de Estudos Avançados da Universidade de São Paulo Rua da Reitoria,109 - Cidade Universitária, 05508-900 São Paulo SP - Brasil, Tel: (55 11) 3091-1675/3091-1676, Fax: (55 11) 3091-4306 - São Paulo - SP - Brazil
E-mail: estudosavancados@usp.br