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Efeitos biológicos das radiações ionizantes: acidente radiológico de Goiânia

Resumos

Neste artigo apresentamos as bases da Física das radiações, as fontes naturais e artificiais, os efeitos biológicos, a proteção radiológica. Examinamos também a sequência de eventos que resultou no acidente de Goiânia com uma fonte de césio-137 de um equipamento de radioterapia abandonado e suas terríveis consequências.

Radiação ionizante; Efeitos biológicos; Reações teciduais; Efeitos estocásticos; Acidente de Goiânia


This article presents the fundaments of radiation physics, the natural and artificial sources, biological effects, radiation protection. We also examine the sequence of events that resulted in Goiania accident with a source of caesium-137 from abandoned radiotherapy equipment and its terrible consequences.

Ionizing radiation; Biological effects; Tissue reactions; Stochastic effects; Accident of Goiânia


ENERGIA

Efeitos biológicos das radiações ionizantes. Acidente radiológico de Goiânia

Emico Okuno

Professora aposentada do Instituto de Física da Universidade de São Paulo (IF-USP). @ - emico.okuno@if.usp.br

RESUMO

Neste artigo apresentamos as bases da Física das radiações, as fontes naturais e artificiais, os efeitos biológicos, a proteção radiológica. Examinamos também a sequência de eventos que resultou no acidente de Goiânia com uma fonte de césio-137 de um equipamento de radioterapia abandonado e suas terríveis consequências.

Palavras-chave: Radiação ionizante, Efeitos biológicos, Reações teciduais, Efeitos estocásticos, Acidente de Goiânia.

ABSTRACT

This article presents the fundaments of radiation physics, the natural and artificial sources, biological effects, radiation protection. We also examine the sequence of events that resulted in Goiania accident with a source of caesium-137 from abandoned radiotherapy equipment and its terrible consequences.

Keywords: Ionizing radiation, Biological effects, Tissue reactions, Stochastic effects, Accident of Goiânia.

Introdução

Radiação é energia que se propaga a partir de uma fonte emissora através de qualquer meio, podendo ser classificada como energia em trânsito. Ela se apresenta em forma de partícula atômica ou subatômica energéticas tais como partículas alfa, elétrons, pósitrons, prótons, nêutrons etc. que podem ser produzidos em aceleradores de partículas ou em reatores, e as partículas alfa, os elétrons e os pósitrons são também emitidos espontaneamente de núcleos dos átomos radioativos.

A radiação pode se apresentar também em forma de onda eletromagnética, constituída de campo elétrico e campo magnético oscilantes, perpendiculares entre si e que se propagam no vácuo com a velocidade da luz de 3×108 m/s. Uma onda eletromagnética é caracterizada pelo comprimento de onda ou pela frequência da onda e as várias faixas constituem o espectro eletromagnético, indo de ondas de frequência extremamente baixa, passando por ondas de rádio, de TV, micro-ondas, radiação infravermelha, luz visível, radiação ultravioleta até chegar aos raios X e raios gama.

Durante vários séculos houve muita polêmica quanto à natureza da luz, se ela era uma onda ou se era constituída de partículas. A teoria mais moderna, a da dualidade onda-partícula, desenvolvida por Max Planck e por Albert Einstein a partir de 1901 e posteriormente por Louis de Broglie, correlaciona partícula com onda, segundo a qual uma onda eletromagnética é emitida e propaga-se em forma de pequenos pacotes de energia chamados fótons. A energia E de cada fóton (partícula) é calculada a partir da equação (1) que correlaciona o caráter de partícula com o de onda (Okuno; Yoshimura, 2010; Okuno et al. 1982):

h é a constante de Planck e vale 6,63×10-34 J·s ≈ 4,14×10-15 eV·s; c é a velocidade da luz, ν é a frequência da onda eletromagnética e λ é o comprimento de onda.

Qualquer tipo de radiação interage com corpos, inclusive o humano, depositando neles energia. A forma de interação depende do tipo e da energia da radiação e do meio absorvedor.

Radiação ionizante

O processo de ionização discutido a seguir é o início do dano biológico provocado pela radiação ionizante.

Neste artigo estamos interessados em radiação ionizante que é aquela capaz de arrancar um elétron de átomo. Nesse processo chamado ionização forma-se o par íon negativo e íon positivo. O primeiro é o elétron ejetado e o íon positivo é o átomo que perdeu um elétron. Os elétrons estão ligados a átomos por forças elétricas de diferentes valores, dependendo da sua localização. Quanto mais próximo do núcleo, maior é a força de atração entre o elétron e o núcleo, positivamente carregado. As energias de ligação de um elétron da camada K (mais interna) e de um elétron da última camada de um átomo de tungstênio são 69.500 eV e 7,9 eV, respectivamente. A radiação ionizante pode arrancar qualquer elétron de um átomo se tiver energia maior que o de ligação dele ao átomo (Okuno; Yoshimura, 2010).

As partículas carregadas eletricamente como partículas alfa, betas - elétrons e pósitrons -, quando possuem energia suficiente, são consideradas radiação ionizante e vão ionizando átomos que encontram em sua trajetória num dado meio até perder toda energia.

De todo espectro das ondas eletromagnéticas somente os raios X e gama são radiação ionizante, isto é, têm energia suficiente para ionizar átomos. Os fótons de raios X e gama, diferentemente de partículas carregadas, perdem toda ou quase toda energia numa única interação com átomos, ejetando elétron deles que, por sua vez, saem ionizando átomos até pararem. Os fótons podem também atravessar um meio sem interagir. Teoricamente, não há material nem forma de blindar todos os fótons e isso é um dos motivos da necessidade de proteção radiológica que dita regras quanto ao nível de radiação a que as pessoas expostas podem receber.

A radiação ultravioleta para fins de fotobiologia é considerada não ionizante por não ter energia para arrancar elétron de principais átomos que constituem o corpo humano como hidrogênio, oxigênio, carbono e nitrogênio além penetrar muito pouco no corpo humano.

Em radiobiologia, considera-se como sendo ionizante radiação com energia maior do que 10 eV. Neste artigo tratamos somente de radiações ionizantes, e assim, quando usarmos a palavra radiação, estamos falando dessa categoria de radiação.

Fontes de radiação

Há fontes artificias de radiação como reatores nucleares, aceleradores de partículas e tubos de raios X e fontes naturais como os radionuclídeos e radiação cósmica. Aqui detalharemos como a radiação é emitida de somente algumas fontes de maior interesse.

Tubo de raios X

Os tubos de raios X contêm dois eletrodos, com um potencial elétrico acelerador entre eles. Os elétrons emitidos pelo catodo aquecido são atraídos para o anodo, também chamado alvo, onde a grande maioria deles perde energia em inúmeras colisões, convertendo toda sua energia cinética em calor. Entretanto, alguns elétrons interagem com o campo elétrico do núcleo dos átomos do alvo quando sofrem freamento e liberam um fóton de raios X. A energia do fóton de raio X, assim produzido, que varia desde próximo de zero até um valor máximo que corresponde a toda energia do elétron, depende do grau de freamento, que por sua vez depende do grau de aproximação do elétron do núcleo do átomo alvo. Além disso, alguns poucos elétrons acelerados podem arrancar um elétron das camadas mais internas do átomo alvo cujo vazio passa a ser ocupado por um elétron de camada com maior energia, durante o qual há liberação de energia em forma de um fóton de raio X, chamado raio X de fluorescência ou raio X característico. O espectro de raios X emitidos de um tubo com alvo de tungstênio, operando com potencial acelerador de 87 kV é mostrado na Figura 1. Os picos finos marcados Kα e Kβ correspondem a fótons de raios X característicos emitidos do átomo de tungstênio. Os raios X de freamento são fótons com energia que vão desde próximo de zero até 87 keV, constituindo o espectro contínuo (Okuno; Yoshimura, 2010; Okuno et al. 1982).


Um tubo de raios X deixa de emitir fótons no instante em que ele é desligado da tomada elétrica, diferentemente de radionuclídeos que emitem partículas espontaneamente e não há como interferir nesse processo nem tampouco parar a emissão, que veremos a seguir.

Radionuclídeos

Os radionuclídeos ou radioisótopos são nuclídeos radioativos. Um nuclídeo é um átomo caracterizado por um número atômico Z que é o número de prótons que é o mesmo de elétrons, e um número de massa A, que é o número de prótons mais o de nêutrons no núcleo. Um dado nuclídeo é representado pelo símbolo ou X-A, sendo X a representação do elemento como K (potássio), Cs (césio), U (urânio) etc. Nos nuclídeos o Z é fixo, mas o A pode variar, formando os isótopos do elemento. O elemento mais simples, o hidrogênio (H), tem 3 isótopos, o com somente um próton no núcleo, o , deutério, com um próton e um nêutron e o trítio, , com um próton e dois nêutrons no núcleo. O número atômico Z, no caso o 1 que aparece como subíndice, muitas vezes é omitido, pois por definição o hidrogênio tem somente um próton no núcleo. Os núcleos dos radionuclídeos são instáveis e emitem partículas espontaneamente num processo chamado desintegração ou decaimento nuclear. A instabilidade se deve à competição entre forças elétricas de repulsão entre prótons e de força nuclear de atração entre prótons, entre nêutrons e entre um próton e um nêutron. Então, dependendo da quantidade de prótons e de nêutrons num núcleo, a instabilidade pode ser maior ou menor ou não existir a instabilidade, e nesse caso o núclídeo é dito ser estável. No caso do hidrogênio, somente o é instável. O nuclídeo iodo, por exemplo, tem um número muito grande de isótopos com número de massa A variando de 117 a 136, todos radioativos, com exceção do isótopo com 53 prótons e 74 nêutrons no núcleo, que é estável.

Muitos radionuclídeos pesados emitem partícula α, que é constituída de dois prótons e dois nêutrons. A chamada radiação β pode ser β-(beta menos) que são elétrons e β+ (beta mais) que são pósitrons. Esses são partículas similares aos elétrons, mas sua carga elétrica é positiva. Após a emissão de radiação, se o núcleo ainda estiver instável, ele pode emitir um fóton de raio gama. Após a emissão de uma partícula alfa ou uma partícula beta, o radionuclídeo passa a ser outro nuclídeo que pode ser instável ou estável.

meia-vida, T 1/2

Nunca sabemos quando um determinado radionuclídeo irá emitir radiação. Entretanto, se tivermos uma amostra com um número muito grande de radionuclídeos, sabemos que depois de um intervalo de tempo chamado meia-vida, metade deles ter-se-á desintegrado, e após outra meia-vida, a metade do que restou se desintegrará, e assim por diante. O s (Cs-134) e o s (Cs-137), radionuclídeos que contaminaram o ambiente após acidentes no reator número 4 de Chernobyl e nos reatores de Fukushima, têm meia-vida de 2 anos e 30 anos, respectivamente. O radionuclídeo flúor-18, emissor de partícula beta mais, usado na obtenção de imagem por tomografia por emissão de pósitron (PET, da sigla em inglês), tem meia-vida de 109,8 minutos.

Desintegração nuclear

A desintegração nuclear de um dado radionuclídeo obedece a uma lei exponencial descrita pela equaçã

onde n o é o número de átomos inicialmente presentes (no instante t = 0) e N (t), o número de átomos que ainda não se desintegraram após um intervalo de tempo t, e a base dos logaritmos naturais ou neperianos e λ é a constante de decaimento que é característica de cada radionuclídeo. Também pode ser demonstrada pela equação (3) a relação entre a constante de desintegração e meia-vida:

isto é, a meia-vida de um dado radionuclídeo é inversamente proporcional à constante de decaimento.

A Figura 2 mostra o decaimento relativo do número de átomos radioativos para amostras com diferentes meias-vidas. Nela observa-se que quanto menor a meia-vida, mais rapidamente diminui a quantidade de átomos radioativos.


Quando ocorre um acidente em um reator nuclear com liberação de radionuclídeos, os átomos radioativos que em maior quantidade contaminam o ambiente são os de 131I e de 137Cs com meias-vidas, respectivamente, de 8 dias e 30 anos. Por causa do decaimento, após 4 meias-vidas que no caso do 131I é de 32 dias e no do 137Cs, de 120 anos, o nível de contaminação diminui, porque 93,75% dos átomos radioativos ter-se-ão desintegrado. Então, a contaminação devida ao iodo é muito importante no início, mas aquela devida ao césio-137 persiste durante algumas centenas de anos.

Radiação cósmica

A radiação cósmica foi descoberta em 1912 pelo físico austríaco Victor Hess. Sua origem é extraterrestre e há fortes indícios de que ela provém de supernovas, atravessa o espaço sideral, e de 85% a 90% do que atinge a atmosfera terrestre são prótons, de 9% a 12% são partículas alfa, e 1%, núcleos de elementos pesados, todos extremamente energéticos. Essas partículas interagem com átomos da atmosfera e criam várias outras partículas, que constituem a radiação cósmica secundária, incluindo mésons pi, elétrons, nêutrons e fótons. Ao nível do mar, cerca de 75% da radiação cósmica é constituída de múons que resultam do decaimento de mésons pi, e o restante são essencialmente fótons e elétrons. A intensidade da radiação cósmica secundária varia com a altitude, e a máxima, chamada máximo de Pfotzer, ocorre entre 15 e 26 km. Varia também com a latitude, sendo menor na região do equador e maior nos polos, devido ao campo geomagnético.

Os astronautas ficam expostos à radiação cósmica primária e os aeroviários, à radiação cósmica secundária em voos, mais do que nós, uma vez que a atmosfera terrestre a degrada.

Contaminação radioativa

Uma série de radionuclídeos naturais como o K-40 e outros que descendem da desintegração que se inicia com U-238 e Th-232, com meia-vida de mais de bilhões de anos, existem no ambiente terrestre desde que nosso planeta foi criado. Há também na natureza radionuclídeos que são produzidos quando partículas da radiação cósmica interagem com átomos da atmosfera tais como C-14 e H-3. Além disso, há vários outros radionuclídeos artificialmente produzidos que estão presentes no ambiente, resultantes de testes nucleares ou de acidente. Esses radionuclídeos fazem parte das paredes das casas, da comida que ingerimos e do ar que respiramos.

O leite contém naturalmente K-40 e a água, entre outros, o Ra-226, Rn-222 e Rn-220, mas não dizemos que eles estão contaminados radioativamente. Por sua vez, costumamos dizer que há contaminação radioativa quando radionuclídeos artificiais estão presentes no ambiente terrestre, como no solo, na vegetação, no mar, nos alimentos e no nosso corpo interna e externamente (Okuno; Yoshimura, 2010; Okuno, 1988).

Efeitos biológicos das radiações ionizantes

Os átomos do nosso corpo estão unidos, formando moléculas, algumas muito pequenas como a molécula da água, e outras muito grandes como a molécula de DNA. Esses átomos estão unidos por forças elétricas. Quando uma partícula ionizante arranca um elétron de um dos átomos de uma molécula do nosso corpo, pode causar sua desestabilização que resulta em quebra da molécula. As várias características da forma de atuação da radiação no corpo humano são descritas a seguir (Okuno; Yoshimura, 2010; Okuno, 1988).

Estágios da ação

A sequência dos estágios é a seguinte:

• estágio físico em que ocorre a ionização de um átomo em cerca de 10-15 s;

• estágio físico-químico, quando ocorrem as quebras das ligações químicas das moléculas que sofreram ionização, com duração de uns 10-6 s;

• estágio químico, quando os fragmentos da molécula se ligam a outras moléculas, com duração de poucos segundos;

• estágio biológico que pode durar dias, semanas ou até várias dezenas de anos quando surgem efeitos bioquímicos e fisiológicos com alterações morfológicas e funcionais dos órgãos.

Mecanismos de ação

Eles podem ser de dois tipos:

• mecanismo direto, quando a radiação interage diretamente com as moléculas importantes como as de DNA, podendo causar desde mutação genética até morte celular;

• mecanismo indireto, quando a radiação quebra a molécula da água, formando assim radicais livres que podem atacar outras moléculas importantes. Esse mecanismo é importante, uma vez que nosso corpo é composto por mais de 70% de água.

Natureza dos efeitos biológicos

Quanto à natureza, os efeitos podem ser classificados em reações teciduais e efeitos estocásticos:

• Reações teciduais: resultam de dose alta e somente surgem acima de certa dose, chamada dose limiar cujo valor depende do tipo de radiação e do tecido irradiado. Um dos principais efeitos é a morte celular: se poucas células morrerem, o efeito pode nem ser sentido, mas se um número muito grande de células de um órgão morrer, seu funcionamento pode ser prejudicado. Nessas reações, quanto maior a dose, mais grave é o efeito. Um exemplo é a queimadura que pode ser desde um leve avermelhamento até a formação de bolhas enormes. Até recentemente acreditava-se que as reações teciduais eram efeitos que surgiam pouco tempo após a exposição. Os estudos epidemiológicos dos sobreviventes das bombas atômicas lançadas pelos americanos no Japão começaram a mostrar evidências de que há efeitos bastante tardios que resultam de danos nos tecidos e são doenças vasculares cardíacas e cerebrais além da opacificação do cristalino, a catarata. Esses efeitos estão sendo recentemente comprovados com a coleta de dados de pessoas submetidas a radioterapia e no caso da catarata em médicos intervencionistas.

• Efeitos estocásticos: são alterações que surgem em células normais, sendo os principais o câncer e o efeito hereditário. As recomendações de proteção radiológica consideram que esse tipo de efeito pode ser induzido por qualquer dose, inclusive dose devido a radiação natural; são sempre tardios e a gravidade do efeito não depende da dose, mas a probabilidade de sua ocorrência aumenta com a dose. Os efeitos hereditários ocorrem nas células sexuais e podem ser repassadas aos descendentes.

Dose limiar para reações teciduais

A Comissão Internacional de Proteção Radiológica em sua publicação 118 de 2012 definiu dose limiar como sendo a dose estimada que causa incidência de reações teciduais em 1% dos tecidos irradiados.

O limiar de dose para indução de catarata foi estabelecido como sendo de 0,5 Gy, tanto para exposição aguda quanto para crônica. Foi também proposto o valor de 0,5 Gy como limiar de dose para doenças circulatórias, tanto para morbidade quanto para mortalidade.

O gray, abreviado Gy, é unidade de dose absorvida de radiação; corresponde à energia média da radiação ionizante depositada por unidade de massa da matéria. A dose absorvida no tumor em uma sessão de radioterapia é de 2 Gy. A dose letal que mata 50% dos seres humanos irradiados no corpo todo, cerca de 30 dias após a irradiação, é de 4 Gy. Para esterilizar sementes, pimenta do reino, por exemplo, através da eliminação de micro-organismos indesejáveis, empregam-se doses absorvidas de 10 kGy a 20 kGy.

Síndrome aguda da radiação

Uma pessoa pode apresentar o que se chama síndrome aguda da radiação ao ser exposta num intervalo de tempo pequeno de até alguns dias à radiação. Essa síndrome pode variar com a dose. Se a dose absorvida no corpo todo for de 0,25 a 1 Gy, algumas pessoas podem ter náusea, diarreia e depressão no sistema sanguíneo; se for entre 1 e 3 Gy, além de sintomas anteriores, pode ter forte infecção causada por agentes oportunistas; entre 3 e 5 Gy pode ocorrer hemorragia, perda de pelos e esterilidade temporária ou permanente; ao redor de 10 Gy ocorre a inflamação dos pulmões, e para doses maiores os efeitos incluem danos no sistema nervoso e cardiovascular levando o indivíduo à morte em poucos dias.

Proteção radiológica

Logo após a descoberta dos raios X e da radioatividade, iniciou-se o uso desenfreado da radiação e os médicos começaram a perceber que ela tinha potencial para retirar manchas de nascença, pintas e matar células. Entretanto, somente 30 anos após a descoberta dos raios X é que foi criada a International Commission on Radiation Units and Measurements (ICRU) com a finalidade de estabelecer grandezas e unidades de Física das radiações, critérios de medidas, métodos de comparação etc. Três anos depois foi criada a International Commission on Radiological Protection (ICRP), com a incumbência de elaborar normas de proteção radiológica e estabelecer limites de exposição à radiação ionizante para indivíduos ocupacionalmente expostos e para público em geral. Essas comissões ainda se reúnem com regularidade para elaborar novas normas ou atualizar as já existentes. Cada país tem um órgão que faz adequações nas normas internacionais e as adota para regulamentar o uso das radiações. No Brasil, tal órgão é a Comissão Nacional de Energia Nuclear (CNEN).

A proteção radiológica se baseia em três princípios:

• da justificativa - qualquer exposição à radiação deve ser justificada de modo que o benefício supere qualquer malefício à saúde;

• da otimização da proteção - a proteção radiológica deve ser otimizada de forma que o número de pessoas expostas e a probabilidade de exposições que resultem em doses mantenham-se tão baixos quanto possa ser razoavelmente exequível, considerando os fatores econômicos e sociais;

• da limitação de dose - as doses individuais devem obedecer aos limites estabelecidos em recomendações nacionais que se baseiam em normas internacionais.

Todos nós estamos expostos à radiação natural e à radiação artificial, principalmente em exames radiológicos médicos e odontológicos. A intensidade da radiação que recebemos é medida em unidade chamada sievert (Sv) que corresponde à dose absorvida medida em gray, multiplicada por um fator que leva em conta o tipo de radiação.

O United Nations Scientific Committee on the Effects of Atomic Radiation (Unscear) coleta dados mundiais relativos à dose de radiação natural ambiental. Segundo o relatório de 2000, a dose individual média mundial por ano devida aos raios cósmicos e à radiação aos quais estamos expostos externa e internamente pela ingestão e inalação de radionuclídeos é de 2,4 mSv, variando de 1 mSv a 13 mSv. Guarapari no Espírito Santo, Brasil, e Kelala na Índia se destacam por apresentar nível de radiação ambiental mais alto devido à areia monazítica.

Em 2006 houve um alerta nos Estados Unidos quando a National Council on Radiation Protection constatou que a dose individual média anual de 3,6 mSv em 1980 aumentou para 6,2 mSv em 2006. Análises mostraram que isso resultou do aumento da realização de exames por tomografia computadorizada. Assim, tiveram início as recomendações para se submeter a esse tipo de exame somente quando não houver outra forma de diagnóstico, além da necessidade de se realizar controle de qualidade de equipamentos com regularidade, pois das radiações a que estamos expostos, essas são as únicas que podem ser diminuídas.

Classificação de acidentes

A Agência Internacional de Energia Atômica desenvolveu a partir de 1990 a International Nuclear Events Scale (INES) com o propósito de comunicar ao público de maneira clara e direta a gravidade de eventos em usinas nucleares e posteriormente estendida a todos os eventos associados ao transporte, armazenamento e uso de material radioativo e fontes de radiação. Os eventos são classificados em escala logarítmica, similar à escala de terremotos, de 1 a 7. Os níveis de 1 a 3 são designados incidentes e os níveis de 4 a 7, acidentes, dependendo do grau de contaminação radioativa e exposição do público e do ambiente à radiação. São considerados acidentes quando houver pelo menos uma morte por radiação.

Exemplos de alguns eventos em reatores nucleares e sua classificação segundo INES são: acidente nos reatores de Fukushima em março de 2011, e no reator número 4 de Chernobyl em abril de 1986 - nível 7; acidente no reator número 2 de Three Mile Island em março de 1979 - nível 5.

Entre os acidentes envolvendo fonte radioativa e seu transporte podemos citar: incidente de nível 3 em Yanango, Peru, em 1999, e em Ikitelli, na Turquia, em 1999, ambos com fontes radioativas perdidas.

O acidente de Goiânia em 1987 com uma fonte de Cs-137, parte de um equipamento de radioterapia, foi classificado pela INES como de nível 5.

Acidente de Goiânia

Às 15 horas do dia 29 de setembro de 1987, José de Júlio Rozental, então diretor do Departamento de Instalações Nucleares da Comissão Nacional de Energia Nuclear, recebeu um telefonema de Goiânia comunicando haver sido encontrada forte contaminação radioativa em várias localidades da cidade. Após consultar arquivos, Rozental concluiu que provavelmente a causa da contaminação era uma fonte de Cs-137 de um equipamento de radioterapia do Instituto Goiano de Radioterapia. Rozental e mais dois médicos da CNEN chegam a Goiânia no dia 30/9, acionando a partir de então um plano de emergência. No dia 1º de outubro, seis pacientes foram enviados ao Hospital Naval Marcílio Dias (HNMD) no Rio de Janeiro, e, no dia 3/10, mais quatro (Okuno, 1988; IAEA, 1988).

Histórico

Em 1985, o Instituto Goiano de Radioterapia transferiu-se para outro prédio deixando o equipamento de radioterapia contendo uma fonte de Cs-137, no local onde funcionou desde 1971. O prédio antigo foi sendo abandonado e depredado (Figura 3) até que no dia 13 de setembro de 1987 dois catadores de papel (Roberto Alves (22) e Wagner Pereira (19)) levaram boa parte do equipamento para o quintal da casa de um deles, com o intuito de vendê-lo como sucata. Lá o desmantelaram a marretadas e acabaram por violar a fonte. Nesse dia eles já passaram muito mal com diarreia e vômitos. Ao irem a um hospital no dia 15/9 já com enormes bolhas nas mãos e nos braços, os médicos acharam que eles estavam com alguma reação alérgica ou com alguma doença tropical.


No dia 19/9, parte da blindagem de chumbo que ainda continha a fonte de Cs137 violada foi vendida a Devair Alves Ferreira (36), dono de um ferro-velho. Devair, ao perceber no escuro uma luz azul emitida pelo pó de césio, ficou encantado e chamou familiares e amigos para ver a estranha luz e distribuiu entre eles os grãos do tamanho de arroz de cloreto de césio. Isso aconteceu de 19/9 a 28/9, período durante o qual parte da sucata foi vendida a outros dois ferros-velhos. Um deles foi o ferro-velho do Ivo Alves Ferreira (40), pai de Leide das Neves (6) que acabou ingerindo um pouco do pó de césio, contaminando-se externa e internamente ao manusear o pó enquanto comia pão. Enquanto isso, a parte principal da peça tinha sido levada para a sala da casa de Devair. Maria Gabriela Ferreira (38), esposa do Devair, que vinha tendo diarreia, vômito, cansaço, chegou a suspeitar de que a causa do mal-estar devia ser aquela peça na sala, uma vez que todos que tinham vindo ver a misteriosa luz azul também estavam com problemas de saúde. No dia 28/9, Gabriela, com a ajuda do Geraldo Guilherme da Silva (21), empregado do ferro-velho, levou de ônibus a peça dentro de um saco à Vigilância Sanitária, dizendo: "isto está matando meu povo". O saco foi deixado sobre uma mesa na sala da Divisão de Alimentos até o dia seguinte, quando foi levado para o pátio e deixado sobre uma cadeira. Nessa ocasião, trabalhavam 81 pessoas na Vigilância Sanitária, muitos dos quais vieram ver a peça por curiosidade e foram irradiados e ou contaminados.

Da Vigilância Sanitária, Maria Gabriela e o empregado foram encaminhados para o Centro de Informações Toxicológicas, que na ocasião funcionava no Hospital de Doenças Tropicais (HDT). Um dos médicos que os examinaram desconfiou que as queimaduras com bolhas na pele podiam ser causadas por radiação.

O passo seguinte foi encontrar um físico. Este foi fazer medidas e confirmou altíssimo nível de contaminação, não só na Vigilância Sanitária, mas em várias localidades da cidade de Goiânia, posteriormente mapeadas como se pode ver na Figura 4.


Consequências do acidente

A fonte radioativa propriamente dita era uma pastilha de sal de cloreto de césio (Cs-137) contida dentro de uma cápsula metálica cilíndrica de 3,6 cm de diâmetro por 3,0 cm de altura. É até difícil de imaginar que uma pastilha tão pequena possa ter causado tamanho acidente.

Rejeitos gerados

A taxa de dose próximo à sacola levada à Vigilância Sanitária era de 10 Gy/h e 0,4 Gy/h a um metro. Quando as autoridades da CNEN chegaram lá no dia 1º/10/1987, a primeira providência foi concretar a cadeira e a sacola com a fonte, que se transformou em rejeito de altíssima atividade.

Um volume total de 3.500 m3 de rejeitos radioativos resultou da demolição de sete casas, várias construções e barracões e as camadas dos solos removidos de três terrenos altamente contaminados. A Figura 5 mostra o entulho da demolição da casa de um dos terrenos. Cerca de 200 pessoas das 41 casas contaminadas de um total de 85 tiveram que ser evacuadas.


Todo o rejeito foi temporariamente armazenado em Abadia de Goiás, situada a 23 km do centro de Goiânia. Foram construídas seis plataformas cada uma com 60 ×18 m2, sobre as quais foram colocados os rejeitos armazenados em 4.223 tambores de 200 L cada, 1.347 caixas metálicas de 1,7 m3 cada, 10 contêineres marítimos de 32 m3 cada e seis embalagens especiais construídas com concreto armado com espessura de 20 cm de espessura.

Em maio de 1997 foi concluída a construção do depósito permanente dos rejeitos de Goiânia previsto para durar 300 anos, em Abadia de Goiânia, praticamente ao lado do depósito temporário. Sobre o depósito foram colocadas terras e nelas foi plantada grama.

Vítimas do acidente de Goiânia

Inúmeras são as vítimas do pior acidente do mundo com uma única e minúscula fonte radioativa. Cerca de um mês após a abertura da fonte, haviam morrido quatro pessoas:

• Leide das Neves (6) e Maria Gabriela (38) no dia 23/10/1987 no HNMD. As necropsias mostraram ter havido hemorragia interna difusa em vários órgãos, sendo os mais afetados os pulmões e o coração. Foram sepultadas em caixões de chumbo em Goiânia no dia 26/10/1987.

• Israel Batista (22) no dia 27/10/1987 no HNMD, de hemorragia generalizada de órgãos internos, empregado de Devair, que desmontou o cilindro contendo a fonte radioativa em 23.9.

• Admilson Alves de Souza (18) no dia 28/10/1987 no HNMD, de hemorragia interna generalizada com pulmões e coração aumentados, empregado do Devair.

Outras vítimas:

No dia 14/10/1984, Roberto teve seu antebraço direito amputado.

Devair Alves Ferreira morreu aos 43 anos no dia 12/5/1994, com cirrose hepática.

Segundo a Associação de Vítima do Césio 137, até setembro de 2012, 25 anos após o acidente, mais de seis mil pessoas foram atingidas pela radiação, e pelo menos 60 já morreram em decorrência do acidente. Esse valor é refutado pelo poder público.

De 30/9 a 20/12/1987, a CNEN monitorou 112.800 pessoas. Desse trabalho constatou-se que mil pessoas não contaminadas haviam sido irradiadas externamente, das quais 97% receberam dose entre 0,2 e 10 mSv. Outras 249 pessoas haviam sido contaminadas externa e internamente, das quais 49 tiveram que ser internadas, e 21 delas exigiram atendimento intensivo e 10 vítimas apresentaram estado extremamente grave.

Zacharias Calil, superintendente da Suleide, declarou à jornalista Luana Borges do Jornal opção, na edição 1849 de 12 a 18 dezembro de 2010, que:

o monitoramento dos pacientes não constatou relações causais entre a incidência de cânceres em Goiânia e o acidente radiológico ocorrido em 1987. Cientificamente não foi comprovado o aumento de câncer. Filhos e netos dos radioacidentados não têm nenhuma sequela desse tipo. Segundo ele, apesar de as taxas de câncer entre os acometidos não serem maiores do que as taxas expressas no restante da população, há outras doenças decorrentes do acidente radiológico. Como médico, passei a ver a luta desses pacientes no dia a dia, sobretudo no que se refere à aquisição de medicamentos. Pude comprovar, clinicamente, que determinadas doenças apareceram mais cedo. Um exemplo é a hipertensão arterial, a osteoporose e a hipertrofia de próstata. Uma doença que poderia aparecer por volta de 50 ou 60 anos, foi antecipada aos 30 ou 35. De acordo com ele, doenças ligadas ao psicológico dos pacientes também são exacerbadas. Depressão, tabagismo e alcoolismo. As vítimas apresentam um processo depressivo acentuado e necessitam de um acompanhamento psiquiátrico.

Conclusão

As importantes aplicações das radiações ionizantes na medicina podem salvar vidas através de radiodiagnóstico e radioterapia. As principais fontes dessas radiações são as radiações emitidas por tubos de raios X, por aceleradores lineares e por radionuclídeos. Entretanto, como essas radiações também produzem danos biológicos, seu uso deve ser feito de forma criteriosa, fazendo levantamento de riscos e benefícios.

Recebido em 9.1.2013 e aceito em 31.1.2013.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    11 Abr 2013
  • Data do Fascículo
    2013

Histórico

  • Recebido
    09 Jan 2013
  • Aceito
    31 Jan 2013
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