Acessibilidade / Reportar erro

Em força da Lei: as formas da violência na literatura brasileira

RESENHAS

Em força da Lei: as formas da violência na literatura brasileira

Ettore Finazzi-Agrò

Professor na Universidade "La Sapienza" Roma. @ – Ettore.Finazzi-Agro@uniroma1.it

As perguntas que vêm ao nosso encontro no âmbito de toda leitura crítica têm um sabor antigo. Elas resultam, porém, ainda e sempre incontornáveis para o acesso a um saber mais profundo e articulado sobre o lugar e a função da literatura. Perguntas que poderiam ser formuladas desse modo: é possível pensar a escrita como prática marcada não simplesmente pela história, e sim pelas experiências traumáticas em que o sujeito é jogado na sua relação conflituosa com o mundo? E pode a ação política levada adiante pelo Poder soberano se refletir, de forma muitas vezes cifrada, no interior dos textos literários? E, finalmente, o dever da crítica é justamente o de decifrar os modos em que o contexto sociocultural e a repressão ou a censura (também no seu sentido freudiano) agem, pela sua natureza opressiva, sobre a escrita literária ou interferem, mais em geral, na prática artística? Questões, todas, às quais responde pela afirmativa esse importante volume de Jaime Ginzburg que, desde o título, coloca em pauta a possibilidade de ler as obras de arte não apenas a partir do seu valor estético ou do seu posicionamento histórico-literário, mas também da sua capacidade de dizer aquilo que, em tempos de violência e de sofrimento individual e coletivo, não poderia ou deveria ser dito.

Vivendo na assim chamada "era do testemunho", aliás, poderíamos pensar que os 36 ensaios que compõem o livro sejam todos virados para uma reflexão em torno da capacidade da literatura de representar e dar voz às vítimas daquele "estado de exceção permanente" conjeturado por Walter Benjamin. Não é tanto esse, porém, o intuito do livro de Ginzburg – embora a condição de emergência política e a urgência do testemunho sejam uma espécie de base ou de estatuto preliminar sustentando toda a arquitetura dos ensaios contidos nesse volume –, quanto, e talvez sobretudo, a vontade de incluir a crítica literária num horizonte ideológico mais amplo e contundente, que eu definiria como hermenêutica da forma, ou seja, como processo gradual de desvendamento dos elementos que influem na construção e definição dos textos literários. Nesse sentido, ao contrário da crítica ortodoxa, analisando apenas os conteúdos que denunciam a opressão e sugerem uma saída previsível das situações de embate social, a crítica praticada pelo autor se mostra muito mais interessada nos modos em que os conflitos encontram a sua expressão e definição artística em âmbito poético, ou seja, no próprio processo de estruturação (de formação, justamente) textual.

Modelar, nesse sentido, pode ser considerado o ensaio em que Ginzburg discute "Violência e forma em Hegel e Adorno": as teorias adornianas sobre a função mediadora da forma e sobre o caráter não dialético do discurso artístico não só contradizem o papel que Hegel atribuía à obra – e à obra épica em particular – como síntese e sublimação da violência "legítima", mas desvirtuam toda tentativa de chegar a uma unidade e homogeneidade do discurso poético. A partir dessas posições do filósofo da Escola de Frankfurt, o autor procura encontrar, sobretudo na estrutura formal das obras literárias, os rastros deixados pelo impacto da violência sistêmica, analisando como a forma coercitiva do Poder (e da brutalidade que o rege e através da qual ele se exprime) pode incidir sobre a forma do discurso.

A vantagem óbvia é a de comparar instâncias da mesma ordem, articulando um discurso crítico não a partir de um espelhamento determinista entre texto e contexto, e sim de uma relação problemática entre a estrutura política e o modo de ação dela sobre a estrutura artística, entre o aparato normativo/repressivo e o aparato discursivo/literário. Um confronto, enfim, entre dois "dispositivos" (para retomar um termo muito utilizado, nos seus últimos trabalhos, por Michel Foucault), aparentemente muito diferentes, mas que apresentam, ambos, linhas de força e de desistência, linhas de enunciação e de interdição que é possível analisar na sua influência mútua, no seu contínuo entrelaçar-se e no seu afastar-se incessante. E desse modo, se quebra a lógica da derivação e do espelhamento para construir – instalando-se justamente nessa ruptura e nessa dobra – um aparato crítico aberto e categoricamente indefinido, remetendo para aquela "dialética negativa", teorizada por Theodor Adorno e várias vezes lembrada por Ginzburg, pela qual qualquer síntese é impossível ou é possível apenas dentro e através da sua negação.

A ultrapassagem das teorias estéticas hegelianas e pós-hegelianas – entre as quais, evidentemente, aquelas ligadas ao marxismo e, em boa medida, a aplicação mais "doutrinária" delas por parte de Georg Lukács – permite ao crítico "em tempos de violência" ler os textos literários a partir de uma perspectiva onde aquilo que conta não é a homogeneidade e a coerência de um discurso poé- tico ideologicamente orientado, e sim as linhas de fratura e de desistência em relação a um Poder se exprimindo "em força de lei", ou melhor, se expressando através de uma Lei embasada apenas numa força que por sua vez, num circuito paradoxal e assombroso, a torna legítima. Tudo isso leva a um resultado contrariando qualquer lógica historicista, visto que a violência na qual assenta o Poder apaga as medidas, invalida as distâncias e nega todo processo realmente consequencial. Nesse sentido, embora a história brasileira seja atravessada e contaminada por inúmeros atos de arbítrio e de repressão, não é, no fundo, possível chegar a uma verdadeira síntese, a um continuum ligando os vários eventos traumáticos numa série ideologica e cronologicamente sensata.

Por isso, ao lado de um ensaio dedicado à representação da guerra e da morte na poesia de José de Anchieta ou na literatura rio-grandense podemos encontrar, no livro de Ginzburg, estudos sobre os modos em que a literatura se coloca diante da Segunda Guerra ou da ditadura militar e dos seus efeitos, tanto individuais quanto coletivos. Esse leque temporal e espacial muito amplo abriga, de fato, uma reflexão que não é pautada apenas pelo valor estético ou pela evolução consequente do discurso literário, mas pelo processo de definição de "dispositivos" interdependentes e, ao mesmo tempo, heterogêneos. Porque, como tem sublinhado Gilles Deleuze na sua glosa ao pensamento foucaultiano, o dispositivo é "antes de tudo uma meada, um conjunto multilinear, composto por linhas de natureza diversa" que não definem sistemas homogêneos, mas "seguem direções, traçam processos em perene desequilíbrio". Enfrentando a questão da violência e dos seus reflexos na literatura brasileira, nesse sentido, não podemos pretender uma coerência hermenêutica ou um desenvolvimento uniforme do discurso poético, mas devemos, com Jaime Ginzburg, tentar destrinchar a meada, medindo assim "territórios desconhecidos" ou delineando uma cartografia das formas elípticas, dos gestos desesperados ou dos esgares, dos gritos ou dos silêncios das vítimas através dos quais só pode se exprimir o Interdito, ou seja, aquilo que nenhuma linguagem – incluindo a literária – consegue dizer de modo imediatamente compreensível, se mostrando apenas nos interstícios ou nas falhas da língua dominante.

Diante do "terror total", portanto, obras de natureza e de estilo diferente, autores aparentemente muito distantes entre si conseguem todavia desenhar um mapa da resistência, da insistência ou do deslocamento (para usar a terminologia de Roland Barthes) em relação ao Poder soberano e à Ordem discursiva por ele imposta. No importante livro de Ginzburg, vemos assim, um ao lado do outro, densos ensaios consagrados a Graciliano, Drummond, Murilo Mendes, Guimarães Rosa, Clarice Lispector, Caio Fernando Abreu, Veríssimo, Dalton Trevisan, Rubem Fonseca e muitos outros, sem esquecer revisões polêmicas das teorias de Plínio Salgado, de Miguel Reale ou de Oliveira Vianna. A partir de todos esses autores – e das diferentes formas assumidas pela produção deles –, o crítico sabe desentranhar os fios de uma meada teórica e literária que tem a ver com a produção de um discurso complexo, em prol ou contra a manutenção de uma ordem social imposta pela força e marcada pela repressão, pela desigualdade e pela marginalização.

Crítica em tempos de violência se apresenta, então, como um livro ideologicamente engajado, no sentido de um contraste acirrado, dentro e através da análise dos textos literários, das formas violentas de expressão do Poder soberano. Estudo, aliás, em que emergem, sustentadas por um empenho cívico exemplar, duas atitudes invulgares em obras acadêmicas desse tipo (o livro, de fato, serviu de fundamento para uma tese de livre-docência): uma instância ética, por um lado, e um compromisso pedagógico, por outro.

O pendor moral – nunca moralista, porém – da prática crítica é testemunhado em quase todas as páginas, mas se torna particularmente evidente nos dois ensaios finais, nos quais o autor enfrenta o tema da tortura, analisando sobretudo o romance Em câmara lenta de Renato Tapajós, mas também outros relatórios sobre o mesmo assunto produzidos durante ou depois da ditadura militar. Diante do horror absoluto provocado por essa prática, legitimada pelo estado de exceção, Ginzburg assume uma atitude de rejeição indignada e acusadora, concluindo assim a sua contundente análise de algumas obras ficcionais enfrentando esse tema: "o apagamento da memória coletiva das referências à tortura, bem como a sua banalização, potencialmente reforçam as chances de naturalizá-la e ignorar a intensidade de seu impacto. O esquecimento é, nesse sentido, em si, uma catástrofe coletiva. A leitura de textos literários voltados para o tema pode contribuir para evitar a banalização".

Um livro, então, que através do estudo da literatura procura constantemente se posicionar contra a "banalidade do Mal", em todas as formas que esse Mal vai assumindo ao longo dos séculos e que se refletem na forma pela qual o discurso poético registra a presença dele, e dele, com teimosia, com sofrimento ou com-paixão, tenta "fazer memória". Porque a violência tende, de fato, a apagar o seus rastros e quem, como Ginzburg, na sua posição de estudioso de literatura, se opõe a essa execrável anistia memorial, deve necessariamente – num verdadeiro "trabalho de campo", num penoso e difícil desenterro das vítimas, num estudo arqueológico das ruínas deixadas atrás de si por um processo histórico feroz – sair à procura daquelas vozes silenciadas ou distorcidas, testemunhando as mazelas de todo aparato (ou dispositivo) repressivo.

Nesse sentido, na lição intransigentemente pacifista do livro ecoa a voz do professor, despertando o interesse e fomentando a rejeição dos alunos contra toda forma de censura e de apagamento da memória, contra a agressividade de um Poder reprimindo a livre expressão e circulação das ideias. Uma função claramente pedagógica, enfim, aquela que esse livro assume desde o início: na limpidez da exposição e no vigor do posicionamento ideológico consiste, a meu ver, o alto valor, não apenas crítico, mas também, ou sobretudo, didático dos ensaios contidos nesse volume. Porque, afinal, pelo seu envolvente empenho moral e cívico, pelo seu nobre compromisso com a restituição da verdade (da verdade literária, pelo menos), pela sua refinada atitude crítica contra toda forma de violência, o professor Jaime Ginzburg – para repetir uma afirmação de Francisco Foot Hardman contida no seu belo prefácio ao livro – se não vai contentar a todos, decerto nunca irá se conformar com a ideia de estar na universidade "para brincadeiras".

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    12 Jun 2015
  • Data do Fascículo
    2013
Instituto de Estudos Avançados da Universidade de São Paulo Rua da Reitoria,109 - Cidade Universitária, 05508-900 São Paulo SP - Brasil, Tel: (55 11) 3091-1675/3091-1676, Fax: (55 11) 3091-4306 - São Paulo - SP - Brazil
E-mail: estudosavancados@usp.br