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"Habemus Papam" e a história das Missões jesuíticas na bacia do Prata

RESENHAS

"Habemus Papam" e a história das Missões jesuíticas na bacia do Prata

Barbara Freitag

Professora titular do Departamento de Sociologia da Universidade de Brasília (UnB) e professora livre-docente da Universidade de Berlim, Alemanha. @ – bfreitag@uol.com.br

Com a eleição de Jorge Mario Bergoglio como sucessor de Bento XVI em março de 2013, os fiéis católicos foram surpreendidos com o fato de que pela primeira vez na milenar história do papado um jesuíta ocupa o "trono de Pedro" em Roma. Ser argentino e escolher o nome Francisco foram qualificações adicionais que reforçaram essa surpresa. Até mesmo a mídia tecnologicamente potente e onipresente pouco ou nada sabia sobre a origem e história do cardeal de Buenos Aires, que dedicava sua vida aos pobres e com eles partilhava a "sorte" de viver quase fora, no sul, "no fim do mundo", nas palavras do recém-eleito papa Francisco.

Para reduzir essa "ignorância" e fundamentar historicamente a origem, o auge e a destruição das "missões jesuíticas" na bacia do Prata, somente posso recomendar a leitura e apropriação cuidadosa de um livro que em mais de 300 páginas reconstrói a história das missões jesuíticas (1609-1767) instaladas às margens dos rios Paraguai, Paraná, Uruguai e seu afluentes.

Seu autor, Miranda Neto, é economista (UFRJ) de formação, tem pós-graduação em Economia Rural em Stanford, é especialista em Planejamento Urbano e Regional (Ibam), e fez aperfeiçoamento em Desenvolvimento Agrícola (Fundação Getúlio Vargas), entre outras. Trabalhou como professor visitante na Universidade Livre de Berlim e como jornalista da Gazeta Mercantil (Rio) e do jornal O Liberal (Belém). O livro foi prefaciado pelo diplomata e historiador Vasco Mariz, e tem belo texto de quarta capa da escritora e historiadora Mary del Priore. A ficha catalográfica, elaborada por Valéria Alves Werneck, o classifica em duas categorias: 1.Jesuítas – Brasil. 2. Missões religiosas.

O autor nos traz uma amostra de fotos (das ruínas) e da arte missioneira, que dominou, durante mais de 150 anos (1609-1767), a bacia do Prata, envolvendo a Bolívia, o Paraguai, a Argentina, o Uruguai e o Brasil. Miranda Neto cobre assim um longo período de formação das colônias espanhola e portuguesa no sul da América do Sul, envolvendo a colônia de Sacramento, a Província Cisplatina, vários Tratados entre Portugal e Espanha (Tordesilhas, de Madri), abrangendo ainda a luta de povos indígenas entre si, dos guaranis com os colonos e das missões com os bandeirantes e paulistas. O autor ainda chama atenção para os interesses disfarçados dos viajantes europeus do século XIX, convencidos de que onde há índios, há minas de ouro e prata, que estariam sendo exploradas clandestinamente (p.140).

Miranda Neto realizou ao mesmo tempo um trabalho multidisciplinar, intercultural e enciclopédico, para fornecer-nos um relato científico, devidamente fundamentado, do entrosamento entre colonizadores ibéricos e povos indígenas, das mais diferentes nações, linguagens e culturas. Enquanto economista, interessou-se mais pela organização da produção, sustentabilidade econômica e ecológica, do que pelos rituais religiosos e culturais, típicos da antropologia moderna, que condena tematizar e praticar a aculturação e assimilação dos povos indígenas aos interesses do colonizador europeu e defende a necessidade de "preservar" a cultura autóctone dos habitantes originais do Novo Mundo.

A peculiaridade do olhar do autor é revelada em A utopia possível, seu amplo e fascinante estudo de uma época, que tão poucos vestígios deixou e cujo mérito é, por isso mesmo, inquestionável. Ao caracterizar o período de 1609 a 1767 como "utopia possível", Miranda acena com o fato de que os jesuítas tentaram concretizar um projeto, cujos objetivos não foram alcançados plenamente; no entanto, focaliza e sublinha os extraordinários e inesperados resultados obtidos durante século e meio de paciente trabalho, realizado pelos enviados da ordem de Inácio de Loyola, que conseguiram transformar os povos indígenas, primitivos habitantes da bacia do Prata, de nômades (tupi-guaranis) em sedentários, povos bélicos em agricultores pacíficos, povos ainda canibais e polígamos em criadores de gado e comunidades pacíficas baseadas na unidade familiar por meio de suas técnicas pacientes de educação e evangelização (p.98-9).

Talvez a excepcionalidade desses fatos somente fique evidente quando compararmos o choque de culturas havido entre os colonos ibéricos e europeus com as nações indígenas que habitavam o novo Mundo. Enquanto Cortez, Pizarro ou Aguirre e seus homens, ávidos pela caça do ouro e de riquezas acumuladas por esses povos autóctones, acabaram destruindo as culturas encontradas (aztecas, toltecas, maias, incas), também no Brasil os guarás, apiacás, mundurucus, bororos, botocudos, para mencionar somente alguns, foram dizimados, escravizados, exterminados, liquidados, pelos aventureiros e colonos portugueses (e espanhóis). Enquanto isso, os jesuítas dos Povos das Missões erigiram comunidades pacíficas, sedentárias, baseadas em uma economia agrária e de criação de gado, sustentável e ecológica, até para os padrões de hoje.

Alexandre Rodrigues Ferreira (1756-1815), o primeiro cientista natural a desbravar a Amazônia e o Pantanal, foi um dos primeiros a denunciar o equívoco da política brutal de obtenção de mão de obra barata com a perseguição dos indígenas nômades e a organização dos "descimentos", uma verdadeira caça e extermínio dos povos indígenas da bacia do Amazonas à bacia do Prata. Seguiram-se depois as entradas e bandeiras vindas do planalto paulista, que durante todo o século XVIII conseguiram dizimar e finalmente destruir as Missões jesuíticas.

Até a expulsão dos jesuítas da América com a dissolução da ordem em Roma, os padres da Ordem de Santo Inácio de Loyola aproximaram-se dos povos tupi-guaranis, esforçavam-se em aprender a sua língua, seus rituais, seduzi-los com música, de forma pacífica, para assentá-los em aldeias e "missões", oferecendo-lhes formas dignas e sustentáveis de sobrevivência.

Isso, e muito mais, nos é desvendado por Miranda Neto em A utopia possível – Missões jesuíticas em Guairá, Itatim e Tape, 1609-1767, e seu suporte econômico-ecológico.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    14 Ago 2013
  • Data do Fascículo
    2013
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