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Os catadores e as cidades

RESENHAS

Os catadores e as cidades

Reinaldo Pacheco da Costa

Escola Politécnica, Universidade de São Paulo. São Paulo/SP, Brasil

Periferias urbanas - o chão dos catadores no urbano periférico resulta da edição da tese de doutorado de Rosalina Burgos, apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Geografia Humana da FFLCH-USP, aprovada com distinção e louvor em 2009, e premiada pela Capes em 2010.

Como adaptação de uma tese de doutorado, o livro traz vantagens e dificuldades para um resenhista. Por ter uma estrutura de tese facilita entender os aspectos referentes à questão de pesquisa, tema, relevância, objetivos, metodologia, tipos de pesquisa; em suma, aqueles referenciais que nos ajudam a acompanhar o desenvolvimento de um estudo aprofundado em uma determinada área. Já por se tratar de aspectos técnicos e científicos de determinados campos do conhecimento - no caso, especificamente em geografia e sociologia - , existe a dificuldade de se acompanhar o trabalho em seu todo e em profundidade devido à Torre de Babel que nos sitia a especialização das profissões. Adianto que no meu caso essa dificuldade é parcial, pois atuo em um programa de extensão universitária que muito se aplica em entender e participar da construção de cooperativas populares, também de catadores, na cidade de São Paulo - precípuo tema do trabalho de Rosalina Burgos. Isso me dá, pelo menos, familiaridade e interseção interdisciplinar de interesses com o tema da pesquisa - sem parecer ecletismo ou aventureirismo de um engenheiro de produção, professor de economia da produção e militante do movimento da Economia Solidária - , ao aceitar o desafio de resenhar esse exemplar trabalho de Geografia Humana e de Sociologia Urbana.

Tratemos inicialmente dos referenciais do trabalho partindo de sua questão inicial, nas palavras da autora: "o que acontece com a periferia urbana, enquanto locus histórico de reprodução da força de trabalho, num mundo do trabalho em crise?". A relevância dessa pergunta é atual, perene, recorrente e também local, pois o tema nos encampa como cidadãos desta cidade de São Paulo, terceira metrópole do mundo.

Qual foi o objeto da pesquisa que contribuiria com respostas à questão de pesquisa inicial? Conforme expresso no texto, o objeto não estava inicialmente dado; foi desvelado ao longo do trabalho de pesquisa. Aqui uma pequena digressão, pois o enfoque metodológico de pesquisa nas Ciências Sociais e Humanas quanto à definição de objeto de estudo, seus contornos teóricos e suas relações com as evidências empíricas já são conhecimentos, conforme a autora; daí ela se aplicar em realizar uma extensa pesquisa bibliográfica consubstanciada em cinco extensos anexos - que ocupam praticamente metade do livro - que nos dão a base de fundamentação teórica, e que acabaram por desvelar o objeto de pesquisa: a estruturação da indústria de reciclagem sob o enfoque do materialismo histórico.

Metodologia de pesquisa

Para a autora, as contribuições teóricas dos anos 1970 e 1980 na Geografia da USP, sob a perspectiva do materialismo histórico, não só continuam válidas, como podem melhor explicar a situação da transformação pela qual passa a realidade urbana hoje na cidade de São Paulo. A heterogeneidade do espaço urbano é esclarecedora porque se trata efetivamente de mostrar as desigualdades fundamentais oriundas de mudanças no mundo do trabalho, que correspondem à inserção social dos sujeitos (trabalhadores / lumpenproletariat) na recente sociedade urbanizada.

No caso da postura crítica, a autora - além do âmbito da geografia humana - , incluiu também estudos de sociologia urbana para compreender as transformações do espaço-território e os seus processos econômicos, políticos e sociais. Daí a escolha de situar a fundamentação teórica sob a perspectiva do materialismo histórico, amparada pela discussão introduzida pela Geografia Crítica na USP:

No âmbito da produção do conhecimento geográfico sobre a metrópole de São Paulo, no período recente de urbanização, situamos nossa fundamentação teórica sob a perspectiva do materialismo histórico, notadamente aprofundada pela Geografia Crítica (no pós 1970). (p.262)

Revisão da literatura

Editar a fundamentação teórica nos anexos do livro, que na tese imagino ser capítulo destacado, nos permite acompanhar primeiro a base de estudos teóricos sobre o caminho da noção de urbano periférico, e, em segundo lugar, uma revisão conceitual sobre o trabalhador pobre urbano na metrópole de São Paulo. Essas revisões nos trouxeram conhecimentos a partir de relevantes pesquisas, realizadas por renomados professores e pesquisadores, como Milton Santos, José de Souza Martins, Lúcio Kowarick, Paul Singer, Chico de Oliveira, Walter Barelli, Marcio Pochmann, Nabil Bonduki, Amélia L. Damiani, Odette Seabra, Maria Inez M. Borges Pinto, Boaventura de Souza Santos, David Harvey, entre outros, e pelo precursor desse enfoque crítico, o Prof. Henri Lefèbvre, com a sua extensa e inspiradora obra, longas vezes citada ao longo do trabalho de Rosalina, principalmente o livro Revolução urbana.

Noções de subúrbio, periferia, periferias, loteamento periférico e outros temas derivados foram aqui apresentadas; ou seja, o processo de periferização da população trabalhadora em São Paulo, na periferia urbana ou nos centros deteriorados. Para Rosalina, "este acúmulo de conhecimentos se configura como a base para as nossas incursões na realidade tão complexa da metrópole atual".

É a partir desse ponto que a autora passa a expor a sua ideia de urbanização crítica, segundo a qual "não há urbano para todos", o que requer uma análise da urbanização com base nas várias temporalidades do capital, mesmo que os pobres sobrevivam de relações dentro do circuito inferior (Milton Santos), sobretudo dos "serviços e comércio nas áreas periféricas".

Urbanização crítica porque imbricada a

Uma economia que gera excedentes de trabalhadores potenciais e em pobrecimento crescente, porque a sua lógica interna é esta: a redução do trabalho produtivo, a redução dos salários, a crise como barreira interna do processo. [...] uma crise interna [...] própria da definição de capital como sujeito. (Damiani apud Burgos)

A noção de urbano-periférico

A noção de urbano-periférico deriva das indagações e reflexões teóricas suscitadas no decurso da pesquisa, pois os territórios empobrecidos da metrópole são urbanos. Essa noção apresenta uma inversão intencional de conceitos - de periferia urbana para urbano-periférico -, pois o urbano está presente na periferia naquilo que revela suas ausências, nas formas determinadas pelas pobreza, segregação e exclusão.

No caso da reciclagem, antes de chegar às recicladoras, os resíduos devem ser "desviados" para locais que antecedem o seu destino final nas recicladoras, tais como baixos dos viadutos, cooperativas, depósitos e ferros-velhos que geralmente se encontram em territórios empobrecidos.

A expansão imobiliária se acelera com valorizações e desvalorizações constantes dos terrenos da cidade, possibilitando a instalação aqui ou ali de atividades menos capazes de dar valor aos produtos. É o reino do circuito inferior, e, também, de um variado circuito marginal em áreas de grande circulação, como o Largo 13 de Maio, o Largo de Pinheiros, e o próprio centro antigo da cidade. Esses aqui e ali, onde se instauram as atividades com pouca capacidade de produzir valor, correspondem aos territórios onde os catadores realizam os processos de trabalho situados na base das cadeias produtivas das indústrias de reciclagem.

Por que e para quem urbano periférico? Para o trabalhador corresponde aos territórios de (re)inserção produtiva do trabalhador pobre no urbano (no urbano periférico). Compreendem-se as periferias urbanas como condição social da pobreza. Para a indústria da reciclagem, a noção do urbano-periférico traduz sua participação-ausência no urbano, em que se encontram os fatores básicos sobre os quais essa indústria se ergue, quais sejam: a abundância de resíduos do consumo (próprio dessa sociedade urbana determinada por um sistema produtor de mercadorias), o verdadeiro "exército" de trabalhadores pobres sobrantes, a iniciativa privada, o Estado, o terceiro setor; enfim, a sociedade convocada a participar de uma nova racionalidade.

A tese

Catadores como trabalhadores sobrantes porque estão fora da "Lei do Valor"; são sobrantes porque, nesse contexto de mudanças estruturais no decurso do processo de modernização neoliberal brasileira, se tornaram paulatina e massivamente supérfluos aos processos produtivos (característica conhecida do Capital é substituir gente por máquina). Esses trabalhadores, ao não conseguirem vender sua força de trabalho no mercado tradicional, ingressam nos interstícios do espaço urbano, mas em uma (re)inserção contingente, já que realizam trabalho na base da indústria da reciclagem sem que se tornem trabalhadores da indústria propriamente dita. Trabalhadores pobres urbanos (re)inseridos na condição de sobrantes. Essa é a tese magistralmente comprovada. Sobre esse chão, e portanto sobre a vida desses milhares de trabalhadores sobrantes, incidem todas as determinações dos níveis superiores - esse edifício arquitetado no contexto das políticas neoliberais brasileiras a partir do final dos anos 1960 e início da década de 1970.

Conclusões

O conjunto de atividades que corresponde à base da indústria da reciclagem tende a se concentrar nos territórios empobrecidos da metrópole sob o domínio do urbano-periférico. São territórios tanto para os catadores (o chão dos catadores) quanto para a indústria que neles tem sua base estrutural e onde exercita o trabalho produtivo e não pago realizado pelos catadores. Lembremos mais uma vez que os catadores recebem apenas com a venda do material reciclado. Custos economizados com água, energia, controle ambiental também representam ganhos da sociedade, pois nos recicláveis já estão incorporados pelo primeiro uso desses materiais.

Fica outra pergunta neste ponto, que também nos suscita investigação, qual seja, por que, então, a sociedade, através de leis ou procedimentos, não repassa os custos evitados para os catadores melhorarem sua renda, sem incorrer em aumento do custo para a sociedade? É mais uma das contribuições dos trabalhadores sobrantes para a sociedade em geral?

Para a autora, o processo de estruturação da indústria da reciclagem ainda continua, e que não se concretiza da mesma maneira que as grandes indústrias, como a do papel e celulose, que configuram circuitos produtivos próprios, e que têm na reciclagem pouca importância.

Deixemos Rosalina fechar as conclusões:

Para os catadores (re)inseridos na condição de sobrantes na base desta indústria, se trata essencialmente da realização de estratégias de sobrevivência - pois, mesmo diante de sua magnitude crescente, a indústria da reciclagem vem se desenvolvendo sem que produza um trabalho e uma categoria de trabalhadores específicos.

E fechando esta resenha, como homenagem ao excelente trabalho realizado, e pelo aprendizado e conhecimentos obtidos pela sua leitura, ofereço esta mensagem engarrafada, para Rosalina Burgos:

Hoje em dia, quando o conceito de proletariado, intocado em sua essência econômica, está tão obliterado pela tecnologia que, no maior dos países industrializados, não há possibilidade de uma consciência proletária de classe; o papel dos intelectuais já não seria alertar os obtusos para seus interesses mais patentes, porém tirar a venda dos olhos dos espertos, tirar a ilusão de que o capitalismo que faz deles seus beneficiários transitórios baseia-se em outra coisa que não sua exploração e opressão. Os trabalhadores enganados dependem diretamente daqueles que ainda conseguem enxergar alguma coisa e falar-lhes de seu engano. Seu ódio pelos intelectuais sofreu uma mudança correspondente. Alinhou-se com as opiniões correntes do senso comum. As massas já não desconfiam dos intelectuais por eles traírem a revolução, mas porque eles talvez a queiram; com isso revelam quão grande é sua própria necessidade de intelectuais. A humanidade só sobreviverá se os extremos se unirem.

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(Theodor Adorno, Mensagens numa garrafa, in:

Um mapa da ideo-logia

. Org. Slovaj Zizek. Contraponto, 2007. cap 1, p.50)

Reinaldo Pacheco da Costa é professor no Departamento de Engenharia de Produção da Escola Politécnica da USP; coordenador acadêmico da Incubadora Tecnológica de Cooperativas Populares (Programa de extensão vinculado à Pró-Reitoria de Cultura e Extensão da USP). @ - rpcosta@usp.br

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    13 Ago 2014
  • Data do Fascículo
    Ago 2014
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