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O abraço da hera. Raça e escravidão na Universidade

É COMUM considerar que a escravidão e o tráfico de escravos africanos tornaram-se, após a independência norte-americana, realidades restritas aos estados do sul, povoado por fazendeiros e comerciantes conservadores. O norte daquele país, especialmente a Nova Inglaterra, formaria o bloco abolicionista e industrial, fiel aos princípios religiosos que defendiam a origem comum de todos os seres humanos. Pesquisas históricas recentes, entretanto, têm apontado os equívocos dessa divisão simplificada, demonstrando por meio de documentos diversos que as conexões com as áreas escravistas e a participação direta no tráfico de escravos continuaram sendo fundamentais na composição da riqueza de famílias e instituições nortistas durante todo o período anterior à Guerra Civil Americana.

Numa tentativa de retomar o passado e passar a limpo essa história tantas vezes esquecida ou ocultada, importantes universidades do norte, como a Brown University, situada em Rhode Island, vasculharam na última década seus próprios arquivos numa espécie de regressão psicanalítica, procurando indícios de uma suposta participação no processo atroz de escravização de seres humanos. O estudo da Brown surgiu, de certa forma, para atender à crescente demanda pública pelo reconhecimento dos elos entre a escravidão e o sistema educacional norte-americano, visando possíveis ações reparadoras. Mas mais do que isso, a universidade questionava-se como era possível comemorar um passado de glórias e benfeitorias se ele foi construído com os recursos provenientes da escravidão.

Esse autoquestionamento foi uma importante contribuição para o debate, mas faltava desvendar, num estudo que abrangesse o sistema universitário como um todo, o papel essencial do escravismo na formação das universidades norte-americanas, demonstrando que a articulação universidade-tráfico-trabalho escravo não ocorreu apenas na forma de eventos esporádicos e individualizados, mas se constituiu como base de sustentação dessas instituições de ensino e pesquisa.

Em seu terceiro e mais recente livro, Ebony and ivy. Race, slavery, and the troubled history of America's Universities, o historiador Craig Wilder, professor e chefe do Departamento de História do Massachusetts Institute of Technology (MIT), assumiu para si essa tarefa de desvendamento e construiu um relato histórico impactante de como o conjunto das mais antigas, tradicionais e prestigiosas universidades norte-americanas, entre elas Harvard, Yale e Princeton, foram, em sua origem, beneficiárias e defensoras do processo político e socioeconômico que levou à escravização de africanos na África Ocidental e Central e à devastação das nações indígenas nas Américas.

O livro, assim que foi lançado nos Estados Unidos, teve uma ampla repercussão e grande reconhecimento. O professor Craig Wilder concedeu inúmeras entrevistas e foi convidado para discutir o assunto em importantes instituições, inclusive nas universidades que tiveram sua história analisada no trabalho. O reconhecimento da seriedade, ineditismo e pertinência de sua investigação foi demonstrado pelos vários prêmios recebidos, entre eles o Hurston/Wright Legacy 2014 award.


Segundo Wilder, a teia de Universidades criada com auxílio britânico no período colonial tinha como primeiro objetivo ampliar o poderio da metrópole sobre o Novo Mundo, servindo como um dos pilares que suportou, juntamente com a Igreja e o Estado, a civilização construída na escravidão. Após a independência dos Estados Unidos, os jovens estudantes continuaram sendo iniciados por seus professores na compreensão do funcionamento dos regimes escravistas do mundo Atlântico e no estudo de teorias que defendiam a supremacia branca. Dessa forma, sentiam-se preparados para conviver e negociar com os traficantes de escravos e os grandes senhores do sul do país e do Caribe ou, até mesmo, prontos para se tornarem um deles, por herança ou novo investimento.

No prólogo do livro, como história exemplar introdutória ao tema, podemos seguir os passos de Henry Watson em sua busca, no ano 1830, por uma colocação no sul ainda escravista. Nascido ao norte, na Nova Inglaterra, formado pelo Washington College (depois Trinity) e por Harvard, o jovem Watson levava em sua bagagem algumas cartas de recomendação escritas por seus professores. O sul dos Estados Unidos, no período anterior à Guerra Civil americana, era visto como um terreno de oportunidades aberto aos recém-formados do norte. Esses jovens preparados pelas Universidades dos chamados "free states", onde o tráfico escravista não existia mais e a escravidão estava em declínio, eram plenamente capazes de se habituar rapidamente ao cenário escravocrata. Após viver por um tempo no sul, Henry Watson retornou ao norte para se pós-graduar em Direito por Yale e depois se tornar um proprietário de escravos no Alabama. Aquele jovem, como muitos de seus contemporâneos, não via nenhuma contradição entre a atividade escravista e sua declarada oposição à escravidão: a compensação da balança era sempre o dinheiro.


A leitura crítica feita por Wilder das cartas trocadas entre Watson e seus familiares e amigos no norte desvela, logo no início do livro, escolhas que, mesmo quando aparentemente incongruentes, eram perfeitamente plausíveis e comuns, pois estavam inseridas em um contexto político educacional que formava uma elite branca disposta a aproveitar toda e qualquer possibilidade para obter poder e sucesso nos negócios. Enquanto estudavam latim, grego e retórica, também calculavam o lucro potencial gerado pelo comércio de escravos. Muitos desses jovens formados no norte ajudariam posteriormente a criar Universidades no sul, como a University of Tennessee, em 1794.

Em seu primeiro livro, A covenant with color. Race and social power in Brooklyn (Columbia University Press, 2000), o professor Wilder já demonstrara como uma grande parcela da população e dos empreendedores do norte, em Nova York e no Brooklyn, se aproveitava e vivia do comércio e das parcerias com o sul escravocrata e o Caribe, quando não integrava diretamente o comércio de escravos para a América.

Nessa nova empreitada de pesquisa, que levou dez anos para ser concluída, Wilder complementa seus trabalhos anteriores demonstrando como as universidades participaram desse cenário de horror e aviltamento: mantendo escravos trabalhando nos campi, recebendo doações de senhores e traficantes de escravos, preparando novas gerações para assumirem a direção das propriedades e do comércio escravista e, o que parecia ser ainda mais importante, formando camadas intelectuais que defendiam a superioridade branca e, por esse motivo, justificavam a escravidão africana, o extermínio ou remoção das populações nativas e a segregação dos negros libertos.

As fontes que utilizou para compor Ebony and ivy foram principalmente documentos produzidos por pessoas vinculadas a essas Universidades: cartas, sermões, aulas publicadas pelos professores e anotações de aulas feitas pelos estudantes, diários, discursos de formatura, notícias e anúncios de vendas de escravos, publicações comemorativas, biografias, relatórios sobre doadores etc. Esses documentos tendem a majoritariamente descrever o que o professor Wilder chamou de "um conforto moral" em relação à existência da escravidão, bem como com a utilização do trabalho escravo e uma inclinação para o uso da economia escravista como forma de expandir o prestígio dessas instituições e abrir caminhos aos seus egressos.

As teses defendidas pelo professor Wilder, sobre a conivência e, além disso, a participação direta de intelectuais, cientistas e negociantes nortistas no sistema escravocrata do sul põe em questão estudos que antes procuraram demonstrar o distanciamento entre essas duas regiões dos Estados Unidos. Pesquisas mais recentes, como as de Wilder, têm apontado para um convívio amistoso e confortável entre essas duas regiões no período anterior à Guerra Civil Americana.

Ebony and ivy está dividido em duas partes que analisam as raízes fincadas na escravidão e o legado escravista do mundo acadêmico norte-americano. A primeira parte, intitulada "A escravidão e a ascensão da Universidade Americana", trata do enraizamento no mundo escravista da chamada Ivy League(Liga da Hera), formada por um grupo seleto de instituições superiores de ensino fundadas a partir do século XVII nas colônias britânicas, com base no conhecimento proveniente das renomadas Universidades que há séculos haviam sido instaladas na metrópole, como Oxford e Cambridge. As cinco pioneiras nas colônias foram Harvard (1636), William and Mary (1693), Yale (1701), Codrington (1745) em Barbados, e New Jersey (1746), que viria a se chamar Princeton. A elas vieram depois se unir o College of Philadelphia, hoje University of Pennsylvania (1749), o King's College, chamada Columbia após a independência (1754), o College of Rhode Island, primeira denominação da Brown University (1764), o Queen's College, que teve o nome alterado para Rutgers (1766), e, finalmente, o Dartmouth College (1769).

Estratégia política comum a diversos poderes europeus, a construção e manutenção de Universidades na América, com o uso do trabalho escravo e com fundos provenientes do tráfico negreiro, contribuiu para assegurar as possessões britânicas, transformando senhores e comerciantes de escravos em benfeitores e administradores dessas instituições, destinadas principalmente ao ensino de seus próprios filhos. Em 1789, alguns anos após a declaração de independência, a primeira universidade pública do país, University of North Carolina, também foi fundada com recursos financeiros provenientes da escravidão.

Wilder igualmente demonstra, nessa primeira parte do livro, como terras antes pertencentes à nações indígenas foram incorporadas ao patrimônio dessas Universidades após serem tomadas em conflito e em decorrência de massacres e escravização.

A segunda parte do livro, "Raça e a ascensão da Universidade Americana", discute o legado da economia escravista na cultura intelectual norte-americana e na produção do conhecimento acadêmico de teor racista após a independência.

Traficantes e proprietários de escravos patrocinavam as academias e, por isso, mantinham um vasto controle sobre a ciência produzida ali, pressionando para que pesquisadores e professores comprovassem cientificamente a inferioridade de negros e índios, o que poderia justificar a escravização dos primeiros e a eliminação dos segundos, impedindo a disseminação de ideias divergentes que colocassem em dúvida a legitimidade do poder político e econômico dos escravocratas.

Enquanto os escravos trabalhavam na construção e manutenção das universidades, nas salas de aula professores justificavam a existência da escravidão africana, a eliminação das nações indígenas e o avanço das fronteiras baseados em princípios da supremacia branca defendidos por eles mesmos e seus colegas europeus. A emergência dessa ciência racial, a partir da destrutiva experiência do colonialismo e da invasão do espaço intelectual pelos proprietários de escravos, conferiu autoridade à academia que passou a interferir diretamente na esfera pública. Ossadas dos povos nativos norte-americanos eram desde o final do século XVIII examinadas nos cursos de Medicina e Anatomia, na busca por evidências que comprovassem a inferioridade racial dessas populações. Mesmo sendo uma prática proibida, cemitérios de negros eram violados em busca de corpos que pudessem ser dissecados nos mesmos laboratórios.

Se, por um lado, no final do século XVIII, uma tendência científica apontava para a origem comum de todos os seres humanos, seguindo os princípios defendidos no discurso religioso e dando base aos ideias abolicionistas, por outro, essas comprovações começaram a ser sufocadas no início do século XIX por um crescente grupo que defendia a origem diferenciada e, portanto, a impossibilidade de igualdade entre as supostas raças. Apesar de constantemente negada pelas evidências científicas, a defesa da origem diferenciada ajudava a justificar a escravidão e se tornaria frequente na academia.

Nessa segunda parte do livro, Wilder relata como no início do século XIX seriam lançados pelas Universidades norte-americanas vários avisos sobre o perigo social representado pela crescente população negra livre e o aconselhamento para que esses grupos fossem mandados de volta à África. Daí surgiu o movimento colonialista, que teve como resultado a criação da Libéria em 1822. Esse movimento de repatriação foi amplamente questionado pelos abolicionistas, cujas ideias começavam a tomar fôlego e a enfrentar a forte resistência dos patronos universitários.

Nem mesmo os institutos tecnológicos criados antes da Guerra Civil Americana, como o Massachusetts Institute of Thecnology (1861), ficaram livres dessa cadeia que ligava a sala de aula às grandes plantações de açúcar e algodão no sul e no Caribe escravista. Industriais do norte que patrocinaram essas novas academias técnicas relacionavam-se com as áreas escravistas para obter as matérias-primas necessárias à produção.

A conclusão a que nos leva Wilder é que houve, na maior parte das vezes, um empenho ativo da academia na manutenção do regime escravista e na perpetuação dos horrores do cativeiro, enquanto os indicativos econômicos e sociais possibilitavam a sua permanência. Após a abolição as teorias raciais seriam usadas para a implementação de políticas segregacionistas, responsáveis pelo isolamento da população afrodescendente e sua guetorização nos grandes centros urbanos. Mas o que o seu trabalho também nos mostra é um esforço considerável empreitado por algumas dessas Universidades e muitos de seus mais eminentes pesquisadores no sentido de confrontarem o seu passado e reajustarem a academia para que ela possa servir à constituição de uma sociedade igualitária.

Poderíamos talvez afirmar que o professor Wilder, com Ebony and ivy, concluiu a trilogia iniciada com seu livro A convenant with color e seguida pelo seu segundo trabalho In the company of black men. The African influence on African American culture in New York City (New York University Press, 2001), em que analisou as associações religiosas e leigas criadas pelos negros de Nova York como forma de resistência contra o racismo crescente. Mas essa "trilogia" certamente será complementada por novos estudos seus que virão se juntar a esses três precursores e completar uma trajetória investigativa justamente premiada e comprometida com a ética e a dignidade.

No final de 2014, em um debate no Schomburg Center for Research in Black Culture, no Harlem, Nova York, Craig Wilder declarou que as constatações a que chegou com sua pesquisa não o fizeram gostar menos do ambiente universitário, o qual valoriza como um espaço de contradição em que diferentes ideias podem ser discutidas e repensadas. O que mudou para ele, que, após uma infância simples como um menino negro no Brooklyn, se tornou um líder comunitário no Bronx e recebeu seu Ph.D na Columbia University, foi a compreensão de que o acesso de afrodescendentes a boas Universidades não é um favor, mas sim um direito.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Ago 2015
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