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As Ciências da Natureza nas 1ª e 2ª versões da Base Nacional Comum Curricular

RESUMO

Neste texto, intento apresentar e discutir os caminhos percorridos na elaboração das 1ª e 2ª versões da Base Nacional Comum Curricular, iniciada em 2015, Base essa prevista desde a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional de 1986. Apresento um panorama geral do processo, para, em seguida, discutir especificamente, a área das ciências da natureza e as propostas para cada um dos componentes curriculares que compõem a referida área, no ensino fundamental e médio. Procuro estabelecer um diálogo, a partir de meu ponto de vista, entre as propostas e a alfabetização científica.

PALAVRAS-CHAVE:
Ensino de Ciências; Base Nacional Comum Curricular; Ensino Básico

ABSTRACT

In this paper, I attempt to present and discuss the paths taken in the process of producing the 1st and 2nd versions of the National Curricular Common Core that took place from 2015 to 2016. The National Common Core is foreseen since the Law of National Education (LDB) established in 1986. I present an overview of the process and specifically discuss the area of Natural Sciences and the proposals for each of the Science curricular components, in primary and secondary education. I seek to establish a dialogue, from my point of view, between these proposals and scientific literacy assumptions.

KEYWORDS:
Science teaching; Common core; Primary and secondary education

Introdução - justificativas para a elaboração da Base Nacional Comum Curricular

Neste artigo, apresento um breve relato da experiência que tive ao participar da equipe de assessores responsável pela elaboração da 1ª e da 2ª versões da Base Nacional Comum Curricular (BNCC). Essas versões foram construídas ao longo dos anos 2015 e 2016, até o impeachment da presidente Dilma Rousseff, quando o então secretário da Educação Básica do MEC1 1 Era secretário da Educação Basica do MEC o Prof. Manuel Palácios (UFJF). foi afastado, juntamente com outros membros de sua equipe. A comissão de assessores, bem como a de especialistas que participaram na elaboração das duas primeiras versões, foi desfeita. As propostas para o ensino das Ciências da Natureza foram concebidas tendo como base as Diretrizes Curriculares Nacionais para o Ensino Básico (Brasil, 2013), considerando-se, portanto, os objetivos ali apresentados, como a formação básica para o exercício da cidadania, a compreensão dos fundamentos científicos e tecnológicos presentes na sociedade contemporânea. A proposta para o Ensino Médio foi construída sob a égide da legislação da época, ou seja, foram considerados três anos de duração e a área das ciências da natureza constituída pelos três componentes curriculares: Física, Química e Biologia.

Embora a elaboração de uma base comum para a Educação Básica escolar brasileira tenha sido preconizada na Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, formulada em 1996 (Brasil, 1996), a apresentação pública da primeira versão do documento da Base Nacional Comum Curricular (BNCC), provocou discussões sobre a validade, a exequibilidade e o processo de elaboração, entre outros aspectos, de uma base curricular comum para todo o estado brasileiro.

A LDB, em seu artigo 26 estabelece que:

Art. 26. Os currículos da educação infantil, do ensino fundamental e do ensino médio devem ter uma base nacional comum, a ser complementada, em cada sistema de ensino e em cada estabelecimento escolar, por uma parte diversificada, exigida pelas características regionais e locais da sociedade, da cultura, da economia e dos educandos. (Brasil, 2017, p.19)

Mais recentemente, nas Diretrizes Curriculares Nacionais Gerais da Educação Básica (Brasil, 2013, p.4), lançadas pelo MEC, afirma-se que a base nacional comum será “responsável por orientar a organização, articulação, o desenvolvimento e a avaliação das propostas pedagógicas de todas as redes de ensino brasileiras”. Ainda, no Plano Nacional da Educação, decênio 2014-2024, a BNCC faz parte das estratégias propostas para as metas de universalização do Ensino Fundamental e do atendimento escolar à população de 15 a 17 anos (metas 2 e 3, respectivamente).

Uma das discussões que se tem travado diz respeito à necessidade e propriedade de uma base curricular para um país continental como o nosso, com realidades diferentes, marcadas por diversidade cultural, social e econômica (Macedo, 2015MACEDO, E. Base Nacional Comum Para Currículos: Direitos De Aprendizagem E Desenvolvimento Para Quem?, Educ. Soc., v.36, n.133, p.891-908, 2015.) e ao interesse que grupos econômicos vêm demonstrando em apoiar uma base curricular de caráter nacional (Andrade et al., 2017ANDRADE, M. C. P. de; NEVES, R. M. C. das; PICCININI, C. L. Base nacional comum curricular: disputas ideológicas na educação nacional. In: ANAIS DO COLÓQUIO INTERNACIONAL MARX E O MARXISMO 2017 DE O CAPITAL À REVOLUÇÃO DE OUTUBRO (1867 - 1917), ago. 2017, Niterói. Disponível em: <http://www.niepmarx.blog.br/MM2017/anais2017. htm>. Acesso em: 6 set. 2018.
http://www.niepmarx.blog.br/MM2017/anais...
). A expansão do Ensino Básico, nas últimas décadas, garantindo acesso à escola à maioria da população de 7 a 14 anos (Ensino Fundamental, 97,7% de crianças matriculadas em 20152 2 Fonte: IBGE/Pnad. Disponível em: <http://www.observatoriodopne.org.br/metas-pne/2-ensino-fundamental/ indicadores>. ), aponta para um dos aspectos da democratização do ensino, a política de ampliação de oportunidades educativas (Azanha, 2004AZANHA, J. M. P. Democratização do Ensino: vicissitudes da ideia no ensino paulista. Educação e Pesquisa, São Paulo, v.30, n.2, p.335-44, mai./ago. 2004.). Porém, a democratização entendida como acesso aos bens culturais ainda está a ser construída.

Como aponta Carvalho (2004CARVALHO, J. S. F. de. “Democratização do Ensino” revisitado. Educação e Pesquisa, São Paulo, v.30, n.2, p.327-34, mai./ago. 2004., p.333):

[...] o direito cuja universalização se reivindica não é simplesmente o da matrícula em um estabelecimento escolar, mas o do acesso aos bens culturais públicos que nela deveriam difundir: conhecimentos, linguagens, expressões artísticas, práticas sociais e morais, enfim, o direito de um legado de realizações históricas às quais conferimos valor e das quais esperamos que as novas gerações se apoderem.

Se os problemas que temos de enfrentar são muitos para que se avance na qualidade da educação escolar para todos os estudantes, e são urgentes, a educação como igualdade de direito de todos aos bens culturais deve garantir tanto uma educação básica comum, sem que isso signifique a exclusão de uma educação que respeite as diferenças (Cury, 2005CURY, C. R. J. O direito à educação: Um campo de atuação do gestor educacional na escola. Brasília: Escola de Gestores, 2005.).

Uma base nacional comum curricular não significa uma padronização dos conhecimentos a serem tratados na escola, uma vez que cabe às unidades escolares a produção de seus projetos políticos pedagógicos, o que lhes garante apropriarem-se daquilo que é posto como comum de acordo com suas realidades e necessidades, integrando saberes universais com demandas locais, valorizando culturas e necessidades regionais. Assim, uma base nacional comum curricular pode contribuir para possibilitar o direito a aprendizagens a todos os estudantes de saberes que constituem nosso patrimônio cultural, e se possa avançar na qualidade da educação, tendo em vista as especificidades que caracterizam os diferentes contextos escolares de nosso país.

Os “Parâmetros Curriculares Nacionais” (PCN e PCN+, Brasil, 1999, 2002), documentos de cunho nacional, elaborados no final de década de 1990, pelo MEC, para o Ensino Fundamental e o Médio, já apresentavam diretrizes para a construção ou reelaboração das propostas curriculares das unidades escolares brasileiras. Esses documentos, embora criticados, quer pela organização por competências e habilidades, quer por apresentar um caráter prescritivo (Ricardo, 2010RICARDO, E. C. Discussão acerca do ensino por competências: problemas e alternativas. Cadernos de Pesquisa, São Paulo, v.40, n.140, p.605-28, mai./ago. 2010.); tiveram influência marcante na concepção, elaboração ou reelaboração de muitas das propostas curriculares brasileiras (Galian, 2014GALIAN, C. V. A. Os PCN e a elaboração de propostas curriculares no Brasil. Cadernos de Pesquisa, São Paulo, v.44, n.153, p.648-69, jul./set. 2014.).

No trabalho de elaboração da BNCC não se poderia deixar de considerar essas propostas curriculares, desenvolvidas nos últimos 20 anos, bem como as contribuições dos PCN.

A equipe de trabalho que formulou a 1ª e a 2ª versões da BNCC

Como um instrumento de gestão que proporcionasse subsídios para os projetos curriculares das escolas brasileiras, a BNCC deveria apresentar um conjunto de princípios e saberes, traduzidos em objetivos de aprendizagem para todas as áreas do conhecimento que faziam parte do Ensino Básico. Para tal empreendimento, formou-se um grupo de assessores, envolvendo professores das universidades das diversas regiões do país, responsável pela coordenação dos trabalhos de produção dos documentos específicos de cada área e das orientações gerais, desde a Educação Infantil até o Ensino Médio. Esse grupo reunia-se periodicamente sob a coordenação da Profa. Hilda Aparecida Linhares da Silva Micarello (UFJF). As decisões eram tomadas pelo grupo, de modo consensuado, de maneira que, respeitando-se as especificidades de cada área e componente curricular, se tivessem princípios comuns que orientassem a construção da base curricular para cada componente disciplinar. A maioria dos integrantes havia participado de políticas públicas referentes a proposições curriculares, acumulava experiências de ensino nas licenciaturas das áreas respectivas, o envolvimento na pesquisa acadêmica em educação ou no ensino de uma dada área do conhecimento.

Juntamente com o grupo assessor, e coordenados por esse, constituíram-se grupos de especialistas, responsáveis pela construção dos documentos de cada componente curricular de cada etapa da escolaridade obrigatória. Esses grupos foram formados por professores e gestores das redes públicas municipal e estadual de todos os estados brasileiros e professores das universidades e institutos federais, envolvidos com pesquisa, ensino e extensão na área da Educação Básica. Essa composição assegurava a contribuição de conhecimentos advindos tanto de experiências práticas, do chão da escola, quanto de pesquisas em ensino em campos específicos das áreas e componentes curriculares descritos nas Diretrizes Curriculares Nacionais.

Destaco a composição da equipe de assessores da área das ciências da natureza, os professores Edenia Maria Ribeiro Amaral (UFRPE), Luiz Carlos de Menezes (IFUSP) e Rosane Meirelles (UERJ), além desta autora, tendo sido contemplados os três componentes curriculares, Biologia, Física e Química, que fazem parte da referida área. O grupo de especialistas, por sua vez, foi formado por 20 professores, 9 das redes municipal e estadual de ensino e 11 das universidades públicas, de diversas regiões do país. Esse grupo se organizou em subgrupos de acordo com a etapa da escolaridade no ensino fundamental, e por disciplina, no Ensino Médio.3 3 Composição da equipe de especialistas: Ensino Fundamental (Anos Iniciais): Joelma Bezerra S. Valente (RR/Consed), Giselly Rodrigues N. Silva Gomes (MT/Consed); Ensino Fundamental (Anos Finais): Maria Oneide O. Enes Costa (RO/Consed), Yassuko Hosoume (Ifusp), Mauricio Compiani (Feunicamp); Ensino Médio - Biologia: Minancy G. de Oliveira (PE/Consed), Gleyson S. dos Santos (SE/Consed), Claudia A. Serra e Sepulveda (UEFS), Danusa Munford (UFMG), Marcelo T. Motokane (FFCLRP USP); Física: Andre L. Ribeiro Vianna (BA/Consed), Suzana M. de Castro Lins (PE/Consed), Milton A. Auth (Facipi UFU), Eduardo A. Terrazzan (UFSM), André Ferrer P. Martins (UFRN); Química: Maurício Brito da Silva (AM/Consed), Maria Rosário dos Santos (PI/Consed), Ricardo Gauche (UnB), Agustina R. Echeverría (UFG), Eduardo F. Mortimer (FaE UFMG) (Conselho Nacional dos Secretários de Educação - Consed)

O trabalho nesse grupo requereu o compromisso de cada um em contribuir para se construir um consenso, requereu a ousadia de ponderar as próprias experiências e ideias, superando a barreira das concepções individuais para construir uma proposta que tivesse o papel de referência nacional aos currículos do Ensino Fundamental e do Médio. Assim, tanto as posições apresentadas pela equipe de assessores quanto as de cada componente do grupo de especialistas eram avaliadas, discutidas, procurando-se evidenciar aspectos práticos e teóricos, considerando-se, portanto, a realidade escolar e conhecimentos científicos que contribuíssem para entendimento dessas posições. Nesse processo dinâmico e democrático, foram sendo produzidos os textos das propostas para cada nível de ensino e componente curricular da área das ciências da natureza. Construiu-se, nessas interações, um ambiente colaborativo, que contribuiu para o desenvolvimento profissional individual e coletivo, pois ao se trabalhar tendo em vista um objetivo comum, refletia-se sobre os diferentes pontos de vista apresentados, compartilhavam-se experiências, possibilitando a todos novas aprendizagens (Boavida; Ponte, 2002BOAVIDA, A. M.; PONTE, J. P. Investigação colaborativa: Potencialidades e problemas. In GTI. (Org.) Reflectir e investigar sobre a prática profissional. Lisboa: APM, 2002. p.43-55.).

As Ciências da Natureza na BNCC

Há um consenso, hoje, nos meios educacional, científico e de políticas públicas para a educação, da importância do domínio de conhecimentos científicos na formação de todas as pessoas. Os conhecimentos científicos e tecnológicos têm contribuído para mudanças significativas tanto na vida pessoal quanto na profissional e social, nos colocando a necessidade de compreensão das interações entre a ciência, a tecnologia e a sociedade para que se possam avaliar problemáticas, realizar escolhas pessoais e coletivas, e se possa realizar intervenções, informadas e responsáveis, na sociedade (Auler; Delizoicov, 2001AULER, D.; DELIZOICOV, D.. Alfabetização científico-tecnológica para quê? ENSAIO: Pesquisa em Educação em Ciências, Belo Horizonte, v.3, n.1, p. 122-134, jun. 2001.; Viecheneski; Carletto, 2013VIECHENESKI, J. P.; CARLETTO, M. Por que e para quê ensinar ciências para crianças. Revista Brasileira de Ensino de Ciência e Tecnologia, Ponta Grossa, v.6, n.2, p.213-226, mai./ago. 2013.).

O ensino de Ciências da Natureza na Educação Básica visa, portanto, a alfabetização científica, entendida em seus múltiplos aspectos, desde a compreensão de conceitos e conhecimentos, da constituição social e histórica da ciência, à compreensão de questões referentes às aplicações da ciência e às implicações sociais, ambientais e éticas relativas a utilização e produção de conhecimentos científicos, à tomada de decisões frente a questões de natureza científica e tecnológica (Bybee, 2006BYBEE, R. W. Scientific inquiry and science teaching. In: FLICK, L.; LEDERMAN, N. G. (Ed.) Scientific Inquiry and Nature of Science: Implications for Teaching, Learning, and Teacher Education. New York: Springer, 2006. p.1-14.; Sasseron; Carvalho, 2011SASSERON, L. H.; CARVALHO, A. M. P. Alfabetização Científica; uma revisão bibliográfica. Investigações em Ensino de Ciências, v.16, n.1, p.59-77, 2011.; Diaz; Alonso; Mas, 2003DÍAZ, J. A. A.; ALONSO, A. V.; MAS, M. A. M. Papel de la Educación CTS en una Alfabetización Científica y Tecnológica para todas las Personas, Revista Electrónica de Enseñanza de las Ciencias, v.2, n.2, p.80-111, 2003.).

Essas ideias, compartilhadas pela equipe, e os direitos de aprendizagem gerais já definidos pelo grupo de assessores, direitos esses que se expressam em termos de princípios éticos, políticos e estéticos, foram balizadoras das decisões tomadas pelo grupo acerca da organização e articulação dos conhecimentos em cada etapa da escolaridade obrigatória. Dessa maneira, a educação escolar na área das ciências da natureza deveria ser estruturada, nos 12 anos escolares, de forma a que a leitura do mundo através das lentes das ciências da natureza fosse se tornando mais complexa, à medida que os aprendizes fossem reconhecendo a presença dos conhecimentos em seu ambiente, fossem explorando fenômenos, seus próprios saberes e outros a eles apresentados, fossem formulando perguntas, hipóteses e fazendo investigações para poderem aprofundar suas explicações sobre o mundo físico e social, reconhecendo situações que demandam reflexões e ações. No Ensino Médio, ainda, com a divisão da área em Física, Química e Biologia, a equipe considerou que aprofundamentos específicos em cada um desses campos proporcionariam aos aprendizes uma maior compreensão da construção da ciência, de temáticas sociais relativas a esses campos científicos e à tecnologia, o desenvolvimento da capacidade de julgar e de tomar decisões com fundamentos também nos conhecimentos científicos e tecnológicos.

Os eixos que orientaram a proposição da base curricular das Ciências da Natureza

Com a perspectiva de formação aqui apresentada, foram construídos os eixos que estruturaram a base curricular das Ciências da Natureza. Os quatro eixos formulados, conhecimento conceitual, contextualização social e histórica dos conhecimentos, processos e práticas de investigação e linguagens nas ciências da natureza, podem permitir olhares particulares para uma ou outra dimensão que cada eixo contempla, devendo-se enfatizar, entretanto, que tais eixos se inter-relacionam, se completam muitas vezes, possibilitando a integração desses olhares na construção dos conhecimentos. Os eixos são apresentados a seguir.

  1. Conhecimento conceitual das ciências da natureza - dá ênfase aos conhecimentos específicos que fazem parte de cada componente curricular, os conceitos, leis, princípios, modelos e teorias que constituem os campos do saber presentes nesses componentes.

  2. Contextualização, social, cultural e histórica das Ciências da Natureza - este eixo orienta a elaboração de currículos para o estabelecimento de relações entre os conhecimentos das ciências da natureza e contextos sociais, culturais, ambientais e tecnológicos; o desenvolvimento histórico da ciência e da tecnologia, tendo em vista a compreensão da ciência como uma construção humana e social.

  3. Processos e práticas de investigação em Ciências da Natureza - este eixo dá ênfase para que sejam abordados, nas orientações curriculares, processos investigativos como: formulação de questões, identificação e investigação de problemas, de proposição de hipóteses, planejamento e realização de experimentos, de pesquisas de campo, de análise de dados e informações, de elaboração de explicações e de comunicação de suas conclusões.

  4. Linguagens nas Ciências da Natureza - neste eixo, as linguagens específicas das ciências da natureza e as diferentes linguagens envolvidas na comunicação de conhecimentos científicos são evidenciadas. Cada campo científico apresenta uma linguagem específica, cuja apropriação facilita a compreensão e a comunicação. Ainda, as ciências da natureza utilizam outros recursos da linguagem, como gráficos, imagens, representações pictóricas, importantes para a compreensão de muitos dos conhecimentos científicos.

As Ciências da Natureza no Ensino Fundamental

Para organizar a base curricular para o Ensino Fundamental, duas decisões tomadas são destacadas aqui pelo caráter prático e pedagógico que apresentam. Houve um consenso na equipe de romper com uma certa estrutura de organização dos conhecimentos que geralmente acontece no Ensino Fundamental, a de apresentar, quase que isoladamente, conteúdos referentes à biologia, à química e à física, em diferentes anos escolares, sendo os conhecimentos mais específicos de física e de química restritos ao último ano. Esses conhecimentos articulados contribuem para diferentes leituras do mundo físico e social que as crianças podem fazer desde o início de sua escolaridade, de maneira que não se deve restringi-los aos últimos anos do Ensino Fundamental. A outra decisão se refere à recorrência de temas, ao longo da escolaridade, propondo que sejam tratados em níveis de complexidade crescente, desde os aspectos fenomenológicos até os modelos explicativos, desde o reconhecimento de situações cotidianas até a possibilidade de avaliar, decidir e agir sobre a realidade que se apresenta ao aprendiz.

Nos anos iniciais do Ensino Fundamental (1º ao 5º anos), as ciências da natureza fazem parte do processo de letramento das crianças, considerando que muitos de seus interesses estão voltados para fenômenos e situações que se relacionam com as ciências da natureza. Compartilho das ideias apresentadas por Viecheneski e Carletto (2013VIECHENESKI, J. P.; CARLETTO, M. Por que e para quê ensinar ciências para crianças. Revista Brasileira de Ensino de Ciência e Tecnologia, Ponta Grossa, v.6, n.2, p.213-226, mai./ago. 2013., p. 218), que “ter acesso à educação científica e tecnológica, desde a infância, é um direito de todos, que corresponde ao direito e ao dever de se posicionar, tomar decisões e intervir responsavelmente no meio social”. Nos anos finais do Ensino Fundamental (6º ao 9º anos), as ciências da natureza estão presentes como um componente curricular específico, o que dá uma outra dimensão para o ensino. Como bem relataram os professores desses anos escolares participantes da equipe de especialistas, os alunos, nessa fase, já procuram construir uma identidade própria, ampliando questionamentos sobre problemas sociais, muitos deles relacionados às ciências da natureza. Ainda, ao longo dos anos finais do Ensino Fundamental, capacidades cognitivas como abstração, estabelecimento de relações causais, de controle de variáveis vão se ampliando (Zhou et al., 2016ZHOU, S. et al. Assessment of scientific reasoning: The effects of task context, data, and design on student reasoning in control of variables. Thinking Skills and Creativity, v.19, p.175-87, 2016.), possibilitando, por exemplo, a criação de modelos explicativos para fenômenos em estudo e a proposição de caminhos para a resolução de problemas, relacionando a ciência, a tecnologia e a sociedade.

Os objetivos formativos gerais das ciências da natureza estabelecidos para essa etapa da escolarização enfatizam a leitura do mundo, a formulação de questões e busca de respostas com apoio em conhecimentos das ciências da natureza, o reconhecimento, compreensão e análise das aplicações e implicações da ciência e tecnologia na sociedade, a proposição de soluções para questões que envolvem conhecimentos científicos, e a compreensão das ciências como um empreendimento humano, social e histórico (Brasil, 2016).

Esses objetivos demandam dos aprendizes avançar na compreensão conceitual, requerendo que se envolvam em processos de pensamento mais complexos, bem como que ampliem sua participação na sociedade por meio de análises de situações e proposições de soluções

Os conhecimentos propostos para o Ensino Fundamental

A ampla gama de conhecimentos que a equipe de especialistas possuía, tanto em termos de suas áreas específicas de formação quanto de conhecimentos advindos das vivências e práticas escolares, alimentou as discussões e tomadas de decisão do grupo sobre os principais temas a serem tratados no Ensino Fundamental. Em um processo democrático, de colaboração entre os pares, os conhecimentos foram apontados e, então, agrupados em temas mais abrangentes, lembrando um processo de análise de conteúdo. Dessa maneira, foram construídas as unidades curriculares (seis na 1ª versão, reduzidas a cinco na 2ª versão), que comporiam a Base Nacional Curricular para os nove anos do Ensino Fundamental. Também foi decisão do grupo, que essas cinco unidades curriculares deveriam fazer parte de cada um dos anos escolares, de maneira a se ampliarem e aprofundarem gradativamente os conhecimentos sobre o tema da unidade. Essas unidades foram assim denominadas: Materiais, propriedades e transformações; Ambiente, recursos e responsabilidades; Terra - constituição e movimento; Vida - constituição e evolução; e Sentidos, percepções e interações.

De maneira breve, apresentam-se justificativas dessas escolhas temáticas. As crianças e jovens lidam diariamente com materiais, reconhecendo seus usos, observando propriedades e algumas transformações desses materiais. A elaboração de conhecimentos sobre os materiais, suas propriedades, obtenção e transformação podem auxiliá-los a questionar como os recursos naturais estão sendo utilizados na produção desses materiais, quais são os impactos ambientais envolvidos, refletirem e proporem ações sobre situações e problemas que a produção e usos dos materiais acarreta ao meio social, natural e ambiental. O entendimento de como os recursos naturais são formados em nosso planeta é muito importante, quando se consideram aspectos relativos à exploração desses recursos, a possibilidade de se esgotarem, como também quando são consideradas a história geológica da Terra. O conhecimento do lugar em que se vive, além de contemplar regiões específicas, envolve a compreensão de características do planeta Terra, suas origens, sua relação com outros corpos celestes. Conhecimentos sobre as características da atmosfera, hidrosfera, biosfera e litosfera auxiliam os aprendizes a compreender a vida em nosso planeta. A diversidade da vida nos diferentes ambientes que compõem nosso planeta pode ser intrigante para os aprendizes, podendo-se, então, procurar relações entre as características dos seres vivos e a história da vida na Terra. As crianças e jovens convivem diariamente com fenômenos de natureza sonora, luminosa, térmica, elétrica e mecânica. Assim, no Ensino Fundamental devem ser promovidas situações para que os alunos possam compreender a natureza desses fenômenos, bem como as interações dos seres vivos com seu ambiente, a importância e o funcionamento de aparatos tecnológicos desenvolvidos para mediar essas interações.

As Ciências da Natureza no Ensino Médio

A construção da base curricular para o Ensino Médio foi feita para cada componente curricular apresentado nas Diretrizes Curriculares para o Ensino Médio, a Biologia, a Física e a Química. Seguindo-se as mesmas práticas já descritas no processo de elaboração da base curricular do Ensino Fundamental, em colaboração, o grupo de especialistas e os assessores discutiram, inicialmente, possibilidades de organização por temas que fossem comuns aos três componentes curriculares. Três considerações nos fizeram repensar esse tipo de organização: a dificuldade de encontrar temas que fossem comuns para abordar conhecimentos específicos de cada componente, que estavam sendo considerados importantes na formação dos aprendizes; o estudo feito preliminarmente dos currículos estaduais mostrava, via de regra, uma organização disciplinar, mesmo quando um dado tema era tratado; as ponderações dos professores do Ensino Médio que faziam parte do grupo quanto à pertinência e exequibilidade dessa proposta no cotidiano da maioria das escolas brasileiras. Como apontam Muenchen e Auler (2007MUENCHEN, C.; AULER, D. Abordagem temática: desafios na educação de jovens e adultos. Revista Brasileira de Pesquisa em Educação em Ciências, v.7, n.3, 2007.), abordagens temáticas podem demandar um trabalho interdisciplinar, havendo necessidades de mudanças que ultrapassam o campo pedagógico, exigindo diálogos entre os envolvidos e tempo para planejamentos coletivos.

As decisões sobre as unidades curriculares foram feitas reunindo-se os especialistas com formação específica em um dos campos de conhecimento ou com experiência docente naquele campo. As propostas de unidades foram discutidas por todo o grupo, procurando-se verificar a coerência com o que estava sendo proposto para o Ensino Fundamental, a pertinência aos eixos formativos e a extensão de cada proposta, buscando-se um certo equilíbrio entre os conteúdos dos três componentes.

No Ensino Médio, os jovens e adultos apresentam maior maturidade e vivência social, o que amplia as possibilidades de o aprofundamento de conceitos de cada componente disciplinar, dos modelos explicativos, e o tratamento de questões de interesse social e científico, para que o aluno possa enfrentá-las, a partir de seus conhecimentos e buscando outros, elaborar argumentos, tomar decisões próprias e propor soluções consistentes para essas questões. Com isso, alargam-se as oportunidades para outras leituras do mundo físico e social. O estudo de cada componente curricular, Biologia, Física e Química, com suas especificidades, pode contribuir para que os alunos compreendam os modos de pensar e de produzir conhecimento próprios de cada campo, os processos históricos e sociais de construção do conhecimento em cada um desses campos, de maneira a melhor entenderem e poderem construir posicionamentos críticos quanto a natureza da ciência, a provisoriedade de suas teorias e seu papel na sociedade.

Os objetivos formativos gerais das ciências da natureza para o Ensino Médio dão ênfase ao reconhecimento da ciência como um empreendimento humano, histórico e social, e de seus princípios como sínteses provisórias de uma construção ininterrupta; à leitura do mundo mobilizando conhecimentos da biologia, física e química, à interpretação e discussão de relações entre a ciência, a tecnologia e a sociedade, emitindo julgamentos e propondo soluções para o enfrentamento de problemas que envolvem o conhecimento científico; à reflexão crítica sobre valores humanos, éticos e morais relacionados à aplicação dos conhecimentos científicos e tecnológicos. Os objetivos gerais de formação para o Ensino Médio revelam um aumento de complexidade para abordar as interações entre a ciência, a tecnologia e a sociedade. A perspectiva que se tem é a de formação de um aluno crítico e atuante na sociedade, uma vez que são privilegiados, com esses objetivos gerais, espaços para estudos e discussões de temas sociais que demandam enfoques políticos, econômicos, ambientais, entre outros (Silva; Marcondes, 2010SILVA, E. L. da; MARCONDES, M. E. R. Visões de contextualização de professores de química na elaboração de seus próprios materiais didáticos. Ensaio: Pesquisa em Educação em Ciência, Belo Horizonte, v.12, n.1, p.101-18, 2010.).

Os componentes curriculares do Ensino Médio - conhecimentos propostos

A definição dos conhecimentos de cada campo, física, biologia e química, se deu coletivamente, em equipes menores, respeitadas as experiências e formação de cada um dos participantes. Discussões gerais aconteceram em que cada grupo expunha as razões de suas escolhas e eram debatidos aspectos como pertinência, relevância para a formação geral do aluno, relação com conhecimentos apresentados para o Ensino Fundamental, recorrência de temáticas sociais, entre outros. Esse movimento possibilitou uma certa aproximação das propostas de cada componente curricular, considerando-se os eixos estruturadores e os objetivos gerais

Para o entendimento do que se propõe nessas unidades deve-se ter em mente que essas ciências são construções humanas e, assim, várias interpretações e modelos explicativos foram construídos ao longo da história; a biologia, a física e a química tratam de conhecimentos que têm implicações de diversas naturezas, sociais, políticas, econômicas, tecnológicas e éticas, o que significa que o aprendizado envolve posicionamentos críticos perante situações sociais de cunho científico e tecnológico; cada um desses campos do saber tem uma linguagem própria e faz uso de outras linguagens, que demandam compreensões para melhor entendimento dos conceitos; essas ciências envolvem perspectivas investigativas, que devem estar presentes na vivência escolar, para que seja estimulada a curiosidade e os aprendizes desenvolvam maneiras de enfrentar problemas

A física no Ensino Médio é apresentada em seis unidades curriculares, abarcando alguns dos diferentes campos do conhecimento desse campo. São elas: Movimentos de objetos e sistemas; Energias e suas transformações; Processos de Comunicação e Informação; Eletromagnetismo - materiais e equipamentos; Materiais e radiações; Terra e Universo - formação e evolução

Deve-se destacar a relação existente entre alguns dos conhecimentos envolvidos nessas unidades curriculares e conhecimentos já tratados no Ensino Fundamental, como assuntos relacionados à energia, ou relativos à Terra e Universo. Os níveis de tratamento conceitual são claramente diferentes, como também as possibilidades de exploração do tema em seus aspectos sociais e históricos. Destacam-se, também, as aproximações e distanciamentos que essas unidades apresentam em relação a conteúdos tradicionalmente tratados no Ensino Médio. O professor pode reconhecer assuntos que ensina, mesmo que tenhamos dado outra visão, como é o caso do estudo dos movimentos ou do eletromagnetismo; entretanto, pode perceber que fatos e processos do cotidiano não são meras ilustrações de conceitos, mas sim conhecimentos a serem apreendidos, debatidos e avaliados.

A química no Ensino Médio é apresentada em seis unidades curriculares que remetem aos grandes temas dessa ciência. São elas: Materiais, propriedades e usos: estudando materiais no dia a dia; Transformações dos Materiais na Natureza e no Sistema Produtivo: Como Reconhecer Reações Químicas, Representá-las e Interpretá-las; Modelos atômicos e moleculares e suas relações com evidências empíricas e propriedades dos materiais; Energia nas Transformações Químicas: Produzindo, Armazenando e Transportando Energia pelo Planeta; A química de sistemas naturais: qualidade de vida e meio ambiente. Obtenção de Materiais e seus Impactos Ambientais;

Há uma aproximação temática entre duas unidades curriculares da Química e da Física. Ambas tratam de estudos sobre a estrutura submicroscópica da matéria, abrangendo conhecimentos que se somam, se complementam, a química enfocando mais profundamente a eletrosfera dos átomos e a física, o núcleo atômico. Ainda, conhecimentos sobre energia são tratados pelos dois componentes curriculares, ambos focando impactos ambientais da produção e consumo de energia. Pode-se perceber que algumas das unidades apresentadas pela química dão continuidade a estudos iniciados no Ensino Fundamental, como as propriedades e produção de materiais, questões ambientais decorrentes da produção, usos e descarte de materiais, o estudo dos sistemas naturais.

Embora os professores de Química das escolas de Ensino Médio possam reconhecer conteúdos que fazem parte de seu ensino, principalmente nas três primeiras unidades apresentadas, as duas últimas unidades poderão gerar uma certa estranheza, em parte pelos conhecimentos envolvidos e, principalmente, pelo destaque dado a esses conhecimentos nesta proposta.

A biologia no Ensino Médio é apresentada por meio de seis unidades tendo como foco a construção de uma visão integrada da vida. São elas: A vida como fenômeno e seu estudo; Biodiversidade: organização, caracterização e distribuição dos organismos vivos; Organismo: sistema complexo e autorregulável; Hereditariedade: padrões e processos de armazenamento, transmissão e expressão de informação; Evolução: padrões e processos de diversificação da vida; Ecossistemas: interações organismo-meio.

Os três componentes curriculares propõem, com maior ou menor ênfase, o tratamento de questões ambientais, por perspectivas diferentes, mas que possibilitam um entendimento mais amplo da temática. Assim, pode-se compreender a degradação do ambiente causado pela necessidade de produção de energia, pela exploração dos recursos naturais, pela introdução de substâncias nocivas aos seres vivos, pelo descarte inapropriado de materiais, os impactos nos ecossistemas, na manutenção da biodiversidade. Discussões sobre sustentabilidade, já iniciadas no Ensino Fundamental, são aprofundadas no Ensino Médio. Questões sobre a origem da vida também são recorrentes, tratadas pela biologia e pela física. A tecnologia, sob diferentes olhares, está presente nos três componentes curriculares, dando oportunidade de os aprendizes conhecerem aparatos tecnológicos, compreenderem princípios de seus funcionamentos, debaterem sobre vantagens, riscos e custos dos usos de tecnologias para construírem seus próprios juízos de valor a respeito desses usos. Abordam-se relações entre equipamentos e a sociedade, as transformações que o conhecimento tecnológico tem acarretado, questionamentos sobre as necessidades e usos sociais de tecnologias (Strieder; Kawamura, 2017STRIEDER, R. B.; KAWAMURA, M. R. D. Educação CTS: Parâmetros e Propósitos Brasileiros. Alexandria: R. Educ. Ci. Tec., Florianópolis, v.10, n.1, p.27-56, maio 2017.).

Da primeira à segunda versões: as sugestões e as críticas

Refiro-me, aqui, às críticas e sugestões específicas às ciências da natureza, feitas por pessoas convidadas, colegas de universidades ligados a trabalhos e pesquisas no ensino de Biologia, de Física e de Química e pela consulta pública realizada pelo MEC.

Uma das críticas gerais feitas pelos leitores convidados se referiu aos eixos que estruturam a organização dos conteúdos, especialmente o eixo processos e práticas de investigação, apontando-se a não clareza em sua explicitação, bem como uma defasagem na formulação de objetivos que contemplavam esse eixo, nos documentos do ensino médio. Também, foi criticada a extensão e nível de detalhamento dos objetivos de aprendizagem e desenvolvimento. Os conteúdos conceituais sugeridos estariam excedendo o que deveria ser esperado para uma base comum, ocupando espaços importantes destinados a contemplar diversidades, as características locais, por exemplo. Mesmo assim, foram apontadas a falta de alguns conhecimentos, em química, em biologia, e de temas ligados à sexualidade, que foi tratada apenas no aspecto da reprodução humana, e à sustentabilidade. Ainda, foram apontadas questões referentes à interdisciplinaridade, pouco explicitada nos documentos, à pouca articulação entre os três componentes curriculares do Ensino Médio.

A consulta pública reafirmou a questão da extensão, principalmente no componente biologia, sugerindo-se a diminuição do número de objetivos propostos. Reafirmou, também, a necessidade de melhor se descreverem os eixos estruturadores da proposição da base curricular. Um questionamento bastante importante foi feito quanto à abordagem de conhecimentos da física e da química no Ensino Fundamental, considerados complexos para os anos iniciais do Ensino Fundamental. Foi apontada a necessidade de se contemplar um aumento gradual da complexidade das demandas apresentadas aos alunos. Houve muitas sugestões de reescrita dos objetivos de aprendizagem, visando melhorar a clareza ou simplificar o que foi proposto.

As críticas e sugestões apresentadas foram discutidas no âmbito da comissão geral de assessores. A proposta para o Ensino Fundamental foi reavaliada, as unidades foram reorganizadas de maneira a serem tratadas em cada um dos nove anos do Ensino Fundamental, tendo em vista contemplar uma progressão gradual e contínua da complexidade das demandas aos aprendizes. Em todos os segmentos, o número de objetivos de aprendizagem foi reduzido criteriosamente, de maneira a que não fossem comprometidos os propósitos formativos pretendidos.

Uma das decisões tomadas pelo grupo foi a de manter conhecimentos de física e de química ao longo dos nove anos do Ensino Fundamental. Pode-se justificar tal decisão com base nos princípios apresentados quando se caracterizou o papel da área das ciências da natureza na formação escolar dos alunos (Brasil, 2016). Não se poderia deixar de articular conhecimentos desses campos com os da biologia, da geociências, de questões ambientais e de sustentabilidade, entre outros, desde o início da Educação Básica, quando se consideram que esses conhecimentos assim articulados ampliam as leituras do mundo que as crianças podem fazer.

Algumas considerações - para que serve uma base curricular de abrangência nacional

A segunda versão da BNCC teve vida curta! O passo seguinte à sua divulgação seria a submissão ao Conselho Nacional de Educação, para que se chegasse à versão final do documento, mas o processo foi interrompido, por questões políticas daquele momento. Uma terceira versão foi elaborada por outro grupo e com outros princípios formativos. Diante disso, como justificar, então, o presente texto?

Apresento dois argumentos para justificá-lo. Primeiramente, pela possibilidade de deixar registrado um processo importante, dando a conhecer o método de trabalho que permitiu a confluência de ideias, de pontos de vista e de experiências educacionais diversas para a construção de um projeto único, e dando a conhecer as bases conceituais que orientaram as escolhas feitas, e o resultado dessas escolhas, os objetivos de aprendizagem e desenvolvimento propostos para o ensino básico. O registro permite que não se apague da memória esse processo, para que possa servir de objeto de reflexão aos educadores e à comunidade acadêmica.

O outro argumento diz respeito a suscitar discussões sobre o ensino de Ciências na Escola Básica, isto é, quais conhecimentos deveriam fazer parte da educação escolar que contribuíssem para a formação da cidadania, que permitissem às crianças, jovens e adultos construir entendimentos sobre mundo físico e social que lhes ajudassem a refletir, tomar decisões e conceber ações para influir na realidade.

Defendo a existência de uma base nacional curricular comum como um instrumento de democracia, demarcando conhecimentos que se constituem em ferramentas para o desenvolvimento da cidadania e que todos os cidadãos, alunos das escolas brasileiras, têm o direito de aprender. Isso não significa excluir as diversidades que formam nossa cultura, tampouco as diferentes realidades das nossas escolas. A base curricular é um ponto de partida para que cada unidade escolar construa seu projeto pedagógico, não se desfazendo de suas experiências e de sua história.

Voltando ao início, a qualidade que se almeja para a educação escolar brasileira, ainda está por ser construída. Não basta que se tenha acesso à escola, mas, também, deve-se garantir a permanência das crianças e dos jovens na escola. Todos sabemos que não se alcança essa qualidade apenas com a existência de um documento legal como a BNCC ou outros. A implementação com êxito de qualquer projeto pedagógico requer a valorização do professor, entendida em seus múltiplos aspectos: melhores condições de trabalho, gestão democrática, melhores salários; requer, também, a valorização da escola, com a melhoria de sua infraestrutura, que facilite o convívio e a permanência, recursos materiais que subsidiem práticas pedagógicas, vivências diversificadas, e recursos humanos que possibilitem o funcionamento com qualidade da escola.

Para terminar, cito uma pequena síntese feita por Neira, Alviano Júnior e Almeida (2016NEIRA, M. G.; ALVIANO JÚNIOR, W.; ALMEIDA, D. F. de. A primeira e segunda versões da BNCC: construção, intenções e condicionantes. EccoS Revista Científica, São Paulo, n.41, p.31-44, set./dez. 2016., p.41) sobre a BNCC que produzimos, e que revela o nosso pensamento: “O projeto formativo da BNCC era um sujeito que saiba ler a realidade que o cerca e atuar fundamentado em conhecimentos variados, que reconheça sua própria identidade cultural e que lute para transformar a sociedade atual”.

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Notas

  • 1
    Era secretário da Educação Basica do MEC o Prof. Manuel Palácios (UFJF).
  • 2
    Fonte: IBGE/Pnad. Disponível em: <http://www.observatoriodopne.org.br/metas-pne/2-ensino-fundamental/ indicadores>.
  • 3
    Composição da equipe de especialistas: Ensino Fundamental (Anos Iniciais): Joelma Bezerra S. Valente (RR/Consed), Giselly Rodrigues N. Silva Gomes (MT/Consed); Ensino Fundamental (Anos Finais): Maria Oneide O. Enes Costa (RO/Consed), Yassuko Hosoume (Ifusp), Mauricio Compiani (Feunicamp); Ensino Médio - Biologia: Minancy G. de Oliveira (PE/Consed), Gleyson S. dos Santos (SE/Consed), Claudia A. Serra e Sepulveda (UEFS), Danusa Munford (UFMG), Marcelo T. Motokane (FFCLRP USP); Física: Andre L. Ribeiro Vianna (BA/Consed), Suzana M. de Castro Lins (PE/Consed), Milton A. Auth (Facipi UFU), Eduardo A. Terrazzan (UFSM), André Ferrer P. Martins (UFRN); Química: Maurício Brito da Silva (AM/Consed), Maria Rosário dos Santos (PI/Consed), Ricardo Gauche (UnB), Agustina R. Echeverría (UFG), Eduardo F. Mortimer (FaE UFMG) (Conselho Nacional dos Secretários de Educação - Consed)

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Sep-Dec 2018

Histórico

  • Recebido
    24 Set 2018
  • Aceito
    18 Out 2018
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