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Os índios, a Amazônia e os conceitos de escravidão e liberdade1 1 Este artigo apresenta resultados de pesquisa realizada com apoio financeiro do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) e da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (processo n.16/12975-4).

resumo

O consenso de que a escravidão é negra e de que ela define a formação nacional não se restringe à historiografia brasileira e brasilianista. Tanto no Brasil como em outras tradições historiográficas, tratou-se de um paradigma construído ao longo de décadas e que associa escravidão ao tráfico de africanos, forjando um conceito incapaz de explicar contextos em que predominaram outras formas coloniais de exploração do trabalho. O objetivo deste artigo é mapear esse percurso teórico no Brasil e, a partir de investigação empírica focada na região amazônica, propor uma abordagem mais ampla da noção de escravidão.

palavras-chave:
Trabalho indígena; Escravidão; Amazônia

abstract

The dominant paradigm that slavery is African and that it defines national stories is not restricted to Brazilian historiography. Both in Brazil and in other historiographical traditions, A consensus built over decades associated slavery with the traffic of Africans. This process forged a concept that is unable to explain social contexts characterized by other colonial forms of labor exploitation. The intent of this article is to map this theoretical course in Brazil. Based on empirical research focused on the Amazon region, it also suggests a broader approach to the notion of slavery.

keywords:
Indigenous labor; Slavery; Amazon

Escravidão e liberdade

Há consenso de que a escravidão é africana e o denominador comum da nação brasileira tem origem nos anos 1930, quando se começam a pensar modernamente as raízes históricas da formação do povo brasileiro. Isso está presente, por exemplo, em Gilberto Freyre e sua ênfase no elemento negro para a formação da família patriarcal. Mas a consolidação desse entendimento se deve, sobretudo, a três autores que, desde então, protagonizaram o discurso historiográfico, a começar com Caio Prado, que inaugura uma maneira materialista de observar a história brasileira, preocupado com a observação da realidade social como totalidade.

Em seu livro Formação do Brasil contemporâneo (1942), Caio Prado (1994) alega que todo povo tem sua própria “evolução”, uma espécie de linha mestra e ininterrupta de acontecimentos que se sucedem em ordem rigorosa e em determinada direção e cujo sentido cabe ao historiador desvendar. No caso do Brasil, essa linha mestra foi o “sentido da colonização”. Afirmava com isso que o motor da empresa colonial no Brasil foi a expansão comercial europeia iniciada no século XV e, portanto, a nossa essência como nação teria se definido por um objetivo que lhe era externo, o país tendo se constituído para fornecer produtos primários para o mercado internacional.

Ao analisar o período entre o final do século XVIII e o início do XIX - ao mesmo tempo, síntese dos três séculos anteriores e elo com o Brasil contemporâneo -, Caio Prado concluiu que todos os aspectos da vida colonial se dispuseram em razão desse objetivo: a produção, as atividades, as relações sociais; e que o seu caráter mercantil implicou três elementos constituintes da estrutura econômica e social da colônia: a grande propriedade, a monocultura e o trabalho escravo. Desses, o trabalho escravo é apresentado como sendo a trave mestra, o cimento que unia todas as partes. A organização econômica, o padrão material e moral, tudo se dispunha em função do caráter escravista da sociedade, organicamente constituída por senhores e escravos. E, com isso, o autor inaugura uma longa tradição historiográfica que coloca a escravidão e a vocação exportadora como elementos definidores da nação.

Dentre os estudos mais importantes que derivam dessa proposta está a tese clássica de Fernando Novais (1995NOVAIS, F. Portugal e o Brasil na crise do Antigo Sistema Colonial (1777-1808). São Paulo: Hucitec, 1995 [1979].), que leva o sentido da colonização às últimas consequências, defendendo que seu “sentido profundo” teria sido, mais do que a exportação de gêneros primários, a acumulação primitiva de capital. Igualmente aqui está presente a ideia de que toda a estrutura econômica e social e o modo de produção da colônia se definiram na sua conexão com o capitalismo comercial. E as peças do designado Antigo Sistema Colonial eram: o exclusivo metropolitano, o trabalho compulsório, mas, sobretudo, o tráfico de escravos africanos.

O tráfico negreiro revelava a engrenagem do sistema mercantilista de colonização: tornando-se ele mesmo um setor rentável da economia, abria um novo e importante meio de acumulação de capital, fazendo os lucros fluírem para a metrópole. Enquanto, ao contrário, um hipotético tráfico de “aborígines” geraria apenas acumulação interna, não interessando ao sistema colonial, para Novais (1995NOVAIS, F. Portugal e o Brasil na crise do Antigo Sistema Colonial (1777-1808). São Paulo: Hucitec, 1995 [1979]., p.105-6), “é a partir do tráfico negreiro que se pode entender a escravidão africana colonial, e não o contrário”. Uma afirmação forte e sedutora que de fato exerceu influência marcante na construção de um paradigma que, a despeito de todas as críticas que lhe foram atribuídas, continua definindo um horizonte teórico no qual a escravidão é sempre africana.

Essa mesma chave está na tese de Luiz Felipe de Alencastro (2002ALENCASTRO, L. F. de. O Trato dos Viventes. Formação do Brasil no Atlântico Sul, São Paulo. São Paulo: Cia. das Letras, 2002.), para quem o tráfico negreiro teria sido não apenas um negócio rentável a fazer o capital fluir para a metrópole, mas, ainda, o que permitia articular dominação e exploração colonial. Além de gerar receitas, o trato dos viventes tornava possível o exercício do poder colonial porque permitia à coroa portuguesa controlar a reprodução dos meios de produção da colônia americana (que era a mão de obra importada da África), ligando, assim, as duas margens do oceano. Para Alencastro (2002, p.11-42), o trato negreiro confere unidade ao espaço nomeado Atlântico Sul e impõe uma interpretação “aterritorial” do Brasil. Mais uma vez, aqui, é o tráfico de escravos africanos que explica a escravidão e não o contrário; é ele que dá sentido ao que seria uma sociedade escravista e explica a formação da nação e do povo brasileiro. O tráfico negreiro, nessa perspectiva, transforma a escravidão em escravismo, esse definido como o “sistema colonial fundado na escravidão e ligado à economia mundo”. Sendo seu elemento essencial, teve implicações em todos os aspectos da formação do Brasil: demográficos, político, econômico, cultural.

Temos então a construção de uma concepção de escravidão que se define como peça de uma engrenagem que é determinada pelo tráfico de escravos africanos, possível graças ao capital mercantil, e que a transforma a escravidão em escravismo, no âmbito do Antigo Sistema Colonial, podendo existir enquanto tal somente nos quadros do sistema-mundo. Já as formas sistemáticas de exploração do trabalho indígena não encontram lugar nessa engrenagem, sendo logicamente impossível.

E esse é, de fato, um dos argumentos de Alencastro (2002ALENCASTRO, L. F. de. O Trato dos Viventes. Formação do Brasil no Atlântico Sul, São Paulo. São Paulo: Cia. das Letras, 2002., p.117-54), que enfrenta o fato de haver evidências de exploração de trabalho indígena na América portuguesa, mas nega ao mesmo tempo a sua existência nos quadros do sistema. Segundo o autor, escravidão sistemática e, sobretudo, formação de um tráfico de escravos indígenas seriam impossíveis, pois esbarrariam em fatores antropológicos, históricos e, sobretudo, estruturais.

Antropológicos por conta de aspectos da organização e relações sociais dos nativos antes do contato com os europeus. Enquanto, na África, a presença de um comércio continental de longo curso e de sociedades estruturadas em razão da captura de escravos teria sido um dos fatores a favorecer o tráfico transatlântico, na América, o mesmo não teria acontecido. Alencastro argumenta (com base na aplicação da teoria de Pierre Clastres a uma citação do jesuíta João Daniel) que a fraca e instável autoridade dos chefes indígenas e a ausência de redes comerciais de longa distância em toda a América impediram que as sociedades indígenas pudessem fornecer escravos de maneira regular aos europeus. O tráfico de indígenas também seria inviável por conta de circunstâncias históricas: a falta de imunidade às doenças provindas do Velho Mundo provocou alta mortalidade e momentos de epidemias devastadoras, inviabilizando algo que o tráfico de escravos africanos resolvia com facilidade: a oferta regular de mão de obra; além disso, os índios teriam assumido a função de defender o território e não de suprir trabalho produtivo.

Mas a razão determinante é de ordem estrutural, sendo a incompatibilidade da escravidão indígena com o sistema colonial. Na medida em que, como afirma Novais (1995NOVAIS, F. Portugal e o Brasil na crise do Antigo Sistema Colonial (1777-1808). São Paulo: Hucitec, 1995 [1979].), ela leva a uma acumulação interna e, acrescenta Alencastro (2002ALENCASTRO, L. F. de. O Trato dos Viventes. Formação do Brasil no Atlântico Sul, São Paulo. São Paulo: Cia. das Letras, 2002., p.126), à autonomia dos colonos, a escravidão indígena como forma exploração do trabalho colonial não encontra lugar no sistema. Assim, a política imperial de “vedar” o acesso dos colonos ao trabalho indígena expressa nas leis de liberdade (1570, 1680, 1755), para que assim dependessem do tráfico de escravos, e o aparato ideológico jesuíta que teria contribuído para essa política “pró-indígena” completam um quadro em que, se trabalho indígena houve, ele teria sido secundário e conjuntural. Tomada como exemplo, a região amazônica só “desencravou”, por meio da importação contínua de escravos africanos durante o período pombalino, passando a fazer parte da economia-mundo (Alencastro, 2002, p.138). Ou seja, mais uma vez, o tráfico é o que define, e ele é africano.

Trata-se de um paradigma subjacente tanto aos estudos que buscaram identificar no período colonial a origem da nação brasileira quanto às novas perspectivas que privilegiam a análise dos sujeitos históricos ou a história política e administrativa, das mentalidades, da cultura, do cotidiano ou das manifestações religiosas; está presente tanto em análises que se detiveram às relações entre colônia e metrópole quanto àquelas que, saindo do território nacional, se projetaram no Atlântico e além dele. Pois, apesar da ampliação de espaços e sujeitos, as novas abordagens ainda se limitam à noção de escravidão associada à experiência negra e, portanto, continua-se a alimentar uma visão insuficiente da América portuguesa, onde não há experiências de trabalho e vivência que não corresponderam ao africano, onde há oposição conceitual entre trabalho escravo, associado ao negro, e trabalho livre, associado ao indígena,2 2 O que é um dos pilares da argumentação de Alencastro (2002 p.143), para quem, para promover o tráfico negreiro era preciso, entre outras coisas, “vedar” o acesso dos colonos ao trabalho indígena. Essa ideia é repetida à exaustão pela historiografia e, apesar de já ter sido fortemente questionada, prevalece em obras de autores influentes e de grande apelo editorial. Por exemplo, no verbete “Escravidão indígena e início da escravidão africana”, escrito no Dicionário da Escravidão e Liberdade (Schwarcz; Gomes, 2018). e, enfim, onde se reproduz uma antinomia entre economias centrais - onde predominou o trabalho negro escravo - e periféricas ou fronteiriças, mal integradas aos circuitos, supostamente isoladas e estagnadas, onde predominou o trabalho indígena.

Isso não quer dizer que o trabalho indígena não tenha sido estudado. O livro de John Monteiro (1994MONTEIRO, J. Negros da Terra: índios e bandeirantes nas origens de São Paulo. São Paulo: Cia. das Letras, 1994.), Negros da Terra, foi pioneiro ao acrescentar a componente indígena à economia-mundo, abordando uma área considerada marginal, a capitania de São Paulo. No entanto, seu enfoque não teve continuidade e ele próprio passou a orientar os estudos sobre a presença indígena na história colonial para a agenda dos movimentos de defesa dos direitos coletivos indígenas, afastando-se do debate sobre a formação da sociedade colonial, organização do trabalho e experiência dos trabalhadores.

Há ainda outra tradição que abordou a questão do trabalho indígena por meio da análise da legislação indigenista e que fez também a partir de noções dicotômicas, a legislação entendida como expressão de duas forças, colonos e missionários, que lutavam respectivamente pela escravidão e pela liberdade dos índios. Está bastante vinculada a uma historiografia de caráter religioso e contribuiu para a construção de uma memória histórica em que a Igreja teria se posicionado em favor da liberdade dos índios. É o caso de Serafim Leite, na década de 1940, mas também dos religiosos ligados à Teologia da Libertação, na década de 1980, quando uma série de estudos e de documentos foi publicada, também na perspectiva de defesa dos direitos indígenas assumida pela ala progressista da Igreja (Thomas, 1982THOMAS, G. Política indigenista dos portugueses no Brasil, 1500-1640. São Paulo: Loyola, 1982.; Beozzo, 1983BEOZZO, J. O. Leis e regimentos das missões: política indigenista no Brasil. São Paulo: Loyola, 1983.). Pairando sobre esses estudos, existe ainda a interpretação de João Francisco Lisboa que, no século XIX, afirmava que essa legislação havia sido sempre oscilante e contraditória, e que a coroa portuguesa não teria conseguido impor um projeto próprio entre essas duas forças políticas - interpretação da qual Caio Prado se mostrou partidário e que, de resto, alimentou estudos coloniais até meados da década de 1990.

Essa ideia passou a ser revista nos anos 2000, por autores que, buscando os fundamentos jurídicos da legislação, entenderam que o pomo de discórdia entre colonos e missionários não era a escravidão versus a liberdade, mas a definição de quem deveria exercer o controle sobre o trabalho indígena. A legislação indigenista trazia em seu cerne a experiência prévia com os mouros, e as teorias tomistas do direito natural retomadas pela Segunda Escolástica admitiam que havia formas justas de redução de outrem à escravidão. De forma que esses estudos demonstraram que os jesuítas, uma das forças políticas mais organizadas na colônia, lutavam antes para terem o monopólio da regulação das relações de trabalho do que pela denominada liberdade dos índios (Ruiz, 2004RUIZ, R. São Paulo na Monarquia Hispânica. São Paulo: Instituto Brasileiro de Filosofia e Ciência Raimundo Lúlio, 2004.; Zeron, 2011ZERON, C. Linha de fé: a Companhia de Jesus e a escravidão no processo de formação da sociedade colonial (Brasil, séculos XVI e XVII). São Paulo: Edusp, 2011.).

Porém, o estudo que mais tem influenciado a percepção da legislação indigenista é o capítulo que Beatriz Perrone-Moisés (1992) publicou no livro História dos Índios no Brasil, no qual a autora tentou sintetizar as aparentes contradições da legislação por meio de um corte transversal nas leis do século XVI ao XVIII, que indicaria duas linhas políticas da coroa portuguesa, pautadas por duas possibilidades de reação dos índios às investidas coloniais: aos amigos estaria garantida a liberdade; aos inimigos o destino era a escravização. E, portanto, as leis que pareciam contraditórias não estavam se referindo aos mesmos grupos indígenas, e a “política indigenista” se definia, na verdade, em função das “políticas indígenas” - uma proposta analítica que foi apropriada pela nova história indígena para enfatizar a capacidade de agência dos nativos.

Sua análise carece de dimensão temporal. Pois, para atribuir um sentido comum a diversas leis que parecem discordantes, não considera o peso de conjunturas políticas e econômicas na definição dessas leis, conferindo à legislação uma coerência mais ampla do que ela de fato tem. A autora não deixa de identificar em notas de rodapé todas aquelas regulamentações que escapam à sua síntese; no entanto, as identifica como exceções, sem integrá-las à análise; mas, vistas sob uma perspectiva diacrônica, essas leis evidenciam conjunturas específicas onde os princípios jurídicos se rendiam aos interesses dos agentes, em diversos níveis.

Por outro lado, segundo Perrone-Moisés (1992), trata-se de uma política de liberdade para os aliados e escravidão para os inimigos, embora ela mesma reconheça que havia formas de escravização de índios que não eram nem amigos, nem inimigos, mas prisioneiros de outros índios. Concretamente, um índio era considerado escravo não apenas quando aprisionado em situação de resistência à colonização, mas também quando vendido por outro índio, de modo que, mesmo não sendo inimigo dos portugueses, poderia ser escravo. Quer dizer, a escravidão era legitimada mesmo em caso de índios que não eram inimigos, e, além disso, havia formas dissimuladas de escravização dos índios amigos, como pelas chamadas “administrações particulares”. Portanto, não é exata a explicação de que as leis se pautavam por duas linhas políticas que identificam os índios amigos e os índios inimigos e que os estatutos de trabalho correspondessem à reação dos índios às investidas portuguesas.

Ou seja, por um lado, a escravidão indígena não é compatível com sistema e, por outro, depende da vontade dos sujeitos. Tanto em uma proposta como na outra, existe subjacente uma visão dicotômica entre escravidão e liberdade, como se esta última significasse isenção de trabalhar (obrigando a importação de negros) ou engendrasse formas muito distintas de organização e práticas de trabalho.

Restringir a nossa compreensão da América portuguesa a uma escravidão que é exclusivamente negra e a análise do trabalho indígena às grandes leis reproduz essa falsa dicotomia entre liberdade e escravidão. A legislação era construída no cotidiano das relações e várias cartas régias, alvarás, bandos etc. se referem a situações que matizam essa oposição. Também o dimensionamento do trabalho indígena em termos numéricos, o estudo do perfil dos trabalhadores, assim como uma descrição da organização e das práticas de trabalho permitem-nos superar uma classificação que é, sobretudo, teórica, sendo possível também enxergar de maneira mais concreta as relações na sociedade colonial.

Trabalho livre e escravo

O trabalho indígena foi empregado em diferentes contextos, tempos e espaços americanos, antes e durante a adoção da escravidão africana como principal motor da produção econômica (Monteiro, 1994MONTEIRO, J. Negros da Terra: índios e bandeirantes nas origens de São Paulo. São Paulo: Cia. das Letras, 1994.; Metcalf, 2005METCALF, A. C. The Entradas of Bahia in the Sixteenth Century. The Americas, v.61, p.373-400, 2005.; Sommer, 2005SOMMER, B. Colony of the Sertão: Amazonian expeditions and the Indian Slave trade, The Americas, v.61, n.3, p.401-28, jan. 2005.; Gallay, 2009GALLAY, A. Introduction. Indian Slavery in Historical Context. In: Indian Slavery in Colonial America. Lincoln; London: University of Nebraska Press, 2009. p.1-32.; Valenzuela, 2017; Velloso, 2018VELLOSO, G. Ociosos e sedicionários: populações indígenas e os tempos do trabalho nos Campos de Piratininga (século XVII). São Paulo: Intermeios, 2018.). Nesses diversos contextos, alguns mecanismos de recrutamento se repetiram e, dependendo das circunstâncias locais, adquirindo uns mais importância do que outros. Eles são relativamente bem conhecidos, tendo sido descritos em várias fontes e estudos.

Os chamados descimentos previam o deslocamento de aldeias indígenas inteiras, de suas regiões de origem para as áreas próximas às vilas e lugares portugueses: o procedimento consistia em se dirigir a uma comunidade no interior do território e negociar um contrato com as autoridades indígenas que implicava a aceitação da fé católica e suprimento de trabalho. Os índios eram então assentados nos denominados aldeamentos, e trabalhariam parte do seu tempo para sua manutenção, outra parte para o serviço alugado a moradores, missionários ou a obras públicas, mediante um salário, estipulado por lei e administrado pelos religiosos e chefes nativos. Os resgates consistiam na compra, pelas tropas portuguesas, de prisioneiros indígenas aos próprios índios em troca de mercadorias. Esses prisioneiros eram, sobretudo, fruto de conflitos interétnicos. Por fim, tropas de guerra também traziam novos trabalhadores capturando prisioneiros em ocasiões de guerras justas, isto é, aquelas antecedidas por uma injustiça prévia (ataques realizados ou iminentes, comandados por autoridades indígenas).

Essas três modalidades - descimentos, resgates e guerras - eram formas legais de aliciamento de trabalhadores indígenas e, para isso, deveriam ser autorizadas, organizadas e realizadas por autoridades coloniais. Mas havia também outra modalidade - de longe a mais comum, a crer nos relatos contemporâneos - que era o apresamento: também conhecido como correrias entre os espanhóis, ou amarrações, entre os portugueses, correspondia à prática de ataque a uma comunidade, ateando fogo, matando os homens, capturando sobretudo as mulheres e as crianças.

Apesar das várias maneiras possíveis de aquisição de trabalhadores nativos, os moradores de Grão-Pará e Maranhão sempre reclamaram um acesso legal mais amplo a eles. E, para atender a uma economia emergente com a exportação das drogas do sertão, durante a primeira metade do século XVIII (Alden, 1976ALDEN, D. The significance of cacao production in the Amazon Region during the late colonial period: an essay in comparative economic history. Proceedings of the American Philosophical Society, v.120, n.2, p.103-35, abril 1976.), houve uma flexibilização das leis, que passaram a facilitar cada vez mais o acesso dos moradores ao trabalho dos índios na região. As autoridades locais começaram a permitir que particulares financiassem as expedições de descimentos a troco de poderem dispor do trabalho dos índios descidos; depois, que pudessem levar os índios descidos diretamente para suas fazendas, sem ter que passar pelas aldeias; enfim, que pudessem forçar o descimento de comunidades que se recusassem a fazê-lo (Dias; Bombardi, 2016DIAS, C. L.; BOMBARDI, F. A. O que dizem as licenças? Flexibilização da legislação e recrutamento particular de trabalhadores indígenas no Estado do Maranhão. Revista de História, n.175, p.249-80, 2016.). Além disso, os moradores passaram a participar das expedições de resgate, financiar e capitanear essas expedições. Também na primeira metade do século XVIII, a legislação passou a permitir que as tropas fossem financiadas e realizadas por iniciativa dos próprios interessados e não mais pelos cofres reais. O que, tudo somado, demonstra que, ao menos nesse contexto, não havia interesse em “vedar” o acesso dos colonos ao trabalho indígena de modo a forçar a importação de africanos.

Essas diversas modalidades de recrutamento davam origem a dois regimes de trabalho: escravo e livre. O trabalhador escravo era aquele que havia sido recrutado por meio da guerra justa (ou injusta), resgates e apresamentos. O trabalhador livre era aquele que havia sido incorporado aos aldeamentos - os quais, dependendo da lei em vigor, poderiam ser governados por capitães, ou missionários e autoridades indígenas. Mas, dentro das categorias de trabalhadores livres e escravos, havia modalidades que poderíamos chamar de híbridas, porque tiveram origem legislativa peculiar: era o caso do “escravo de condição”, situação prevista pela lei de 1655 e que significava que, oriundo de uma guerra injusta, o prisioneiro indígena serviria durante cinco anos como escravo, período ao final do qual seria remetido para as aldeias missionárias (Zeron, 2016_______. Antônio Vieira e os escravos de condição: os aldeamentos jesuíticos no contexto das sociedades coloniais. In: FERNANDES, E. B. (Org.) A Companhia de Jesus e os índios. Curitiba: Prismas, 2016.). Havia, além disso, outra possibilidade controversa, denominada “administração particular” (Monteiro, 1994MONTEIRO, J. Negros da Terra: índios e bandeirantes nas origens de São Paulo. São Paulo: Cia. das Letras, 1994., p.129-53), que consistia no descimento de trabalhadores indígenas livres, os quais, ao invés de irem morar nas aldeias, eram destinados às casas e fazendas dos moradores, por quem seriam “administrados”. Muitas vezes requeridas pelos colonos, ela foi permitida no Maranhão em 1684 e passou a valer também em São Paulo em 1696 (Chambouleyron; Bombardi, 2011CHAMBOULEYRON, R.; BOMBARDI, F. Descimentos privados de índios na Amazônia colonial (séculos XVII e XVIII). Varia Historia, v.27, n.46, p.601-23, 2011.).

Para compreender como se organizavam o trabalho livre e escravo, é importante observarmos especificamente a prática de resgates, isto é, a compra de prisioneiros indígenas que se incorporavam à sociedade colonial na condição de escravos. Pois, apesar de ter sido considerado incompatível com o sistema colonial, desenvolveu-se, na região amazônica, desde o século XVII, algo que podemos chamar de tráfico de prisioneiros indígenas. De dimensões obviamente inferiores ao trato africano, que foi continental e durou séculos, porém, maior e mais impactante do que o consenso em torno da escravidão permite supor.

Na Amazônia, o trato de prisioneiros indígenas envolveu diversos povos do interior do território e agentes de vários impérios europeus: franceses, ingleses, espanhóis, holandeses e portugueses. As práticas de resgates se desenvolveram aproveitando dinâmicas sociais e interétnicas preexistentes entre essas sociedades, de relações de subordinação, guerras, alianças e trocas, comprando-se os prisioneiros das guerras e conflitos interétnicos (Butt-Colson, 1973; Santos, 2009SANTOS, F. Vital enemies: Slavery, Predation, and the Amerindian Political Economy of Life. Austin: University of Texas Press, 2009.; Whitehead, 2011WHITEHEAD, N. Indigenous Slavery in South America, 1492-1820. In: ELTIS, D.; ENGERMAN, S. L. (Ed.) The Cambridge World History of Slavery. Cambridge; New York: Cambridge University Press, 2011. v.III, p.248-72.). A demanda europeia por cativos alterou a escala, intensificou o quadro das guerras, modificando as relações de força entre os povos indígenas do interior do território. Ainda que a troca de prisioneiros por mercadorias não tenha sido mera resposta a uma situação de mercado, mas tenha envolvido questões de aliança política (Farage, 1991FARAGE, N. As muralhas dos sertões: os povos indígenas no rio Branco e a colonização. Rio de Janeiro: Paz e Terra; Anpocs, 1991.; Monteiro, 1994MONTEIRO, J. Negros da Terra: índios e bandeirantes nas origens de São Paulo. São Paulo: Cia. das Letras, 1994.), é certo que houve intensificação dessas guerras mediante a demanda europeia, especialmente no século XVIII (Dreyfus, 1992DREYFUS, S. Les réseaux politiques indigènes en Guyane occidentale et leurs transformations aux XVIIe et XVIIIe siècles. L’Homme, v.122-4, n.XXXII (2-3-4), p.75-98, abril-dez. 1992.; 1993). De forma que não apenas uma, mas várias sociedades indígenas acabaram assumindo o papel de fornecedoras de cativos aos europeus.

O comércio de escravos que se desenvolveu na região amazônica também se transformou em negócio rentável e adquiriu, de acordo com documentos coevos, interesse em si (Dias, 2014DIAS, C. L. L’Amazonie avant Pombal: politique, économie, territoire. Paris, 2014. Tese (Doutorado em Historia e Civilizações) - Ecole des Hautes Études en Sciences Sociales. Paris, 2014a. a). Esse comércio era, além disso, parcialmente operado por sertanistas que escapavam ao controle real: portugueses e mamelucos conhecidos como “pombeiros” (assim como na África) ou, mais comumente, e sobretudo no século XVIII, como “cunhamemas”, esses agentes firmavam alianças com autoridades indígenas por meio de casamentos, fazendo fluir para os fluxos coloniais os prisioneiros de povos indígenas em disputa por poder no sertão amazônico (Sommer, 2006SOMMER, B. Cracking Down on the Cunhamenas: renegade Amazonian Traders under Pombaline Reform. J. La. Amer. Stud., v.38, Cambridge University Press, p.767-91, 2006.).

Há notícias dessas práticas desde o início da presença portuguesa no território. Cristóvão de Acuña escreveu em seu Nuevo descubrimiento del gran río de las Amazonas (1641) que os colonos portugueses queriam ter subido o Rio Negro, pois sabiam ser uma região onde havia muitos potenciais cativos. Os resgates adquiriram cada vez mais importância a partir de um primeiro grande refluxo demográfico até meados do século XVII (sobre o qual Antônio Vieira estimou dois milhões de mortos)3 3 “Em espaço de quarenta anos se mataram e se destruíram por esta costa e sertões mais de dois milhões de índios, e mais de quinhentas povoações como grandes cidades” (Vieira, 2013, p.226). e atingiu o seu auge na primeira metade do século XVIII, tanto em sua versão lícita quanto ilícita (Dias; Bombardi, 2016DIAS, C. L.; BOMBARDI, F. A. O que dizem as licenças? Flexibilização da legislação e recrutamento particular de trabalhadores indígenas no Estado do Maranhão. Revista de História, n.175, p.249-80, 2016.).

Mas cumpre notar ainda que o comércio de prisioneiros indígenas esteve associado às outras formas de recrutamento acima descritas, consensuais ou forçadas. E essas formas de recrutamento, juntas, adquiriram proporções notáveis. Ao considerarmos, em uma mesma conta, os índios recrutados por meio dos descimentos, dos resgates oficiais, dos resgates e descimentos particulares, das guerras justas e dos apresamentos ilegais, chegamos a uma ordem de grandeza que varia entre um número mínimo de 110 a um possível de 390 mil índios trazidos dos sertões para as áreas coloniais, entre os anos 1680 e 1750, período para o qual temos dados disponíveis.4 4 Trabalho desenvolvido em parceria com doutoranda Fernanda Aires Bombardi (FFLCH-USP) e o professor de estatística Eliardo Costa (DEST/UFRN), cujos resultados serão em breve publicados em artigo científico. Com o objetivo de estabelecermos um chão e um teto para a população indígena recrutada aos espaços coloniais, chegamos ao número mínimo de 108 mil índios inseridos no Estado em 70 anos, dos quais mais da metade seria composta por índios livres, recrutadas por meio de descimentos oficiais e privados. Esse número é bastante conservador, tendo em vista que não pudemos calcular o fluxo de índios anualmente descidos aos aldeamentos e desconsideramos a existência de índios escravizados ilegalmente. O nosso teto, de 390 mil índios, teve por base a percepção de que a escravização ilegal era uma realidade muito mais frequente do que a conduzida por meios legais e que, por isso, não poderiam ser desconsiderados de nossos cálculos. Período que se pode supor, por comentários dos contemporâneos, ter sido o auge do ciclo escravista na região.5 5 Não apenas por relatos contemporâneos, ou na documentação administrativa, que reflete o clima politico e econômico, mas também por outras fontes de natureza quantitativa. Por exemplo, pelo “Livro das Canoas”, publicado por Márcio Meira em 1994, conseguimos visualizar os movimentos da prática de resgate, do seu auge nas décadas de 1730 e 1740 ao seu declínio, na década de 1750, fornecendo-nos, portanto, informações de contexto que podemos confrontar com os demais números (Dias, 2014b).

É uma ordem de grandeza comparável à entrada de africanos em outros contextos econômicos da América portuguesa, dominados pela produção de açúcar e pela extração mineral: pouco menos de 306 mil escravos africanos desembarcaram na Bahia e em Pernambuco entre os anos 1576 e 1650, e pouco mais de 350 mil africanos desembarcaram no Sudeste do Brasil no mesmo período do nosso estudo, isto é, entre 1676 e 1750.6 6 Dados disponíveis em: <slavevoyages.org> (acesso em: 20 abril 2019). Mas há que dizer que esse volume de indígenas integrados à sociedade colonial não refletia necessariamente a quantidade de índios presentes na sociedade, pois, nos mesmos anos, e especialmente a partir da década de 1730, guerras e epidemias foram efetivamente responsáveis pela morte de muitos índios, sustentando, portanto, um ciclo vicioso que só aumentava a necessidade por mais índios e, claro, a intensificação das práticas escravistas e recrutamento de trabalhadores indígenas de forma geral.

Qual o perfil desses trabalhadores? Por uma análise do perfil da população escravizada, aquela oriunda dos resgates, chega-se à conclusão de que a maioria desses cativos era de mulheres e crianças. Cerca de 60% dos cativos eram do sexo feminino. E, se contabilizarmos mulheres e crianças (meninos e meninas até 14 anos) em uma mesma categoria, temos que compunham 84% do contingente de escravos.7 7 A partir da análise de cerca de 400 registros de cerca de 1.500 prisioneiros resgatados na década de 1740, conservados em fundos do Instituto de Estudos Brasileiros/USP (Coleção Lamego, códice 43.58) e do Arquivo Público do Pará (códice 44).

Trata-se de um padrão incomum para a escravidão africana, que, no entanto, se repete em outras regiões onde a escravidão indígena foi predominante. Para a província de São Paulo, no século XVII, John Monteiro chegou a números equivalentes, o que ele atribuiu à organização das sociedades indígenas, em que os homens combatentes eram aprisionados para rituais antropofágicos e as mulheres e crianças eram responsáveis pelas atividades agrícolas.8 8 Mas houve, ainda segundo Monteiro, uma inversão desse padrão entre os cativos com a mercantilização da economia da província (Schwartz, 1988; Monteiro, 1994). No sul do Chile, em meados do XVII, onde as razias escravistas geravam as denominadas “vendas a la usanza”, práticas próximas ao que chamamos de resgate, registros de batismo atestam que 65% dos escravos vindos do sertão eram do sexo feminino, 40% deles com menos de 20 anos de idade. Segundo Jaime Valenzuela Márquez (2017), talvez isso se deva ao fato de que mulheres e crianças fossem mais vulneráveis e estivessem sujeitas a práticas de sequestro e servidão doméstica entre as próprias sociedades nativas. Por outro lado, a mulher escrava representaria uma vantagem jurídica ao proprietário, que poderia vender o direito de servidão de seus filhos, enquanto os meninos tinham a vantagem de gerar lucro em longo prazo: seu preço aumentava conforme crescia e, quando ainda jovem, era mais fácil de tirá-lo do seio da sua família; além de se adaptarem mais facilmente às novas condições de vida, língua e hábitos cotidianos.

No contexto amazônico, a que podemos atribuir essa prevalência de mulheres e crianças entre os escravos indígenas? Possivelmente, em parte, aos mesmos fatores. Mas outros aspectos, particulares à organização das práticas econômicas locais, podem explicar com maior precisão essa disparidade entre o número de escravos adultos e aquele de mulheres e crianças entre o contingente de escravos. O fato de a maioria dos escravos ser mulheres e crianças não significa que os homens adultos não exercessem papéis importantes na reprodução econômica. Ao contrário, eram eles que remavam as canoas, uma atividade fundamental na Amazônia, em expedições fluviais ao interior do território, que tinham por objetivo coletar os gêneros da floresta, as chamadas drogas do sertão, assim como realizar os resgates, isto é, a compra de mulheres e crianças.

Sabemos que parte importante daquela economia baseava-se na exportação das drogas do sertão, da produção de aguardente, de farinha de mandioca e de algodão, para fabricação de panos. Sabemos também que, para que essas atividades pudessem funcionar a contento, uma rede de missões foi instalada em todo o território: primeiro, com aldeamentos administrados por jesuítas; mas, a partir de 1694, também por outras diversas ordens religiosas.9 9 Carta régia a Antonio de Albuquerque Coelho de Carvalho, governador do Maranhão, 19 de março de 1693. In: Anais da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro, v.66, p.142-4, 1948. As aldeias missionárias foram situadas em pontos estratégicos, nas confluências entre o rio Amazonas e seus principais tributários, e se constituíam como pontos de apoio para as expedições, onde as canoas se abasteciam de remadores, farinhas, mantimentos; perto de onde se instalavam arraiais a partir dos quais os soldados adentravam a mata em busca de cativos; onde, enfim, comerciavam com as sociedades indígenas do interior.

O Regimento das Missões, de 1686, cujo objetivo era “dar forma conveniente à redução do gentio, sua repartição e serviço”, instituiu uma série de medidas que pretendiam transformar os índios em população economicamente funcional, por meio do controle do seu trabalho, da sua mobilidade e das suas práticas comerciais. Esse regulamento organizou a rede de comércio no interior dos sertões do rio Amazonas por meio de missões, estabelecendo as suas dimensões, a maneira como deveriam ser administradas, assim como o serviço dos índios aldeados, principalmente a maneira como deveria ser realizada a sua repartição, isto é, a divisão do seu trabalho entre as próprias missões e o serviço aos moradores. Ou seja, muito mais do que um projeto de missionação, apresentou-se como um regulamento do regime de trabalho e também um plano de organização da economia do estado do Maranhão.

O Diretório dos Índios, de 1757, foi na mesma direção e, em seu artigo 46, afirma que “entre todos os ramos de negócio de que se constitui o comércio deste Estado, nenhum é mais importante ou mais útil do que o do Sertão”. Retomando o mesmo modelo do Regimento das Missões, o Diretório substituiu o missionário pelo diretor como agente responsável da administração do que antes eram missões e passaram a ser chamadas de vilas. Porém, no plano econômico e com relação ao regime de trabalho, adotou os mesmos princípios do Regimento das Missões de 1686, procurando aprimorá-lo, por meio da institucionalização do comércio do sertão: padronizando os procedimentos de envio das canoas de coleta dos gêneros da floresta, regularizando a participação nas expedições, adotando medidas para reduzir contrabando e práticas de trabalho ilegais, etc.

O fato é que, para além dos aldeamentos, ou vilas, que são os objetos principais de regulação desses dois documentos, percebemos por eles também que as expedições fluviais ao interior estavam entre as atividades mais importantes daquela sociedade. Elas tinham o objetivo de colher as drogas do sertão, comerciar com os índios gentios, realizar resgates dos cativos indígenas, combater o gentio inimigo e adquirir prisioneiros de guerras justas e, enfim, realizar novos descimentos.

Nessas expedições, o trabalho dos índios homens era absolutamente necessário, já que, como relata o padre Antônio Vieira ao Provincial do Brasil, em 1661, eram eles os responsáveis por todo o processo de fabricação das canoas, além de serem eles também que conduziam as canoas pelos rios, às vezes atravessando obstáculos com elas às costas e, nos momentos de pausa, eram ainda aqueles que iam ao mato buscar o que comer. Eram eles que construíam casas, que conduziam expedições por terra, carregavam cargas e armas. Enfim, “tudo isso faz[iam] os pobres índios”.10 10 “Aqui será bem que se note que os índios são os que fazem as canoas, as toldam, as calafetam, os que as velejam, os que as remam, e muitas vezes, como veremos, os que as levam às costas, e os que, cansados de remar as noites e os dias inteiros, vão buscar o que hão-de comer eles e os portugueses (que é sempre o mais e melhor); os que lhes fazem as casas, e, se se há de marchar por terra, os que lhes levam as cargas e ainda as armas às costas. Tudo isto fazem os tristes índios [...]”. Carta ao Provincial do Brasil (1661) in Franco e Calafate (2013).

Ora, uma expedição como essa podia durar de seis a oito meses. Uma única canoa empregava geralmente 25, mas podia chegar a 40 remadores. Quando a economia das drogas do sertão estava no auge, em 1736, foram expedidas licenças para 320 canoas subirem o rio Amazonas, nas quais poderiam ter sido empregados cerca de sete mil índios.11 11 Consulta do Conselho Ultramarino para o rei D. João V, sobre carta do ouvidor-geral da capitania do Pará, Manuel António Fonseca, em que se queixa dos governadores por terem desleixado as licenças do sertão e aponta os prejuízos daí decorrentes. 1737, Janeiro, 30, Lisboa AHU Pará. Como abastecer essas expedições? Como obter o sustento e o pagamento desses índios? É também Vieira que nos explica, ao dizer que a toda a “gente inútil” que não poderia participar dessas expedições, como eram os velhos, as mulheres e as crianças, caberia plantar e cultivar os produtos da floresta, os quais, pagos à Fazenda Real na forma de impostos, financiariam o serviço e culto nas igrejas, o sustento de suas famílias e as despesas necessárias às expedições, pagando o trabalho - ou que ele define como “a vontade” - dos índios.12 12 “[…] que a gente inútil, que não pode ir às missões, como velhos, mulheres e meninos e outros índios, nos seis meses que lhes ficam livres do serviço da República, plantem e cultivem também por sua parte as sobreditas drogas, das quais, pagos à Fazenda Real os dízimos, tirarão o necessário para o serviço e culto de suas igrejas e remédio de suas famílias, e para as despesas necessárias das missões, como são no sertão as dádivas com que se adquirem as vontades dos índios” (Vieira, 2016).

Ou seja, aos homens adultos, o trabalho nas expedições. Àqueles a quem Vieira chama de “inúteis”, as mulheres, os velhos e as crianças (além da metade dos homens adultos que não haviam sido convocados para nenhuma expedição), ficava a tarefa de plantar os mesmos gêneros, de cujos dízimos se financiariam as expedições. As mulheres, crianças e os velhos eram, portanto, empregados na roça, na produção de aguardente, na produção agrícola das drogas do sertão, na produção de farinha, de algodão, no trabalho doméstico; as mulheres, ainda, como amas de leite, fiadeiras, artesãs. Produzindo nada menos do que farinha, algodão e aguardente, eram responsáveis pelo sustento, vestimenta e circulação de moedas (o algodão), além do pagamento aos remadores. Os meninos ajudavam no trabalho de conversão e no sacerdócio, e certamente se tornavam guerreiros e remadores quando mais velhos (Carvalho Junior, 2013), além de coletores, pescadores, caçadores e intermediários do comércio do sertão.

De certa forma, reproduz-se assim a organização do trabalho indígena - homens guerreiros, comerciantes, remadores; mulheres e crianças na roça. Mas podemos imaginar também que havia circulação e complementaridade entre os aldeamentos missionários e as casas e fazendas dos particulares: os homens dos aldeamentos, considerados livres, eram os remadores cujos serviços eram alugados periodicamente para as tropas ao sertão. Já as mulheres e as crianças, consideradas livres nas aldeias, realizavam o mesmo trabalho daquelas consideradas escravas nas casas dos moradores. Quer dizer que, naquele contexto, trabalho livre e escravo eram categorias coexistiam e se complementavam em um mesmo tipo de organização, e seus limites eram pouco claros no âmbito das experiências cotidianas.

Há que notar por um lado que, mesmo livre, o trabalho era compulsório, pois os índios dos aldeamentos eram considerados livres, porém obrigados ao trabalho. Por outro lado, paradoxalmente, mesmo compulsório, na prática, precisava da vontade dos índios para se concretizar, especialmente para o serviço nas expedições, como fica claro na observação do padre Antônio Vieira acima mencionada. Como forçá-los a um trabalho cuja característica principal é a mobilidade? De fato, são vários os relatos de índios que fugiam e, para mantê-los nas expedições, os capitães e demais interessados precisavam dispender muito mais do que o salário a que eram obrigados por lei. Pagamentos e outros incentivos materiais, em muitos casos, motivavam a participação dos índios remadores nas expedições (Roller, 2010ROLLER, H. F. Colonial Collecting Expeditions and the Pursuit of Opportunities, c. 1750-1800. The Americas, v.66, n.4, p.435-67, 2010.). Pois, se o salário oficial havia sido estipulado em duas varas de pano (cerca de dois metros do tecido), que seriam geridas pelo missionário da aldeia, são comuns os relatos de moradores reclamando da quantidade de produtos necessária para convencer os índios a trabalhar nas expedições: aguardentes, tecidos, avelórios e outros manufaturados europeus. Até mesmo o Diretório sancionou a distribuição de aguardente aos tripulantes das expedições, embora tenha proibido o seu comércio nas aldeias indígenas.

É possível conceber, portanto, que as expedições ao sertão, a atividade comercial mais importante, eram fruto de trabalho masculino, relativamente consentido, a troco de pagamento. E os escravos resgatados nessas expedições, que eram as mulheres e as crianças, serviam na produção daquilo que pagaria o trabalho masculino e que alimentava as expedições de resgate e a colheita das drogas do sertão, fechando um circuito que, no entanto, se abre para o mercado externo, por meio da exportação das drogas do sertão.

Livres e escravos eram maneiras de nomear sujeitos indígenas em razão do modo como haviam sido incorporados à sociedade e segundo o domínio de quem se encontravam. Os missionários acusavam os moradores de submeter os índios que foram morar em casas de particulares a uma dura escravidão. Mas relatos de fuga das expedições, depois de terem recebido o salário, de fuga dos aldeamentos para a casa dos moradores, de matrimônios entre índios livres e escravos, enfim, uma diversidade de situações sugere fronteiras fluidas entre as condições dos trabalhadores livres e escravos.13 13 Uma consulta à Base de Dados “Legislação: Trabalhadores e Trabalho em Portugal, Brasil e África Colonial Portuguesa” evidencia facilmente essa afirmação (Disponível em: <https://www.ifch.unicamp.br/cecult/lex/web/>). Trabalhos livre e escravo conviviam, complementavam-se, e não engendravam oposições.

Com a introdução continuada de africanos na segunda metade do século XVIII, a lógica da complementariedade permaneceu. O fato de os índios terem sido declarados livres na lei de 1755 não significa que teriam sido isentos da obrigação de trabalhar. Ao contrário, o Diretório dos Índios de 1757 lhes atribui um lugar claramente determinado naquele que era considerado o mais importante e útil negócio dos estados do Pará e do Maranhão: o comércio do sertão. Mais um indício de que não há incompatibilidade ou dicotomia entre trabalho livre dos índios e escravos dos negros em uma mesma política imperial.

Por estudos empíricos e novos conceitos

Temos, portanto, de um lado, uma tradição historiográfica que nega a existência de escravidão indígena, preocupada com as raízes coloniais da nação brasileira na sua conjunção com o capitalismo comercial e que entende o escravismo em grandes esquemas teóricos. E, de outro lado, uma tradição que, a partir do período da redemocratização brasileira, negou os grandes esquemas, concentrando seus esforços analíticos nos sujeitos, e para quem não interessa enfatizar formas de exploração do trabalho, mas sim a capacidade de agência desses personagens individuais e coletivos antes invisíveis nas grandes teorias. Nesse percurso, alguns objetos emergiram, mas escravidão, tráfico de escravos e outras formas de exploração do trabalho indígena continuaram marginais. E, além disso, o que ambas as tradições têm em comum é o fato de admitirem noções abstratas de escravidão e liberdade, negligenciando evidências que não se encaixam em suas teorias.

A intenção deste artigo não é propor uma síntese das duas tradições e promover um terceiro modelo; mas sugerir um mergulho nas evidências. Assim como na arqueologia (Neves, 2015NEVES, E. G. Existe algo que se possa chamar de “arqueologia brasileira”? Estudos Avançados, São Paulo, v.29, n.83, p.7-17, abril 2015.) e na antropologia (Taylor, 1994TAYLOR, A.-C. Génesis de un arcaísmo: la Amazonía y su antropología. In: BERNAND, C. (Comp.) Descubrimiento, conquista y colonización de América a quinientos años. México: Consejo Nacional para la cultura y las artes; Fondo de Cultura Económica, 1994. p.91-126.), aliás, os estudos empíricos amazônicos têm um grande potencial de contribuição para a renovação e construção de um quadro teórico mais rico e de relevância que suplanta os estudos locais.

Houve uma notável variedade de experiências entre trabalho indígena e africano em diferentes regiões das Américas que não correspondem às referências teóricas consolidadas na disciplina. Como também propõem colegas norte-americanos, é preciso analisar a diversidade da experiência escrava, as variadas formas de trato de escravos, de processos de escravização, o seu variado caráter, circunstâncias e propósitos (Gallay, 2009GALLAY, A. Introduction. Indian Slavery in Historical Context. In: Indian Slavery in Colonial America. Lincoln; London: University of Nebraska Press, 2009. p.1-32.; Reséndez, 2016RESÉNDEZ, A. The Other Slavery: The Uncovered Story of Indian Enslavement in America. Boston: Houghton Mifflin Harcourt, 2016.). E, para incluirmos indígenas em uma explicação abrangente da escravidão no Brasil, seria preciso abordar o tema a partir de uma perspectiva mais ampla, capaz de compreender as variadas formas de trabalho e a maneira como se articularam nos diferentes contextos.

Poder-se-ia, além disso, ampliar a própria noção de Atlântico, cujas dinâmicas são mais abrangentes do que aquelas que passam diretamente pelo tráfico de escravos africanos. Ainda que seja esse comércio a atribuir coesão ao espaço atlântico, existem processos que se dão em razão de trocas e dinâmicas que igualmente convergem para circuitos atlânticos, mas que não necessariamente passam pelo tráfico de escravos africanos.

Abrir a análise da escravidão para além da experiência africana nos força a buscar outras categorias interpretativas, a reexaminar tanto a história da escravidão quanto a história indígena. Pois acrescenta novos elementos às narrativas sobre autonomia dos grupos nativos, participação na sociedade envolvente, evolução de suas próprias políticas e de seus sistemas sociais. E também nos permite reconsiderar natureza, formas e impacto do colonialismo e do desenvolvimento do capitalismo no Novo Mundo.

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Notas

  • 1
    Este artigo apresenta resultados de pesquisa realizada com apoio financeiro do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) e da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (processo n.16/12975-4).
  • 2
    O que é um dos pilares da argumentação de Alencastro (2002 p.143), para quem, para promover o tráfico negreiro era preciso, entre outras coisas, “vedar” o acesso dos colonos ao trabalho indígena. Essa ideia é repetida à exaustão pela historiografia e, apesar de já ter sido fortemente questionada, prevalece em obras de autores influentes e de grande apelo editorial. Por exemplo, no verbete “Escravidão indígena e início da escravidão africana”, escrito no Dicionário da Escravidão e Liberdade (Schwarcz; Gomes, 2018).
  • 3
    “Em espaço de quarenta anos se mataram e se destruíram por esta costa e sertões mais de dois milhões de índios, e mais de quinhentas povoações como grandes cidades” (Vieira, 2013, p.226).
  • 4
    Trabalho desenvolvido em parceria com doutoranda Fernanda Aires Bombardi (FFLCH-USP) e o professor de estatística Eliardo Costa (DEST/UFRN), cujos resultados serão em breve publicados em artigo científico. Com o objetivo de estabelecermos um chão e um teto para a população indígena recrutada aos espaços coloniais, chegamos ao número mínimo de 108 mil índios inseridos no Estado em 70 anos, dos quais mais da metade seria composta por índios livres, recrutadas por meio de descimentos oficiais e privados. Esse número é bastante conservador, tendo em vista que não pudemos calcular o fluxo de índios anualmente descidos aos aldeamentos e desconsideramos a existência de índios escravizados ilegalmente. O nosso teto, de 390 mil índios, teve por base a percepção de que a escravização ilegal era uma realidade muito mais frequente do que a conduzida por meios legais e que, por isso, não poderiam ser desconsiderados de nossos cálculos.
  • 5
    Não apenas por relatos contemporâneos, ou na documentação administrativa, que reflete o clima politico e econômico, mas também por outras fontes de natureza quantitativa. Por exemplo, pelo “Livro das Canoas”, publicado por Márcio Meira em 1994, conseguimos visualizar os movimentos da prática de resgate, do seu auge nas décadas de 1730 e 1740 ao seu declínio, na década de 1750, fornecendo-nos, portanto, informações de contexto que podemos confrontar com os demais números (Dias, 2014b).
  • 6
    Dados disponíveis em: <slavevoyages.org> (acesso em: 20 abril 2019). Mas há que dizer que esse volume de indígenas integrados à sociedade colonial não refletia necessariamente a quantidade de índios presentes na sociedade, pois, nos mesmos anos, e especialmente a partir da década de 1730, guerras e epidemias foram efetivamente responsáveis pela morte de muitos índios, sustentando, portanto, um ciclo vicioso que só aumentava a necessidade por mais índios e, claro, a intensificação das práticas escravistas e recrutamento de trabalhadores indígenas de forma geral.
  • 7
    A partir da análise de cerca de 400 registros de cerca de 1.500 prisioneiros resgatados na década de 1740, conservados em fundos do Instituto de Estudos Brasileiros/USP (Coleção Lamego, códice 43.58) e do Arquivo Público do Pará (códice 44).
  • 8
    Mas houve, ainda segundo Monteiro, uma inversão desse padrão entre os cativos com a mercantilização da economia da província (Schwartz, 1988; Monteiro, 1994).
  • 9
    Carta régia a Antonio de Albuquerque Coelho de Carvalho, governador do Maranhão, 19 de março de 1693. In: Anais da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro, v.66, p.142-4, 1948.
  • 10
    “Aqui será bem que se note que os índios são os que fazem as canoas, as toldam, as calafetam, os que as velejam, os que as remam, e muitas vezes, como veremos, os que as levam às costas, e os que, cansados de remar as noites e os dias inteiros, vão buscar o que hão-de comer eles e os portugueses (que é sempre o mais e melhor); os que lhes fazem as casas, e, se se há de marchar por terra, os que lhes levam as cargas e ainda as armas às costas. Tudo isto fazem os tristes índios [...]”. Carta ao Provincial do Brasil (1661) in Franco e Calafate (2013).
  • 11
    Consulta do Conselho Ultramarino para o rei D. João V, sobre carta do ouvidor-geral da capitania do Pará, Manuel António Fonseca, em que se queixa dos governadores por terem desleixado as licenças do sertão e aponta os prejuízos daí decorrentes. 1737, Janeiro, 30, Lisboa AHU Pará.
  • 12
    “[…] que a gente inútil, que não pode ir às missões, como velhos, mulheres e meninos e outros índios, nos seis meses que lhes ficam livres do serviço da República, plantem e cultivem também por sua parte as sobreditas drogas, das quais, pagos à Fazenda Real os dízimos, tirarão o necessário para o serviço e culto de suas igrejas e remédio de suas famílias, e para as despesas necessárias das missões, como são no sertão as dádivas com que se adquirem as vontades dos índios” (Vieira, 2016).
  • 13
    Uma consulta à Base de Dados “Legislação: Trabalhadores e Trabalho em Portugal, Brasil e África Colonial Portuguesa” evidencia facilmente essa afirmação (Disponível em: <https://www.ifch.unicamp.br/cecult/lex/web/>).
  • Errata

    No artigo “Os índios, a Amazônia e os conceitos de escravidão e liberdade”, de Camila Loureiro Dias, publicado no v.33, n.97 de Estudos Avançados, p.235-252 (São Paulo set./dez., 2019), doi: 10.1590/s0103-4014.2019.3397.013, foram feitas as seguintes correções a pedido da autora depois de ser publicado:
    p. 235 - “Há consenso” substituir por “O consenso”.
    p. 236 - “não interessando ao sistema colonial. Para Novais” (inserir ponto no lugar da vírgula e iniciar nova oração).
    p. 236 - substituir 2002 por 2000.
    p. 237 - substituir 2002 por 2000.
    p. 237 - escravidão indígena como forma de exploração do trabalho (inserir “de”)
    p. 237 - só desencravou por meio da (retirar vírgula depois de “desencravou”)
    p. 237 - substituir 2002 por 2000.
    p. 242 - substituir 390 por 300.
    p. 247 - alguns objetos emergiram, mas a escravidão, tráfico… (inserir “a” antes de “escravidão; atentar para o espaço entre as palavras).
    p. 247 - reconsiderar a natureza (inserir “a” depois de “reconsiderar”.
    p. 248 - nota 4 - com a doutoranda (inserir “a” antes de “doutoranda”).
    p. 248 - nota 4 - substituir 390 por 300.
    p. 249 - substituir 2002 por 2000.
    p. 252 - “as well as in other historiographical traditions, a consensus built over decades associated slavery to the African slave trade. Both these processes forged…”
    p. 252 - Substituir Intitutto por Instituto (retirar “t” sobrando)

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    2 Dez 2019
  • Data do Fascículo
    Sep-Dec 2019

Histórico

  • Recebido
    28 Jun 2019
  • Aceito
    17 Jul 2019
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