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As “ajudas”: o cuidado que não diz seu nome1

resumo

O provimento de cuidado é um desafio, sendo inúmeras as formas e relações sob as quais se exerce. Focalizaremos uma dessas configurações: o trabalho de cuidado que se reconhece como “ajuda”. Nela, as atividades não são significadas como um “trabalho”; quem as exerce tampouco se identifica como cumprindo uma “obrigação”. Apartando-se dos dois sentidos associados ao cuidar - um trabalho profissional ou uma obrigação decorrente de um status - as ações ganham outro significado, o de “ajudas”. Disso decorrem tanto modalidades de trocas (econômicas, afetivas e simbólicas), como formas de retribuição (monetária ou não). Para bem documentá-lo lançamos mão de dados provenientes de trabalho etnográfico junto a famílias pobres na cidade de São Paulo.

palavras-chave:
Cuidado; Gênero; Trabalho; Pobreza; Brasil

abstract

Providing care is a challenge in our societies. There are countless forms and relationships under which it is purveyed. In this text, we focus on one of these configurations: the care work that is recognized as “help”. In these situations, activities are not construed as “work”; moreover, those who carry them out do not identify themselves as fulfilling an “obligation”. Such actions distinguish themselves from the two meanings associated with care work (a professional job or an obligation resulting from a status) and take on another connotation, that of “help”. Such understanding determines both the modalities of exchanges (economic, affective and symbolic) and the forms of retribution (monetary or otherwise). Our approach is based on data from ethnographic work conducted with poor families in the city of São Paulo.

keywords:
Care; Gender; Work; Poverty; Brazil

Introdução

É notável a pluralidade das formas e relações sob as quais o trabalho de cuidado se exerce. Em sociedades marcadas por profundas desigualdades sociais, tal pluralidade é muito mais ampla que aquela que povoa os estudos contemporâneos acerca das chamadas “profissões do cuidado” (Razavi, 2007RAZAVI, S. The Political and Social Economy of Care in a Development Context. Conceptual Issues, Research Questions and Policy Options. Geneva: UNSRID, 2007.; Destremau; Georges, 2017DESTREMAU, B.; GEORGES, I. (Org.) Le care, face morale du capitalisme. Assistance et police des familles en Amérique Latine. Bruxelles: Peter Lang, 2017.; ILO, 2018; Borgeaud-Garciandía et al., 2020).

Neste artigo exploraremos esse espectro, abrindo-lhe o leque de modo a incluir outras formas de significar a mesma atividade concreta de cuidar. Assim, além do “cuidado como profissão”, configuração do trabalho de cuidado tradicionalmente privilegiada na literatura do campo e objeto de múltiplas medidas e reflexões (Razavi, 2007RAZAVI, S. The Political and Social Economy of Care in a Development Context. Conceptual Issues, Research Questions and Policy Options. Geneva: UNSRID, 2007.; ILO, 2018; Duffy; Armenia, 2019DUFFY, M.; ARMENIA, A. Paid Care Work around the Globe: A Comparative Analysis of 47 Countries Prepared for UN Women. LIS Working Papers 758, Luxembourg: LIS Cross-National Data Center, 2019.), trataremos aqui de maneira mais detida do “cuidado como ajuda” (Guimarães, 2019GUIMARÃES, N. A. Os circuitos do cuidado. Reflexões a partir do caso brasileiro. Comunicação ao painel “El trabajo de cuidado. Relaciones, significados, derechos. Miradas Latinoamericanas”, 2019 Congress of the Latin American Studies Association (LASA), Boston, 24-27 may 2019.). Nessa configuração, as atividades desempenhadas não costumam ser significadas como “trabalho”, “ocupação regular” ou “profissão”; bem assim, quem as exerce tampouco se identifica como cumprindo uma “obrigação de cuidar”. Desse modo, apartando-se dos sentidos mais comumente associados ao cuidar - um trabalho profissional ou uma obrigação decorrente de um status - as ações ganham, nesse circuito, um outro significado. Em recentes trabalhos de campo, observamos que, no caso brasileiro, tais atividades têm sido aludidas pelo recurso à palavra “ajudas” (Vieira, 2017VIEIRA, P. P. F. Trabalho e pobreza no Brasil. Entre narrativas governamentais e experiências individuais. São Paulo, 2017. Tese (Doutorado em Sociologia) - Departamento de Sociologia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo.; Moreno, 2019MORENO, R. F. C. Entre a família, o Estado e o mercado: mudanças e continuidades na dinâmica, distribuição e composição do trabalho doméstico e de cuidado. São Paulo, 2019. Tese (Doutorado em Sociologia) - Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo. São Paulo, 2019.). Entendê-las será o nosso objetivo.

O texto compreende duas outras seções, além desta “Introdução”. A primeira apresentará o arcabouço conceitual com o qual abordaremos o tema. Mobilizando os conceitos de “trabalho relacional” e de “circuitos de troca” (Zelizer, 2000ZELIZER, V. How and Why Do We Care About Circuits? Accounts (Newsletter of the Economic Sociology Section of the American Sociological Association), n.1, p.3-5, Fall, 2000., 2002, 2004, 2005, 2009, 2012) e de “circuitos de cuidado” (Guimaraes, 2019GUIMARÃES, N. A. Os circuitos do cuidado. Reflexões a partir do caso brasileiro. Comunicação ao painel “El trabajo de cuidado. Relaciones, significados, derechos. Miradas Latinoamericanas”, 2019 Congress of the Latin American Studies Association (LASA), Boston, 24-27 may 2019.), procuraremos evidenciar o cerne do nosso argumento, a saber: variando o modo como uma (mesma) atividade concreta é significada, não somente se alteram aqueles que são socialmente reconhecidos como agentes do seu exercício, como (e mais interessante ainda) criam-se (ou não) as condições para que tais agentes identifiquem a atividade que performam como fazendo parte de um circuito de cuidado, nomeando-a (ou não) seja como trabalho, seja como cuidado. Desse modo, diferenciam-se as relações sociais (mercantis ou não-mercantis) que sustentam o exercício dessa atividade, estabelecendo-se fronteiras e hierarquias entre essas e outras atividades similares. Bem assim, variam as formas de retribuição pelo trabalho desempenhado e os meios que materializam tal retribuição (que podem ou não ser monetários).

Na segunda seção ilustraremos, por meio de um estudo de caso, o valor heurístico desse arcabouço conceitual. Para tal, identificaremos configurações que pode assumir o cuidado num circuito em que o trabalho é significado a partir da noção de “ajuda”. Partiremos de achados colhidos junto a famílias em situação de extrema pobreza por meio de um estudo etnográfico realizado durante 15 meses - entre janeiro de 2016 e março de 2017 - em um bairro periférico no município de São Paulo (Vieira, 2017VIEIRA, P. P. F. Trabalho e pobreza no Brasil. Entre narrativas governamentais e experiências individuais. São Paulo, 2017. Tese (Doutorado em Sociologia) - Departamento de Sociologia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo.). Esse se localiza no extremo leste da cidade, sendo caracterizado por altos índices de vulnerabilidade social - de acordo com o Índice Paulistano de Vulnerabilidade Social (IPVS) - e por um elevado número de famílias abaixo da linha governamental de pobreza. Escolhemos um caso - dentre tantos observados na pesquisa etnográfica - em que o cuidado como “ajuda” se revelou de forma mais clara e, através dele, exploraremos a dimensão multifacetada das “ajudas”.

O cuidado e seus circuitos: “profissão”, “obrigação”, “ajuda”

No curso da vida cotidiana os indivíduos estão permanentemente mobilizados num esforço por diferenciar relações sociais que lhes são significativas, conferindo, dessa maneira, sentido às situações em que interagem e, ao fazê-lo, orientando as suas escolhas e as condutas delas resultantes. Para tal, empenham-se em um trabalho permanente de estabelecer barreiras, de demarcar fronteiras, as quais se tornam visíveis tanto no ato de nomear e nas estratégias classificatórias nele embutidas, como no estabelecimento de novas práticas. Zelizer (2012_______. How I Became a Relational Economic Sociologist and What Does That Mean? Politics & Society, v.40, n.2, p.145-74, June 2012.), em texto seminal no campo da sociologia da vida econômica, recorreu à noção de “trabalho relacional” para dar conta desse esforço constante que marca a vida em sociedade. Do ponto de vista analítico, essa noção nos ajuda a responder duas indagações-chave: como, na vida social, os indivíduos (re)configuram as suas relações interpessoais de maneira a executar atividades que consideram essenciais à vida econômica? e como procedem nesse seu trabalho de tecer, refazer, diferenciar relações sociais significativas?

Guimarães (2019GUIMARÃES, N. A. Os circuitos do cuidado. Reflexões a partir do caso brasileiro. Comunicação ao painel “El trabajo de cuidado. Relaciones, significados, derechos. Miradas Latinoamericanas”, 2019 Congress of the Latin American Studies Association (LASA), Boston, 24-27 may 2019.), inspirando-se nessa noção, sugeriu que a pluralidade de configurações sob as quais se organiza o trabalho de cuidado poderia ser mais bem compreendida, do ponto de vista analítico, se as pensássemos como circuitos que abarcam as configurações resultantes desse intenso e permanente trabalho. Assim, seguindo as pistas deixadas por Zelizer (2002_______. La construction des circuits de commerce: notes sur l’importance des circuits personnels et impersonnels. In: SERVET, J.-M.; GUÉRIN, I. (Ed.) Exclusion et Liens Financiers: Rapport du Centre Walras. Paris: Economica, 2002. p.425-9., 2004, 2005, 2006) ao tematizar os “circuitos de troca”, cada “circuito de cuidado” seria um arranjo social, produto de um trabalho relacional voltado para diferenciar relações sociais significativas.

Pensando operacionalmente, um “circuito de cuidado” se definiria, então, pela confluência entre

  • (a) certas modalidades de relação social de cuidado,

  • (b) caracterizadas por certos significados a elas atribuídos,

  • (c) às quais correspondem certas transações (econômicas, aí compreendidas)

  • (d) e certas formas de retribuição (aí compreendidos os tipos de moeda, quando o pagamento assume a forma monetária)

Isso nos coloca diante de quatro dimensões relevantes: os significados atribuídos ao trabalho desempenhado, os atores/atrizes considerados aptos a fazê-lo, os tipos de relação social estabelecidas (mercantis ou não-mercantis), e os modos de retribuição (monetários ou não) que se lhe associam.

Seguindo essa pista interpretativa, Guimarães (2019GUIMARÃES, N. A. Os circuitos do cuidado. Reflexões a partir do caso brasileiro. Comunicação ao painel “El trabajo de cuidado. Relaciones, significados, derechos. Miradas Latinoamericanas”, 2019 Congress of the Latin American Studies Association (LASA), Boston, 24-27 may 2019.) sugere que a pluralidade das relações sociais de trabalho no cuidado poderia ser sistematizada, para fins analíticos, a partir de três diferentes circuitos de cuidado: o “cuidado como profissão”, o “cuidado como obrigação” e o “cuidado como ajuda”.

O primeiro desses circuitos, o do cuidado como profissão é aquele ao qual mais atenção tem sido prestada pelos estudiosos do cuidado (Razavi, 2007RAZAVI, S. The Political and Social Economy of Care in a Development Context. Conceptual Issues, Research Questions and Policy Options. Geneva: UNSRID, 2007.; Duffy et al., 2013DUFFY, M. et al. Counting Care Work: The Empirical and Policy Applications of Care Theory. Social Problems, v.60, n.2, p.145-67, 2013.; ILO, 2018; Duffy; Armenia, 2019). Isso nem de longe o livra de desafios, notadamente no sentido de bem capturar as variadas modalidades que o trabalho profissional de cuidado assume. Essas compreendem desde as configurações mais tradicionais (como as atividades ligadas à saúde e enfermagem), até as que emergem mais recentemente (como o trabalho das “cuidadoras”, domiciliares e em instituições de longa permanência), passando pelas longevas formas do trabalho doméstico remunerado, igualmente provedor de cuidado, muito embora quase nunca contabilizado como tal nas estatísticas oficiais dos vários países, o Brasil dentre eles.

Mas, por que ampliar o leque do que se entende por “cuidado” de maneira a nele incluir outras modalidades que se diferenciam do trabalho que se exerce enquanto uma profissão? Inicialmente, para nos alinharmos com aquelas autoras que propugnam por uma concepção abrangente do cuidado e das formas de trabalho que o provêm (Laugier; Paperman, 2009LAUGIER, S.; PAPERMAN, P. Qu’est-ce que le care? Souci des autres, sensibilité, responsabilité. Paris: Payot & Rivages, Petite Bibliothèque Payot, 2009.; Molinier, 2013MOLINIER, P. Le travail du care. Paris: La Dispute, 2013.), como forma de bem capturamos as heterogeneidades que, nesse domínio, diferenciam e especificam as sociedades nacionais e, nestas, as distintas classes e grupos sociais (Kergoat, 2016KERGOAT, D. Le care et l’imbrication des rapports sociaux. In: GUIMARÃES N. A.; MARUANI, M.; SORJ, B. (Ed.) Genre, race, classe. Travailler en France et au Brésil. Paris: L’Harmattan, 2016. p.11-23.).

Entender tais heterogeneidades impôs incluir na reflexão do campo o debate pioneiramente travado pelos estudos feministas acerca do trabalho doméstico não-remunerado (Fisher; Tronto, 1990FISHER, B.; TRONTO J. C. Towards a Feminist Theory of Caring In: ABEL, E.; NELSON, M. (Ed.) Circles of Care: Work and Identity in Women’s Lives. Albany: SUNY Press, 1990. p.36-54.; Ferber; Nelson, 1993FERBER, M. A.; NELSON, J. A. (Ed.) Feminist Economics Today: Beyond Economic Man. Chicago: The University of Chicago Press, 1993.; Himmelweit, 2000HIMMELWEIT, S. (Ed.) Inside the Household: From Labour to Care. London: Palgrave Macmillan, Basingstoke, 2000.). Esses estudos nos permitiram desvelar uma outra dimensão importante do trabalho de cuidado, desempenhado com o sentido de “obrigação”. Nela, o exercício dos chamados “afazeres domésticos”, feito de forma gratuita e regular (embora invisível), propiciava o provimento de tarefas de cuidado a membros da família ou do domicílio de residência. Um trabalho realizado sempre por mulheres, no qual a obrigação de cuidar estava associada ao status dessas na família, exprimindo as desigualdades nas relações sociais de sexo, cristalizadas enquanto divisão sexual do trabalho. Nesse caso, o “amor” e a “responsabilidade familiar” são os significados que dão sentido à conduta e estruturam o reconhecimento social e a identidade subjetiva de quem as performa. Nesse circuito, conquanto as atividades sejam auto e hetero-reconhecidas como “de cuidado”, a essas não se dá o caráter de “um trabalho”, mas o de cumprimento de uma “obrigação”. Por serem assim compreendidas, tais atividades tampouco são retribuídas pela via da circulação monetária.

Mesmo quando as mulheres passaram a ingressar maciçamente no mercado de trabalho, seguiram acumulando as tarefas domésticas de cuidado, apoiando-se no suporte ocasional de outras mulheres da família (avós, sogras, tias, irmãs, filhas etc.), que as ajudavam também como uma “obrigação” decorrente do vínculo familiar. Entretanto, tem sido pelo assalariamento de uma massa crescente de mulheres de origem social distinta que se tem viabilizado o trabalho domiciliar de cuidado. As trabalhadoras domésticas remuneradas tornaram-se uma das marcas estruturantes da organização social do cuidado especialmente naqueles países em que as políticas públicas nesse domínio têm se mostrado frágeis; o Brasil se destaca a esse respeito (ILO, 2018). Nesse ponto o cuidado prestado “como obrigação” se conecta estreitamente com aquelas atividades de cuidado desempenhadas como trabalho profissional.

Ora, sabemos que o desenvolvimento de um forte segmento assentado em ocupações especializadas e remuneradas de cuidado pode ser estratégico para o atendimento das necessidades e para os avanços em termos de equidade de gênero. Isso, entretanto, requer mínima equidade econômica (em especial de renda), que capacite usuárias a contratar tais serviços (Duffy; Armenia, 2019DUFFY, M.; ARMENIA, A. Paid Care Work around the Globe: A Comparative Analysis of 47 Countries Prepared for UN Women. LIS Working Papers 758, Luxembourg: LIS Cross-National Data Center, 2019.), o que está longe de ser verdade nos segmentos mais pobres, em especial nos chamados “países do Sul”. Mesmo assim, na fronteira dos estudos nesse campo, já se tem documentado o efeito perverso do crescimento das ocupações de cuidado sobre a polarização dos empregos nos chamados “países do Norte”, como resultado da ampliação do trabalho doméstico remunerado de cuidado (Dwyer, 2013DWYER, R. The Care Economy? Gender, Economic Restructuring and Job Polarization in the US Labor Market, American Sociological Review, v.78, n.3, p.390-416, 2013.).

Ao lado dessa, uma outra fronteira de conhecimento no campo se refere à análise das formas não remuneradas de cuidado em contextos sociais em que a pobreza extrema veda aos indivíduos o acesso a formas mercantilizadas desse serviço e onde igualmente claudicam as iniciativas de políticas públicas voltadas ao cuidado. É precisamente dessa modalidade de trabalho de cuidado que trataremos neste texto. No circuito, e tal como naquele do cuidado como “obrigação”, as atividades desempenhadas não são entendidas como “trabalho”. Mas, e à diferença do anterior, as pessoas que as performam tampouco se identificam como cumprindo qualquer “obrigação” de cuidar. Nesse caso, as ações ganham o sentido nativo de “ajudas”, nas quais relações monetárias também não precisam ser estabelecidas. Sustentam-se em (e se reproduzem a partir de) relações sociais assentadas na reciprocidade, grupal ou comunitária. O dinheiro pode jamais por ali circular como forma de retribuir o trabalho efetivamente desempenhado, muito embora, uma vez existindo (o que é raro como fluxo regular) ele seja sempre bem-vindo para quem cuida, dada a privação social a que estão sujeitos, tanto provedoras quanto beneficiarias do cuidado como “ajuda”.

Isso já nos deixa entrever uma outra dimensão relevante: as desigualdades, notadamente as desigualdades de classe. Elas informam tanto as chances de aceder ao cuidado profissional, como o modo como se combinam e interpenetram os circuitos profissional e da obrigação, mas, e sobretudo, o vigor com que o circuito das “ajudas” aparece como promotor de alternativas de cuidado (sob diferentes e novos tipos de atividades ) entre aqueles que vivem em situação de pobreza extrema e sob escassa (ou pouco efetiva) proteção da política social.

Cada um desses circuitos, até aqui apresentados em forma ideal-típica, compreende diferentes configurações da relação social de cuidado. Ademais, o esforço constante de conferir significado às relações faz que essas configurações se transformem no tempo, por um lado, e que possam ser vividas, simultaneamente, algumas delas, pelo/as que proveem e pelo/as que se beneficiam do cuidado recebido, por outro.

Neste texto, o nosso interesse se concentrará naquele que nos parece ser o circuito menos estudado, o circuito das “ajudas”. Explorar a sua natureza e mostrar a consubstancialidade que pode marcar a convivência entre várias de suas formas só é possível na medida em que flagremos o processo concreto de produzir e negociar os significados que conferem sentido a essas relações de “ajuda”. Disso se encarregará a seção subsequente.

Flagrando “ajudas” e refletindo sobre as configurações do cuidado

A etnografia de onde extrairemos os dados apresentados nesta seção consistiu em acompanhar um conjunto de nove famílias e indivíduos beneficiários de políticas de transferência de renda, investigando as dinâmicas de relações por eles estabelecidas com os circuitos estruturantes da sobrevivência: os mercados, o Estado, a família e as redes de amizade e vizinhança.

Conquanto o estudo tivesse como alvo analisar os discursos de indivíduos sobre a experiência da pobreza, de modo a revelar as suas práticas e categorias de interpretação, significativamente o cuidado se revelou um elemento analítico fundamental para a compreensão das suas experiências de trabalho e de garantia de renda e bem-estar. As atividades de cuidado, mesmo quando não nomeadas enquanto tal, mostraram-se centrais às construções simbólicas a respeito do que é (ou não) considerado trabalho. Para este texto escolhemos um caso, dentre tantos observados na pesquisa etnográfica, em que a configuração do cuidado como “ajuda” se revelou de forma mais clara e multifacetada.

Em sua rica trajetória, Míriam2 (nome fictício para a escolhida) desenvolveu, sob diferentes relações e condições, múltiplas atividades de cuidado, sempre denominadas em termos nativos como “ajuda”. Por meio da história dessa informante e de algumas mulheres ao seu redor exploraremos a dimensão de classe que estrutura o circuito do cuidado como “ajuda”, revelando aspectos do universo social da extrema pobreza urbana, em suas formas muito particulares de viver e pensar tanto a organização da vida cotidiana, como o trabalho.

Em 2017, quando a conhecemos, Míriam tinha 37 anos, estava casada e era mãe de três filhos com idades entre 4 e 16 anos. Moradora da periferia da zona leste de São Paulo, não era possível caminharmos dez metros pelo bairro em sua companhia sem termos que parar e assisti-la cumprimentar alguém: vizinhos, amigos, parentes, os traficantes nos pontos de venda, os “noias” na praça, o dono do boteco, a assistente social, o padre da paróquia. Dona de uma notável capacidade de mobilizar relações, através dela circulam todos os tipos de ajudas, favores e informações: trabalho, políticas sociais, doações, brindes, descontos, pontos de venda de drogas, acesso a fontes ilícitas de renda e festas, pagodes e churrascos na região. Além do que nos interessa aqui: diferentes atividades de cuidado de crianças, idosos, doentes e até animais.

Míriam é a terceira filha de um casal de migrantes da Bahia, que mora há mais de 36 anos no bairro. O casal João e Sílvia tem cinco filhos, dez netos e um bisneto. Saíram do Nordeste nos anos 1970 e se fixaram na periferia de São Paulo no início dos anos 1980. O patriarca se integrou na indústria do ABC em postos de baixa qualificação, dos quais retirava o sustento do grupo. Durante os primeiros vinte anos de sua experiência migratória a família se estabeleceu na cidade com certo êxito e desenhava uma trajetória de mobilidade ascendente, apoiada no mundo industrial. Até que uma série de eventos - problemas de saúde do provedor, drogas e conflitos internos entre os homens - afetou substancialmente o percurso do grupo. Desde então, se afiguraram severas dificuldades para obtenção de renda, levando o grupo familiar à situação de extrema pobreza e de péssimas condições de vida em que os encontramos. Doenças e problemas de dependência química tiraram de atividade parte da família e demandaram um intenso trabalho de cuidado não remunerado das mulheres da primeira e segunda geração, ao tempo em que delas se exigiu prover o sustento familiar. Elas, que não foram preparadas para uma inserção mercantil e possuíam baixa escolaridade e qualificação, não conseguiam construir relações estáveis com o mercado de trabalho. Por outro lado, possuíam uma ampla rede de relações sociais na vizinhança através da qual teceram uma teia de trabalhos socialmente desvalorizados, onde o cuidado (remunerado ou não) é central. Durante a pesquisa, os questionamentos sobre as atividades profissionais conduziam a maior parte dos membros desse grupo em situação de extrema pobreza a respostas vagas ou a afirmações de inatividade. O uso do termo “trabalho” revelou-se infrutífero. Aqui outras categorias nativas eram mais estruturantes do discurso, entre elas a noção de “ajuda”, que aqui nos interessa mais de perto. Míriam é uma grande articuladora dessa rede de “ajudas”, razão pela qual será o eixo da narrativa através da qual exploraremos as diferentes configurações que são produzidas no trabalho relacional nesse circuito de cuidados.

Míriam nasceu em 1980 e desde criança ajudava a mãe e a irmã mais velha com os afazeres domésticos e o cuidado de irmãos e primos mais novos, cumprindo o papel atribuído às filhas nos grupos familiares, especialmente em contextos de pobreza. A escola não era prioridade; assim, após trajetória instável, interrompeu os estudos na 7ª série. Nessa época, começou a trabalhar como ajudante de costura para uma vizinha em troca de remuneração a valores abaixo do mercado. Aos 17 anos, casou-se pela primeira vez e aos 21 anos, grávida, expulsou de casa o marido que praticava violência doméstica. Sustentou a filha sozinha com os ganhos de suas atividades: vendedora ambulante no centro da cidade, sacoleira no bairro e traficante (“aviãozinho”).

Para trabalhar fora de casa, Míriam combinava duas estratégias para o cuidado da criança. Regularmente deixava a filha na casa de sua mãe, Sílvia, que já cuidava do marido doente, das filhas em situação de drogadição e dos outros netos pequenos. Sílvia, ao longo de toda sua trajetória, exercera essas atividades de cuidado como sua responsabilidade inquestionável na dinâmica familiar, a qual não envolvia compensação e nem era interpretada como trabalho, tratava-se de obrigação moral.

Paralelamente ao suporte da mãe, outra importante estratégia começa a ser construída por Míriam nesse momento. Ela intensificou relações de solidariedade com outras mulheres da vizinhança - “mães solteiras” como ela - criando elos de ajuda mútua para problemas financeiros e questões cotidianas, dentre elas o cuidado de crianças e doentes. Essa rede de “ajudas” que começa a se delinear nos primeiros anos de maternidade de Míriam e suas amigas foi adquirindo novas feições, mas, como veremos, se sustenta até o presente. O que observamos nesse período é o cuidado compartilhado entre jovens vizinhas e amigas de infância. A princípio, as amigas trocavam favores, uma cuidava das crianças da outra em situações de necessidade ocasional. Nesse momento, o número de filhos era pequeno, as jovens mães tinham trajetórias ocupacionais incipientes e pouquíssimos recursos financeiros. O cuidado tomava forma de uma ajuda baseada exclusivamente na reciprocidade entre amigas próximas, sem circulação de dinheiro e mesmo sem compensações de outra natureza: o cuidado era retribuído exclusivamente com cuidado. A reciprocidade no cuidado de dependentes nunca deixou de existir nesse círculo de amizades, mas, conforme aumentavam a atividade ocupacional das mulheres, os recursos financeiros e o número de filhos, as formas de “ajuda” foram se diversificando e ganhando novas configurações.

Aos 24 anos, Míriam casou-se pela segunda vez e quando teve o segundo filho decidiu se dedicar mais ao trabalho doméstico e à família, interrompendo as atividades no comércio informal e no tráfico. Ela diz: “Fiquei um tempo parada pra cuidar das crianças”. O que descreve como “parada” era uma rotina intensa, que articulava o trabalho doméstico e de cuidado dos próprios filhos ao de outras crianças do bairro: “Eu comecei a cuidar das crianças das vizinhas, das amigas, sempre que alguém precisava eu mandava deixar aqui. Já tava parada mesmo. Quem cuida de dois, cuida de dez”.

Nesse momento ela assume integralmente o cuidado dos filhos, liberando sua mãe e amigas dessa responsabilidade e, ademais, passa a canalizar as demandas por cuidados das demais mulheres de sua rede de vizinhança. Míriam começa a receber as crianças de suas irmãs, amigas e vizinhas em sua pobre e precária casa e a exercer o cuidado de forma mais sistemática e em maior escala. Mesmo sem infraestrutura, a iniciativa foi muito bem recebida pelas mulheres da região, que enfrentavam a carência de creches públicas.

Nessa nova dinâmica ela não cobrava diretamente pelo cuidado que prestava, o qual tampouco interpretava como um serviço e nem como um trabalho, mas como favor, camaradagem: continuava nomeando a sua atividade como “ajuda”. Míriam entendia a sua iniciativa como uma assistência às mulheres de sua rede que não tinham condições financeiras de contratar esse serviço no mercado. Havia um componente de solidariedade e generosidade de parte da informante. Porém, diferentemente do que acontecia antes, agora havia o suposto de alguma compensação. Ou seja, Míriam estava desempenhando uma atividade que estava atrelada à expectativa de uma retribuição. Entretanto, essa não era balizada pelo preço de mercado, não tinha valor fixo e nem precisava ser monetária, o que, de fato, era muito raro. O relevante aqui é capturarmos esse movimento de ressignificação da atividade, assentado num novo entendimento dessa relação, que deixava de ser entendida como uma troca entre atividades de cuidado (cuidado se paga com cuidado), abrindo espaço para outras formas de retribuição, que passavam a fazer parte da dinâmica da relação social estabelecida, ainda que tal retribuição não precisasse ser de natureza financeira e nem imediata. Míriam nos diz que não saberia como cobrar das amigas, que não teria coragem de propor um valor, mas deixava aberta a possibilidade de retribuírem como quisessem ou pudessem.

Com efeito, atribuir um preço para um serviço prestado a alguém com quem se está ligado por laços de parentesco ou amizade não é uma tarefa simples, como já foi documentado em outras etnografias da vida econômica (Cottereau; Marzok, 2012COTTEREAU, A.; MARZOK, M. M. Une famille andalouse. Ethnocomptabilité d’une économie invisible. Paris: Éditions Bouchene, 2012.; Cottereau, 2013; Weber, 2009_______. O trabalho fora do trabalho. Uma etnografia das percepções. Rio de Janeiro: Garamond, 2009.; Zelizer, 2005ZELIZER, V. The purchase of intimacy. Princeton: Princeton University Press, 2005-a.a, 2006, 2008, 2009; Moreno, 2019MORENO, R. F. C. Entre a família, o Estado e o mercado: mudanças e continuidades na dinâmica, distribuição e composição do trabalho doméstico e de cuidado. São Paulo, 2019. Tese (Doutorado em Sociologia) - Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo. São Paulo, 2019.). Há uma série de tensões, negociações e afetos envolvidos no estabelecimento do preço para um serviço prestado a alguém com quem se tem uma relação prévia e próxima. Isso se torna especialmente difícil em contextos de extrema pobreza, onde, efetivamente, circula pouco dinheiro em espécie. Na prática, o que Míriam recebia em troca do cuidado nessa época era, principalmente, comida, roupas e presentes (como bijuterias ou utensílios domésticos).

O importante a destacar é que, para cada relação e arranjo de cuidado, havia um tipo de contrapartida (Guimarães, 2019GUIMARÃES, N. A. Os circuitos do cuidado. Reflexões a partir do caso brasileiro. Comunicação ao painel “El trabajo de cuidado. Relaciones, significados, derechos. Miradas Latinoamericanas”, 2019 Congress of the Latin American Studies Association (LASA), Boston, 24-27 may 2019.). Quando essa envolvia dinheiro, o valor e a regularidade do pagamento também variavam de acordo com a natureza da relação e com a condição econômica da pessoa, o que novamente aparece documentado em outras etnografias sobre cuidado (Moreno, 2019MORENO, R. F. C. Entre a família, o Estado e o mercado: mudanças e continuidades na dinâmica, distribuição e composição do trabalho doméstico e de cuidado. São Paulo, 2019. Tese (Doutorado em Sociologia) - Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo. São Paulo, 2019.). Mas, acima de tudo, Míriam fortaleceu ainda mais as relações de solidariedade com as famílias da vizinhança, que ficavam em posição de dívida moral para com a nossa informante, que poderia, assim, acionar esse recurso em casos de necessidade. Dessa forma, quando ela enfrentava alguma dificuldade mobilizava, em primeiro lugar, tais relações que constituíam o seu principal capital social. Os favores solicitados por Míriam não eram negados, pois ela passou a gozar de prestígio na vizinhança. Em suma, o cuidado por ela prestado era altamente valioso no contexto em que estava inserida, ainda que tal valor não se traduzisse necessariamente em remuneração regular, ao modo dos serviços mercantis de cuidado convencionalmente prestados.

Gradualmente as suas atividades tenderam a se diversificar. Primeiro, ela começou a cortar os cabelos das crianças sob seu cuidado. A ideia lhe surgiu pois frequentemente tratava dos piolhos da criançada. A vizinhança começou, em seguida, a lhe pedir para que cortasse também os cabelos dos adultos. Ela atendia os pedidos e seguia não cobrando pelos cortes; mas continuava aceitando presentes, favores e doações.

Como consequência dessa iniciativa, Míriam montou um esquema para venda de cabelos em parceria com um conhecido que trabalhava em um salão de beleza no centro da cidade, um amigo do tempo em que era vendedora ambulante. Ela cortava os cabelos das mulheres do bairro e, como intermediária, ficava com uma comissão pelo cabelo vendido para produção de apliques e perucas, comercializadas no salão. Muitas meninas do entorno venderam seus cabelos, quando em situações de necessidade material, graças à intermediação de Míriam: “Não dava muito dinheiro, mas era um jeito de ajudar quem precisava, porque às vezes a pessoa não sabe como arrumar dinheiro, eu tentava ajudar”.

Note-se, mais uma vez, o uso do verbo “ajudar” na descrição que Míriam faz sobre suas atividades. Porém, diferentemente das demais situações narradas até aqui, essa era uma ajuda necessariamente retribuída em dinheiro, pois interpretada como mais próxima do mundo dos negócios e do comércio do que da solidariedade. Tratava-se de transação de compra e venda que, de início, já era mercantil e monetizada. Ademais, extrapolava o círculo de parentes e amizades mais próximas, incorporando vizinhos e conhecidos com quem mantinha relações distantes, o que tornava menos constrangedor o procedimento de atribuição de um preço baseado em uma comissão. O valor da comissão poderia variar e ser negociado, mas essa “ajuda” implicava alguma contrapartida financeira. Vemos, aqui, a “ajuda” ganhando contornos mais próximos ao da prestação de serviços, dado o modo como eram dotadas de significado os dois vértices da relação de intermediação: o da menina que vendia o seu próprio cabelo e o do salão que o iria adquirir para revenda sob a forma de aplique ou peruca.

Isso fica ainda mais evidente quando, alguns anos mais tarde, Míriam expande os limites das suas atividades de cuidado e intermediação para mercados ilegais. Ela inicialmente foi convidada a participar de um esquema ilícito de casamentos com imigrantes indocumentados, oriundos principalmente de países africanos de língua portuguesa, como Angola e Moçambique. O objetivo do esquema era a obtenção do visto de residência no país através de casamento com brasileiras. Ela aceitou e oficializou matrimônio com um angolano em troca de R$ 2.000,00 (aproximadamente dois salários mínimos). Além de assinar os papéis, acompanha o “marido” em audiências na Polícia Federal e precisa manter contato frequente com o pretenso “esposo”, simulando uma vida de casal.

Vislumbrando interesse no negócio por parte de outras mulheres pobres da sua rede, propôs entrar no esquema como intermediária. Num período de três anos, Míriam encaminhou cerca de dez mulheres para esse mercado de matrimônios. Seu papel era não somente colocar as partes interessadas em contato, mas explicar os trâmites e acompanhar sistematicamente as “esposas” cuidando da segurança de suas amigas e garantindo o cumprimento dos acordos. Míriam cuidava do bem-estar das mulheres que entravam nesse esquema ilícito por necessidade financeira. A cada “esposa” indicada, ela recebia uma comissão de R$ 500,00 (aproximadamente meio salário mínimo). Aqui, tanto a remuneração quanto o valor da comissão eram indiscutíveis, tratava-se claramente de um negócio. E, ademais, um negócio que, além de ilegal e arriscado, envolvia montantes de dinheiro considerados altos naquele contexto social. Esse cuidado incomum e inusitado prestado por Míriam era novamente interpretado como “ajuda” e fundamental à dinâmica do esquema pois, as amigas e vizinhas só aceitavam participar devido à influência e à confiança que ela gozava entre as mulheres da comunidade.

Cabe registrar que, para além dessas atividades inusuais, a informante fez tentativas de inserção no mercado de trabalho formal ao longo de sua trajetória, mas não obteve sucesso. Aos 28 anos de idade, com dois filhos e se separando do segundo marido, ela deixou novamente as crianças com sua mãe, e começou a procurar trabalho. Através de uma pequena agência de empregos indicada por uma vizinha, Míriam conseguiu vaga temporária em uma empresa de terceirização de limpeza. Tentou durante quase quatro anos construir um percurso de estabilidade mínima no setor. Não conseguiu. Foram quatro empresas em quatro anos, nenhum contrato durou mais que os três meses iniciais. Míriam narra sérias dificuldades de se adaptar ao mundo mercantil, com regras e hierarquias que não compreendia ou que considerava muito duras. Embora extremamente hábil em negociações, construção e mobilização de relações sociais, ela não dominava os códigos de conduta do mercado formal de trabalho.

Diante das experiências frustradas e da dificuldade em manter a família, ela reatou o casamento, teve o terceiro filho e voltou a dedicar prioridade às atividades domésticas e de cuidado familiar: “Eu parei de novo para cuidar só das crianças e tô parada até hoje”. Mais uma vez observamos o uso do verbo “parar” e do adjetivo “parada” para descrever um momento da vida em que ela entrelaçava uma ampla gama de atividades de cuidado. Além de seus três filhos, voltou a cuidar de algumas crianças da vizinhança e eventualmente reativava o esquema de corte e venda de cabelos. Desempenhava essas “ajudas” como atividades que implicavam alguma contrapartida que poderia variar em sua natureza e valor. Mas, no mesmo período, Míriam se responsabilizou também pelo cuidado do pai doente e dos sobrinhos pequenos quando sua mãe conseguiu um trabalho como cuidadora profissional. Nesse último caso, nenhuma contrapartida era esperada, ela assumira temporariamente, como filha, uma obrigação familiar da mãe.

O caso de Sílvia, mãe de Míriam, por sua vez, ilumina outro percurso entre configurações do cuidado. Desde que chegou a São Paulo com o marido nos anos 1970, Sílvia se dedicava principalmente ao cuidado da família numerosa, complementando a renda do marido operário com eventuais bicos como lavadeira. Mas, quando a doença do marido afetou seu trabalho na indústria nos anos 1990, as responsabilidades de Sílvia mudaram. Desde então precisava conciliar o trabalho doméstico remunerado com o cuidado do marido doente e do restante da família, principalmente das duas filhas mais novas que tinham problemas com uso de drogas. A dependência química das meninas e todo trabalho de cuidado que essa questão exigia passaram a onerar mais ainda a mãe engolfada na condição de responsável compulsória pelo trabalho de cuidado. Assim, só conseguia assumir bicos de trabalho doméstico sem registro e sem regularidade. Era impossível manter uma rotina de trabalho fora de casa. Sua prioridade era assegurar que o marido e as filhas estivessem sãos e salvos. A comunidade do entorno percebia e se comovia. A família dependia quase totalmente de doações de parentes, amigos e entidades beneficentes. Sendo esposa, mãe e avó de pessoas que demandavam cuidado, Sílvia tinha a responsabilidade moral inegociável de assumir essa função, incumbência que predominava sobre a necessidade de provimento material, mesmo frente a situações de carência. Aqui a atividade de cuidado no seio da família assumia sua faceta de obrigação, a qual Sílvia exerceu durante décadas até que que o afilhado a indicou para um trabalho como cuidadora profissional de um casal de idosos no condomínio onde ele trabalhava como porteiro. Diz ela, sobre a proposta que a pegou de surpresa: “Estavam procurando cuidadora com urgência e ele disse que ía me indicar. Eu falei: ‘não faz isso não que eu nem sei o que é isso’. Daí ele me explicou. Cuidar, né! Daí eu falei para ele ‘já, indica logo para não perder a vaga’”.

Essa senhora que passou a vida inteira se dedicando ao trabalho de cuidado de familiares, pela primeira vez foi registrada, remunerada e reconhecida por tal atividade. Foi quando ela aprendeu o significado da palavra “cuidadora” e percebeu que era portadora de habilidades e competências que poderiam ser ofertadas no mercado de trabalho. Um ano depois de seu primeiro e único registro na carteira profissional, Sílvia foi demitida em razão do falecimento do casal de que cuidava, e nunca mais foi contratada como cuidadora.

A passagem pelo circuito mercantil do cuidado foi breve, mas despertou um enorme orgulho. Do ponto de vista subjetivo, aquela era uma atividade mais nobre e digna do que ela costumava fazer, o que diz das compensações simbólicas e materiais do trabalho remunerado de cuidado. Após a rápida experiência no circuito de cuidado profissional, Sílvia voltou a desempenhar o cuidado como obrigação familiar tal como fizera ao longo de mais de quarenta anos, liberando a filha Míriam da responsabilidade temporária. Sílvia voltou a cuidar de marido, filhas e netos e a buscar bicos em troca de dinheiro ou produtos. Para a vizinhança, prestava diversos serviços domésticos, além de acompanhar animais de estimação ao veterinário e crianças pequenas à escola, fazer a feira para uma vizinha, buscar uma encomenda nos Correios. Sílvia fazia de tudo e recebia pequenas contribuições, geralmente não monetárias. Assim como Míriam, Sílvia chamava de “ajudas” esses bicos, nos quais se incluem atividades de cuidado exercidas fora da família. Observando a história de Sílvia, vemos que toda a sua trajetória foi dedicada ao cuidado. Mais ainda, notamos que ela transitou entre os diferentes circuitos - obrigação, profissão e ajuda - sempre perfazendo as mesmas atividades concretas. Entretanto, só reconheceu como trabalho aquele exercido no âmbito mercantil, fora do ambiente familiar e comunitário.

Quando Sílvia foi demitida e reassumiu seu papel no cuidado familiar, Míriam voltou a se dedicar mais às “ajudas” na comunidade. Durante a pesquisa etnográfica ela desempenhava uma miríade de atividades. Além do cuidado exercido no âmbito familiar que incluía seus três filhos e, eventualmente, o pai doente, Míriam sistematicamente realizava serviços de limpeza e cuidado de crianças para amigas e vizinhas. Como dito, o cuidado familiar não envolvia contrapartida, mas aquele prestado para amigas e vizinhas, sim: presentes, comida ou remunerações monetárias simbólicas. No cuidado prestado a amigas e vizinhas, ademais, o que recorrentemente se denomina como “ajudas” pode assumir configurações que diversas, que ressaltam a variedade de arranjos e contrapartidas.

Como primeiro exemplo, temos um arranjo simples para uma atividade de cuidado regular, entendida como “ajuda”, a qual não envolve remuneração em dinheiro, mas que implica um ganho material. Míriam cuidava do cachorro do vizinho com quem dividia o quintal. O jovem morava sozinho e passava o dia fora, deixando o cão na área externa compartilhada. Míriam dava comida e verificava se o animal estava bem, dava carinho e, se necessário, dava remédio e prestava socorros especiais. Como retribuição o vizinho disponibilizou a senha do sinal de internet, de modo que Míriam não precisava pagar pelo serviço. Essa “ajuda” não envolvia pagamento monetário, mas era considerada por Míriam extremamente vantajosa do ponto de vista material. Para o vizinho também era um acordo muito conveniente.

Um segundo exemplo de “ajuda”, envolve pagamento monetário regular, mas que não é necessariamente considerado mais vantajoso: Míriam prestava ajuda regularmente, e há muitos anos, para Tita, amiga de longa data que é parte de sua rede comunitária de apoio desde os primeiros anos de maternidade. Ela lava e passa roupas da amiga em troca de uma remuneração mensal de R$ 100,00. Essa era a sua única renda monetária fixa à época, e o acordo foi estabelecido considerando que a referida amiga era uma comerciante, dona de uma loja no bairro e considerada a mais bem-sucedida do grupo de amigas de infância. Ela fazia questão de remunerar monetária e regularmente para poder cobrar pela qualidade e pontualidade do serviço: “Tita era exigente”. Ciente de que o valor estava abaixo do preço de mercado, Míriam não se mostrava muito satisfeita, mas via nesse acordo a possibilidade de contar com um valor fixo todo início de mês. Ainda que mais próxima de uma transação mercantil, essa era uma atividade que Míriam colocava sob o mesmo guarda-chuva simbólico de “ajudas”, tal como aquelas prestadas sem contrapartida monetária fixa.

Um terceiro exemplo, uma combinação de atividades associada a uma diversidade de contrapartidas. Para outra grande amiga de infância e parte da mesma rede de apoio entre vizinhas, os arranjos que sustentavam as “ajudas” eram totalmente diferentes. A amiga Leila era faxineira diarista e trabalhava o dia todo durante seis dias por semana; por isso mesmo, dispunha de pouca flexibilidade de horário para atender às necessidades de cuidado familiar e doméstico. Míriam tinha papel fundamental em manter a rotina da família de Leila e fazia para ela todo tipo de serviço como faxina, mercado e feira, além do cuidado das crianças e idosos do grupo: buscava e levava as crianças na creche, mas também acompanhava a mãe idosa em exames, consultas e ao hospital. As atividades, nesse exemplo, eram as mais variadas, mas menos sistemáticas, pois dependiam da necessidade da família de Leila; não havia, por isso mesmo, um acordo fixo. Como contrapartida básica, Leila assumiu o compromisso de oferecer à amiga doações regulares de comida que garantiam parte significativa da alimentação familiar. Doações de roupas, remédios e material escolar, além de presentes para Míriam e suas crianças também entravam na dinâmica dessa relação de “ajuda”. A essas doações se somavam eventuais pagamentos em dinheiro quando Míriam expressava a necessidade de pagar uma conta ou fazer uma compra. Nesses casos, Leila fazia o possível para atender o pedido da amiga e retribuir a “ajuda” prestada da melhor maneira possível. E assim, elas seguiam negociando constantemente as atividades e as contrapartidas que sustentavam o arranjo de “ajuda”, cientes de que essa dinâmica era essencial para ambas: garantia o cuidado da família de Leila e a sobrevivência da família de Míriam.

Nesse conjunto de exemplos, vemos como podem ser fluidas as fronteiras entre trabalho, trocas e reciprocidade (Steiner, 2016STEINER, P. Altruísmo, Dons e Trocas simbólicas. Abordagens sociológicas da troca. São Paulo: Editora Cultura Acadêmica, 2016.; Weber, 2000WEBER, F. Transactions marchandes, échanges rituels, relations personnelles. Une ethnographie économique après Le Grand Partage. Genèses, n.41, p.85-107, 2000., 2002). Tal fluidez faz que os arranjos subjacentes às relações sociais de “ajuda” possam ser constante e facilmente renegociáveis, dando lugar a múltiplas configurações dessa relação de cuidado. O caso de Míriam é, nesse sentido, notável em sua capacidade de exemplar, ao flagrar, numa única trajetória, esse amplo e multifacetado leque. Podemos, igualmente, acompanhar o movimento de (re)configuração desse leque ao longo dos eventos do curso da vida da nossa informante, entrelaçado nas redes de reciprocidade entre familiares e vizinhos, as quais parecem ser tanto mais plurais e efetivas quanto mais ausente se mostra o Estado em suas políticas de cuidado e mais distante se faz o mercado, diante da escassez de rendimentos monetários.

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Notas

  • 1
    As ideias deste texto se beneficiam dos debates por ocasião da Mesa-Redonda 8 “Trabalho, Gênero e Cuidado. (Des)Valorização e Estratégias Coletivas para o Reconhecimento Social e Jurídico do Trabalho Reprodutivo”, XVI Encontro Nacional da ABET - Associação Brasileira de Estudos do Trabalho, Salvador, 5 de setembro de 2019. As autoras agradecem igualmente os comentários e sugestões da Editoria da Estudos Avançados.
  • 2
    Todos os nomes de informantes são fictícios.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    08 Maio 2020
  • Data do Fascículo
    Jan-Apr 2020

Histórico

  • Recebido
    15 Fev 2020
  • Aceito
    11 Mar 2020
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