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Sobre conceitos, historiografia e ideias “fora do lugar”

RESUMO

Entrevista concedida pelo historiador Carlos Guilherme Mota à revista Estudos Avançados em que o historiador aborda aspectos conceituais de sua obra e das obras de Roberto Schwarz e Florestan Fernandes, bem como fatos de sua relação com escritores como Caio Prado Jr., Alfredo Bosi e Emília Viotti da Costa, tendo em vista as questões culturais da realidade brasileira. Ao final, o historiador apresenta um pequeno glossário com termos significativos de seu pensamento e sua obra.

PALAVRAS-CHAVE:
Contraponto à narrativa oficial sobre a Independência do Brasil; 1822: dimensões; Anticomemoração; As ideias fora do lugar; Alfredo Bosi

ABSTRACT

Interview granted by historian Carlos Guilherme Mota to The Studies Avan- çados Journal, in which he addresses conceptual aspects of his own work and those of Roberto Schwarz and Florestan Fernandes, including facts about their relationship with writers such as Caio Prado Jr., Alfredo Bosi and Emilia Viotti da Costa concerning cultural issues of Brazilian reality. At the end, the researcher presents a small glossary with significant terms of his thought and work.

KEYWORDS:
Counterpoint to the official narrative on the Independence of Brazil; 1822: Dimensões; Anti-celebration; Misplaced ideas; Alfredo Bosi

Em entrevista concedida à Estudos Avançados, o historiador Carlos Guilherme Mota, professor emérito da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciên- cias Humanas da USP, discorre sobre algumas de suas obras na oportunidade de se pensar o Brasil em seu momento histórico no Bicentenário da Independência, fazendo um balanço dos 50 anos de publicação de sua obra 1822: dimensões, um importante contraponto à narrativa oficial sobre a independência. O historiador também comenta conceitos de historiografia e os conceitos “fora de lugar” da já clássica formulação do escritor Roberto Schwarz. Num gesto afetivo e pertinente ao tema, narra sua relação com Alfredo Bosi e os fatos que os levaram a se conhecer na biblioteca de Yan de Almeida Prado na Pensão Humaitá entre os anos 1920 e 1930.

Estudos Avançados - Há 50 anos foi publicada a obra 1822: dimensões, organizada pelo senhor. 1 1 A primeira edição é de 1972, pela Perspectiva. A obra oferecia, naquela oportunidade, um importante contraponto à narrativa oficial sobre a Independência do Brasil. Cinco décadas depois, é possível fazer um balanço sobre as principais contribuições da obra, assim como sobre as possíveis lacunas que o conjunto da obra oferece para pensar os 200 anos de Independência do Brasil?

Carlos Guilherme Mota - Sim. O livro 1822: dimensões é anticomemorativo, apesar do título. Coetâneo do impactante livro Brasil em perspectiva, obra referencial, também por mim coordenada e publicada em 1967 na Coleção Corpo e Alma do Brasil, dirigida pelo sociólogo Fernando Henrique Cardoso para a Editora Difel, pelo saudoso editor Paul Monteil. Naquela obra, o prefácio do professor João Cruz Costa sinalizava a abertura do campo da história das ideias, ideologias e mentalidades. Àquela época, esses campos do saber eram pouco prestigiados. Naquele livro, compareceram vários autores novos, ao lado de nomes de historiadores consagrados, como o meu mestre Jacques Godechot, discreto, porém combativo doyen da Faculdade de Letras e Ciências Humanas de Toulouse, ex-participante da Resistência Francesa contra o nazifascismo. É o caso também do notável português literato Joel Serrão, que coordenava o importantíssimo Dicionário da História de Portugal;2 2 Editado em vários volumes pela Editora Figueirinhas, de Portugual. ele foi também um humanista de esquerda, militante crítico do salazarismo. Ambos trouxeram perspectivas novas para análise da Independência: Godechot introduzindo a noção polêmica (menos que um conceito) de “Revolução Atlântica”. E Serrão apresentou, num pano de fundo da História de Portugal, “os remoinhos da Independência”. Curioso é o fato de o excelente subeditor Plínio Martins ter feito, numa só página, painel com seis imagens de Pedro I, todas diferentes, arrebentando o mito autocrático. Qual Pedro ficou, afinal, na imaginação dos leitores?


Os professores João Cruz Costa, Lourival Gomes Machado, Sérgio Buarque de Holanda e Celso Furtado durante arguição em uma banca examinadora de tese na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (USP), em 8 de novembro de 1961.

O livro-coletânea trazia ainda uma cuidadosa análise do Patriarca da Independência, numa visão não oficial de autoria da saudosa Emília Viotti da Costa, absurdamente cassada “por motivos políticos” (segundo a ladainha) pelo trio medíocre de catedráticos direitistas da USP. Escrevi seus nomes execráveis em nossa História do Brasil. Uma interpretação.3 3 Organizado com Adriana Lopez, para a Editora 34. José Bonifácio foi analisado com rigor por Emília Viotti, ele que era anticonvencional e desbocado, mas também homem de ação, tendo se destacado na luta contra as invasões francesas em Portugal, além de ser professor e cientista da Universidade de Coimbra. Revolucionário superconectado na Suécia, na França e em Freiburg etc., defendeu a abolição do tráfico de escravos no Brasil e a integração dos nativos, lembrando sempre que os “indígenas têm direito às terras, pois chegaram aqui muito antes de nós europeus”. Foi exilado na França (em Talence), com seus dois irmãos e familiares, onde sobreviveram com dificuldades. Ao retornar ao Brasil, tornou-se preceptor do menino Pedro, depois D. Pedro II.

Nosso livro inclui ainda análises dos vários aspectos regionais do vasto território que se consolidaria com o nome de “Brasil”.

No final incluímos uma bibliografia comentada. Alguns comentários críticos na bibliografia no final da coletânea feriram a sensibilidade de meu querido ex-professor Sérgio Buarque de Holanda. Enquanto coordenador desse livro, recebi do mestre Buarque resposta dura, porém justa, elegante e sofisticada, como era de esperar. Em relação a mim, ele atenuou, “historiador de mérito”, como saiu inicialmente no jornal O Estado de S. Paulo... Diferentes foram os comentários toscos e grosseiros de Nelson Werneck Sodré, como também era de esperar. O saudoso historiador José Roberto do Amaral Lapa viu na polêmica áspera que havíamos provocado uma saudável “ruptura no pacto do silêncio historiográfico” que amortecia e silenciava a crítica historiográfica no país. Como comentário à crítica do professor Sérgio Buarque respondi utilizando-me do texto de Carlos Drummond de Andrade, intitulado “Os fazendeiros do ar”.4 4 Cf. publicado no jornal O Estado de S. Paulo, 2 set. 1977.

Cinquenta anos depois constata-se que essa obra serviu, quando menos, para abrir comportas no estagnado reservatório-pesqueiro da Historiografia brasileira... Mas não promoveu uma profunda revisão conceitual, como seria de esperar. Afinal, como pontuou recentemente o historiador salmantino José Manuel Santos Perez, do Centro de Estudios Brasileños da Universidade de Salamanca, a respeito do conceito de Independência: “la independencia no fue uma revolución, sino más bien una contra-revolución”. Santos Perez aprofundou seu comentário ao afirmar que a independência não foi tampouco um movimento popular, pois “la liberación: excluyó la gran parte de la población, sobretodo a los esclavizados, indígenas, población pobre, mujeres y a todos que cuestionavam la ideologia dominante del proceso”. E conclui o historiador de Salamanca: “La independencia no fue un relato inevitable de hechos”.

Passados 50 anos, nota-se que tais artigos carregam valores e critérios muito desiguais. Nada obstante abriram novas inquietudes teóricas, a começar pelo estudo dos conceitos de classe, de Ideologia, de Independência (e de dependência!!!), descolonização, de Sociedade Civil, Estado, e sobretudo de Sociedade (de Estamentos? de Classes? de Castas?), e os conceitos-chave de Processo, Sistema e Estrutura, que balizaram a orientação dada por este coordenador. Do mesmo modo, igualmente, as análises regionais passaram a ser investigadas com maior cuidado, com algum rigor.

Naqueles anos, eram intensos os embates entre estruturalistas e marxistas que atingiram o paroxismo. A tal ponto que Darcy Ribeiro, com humor imbatível, chegou a dizer numa divertida blague que “Claude Lévy-Strauss não gostava de índios: o que ele gostava mesmo era de ‘Estruturas’”...

Em síntese, na coletânea encontram-se textos lapidares e outros menos satisfatórios. Mas não é normal numa coletânea com historiadores de tão diferentes gerações, quadrantes e formações?

EA - Entre 1950 e 1970 a industrialização do Brasil parecia ser a aposta política para garantir a plena soberania econômica nacional, a “plena Independência” do Brasil. As promessas sugeridas pelo projeto de industrialização, contudo, foram desfeitas com as evidências da ampliação da desigualdade brasileira, assim como da dimensão da crise econômica do país nas décadas seguintes. Por isso mesmo, CelsoFurtado (1974FURTADO, C. O mito do desenvolvimento econômico. São Paulo: Paz e Terra, 1974.), em O mito do desenvolvimento, defendia: “A conclusão geral que surge dessas considerações é que a hipótese de generalização, no conjunto do sistema capitalista, das formas de consumo que prevalecem atualmente nos países cêntricos, não tem cabimento dentro das possibilidades evolutivas aparentes desse sistema [...]. Temos assim a prova definitiva de que o desenvolvimento econômico - a ideia de que os povos pobres podem algum dia desfrutar das formas de vida dos atuais povos ricos - é simplesmente irrealizável [...]. Cabe, portanto, afirmar que a ideia de desenvolvimento econômico é simplesmente um mito”. É possível afirmar que, nos dias atuais, esse projeto de soberania econômica de décadas atrás, seguindo o diagnóstico pessimista de Celso Furtado, é completamente anacrônico, irrealizável? Qual seria um possível caminho para produzir dessa “plena Independência”?

CGM - Não creio que seja excessivo, inoportuno, mesmo procurar-se compreender “o presente histórico como superposição e recombinação de camadas históricas”. Houve um tempo em que os determinismos econômicos, biológicos, geográficos etc. pareciam carregar “certezas” para o encaminhamento das pesquisas. Ah! O passado, o passado... De todo modo, a reconceituação do que deve ser o passado já não deve ser (nem é) trabalho apenas para os historiadores e cientistas laborarem, mas também o é para filósofos como Michel Foucault; etnógrafos como Roger Bastide; economistas como Celso Furtado; mas também literatos. Vale notar que a problemática da inter, trans e multidisciplinaridade provocou a implosão epistêmica das várias disciplinas.


Caio Prado Júnior, 1956.

“A realidade passou a ser considerada como a síntese de múltiplas determinações”, como escrevi há algum tempo. Mas foi o grande escritor William Faulkner quem resolveu melhor a questão, ao escrever, quando esteve em São Paulo nos anos 1950, hospedado no Hotel Terminus, na Avenida Ipiranga: “O passado nunca morre; ele nem é passado”.

No caso da História do Brasil, os problemas relativos ao seu passado e à enormidade das dimensões do país, e portanto de suas historicidades, Caio Prado Júnior, historiador paulistano, geógrafo e filósofo, foi quem fez, em minha casa, sorvendo comigo e sua mulher Cecília um ótimo vinho chileno (Concha y Toro), a grande síntese, algo desesperançado, poucos meses antes de falecer: “O Brasil é muito atrasado”, disse... Mirou-me e prosseguiu soturnamente: “Muito”. E mais não disse...

Continuei conversando: “Caro Caio (assim eu o chamava (democraticamente), e sobre a História do Brasil, qual sua visão?”. Seu olhar atravessou minha pessoa, fixando-se num ponto distante: “A História do Brasil? Sempre foi um negócio”. “Toda, Caio??”, perguntei. “Sim toda...”. E mais não disse.

EA - O senhor considera a realidade como superposição e recombinação de camadas históricas?

CGM - Nas realidades históricas, sim. Note que, sobretudo no caso da História do Brasil contemporâneo, há ainda hoje muitas remanescências do sistema colonial e do Brasil imperial nas formas de organização social (escravidão pesada, por exemplo), bem como nos modos de organização urbana, familiar, econômica, política e muitos etc...

EA - A pergunta que não quer calar: o que pensa de As ideias fora do lugar?

CGM - Tal formulação foi um achado brilhante de meu amigo Robert Schwarz, pois retirou as pesquisas em Ciências Humanas do esquematismo das visões de mundo que se embalavam na dicotomia que “tudo explicava”: “superestrutura e infraestrutura”, sendo o primeiro conceito mero reflexo... Tal mecanicismo reducionista secava qualquer iniciativa, arroubo ou devaneio que conduzisse a reflexão e a pesquisa para esferas da realidade menos identificáveis ou palpáveis, como ideologias, pinturas, sonhos, mentalidades, ideias etc. Era o fim da “imaginação sociológica”, título da obra clássica de Wright Mills, mas também serve para a imaginação histórica, literária etc. Descobriu-se com o tempo, e com Gaston Bachelard, que a palavra “reflexo”, aliás ainda hoje em uso em algumas disciplinas, era totalmente inoperante, funcionando apenas a noção (menos que conceito!) como base para as “formas de pensamento” (no sentido que lhe conferiu Karl Mannheim) congeladas”.

EA - No ensaio intitulado “Por que ideias fora do lugar”, RobertoSchwarz (2012SCHWARZ, R. Por que “ideias fora do lugar”? In: ___. Martinha versus Lucrécia. São Paulo: Companhia das Letras, 2012) argumenta que não só a experiência local pode ser avaliada à luz do presente mundial - como é praxe na produção acadêmica e intelectual brasileira -, mas também o oposto, ou seja, que a avaliação do presente mundial pode ser considerada à luz da experiência local. Gostaríamos que o senhor explorasse essa segunda possibilidade. Que caminhos o senhor considera mais fecundos para uma contribuição original e relevante acerca do presente global, tendo por base a experiência brasileira?

CGM - Ideias fora do lugar? Talvez seja melhor darmos um passo à frente, considerando que talvez “o Lugar é que esteja fora do mundo”. Basta ler alguns livros ou apenas artigos de Jacques Derrida, Michel Foucault, Deleuze e toda a floração filosófica surgida após Jean-Paul Sartre (Questão de Método foi traduzida para o português pelo brilhante e saudoso filósofo Bento Prado Junior, aliás o melhor interlocutor de Robert Schwarz), e de Merleau-Ponty.

O termo “influência” (influenza), adotado pelos liberais, merece a mesma exclusão (ou apagamento onde quer que surjam) em que ocorre a do termo “reflexo”, apreciado pelos marxistas dogmáticos, nos textos filosóficos que pretendam algum rigor.

EA - Publicado em 1992,Dialética da colonizaçãoconfigura um dos momentos centrais da obra e do pensamento de Alfredo Bosi (1936-2021). O livro marcou a história do pensamento brasileiro a exemplo de clássicos de outros autores como Celso Furtado, Raymundo Faoro e Florestan Fernandes, entre outros. Quais contribuições dessa obra poderiam ser destacadas como as mais importantes no seu ponto de vista como historiador?

CGM - Uma pequena história pessoal com Alfredo Bosi. Chegamos finalmente, à biblioteca da Pensão Humaitá, propriedade do “doutor” Yan de Almeida Prado, situada à Rua Brigadeiro Luís Antonio, ponto de reunião de uma fração da elite aristocrática de São Paulo nos anos 1920 e 1930 e um pouco mais, em que se degustavam finas iguarias e vinhos grand cru de marca, e utilizavam-se dos bons ofícios de um encadernador que era genitor do futuro professor de Literatura da USP, o notável intelectual Alfredo Bosi.

Certa vez, já íntimo dele, indaguei-lhe como havia arquitetado tão sofisticada visão de Literatura, de História Literária multidisciplinar, ademais com excelente informação sociológica, psicológica e domínio da língua italiana; e com tão sólida formação alimentava sua visão de mundo acentuadamente e, quando menos, progressista. Alfredo Bosi escrevera um prefácio caudaloso, crítico e corajoso para meu livro Ideologia da cultura brasileira, situado na contracorrente historiográfica e muito crítico das visões oligárquicas sobre a chamada cultura Brasileira. Bosi respondeu-me de modo singelo.

Às vésperas da defesa da tese de Livre-Docência na Faculdade de Filosofia, e tendo em vista que havia bons motivos para reprovação ou não aceitação ou (quando menos) mau-humor por parte dos examinadores, procurei Alfredo nos baixios do restaurante precário da Administração. Ele estava almoçando dois ovos fritos com arroz. Eu lhe falei de meus temores, ao que ele respondeu com a alma suave e olhar fraterno: “Carlos, você chegou até aqui. Sua tese é polêmica, e você sabe disso. Seja fiel a este seu momento!”.

Em outro momento, Alfredo narrou-me algo que muito me marcou: “Meu pai era o encadernador que visitava o palacete e a biblioteca do doutor Yan de Almeida Prado aos sábados, para buscar livros para encadernação e/ou trabalhar no seu nobre ofício artesanal na biblioteca do Dr. Yan. Como nós entrávamos pela porta dos fundos com outros serviçais, eu era levado de mãos dadas com meu pai, que me guiava, e assim eu ia me familiarizando com os autores e alguns títulos das obras de Camões, Cervantes, Shakespeare, Montaigne... Naturalmente não estavam catalogadas e postas nas prateleiras de A a Z, mas depois sim, de Z a A. Desse modo, fui tomando conhecimento da história cultural, sobretudo literária, e vendo os livros em geral, de trás para frente. Ou seja, adquiri” - disse-me Alfredo - “o gosto nesses primeiros contatos mais sérios com livros, ademais encadernados com cuidados e esmero por meu pai”. E mais, uma visão com perspectiva histórico-bibliográfica contrária, ou quando menos divergente, daquela do comum dos mortais.


Florestan Fernandes, 1960.

Em síntese, aqui retorna e novamente entra a temática das ideias fora do lugar. De certo modo, Alfredo Bosi, como seu colega literato e crítico Robert Schwarz, seria tão-somente portadores de ideias fora do lugar se não houvessem voltado suas inteligências e olhares para o “Brasil-Problema-Irresolvido” e elaborado ferramentas para destrinçar esse “frango congelado com angú de caroço”.

Uma pausa: antes de procurarmos onde as ideias estão fora do lugar, mais produtivo será fazer notar que “o Brasil é que estava e está fora do mundo”. Ou como escreveu Caetano Veloso: “alguma coisa está fora da ordem mundial”. Por certo referindo-se à Pátria amada Brasil...

Continuemos agora com Schwarz. Com ele minha convivência era menos frequente, porém muito fraterna. Certo dia, minha amiga Emília Viotti perguntara-me se eu ainda tinha a perua Kombi espaçosa de meu pai. Disse-lhe que sim, no que, ato contínuo, ela solicitou-me que a ajudasse a transportar os livros de Schwarz, muitos em língua alemã, do apartamento dele para o dela, em que eu estava hospedado. Foi uma situação em que a ideias contidas em tantos livros estavam de fato fora do lugar. Ajudei-a a transportá-los com algum prazer, pois era pedido de uma professora de alta qualidade. E amiga.

EA - Ao comentar seu livro de 2008, História do Brasil: uma interpretação, o senhor afirma “Nosso objetivo então se clarificou, qual seja, o de compreender o presente como o resultado de uma superposição e recombinação de camadas históricas”. A personagem central da obra, segundo sua própria análise, é o modelo autocrático-burguês, conceito de Florestan Fernandes, dos confrontos e pactos das elites, em que a “transação” de José Justiniano da Rocha prevalecia sobre as possibilidades de reformas. Esse pode ser considerado o elemento de longa duração de nossa história? E agora, “os avanços aparentes modernizantes” de outrora foram abandonados de vez para a plena realização dos “regressismos perturbadores”?

CGM - Tal modelo foi teorizado nas décadas anteriores pelo professor sociólogo e historiador Florestan Fernandes, constando de seu livro A Revolução Burguesa no Brasil. Tal modelo está em vigência, mas nem no governo de FHC, nem do de Lula da Silva ou de Dilma Rousseff foi sequer discutido, debatido e analisado consequentemente. Há estudos críticos dessa obra luminosa, fundamental para a compreensão dos últimos governos recentes, e impasses do Brasil contemporâneo. Cito sobretudo a revista Estudos Avançados n.10, v.26, de 1996 em homenagem a Florestan Fernandes,5 5 Disponível em acesso aberto na biblioteca eletrônica Scielo - Scientific Electronic Library Online. em que estão incluídas análises de Alfredo Bosi, Antonio Candido, entre outros, e meu artigo “Presença de Florestan no IEA”.

    Glossário
  • Modelo autocrático  -burguês- Conceito cunhado por Florestan Fernandes, que engloba as várias dimensões da realidade, sem priorizar algumas delas. As interconexões não têm valor ou peso especial, nem há predomínio de uma esfera da realidade sobre outra. Entretanto cabe um papel maior no plano político de coordenação, marcado pelo autoritarismo. É modelo autocrático-burguês, e não democrático-burguês.
  • Historiografia  - Disciplina que caminha junto, por vezes à frente da produção dos Estudos Históricos (ou de qualquer outro campo que contemple a historicidade do objeto estudado), analisando as obras, seus conteúdos, bem como as teorias e metodologias dos autores utilizados. Simplificadamente, pode ser entendida como “a História da História”. Frequentemente aparece nas introduções de estudos em que se fazem análises de autores que escreveram “antes”... e comparecem nos levantamentos bibliográfico prévio.
  • Reflexo  - Noção (não propriamente conceito analítico) emprestada das Ciências ditas Exatas, porém muito utilizada em estudos marcados pelo marxismo dogmático e mecanicista, ou em optometria, física fotografia e astronomia etc. Do ponto de vista epistemológico, tem pouca ou nenhuma sustentação, porque não é possível utilizá-lo com rigor em análises de processos, sistemas e estruturas no campo das Humanidades.
  • Influência  - É outra noção (e não conceito analítico) muito utilizada em estudos marcadamente liberais, sendo confundido frequentemente com a palavra influenza.

Referências

  • BOSI, A. Dialética da colonização. São Paulo: Cia. das Letras, 1992.
  • FERNANDES, F. A Revolução Burguesa no Brasil: Ensaio de interpretação sociológica. 6.ed. São Paulo: Contracorrente, 2020.
  • FURTADO, C. O mito do desenvolvimento econômico. São Paulo: Paz e Terra, 1974.
  • MOTA, C. G. Brasil em perspectiva. Corpo e alma do Brasil. São Paulo: Difel, 1977.
  • _______. (Org.) 1822: dimensões. 3.ed. São Paulo: Perspectiva, 2012.
  • _______. Ideologia da cultura brasileira (1933-1974). São Paulo: Editora 34, 2014.
  • MOTA, C. G.; LOPEZ, A. História do Brasil. Uma interpretação. 5.ed. São Paulo: Editora 34, 2016.
  • SCHWARZ, R. Por que “ideias fora do lugar”? In: ___. Martinha versus Lucrécia. São Paulo: Companhia das Letras, 2012
  • _______. As ideias fora do lugar. São Paulo: Cia. das Letras; Penguin, 2014.

Notas

  • 1
    A primeira edição é de 1972, pela Perspectiva.
  • 2
    Editado em vários volumes pela Editora Figueirinhas, de Portugual.
  • 3
    Organizado com Adriana Lopez, para a Editora 34.
  • 4
    Cf. publicado no jornal O Estado de S. Paulo, 2 set. 1977.
  • 5
    Disponível em acesso aberto na biblioteca eletrônica Scielo - Scientific Electronic Library Online.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    13 Maio 2022
  • Data do Fascículo
    May-Aug 2022

Histórico

  • Recebido
    25 Mar 2022
  • Aceito
    11 Abr 2022
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