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Ciência, evolução e educação em Herbert Spencer

RESUMO

As ideias do britânico Herbert Spencer (1820 a 1903) abrangeram diferentes áreas do conhecimento e, em sua época e para além dela, influenciaram discursos políticos reformistas pelo mundo, a saber: importância da ciência e de seu ensino nas escolas; contrariedade da interferência do estado na vida dos indivíduos; otimismo em relação ao progresso; seleção por competência; teoria evolucionista da sociedade. Sobre a educação advogou a existência de uma hierarquia de atividades: 1ª) conservação própria; 2ª) necessárias à conservação própria; 3ª) disciplina dos filhos; 4ª) procedimentos sociais e relações políticas; 5ª) restante da vida (gostos e sentimentos). Consideramos que a compreensão das ideias de Spencer favorece o entendimento do mundo histórico desde o final do século XIX até primeiras décadas do século XX, mas também permite refletir sobre questões importantes da atualidade.

PALAVRAS-CHAVE:
Herbert Spencer; Ciência; Evolução; Educação

ABSTRACT

The ideas of the English intellectual Herbert Spencer (1820-1903) encompassed different areas of knowledge and, in his time and beyond, influenced reformist political discourse all over the world, including topics such as the importance of science and its teaching in schools, opposition to State interference in individuals’ lives, optimism in relation to progress, selection through competence, and an evolutionary theory of societal development. Regarding education, he advocated the existence of a hierarchy of activities: 1) self-preservation, 2) those necessary for self-preservation, 3) discipline of children, 4) social procedures and political relationships, and 5) the rest of life (preferences and feelings). Grasping Spencer’s ideas promotes an understanding of the historical world from the end of the nineteenth century to the first decades of the twentieth century, and also enables reflection on issues of current importance.

KEYWORDS:
Herbert Spencer; Science; Evolution; Education

Introdução

Alguns autores são incontornáveis no âmbito da análise histórico-educacional, dado que suas ideias tiveram capacidade de animar debates, políticas e ações no mundo histórico de sua época, com algumas delas a persistir influentes por longo tempo, o que acreditamos seja o caso do intelectual britânico que abordaremos no presente artigo, Herbert Spencer.1 1 Herbert Spencer nasceu em Derby, Inglaterra, em 1820, em uma família de defensores de John Wesley. Seu avô era diretor de escola e seu pai era um homem com ideias religiosas e sociais obstinadas. Teve sua educação negligenciada até os 13 anos, quando foi enviado para Bath, a fim de viver com seu tio, padre, pensador radical e antigo membro da Universidade de Cambridge. Em 1837, foi assistente de diretor de uma escola em Derby, de onde saiu para assistir e secretariar engenheiros vinculados à construção da Estrada de Ferro Londres-Birmigham. Depois, tornou-se secretário da seção de Derby do movimento sufragista e, em seguida, subeditor do jornal da organização (The Pilot). Em 1848, tornou-se subeditor do Economist, onde conheceu diversos intelectuais importantes. Em 1850, publicou “Estática social ou as condições da felicidade humana”. Em 1852, defendeu a teoria da evolução orgânica, em artigo intitulado “Hipóteses do desenvolvimento”, sete anos antes da publicação de A origem das espécies de Darwin. Em 1855, escreveu Os princípios da Psicologia, com sua psicologia evolucionista. Em 1861, reuniu quatro artigos anteriormente publicados em uma única obra Educação - intelectual, moral e física, que teve grande difusão e influenciou processos de renovação educacional em várias partes do mundo. Ainda na década de 1860, anunciou o “Sistema de Filosofia Sintética”, no qual publicou: Primeiros Princípios (1862); Princípios da Biologia (1864-1867); Princípios da Sociologia (1876-82-96); Ética (1879), Princípios da Ética (1892-1893). Em 1884, publicou O indivíduo contra o Estado, que também obteve grande difusão internacional. Em 1904, um ano após sua morte, teve publicada a obra Autobiografia (Batho, 2008; Japiassú; Marcondes, 1991).

Suas ideias ganharam o mundo, para além do período no qual ele viveu, entre 1820 e 1903, com repercussões tanto em seu país natal quanto em âmbito internacional. Muitas reflexões realizadas por Spencer tornaram-se frequentes em discursos políticos, acadêmicos e educacionais pelo mundo, a saber: a importância da ciência e de seu ensino nas escolas (via vivência experimental); a contrariedade em relação à interferência do Estado na vida dos indivíduos; o otimismo em relação ao progresso (via seleção por competência); a formulação da teoria evolucionista da sociedade.

No caso brasileiro, poderíamos destacar a influência de Spencer, por exemplo, nos pareceres redigidos por Rui Barbosa na década de 1880 (Lucas; Machado, 2002LUCAS, M. A. O. F.; MACHADO, M. C. G. A influência do pensamento de Herbert Spencer em Rui Barbosa: a ciência na criação da escola pública brasileira. Educação em Foco, Juiz de Fora, v.7, p.137-52, 2002.) e no texto do Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova, de 1932, onde se advoga: a importância da ciência para a sociedade e de seu ensino nas escolas; as leis da evolução social; a preparação da hierarquia democrática por meio da hierarquia das capacidades (Azevedo, 2010AZEVEDO, F. et al. Manifestos dos pioneiros da Educação Nova (1932) e dos educadores (1959). Recife: Editora Massangana, 2010.).

Este artigo está dividido em três seções, além desta introdução. Primeiramente, o contexto sócio-histórico de emergência da sociedade industrial e das posições do autor sobre ciência e evolução. Em seguida, os impactos dessas ideias na teoria social e política evolucionista. Depois, o estabelecimento de uma hierarquia de saberes em meio a elaboração de sua influente concepção educacional. Ao final, tecemos considerações que procuram alcançar o tempo presente.

Ciência, sociedade industrial e teoria da evolução social

O mundo histórico habitado por Herbert Spencer compreende o Reino Unido na segunda metade do Século XIX, no qual se configurou a sociedade industrial, beneficiária dos avanços científicos que foram a base das inovações tecnológicas por detrás do incremento da produtividade e da efetividade da força de trabalho.

O facto fundamental que caracteriza e determina a sociedade nos começos do século XIX é a indústria. Da indústria esperava-se a realização das potencialidades e ideias do homem; da organização científica do trabalho que ela proporciona esperava-se a organização da sociedade; e o processo industrial, com a sua ideologia, estava destinado a constituir o factor integrador da nova ordem social. Como escreve Saint-Simon, a “sociedade como um todo baseia-se na indústria. A indústria é o único garante da sua existência e a única fonte de riqueza e de prosperidade. O estado de coisas mais favorável à indústria é, por conseguinte, o mais favorável à sociedade. Isto constitui, tanto o ponto de partida, com a meta de todos os nossos esforços”. (Navarro Cordon; Calvo Martinez, 1983, p.21-2, grifos dos autores)

Foram igualmente relevantes os desafios que se colocaram pela sociedade industrial, com a passagem da oficina à indústria e da vida privada à vida pública profissional (Prost, 2006PROST, A. Fronteiras e espaços do privado. In: PROST, A.; VINCENT, G. História da Vida Privada: da Primeira Guerra a nossos dias (v.5). 5ª. reimp. São Paulo: Cia. das Letras. 2006. p.13-153.), o que animou debates no âmbito da teoria social, ao qual se agregou a ideia de evolução que, naquele momento, apresentava-se como uma reviravolta nos preceitos criacionistas, com a ciência a tomar protagonismo na explicação da vida em sociedade.

A novidade que o século XIX trouxera foi a incorporação da história na natureza, através das ideias de evolução e de que o determinismo presente no mundo natural seria o mesmo que rege o desenvolvimento da humanidade. A esta foi dado estágios de desenvolvimento. Todos buscavam assim descobrir a lei que rege o progresso, que determina a evolução. Em Comte, ela estava na forma da lei dos três estados; em Darwin e Haeckel, ela estava na aptidão à sobrevivência; em Spencer, na evolução do homogêneo para o heterogêneo. Percebemos com isso que os cientificistas daquele século buscavam descobrir na verdade a lei que rege o conceito kantiano basilar do projeto moderno iluminista, o progressus mundano, substituto do profectus espiritual do qual fala Koselleck. (Vital, 2015VITAL, D. L. Iluminismo e revolução nas ideias e nas práticas políticas da “ilustração” brasileira. Juiz de Fora, 2015. Dissertação (Mestrado em Educação) - Instituto de Ciências Humanas, Universidade Federal de Juiz de Fora., p.105)

Nessa direção, a ideia de Spencer, da evolução do homogêneo para o heterogêneo, teve grande repercussão. Segundo Rocha (2000ROCHA, A. P. S. G. Herbert Spencer. Da divergência ao evolucionismo. Uma Educação para a Modernidade. Lisboa, 2000. Dissertação (Mestrado em Ciências Sociais e Humanas) - Universidade Nova de Lisboa., p.45), “a relevância intelectual do teórico repousa, indubitavelmente, na independência de pensamento, a qual se revelou através do raciocínio isento de grilhões religiosos ou de recurso ao transcendente na elaboração das suas teorias”.

Ao mesmo tempo, segundo Salgueiro (1939SALGUEIRO, E. Nota. In: SPENCER, H. Do progresso. Sua Lei e sua Causa. Lisboa: Editorial Inquérito, 1939., p.7), Spencer era “um filósofo singular que nada deve às universidades - que não frequentou - nem ao chamado ensino clássico, que nunca recebeu. Spencer é apontado como um argumento decisivo contra os que subordinam o ensino clássico toda a disciplina mental e tôda a capacidade dum labor verdadeiramente sistemático”.

As críticas que se dirigiam a Spencer, em grande medida, eram provenientes do fato de que ele não possuía formação acadêmica. Além disso, em relação às suas obras também era observado que não havia preocupação do autor em demonstrar a leitura de contribuições de outros intelectuais a respeito dos temas aos quais se dedicava.

Spencer escreveu seu primeiro livro, Estática Social sem ter lido nenhum tratado ético além de um velho e agora esquecido livro de Jonathan Dymond. Quando escreveu sua Psicologia lera apenas Hume, Mansel e Reid. Biologia foi escrito após ter lido somente a Fisiologia Comparativa, de Carpenter (e não a Origem das Espécies). Sua Sociologia ignorava Comte e Tylor. Sua ética desconhecia Kant, Mill, e todos os outros moralistas, afora Sedgwick. (Durant, 1981DURANT, W. A Filosofia de Herbert Spencer. Rio de Janeiro: Ediouro, 1981., p.20)

Em muitas oportunidades foi apontado por seus críticos como um autor que carecia de originalidade e de diálogo com seus contemporâneos nos diversos campos científicos para os quais formulou contribuições, todavia

Spencer conquistou a notoriedade e o reconhecimento do meio intelectual vitoriano nos campos aos quais se dedicou, em virtude de revelar uma riqueza doutrinária e conceptual considerada exclusiva. A sua relevância resultou, assim, tanto da amplitude da filosofia por ele edificada, como do contributo facultado a áreas como a biologia, a sociologia, a psicologia ou a antropologia finisseculares. Classificado por muitos como um segundo Newton, teve várias obras editadas e vendidas em inúmeras línguas, com excepcional resposta por parte do público, em países dos cinco continentes. Apesar de ter desenvolvido o trabalho fora das academias e de se encontrar amiúde em confronto com o espírito académico, muitas honras lhe foram concedidas por entidades universitárias, científicas e governamentais, porém, o espírito independente levou-o a declinar a maior parte. Grande número dos modelos, ideias, conceitos e teorias por ele defendidos e propostos, como reformas essenciais ao acompanhamento da mudança dos tempos e a bem da prosperidade e do progresso, fazem atualmente parte integrante da sociologia e da filosofia modernas, embora não tenha havido, até aos nossos dias, preocupação em lhe atribuir a respectiva paternidade por parte de muitos autores de obras sobre a cultura dos séculos XIX e XX. Todavia, algum interesse pelo pensamento de Spencer tem vindo a ressurgir nas últimas duas ou três décadas. (Rocha, 2000ROCHA, A. P. S. G. Herbert Spencer. Da divergência ao evolucionismo. Uma Educação para a Modernidade. Lisboa, 2000. Dissertação (Mestrado em Ciências Sociais e Humanas) - Universidade Nova de Lisboa., p.39-40)

O evolucionismo spenceriano também foi nomeado darwinismo social. De fato, é do autor britânico “a expressão ‘sobrevivência dos mais aptos’”, e ele considerava a filosofia a ciência das ciências, por suas qualidades generalizantes, com grande preocupação com o processo de diferenciação, com a mudança de uma condição homogênea para uma condição heterogênea (Batho, 2008BATHO, G. R. Herbert Spencer, 1820-1903. In: PALMER, J. A. 50 Grandes Educadores: de Confúcio a Dewey. São Paulo: Contexto. 2008. p.150-4., p.152).

As obras de Spencer impactaram em diversas áreas do conhecimento, tais como antropologia, economia, ética, religião, psicologia, sociologia, filosofia e literatura, e no fim do século XIX e nos anos iniciais do aéculo XX, Spencer despontava como um aguerrido defensor do estudo científico.

Newton e Herschel haviam trazido as estrelas à Inglaterra, Boyle e Davy tinham aberto os tesouros da química. Faraday realizava as descobertas que iriam eletrificar o mundo. Rumford e Joule demonstravam a transformabilidade e equivalência da força e a conservação da energia. As ciências atingiam um tal grau de complexidade, que uma síntese se fazia necessária. Mas acima de todas essas influências intelectuais, que agitavam a Inglaterra na juventude de Herbert Spencer, estava a teoria da evolução. A ciência desenvolvia essa doutrina em plano internacional. Kant falara na possibilidade dos macacos se transformarem em homens; Goethe escrevera sobre a metamorfose das plantas; Erasmo, Darwin, e Lamarck propuseram a teoria de que as espécies haviam evoluído desde as formas mais simples pelo processo de seleção. E, em 1830, Sr. Hilaire chocou a Europa e alegrou o velho Goethe, quando quase triunfou sobre Cuvier, naquele famoso debate sobre a evolução. (Durant, 1981DURANT, W. A Filosofia de Herbert Spencer. Rio de Janeiro: Ediouro, 1981., p.14-15)

Nessa direção, na segunda metade do século XIX, no exame das ideias de Spencer verificamos influências fundamentais de Comte e Darwin, no que concerne as convergências, mas também, as divergências de Spencer para com estes autores. Para ele:

[...] a filosofia é o saber totalmente unificado, e na evolução deve buscar-se a lei fundamental do universo. O primeiro estado universal é massa homogênea, informe confusa. É a fase nebulosa, que se diferencia pela condensação, que dá origem ao sistema planetário em que a Terra se integra, inicialmente em estado ígneo. Pela marcha contínua do homogêneo para o heterogêneo, os seres tornam-se cada vez mais diferenciados e complexos. A sua existência, relacionada com os meios de conservação, desenvolve-se submetida a permanente luta, em que triunfam os mais aptos. (Spencer, 1939_______. Do progresso. Sua Lei e sua Causa. Lisboa: Editorial Inquérito, 1939., p.8-9)

A partir desse norteamento, Spencer buscou desenvolver categorias de análise relacionadas ao desenvolvimento de diferentes conceitos, a saber: evolução, estado, sociedade e indivíduo, pois, para ele, “a evolução é um progresso e, além do mais, um progresso necessário que, no que se refere ao homem, terminará só com a maior perfeição e a mais completa felicidade” (Abbagnano, 1970ABBAGNANO, N. Dicionário de Filosofia. São Paulo: Mestre Jou. 1970., p.376).

Ao fundamentar suas teorias no estudo das ciências Spencer enfatizou a Biologia, de modo a conjugar a busca de explicar os problemas sociais e econômicos de acordo com os princípios do liberalismo, por meio de um raciocínio que percebia o organismo social em consonância com o modelo de funcionamento de um organismo individual.

Não satisfeito com o estudo aprofundado das questões, Spencer partiu para a construção de uma teoria unificadora do conhecimento, por acreditar na possibilidade de todos os aspectos do pensamento poderem ser conjugados num sistema coerente e interligado. Ao arquitetar esse plano filosófico coligativo do saber, a partir do conceito de “evolução”, conquistou a respeitabilidade dos pares. Todavia, não se revelando um intelectual de cariz inovador em muitas das matérias em que se debruçou, imprimiu, apesar de tudo, um cunho pessoal, muito apreciado pelos leitores, na defesa dos seus ideais que oportunamente captaram e veicularam o espírito da era vitoriana, então permeável às inovações do progresso sentidas como benéficas. Thomas Henry Huxley, outro proeminente defensor do estudo científico [...], e com quem tinha relações estreitas, considerá-lo-ia um pensador singular pela determinação empregue na conjectura e na defesa de ligações entre todas as formas do conhecimento. Inegável seria também a magnitude de Spencer como divulgador da ciência, apesar de não ter sido, stricto sensu, um cientista, mas antes um panegirista e pensador sobre os meandros da ciência. (Rocha, 2000ROCHA, A. P. S. G. Herbert Spencer. Da divergência ao evolucionismo. Uma Educação para a Modernidade. Lisboa, 2000. Dissertação (Mestrado em Ciências Sociais e Humanas) - Universidade Nova de Lisboa., p.39)

Observamos uma relação intrínseca nas concepções do autor entre o biológico e o sociológico, com o desenvolvimento de seu trabalho focado no evolucionismo social. Formulou pressupostos quanto à teoria da evolução desde o cosmos, dos organismos vivos, até chegar ao ser humano, que de modo finalístico acabou por concluir que os pressupostos que eram aplicáveis à natureza também seriam pertinentes à história da cultura humana, pois “Spencer admitia haver encontrado a fórmula única segundo a qual nascem e se desenvolvem os fenômenos de todos os tipos: desde os mecânicos até os fatos biológicos, psicológicos e sociais” (Rosa, 1971ROSA, M. G. A História da Educação através dos textos. São Paulo: Cultrix, 1971., p.267). Essa análise de Spencer,

[...] se funda essencialmente em uma visão realista, a qual considera que a evolução se dá objetivamente, independente da presença de sujeitos ou observadores, e que atribui valores de verdade para suas leis gerais, como na transformação do homogêneo em heterogêneo. [...] acredita que suas teses gerais abrem caminho para uma ciência positiva da mente, fundamentada em leis naturais e privilegiando aspectos fisiológicos em detrimento dos metafísicos. Spencer apresenta com certa regularidade argumentos a favor do realismo enquanto contraposto ao idealismo. (Baiardi, 2008BAIARDI, D. C. Conhecimento, evolução e complexidade na filosofia sintética de Herbert Spencer. São Paulo, 2008. Dissertação (Mestrado em Filosofia) - Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo., p.31)

Nesse contexto, desenvolveu um sistema filosófico denominado evolucionismo spenceriano, em um modelo que confere, segundo Burke (2002BURKE, P. História e teoria social. São Paulo: Editora Unesp, 2002., p.183-4) “ênfase à evolução social, ou seja, a mudança social que ocorre de maneira gradual e cumulativa (‘evolução’ por oposição a ‘revolução’) e é determinada essencialmente a partir de dentro (processo ‘endógeno’ por oposição a ‘exógeno’)”. Para Spencer, essa análise pressupõe que

[...] o universo evoluciona e evolucionar é progredir; progride, no seu conjunto, como progridem as células, que o constituem ou habitam. E sendo a causa determinante desse progresso, em todas as ordens, - astronômica, geológica, orgânica, social, econômica, etc. - comum a todas elas, deve haver um caráter comum a todas elas, deve poder exprimir-se em função deste atributo; deve haver um caráter comum a todas as transformações. A contínua passagem do homogêneo para o heterogêneo deve assentar numa lei que pode determinar-se da transformação e enunciar-se deste modo: toda a causa produz mais de um efeito, ou toda força ativa produz mais duma modificação. E como cada modificação produzida é causa de outras, teremos os efeitos, com o tempo, multiplicados indefinidamente até o inverosímil. (Spencer, 1939_______. Do progresso. Sua Lei e sua Causa. Lisboa: Editorial Inquérito, 1939., p.9-10)

Burke, ao continuar sua análise sobre o modelo proposto por Spencer, faz comparações com outros modelos, de Durkheim e Weber, com a demonstração de que há diferenças estruturais entre esses, mas também guardam-se similitudes no que tange à ideia de evolução como um processo irreversível e de passagem da organização social homogênea para a heterogênea, o que aparece de modo central nas teorias de Durkheim (a passagem da solidariedade mecânica para a solidariedade orgânica), mas também, na teoria weberiana, no que se refere à burocracia.

Durkheim, que discordou de Spencer em diversos aspectos, aderiu a ele ao descrever a mudança social em termos essencialmente evolucionários. Destacou a substituição gradual de uma simples “solidariedade mecânica” (em outras palavras, a solidariedade do semelhante) por uma “solidariedade orgânica”, de natureza mais complexa, a solidariedade de complementariedade, graças a crescente divisão do trabalho na sociedade. Weber, por sua vez, manifestou a tendência de evitar o termo “evolução”; ainda assim, porém, vislumbrou a história geral como uma tendência gradual, mas ao mesmo tempo irreversível, em direção a formas mais complexas e impessoais de organização como a burocracia e o capitalismo. (Burke, 2002BURKE, P. História e teoria social. São Paulo: Editora Unesp, 2002., p.184)

Um aspecto importante em Spencer refere-se ao fato de que sua crença na evolução de todas as formas de organismos desdobrou-se em sua rejeição ao criacionismo, com seu afastamento de conceitos, tradições e dogmas cristãos relacionados à vida em sociedade, com seu alinhamento ao deísmo.

Liberismo, antiestatismo e adaptação social

Se o evolucionismo social de Spencer marcou a teoria social em sua época e mesmo posteriormente, seu pensamento também expressou e ajudou a moldar uma forma conservadora no âmbito do liberalismo e da teoria política, em uma nova maneira de oposição ao registro liberal democrático.

A posição conservadora liberal de longe mais influente no fim do século foi articulada pelo pai do evolucionismo como uma ideologia geral, Herbert Spencer (1820-1903). Spencer nasceu na Derby industrial, num lar wesleyano, e então ingressou no curso de engenharia. Tornou-se um colaborador do jornal The Economist. Toda sua vida, apegou-se tenazmente a uma ideia minimalista do Estado e uma forma maximalista de liberismo. Também era um individualista extremo e um verdadeiro herdeiro do desprezo benthamita pelo privilégio aristocrático e pela hierarquia espiritual. (Merquior, 2014MERQUIOR, J. G. O liberalismo. Antigo e moderno. 3.ed. (ampliada). São Paulo: É Realizações, 2014., p.147)

Segundo Merquior (2014MERQUIOR, J. G. O liberalismo. Antigo e moderno. 3.ed. (ampliada). São Paulo: É Realizações, 2014.), Spencer destacou sua aversão ao controle do Estado sobre a vida do indivíduo e da sociedade, por meio de uma argumentação de que a ação dos governos não deveria ir além da garantia dos direitos naturais dos cidadãos, o que, para Spencer, já teria sido ultrapassado há tempos na Inglaterra.

Aos olhos de Spencer, a única função dos governos é a defesa dos cidadãos contra os agressores, tanto estrangeiros como domésticos. Porém, ao examinar a legislação liberal posterior aos anos 1860, Spencer achou que o governo, de qualquer forma, não se tinha confinado a essa função legítima. Patrocinando a promoção do bem-estar por meio da legislação industrial e muitas outras medidas filantrópicas, os liberais haviam perdido de vista a posição tradicional do liberalismo contra a coação. (Merquior, 2014MERQUIOR, J. G. O liberalismo. Antigo e moderno. 3.ed. (ampliada). São Paulo: É Realizações, 2014., p.148)

Em O indivíduo contra o Estado, de 1884, Spencer teceu críticas ao modelo de Estado liberal de sua época, pois, segundo o autor, com o aumento do poder do Estado, os liberais de outrora passaram a dirigir as ações dos cidadãos com a finalidade de aumentar cada vez mais o poder do partido liberal e do Estado, com a transformação do último no grande inimigo das liberdades individuais, em contraposição àquilo que era preconizado pelos melhores ideais liberais. Spencer (s.d., p.13) indaga:

[...] como é que os liberais olvidaram esta verdade? Como é que o partido liberal tendo aumentado cada vez mais seu poder, se tornou cada vez mais coercitivo em suas medidas legislativas? Como é que, já diretamente, por meio de suas próprias maiorias, já indiretamente, prestando seu concurso, em certos casos, às maiorias de seus adversários o partido liberal tem adotado com demasiada frequência, a política de dirigir as ações dos cidadãos e de diminuir, portanto, a esfera dentro da qual são livres essas ações? Como podemos explicar essa confusão de ideias que o tem levado, na busca do que parece ser o bem público, a investir o método que o ajudou, em tempos passados, a realizar esse mesmo bem?

Segundo Merquior (2014MERQUIOR, J. G. O liberalismo. Antigo e moderno. 3.ed. (ampliada). São Paulo: É Realizações, 2014., p.148), Spencer “declarou que, no futuro, a função do verdadeiro liberalismo seria ‘impor um limite ao poder do Parlamento’”, o que denotava que o Estado tinha se tornado contrário aos ideais liberais, com Spencer a deplorar a

[...] perspectiva de “usurpação pelo Estado” de todas as indústrias, que, em sua opinião ameaçava “suspender o processo de adaptação” e o seu resultado, a seleção natural. Além disso, o crescimento do Estado acarretava burocracia, e a burocracia era para ele algo de intrinsecamente corrupto. Por outro lado, o estatismo do bem-estar também era imoral. A fé moderna no governo não passava de “uma forma sutil de fetichismo”. (Merquior, 2014MERQUIOR, J. G. O liberalismo. Antigo e moderno. 3.ed. (ampliada). São Paulo: É Realizações, 2014., p.149)

Spencer exemplifica como o sistema cuida dos menos favorecidas à custa do restante da sociedade, mas sem se importar com as consequências desse modelo de condução da sociedade pelo Estado. Também na educação, essa intervenção do Estado era considerada por ele como maléfica para a sociedade, por meio da defesa da oferta escolar pela sociedade civil, porque considerava que a interferência do Estado, sendo igual para todos, poderia sustentar estudantes que não estariam, por natureza, aptos a competir em sociedade e, portanto, ocorreria um dispêndio desnecessário de recursos. Também no que se refere à Ciência, que Spencer considerava superior às demais formas de conhecimento, ele destacava que não se deve ao governo ou ao Estado seus avanços.

Educação, evolucionismo e progresso

Spencer advogava um caráter utilitarista à educação, com a função principal de formar o caráter e “preparar-nos para a vida completa” (Spencer, 1888, p.12), por meio da defesa do ensino prioritário das ciências com o objetivo de fornecer aos jovens conhecimentos sobre a natureza para se ajustarem às exigências do mundo, dado que não é possível estudar tudo, é necessário definir os conhecimentos mais valiosos, pois o homem não pode perder tempo com estudos inúteis. Para ele, tem sido nocivo à educação o valor dado às disciplinas que não possuem ligação com a conservação direta da vida que se sobrepõem àquelas que são essenciais a própria existência do homem enquanto espécie biológica, pois na educação tradicional os conhecimentos ornamentais precedem em importância os conhecimentos úteis.

As principais ideias de Spencer relacionadas à educação encontram-se em uma coletânea de textos anteriormente publicados, nomeada Educação intelectual, moral e física, publicada em 1861, que estabeleceu sua “reputação como pedagogo [...], que defende a pretensão da ciência de possuir valor superior como disciplina e sustenta o treinamento de crianças não pelo medo, mas pela liberdade, permitindo-lhes aprender a partir das naturais consequências do comportamento errado, sem o envolvimento dos pais” (Batho, 2008BATHO, G. R. Herbert Spencer, 1820-1903. In: PALMER, J. A. 50 Grandes Educadores: de Confúcio a Dewey. São Paulo: Contexto. 2008. p.150-4., p.152).

Spencer formulou uma escala hierárquica de conhecimentos, com a ciência no grau mais elevado, no qual os conhecimentos que estão ligados diretamente a conservação da vida biológica possuem primazia sobre os demais.

Assim, para a pergunta que formulamos - quais são os conhecimentos de maior valor? - há uma resposta uniforme - a Ciência. É o veredito para todas as interrogações. Para a conservação própria, para a conservação da vida e da saúde, o conhecimento mais importante é a ciência. Para a indireta conservação própria, o que se chama ganhar a vida, o conhecimento de maior valor é a ciência. Para o justo desempenho das funções da família o guia mais próprio só se encontra na - Ciência. Para a interpretação da vida nacional, no passado e no presente, sem a qual o cidadão não pode justamente regularizar o seu procedimento, a chave indispensável é a ciência. Para a produção mais perfeita e para os gozos da arte em todas as suas formas, a preparação imprescindível é ainda a ciência, e para os fins da disciplina intelectual, moral e religiosa - o estudo mais eficaz é, ainda uma vez, a ciência. (Spencer, 1888SPENCER, H. Educação - Intellectual, Moral e Physica. Trad. Emygdio D’Oliveira. 2.ed. Porto: Casa Editora, 1888., p.86)

Spencer alicerçou sua teoria educacional em quatro pilares: primazia do ensino das ciências; crítica ao ensino tradicional; defesa da não intervenção do Estado na educação; classificação hierárquica dos conteúdos que deveriam ser ensinados nas escolas, com preocupações não apenas em relação às disciplinas dispostas no currículo escolar, mas também, em relação ao método utilizado.

Advoga que todos devem ser educados, mas não pelo Estado, portanto, a ideia contrária à intervenção do Estado na sociedade também se aplica à Educação. Ressalve-se que, diferentemente da grande maioria dos países europeus, nessa época, o ensino britânico era um assunto tratado no âmbito da sociedade civil, com mínima interferência estatal, apenas recomendações instrutivas do Parlamento para que os industriais ingleses fornecessem ensino a seus empregados. Nesse contexto

Na tentativa de acompanhar as mudanças em curso na Europa e fornecer aos súbditos a educação necessária para bem servir o país, tornando-os uma força de trabalho apta a enfrentar os desafios do progresso tecnológico e dos recentes desenvolvimentos da Revolução Industrial, o governo inglês deu também início às reformas do sistema educativo, sensivelmente, entre 1815 e 1870. No entanto, ao invés do sucedido na França e na Alemanha, onde cedo se encetaram alterações de vulto nas escolas e a educação passou a ser um assunto do Estado, os estabelecimentos de ensino britânicos, no início do século XIX, ainda existiam em regime de voluntariado, sendo apenas assinaláveis, mas de pouco significado, os melhoramentos alcançados pela iniciativa de Joseph Lancaster e Andrew Bell. De facto, por altura do ano de 1815, o método pedagógico mais comum na Grã-Bretanha advinha do plano Lancaster e Bell, designado “monitorial” system, cujo objetivo principal era a preparação dos alunos mais velhos para ensinarem, por sua vez, os mais novos. (Rocha, 2000ROCHA, A. P. S. G. Herbert Spencer. Da divergência ao evolucionismo. Uma Educação para a Modernidade. Lisboa, 2000. Dissertação (Mestrado em Ciências Sociais e Humanas) - Universidade Nova de Lisboa., p.12, grifo da autora)

O autor britânico defendia que a escola deveria ser ofertada por iniciativas da sociedade civil, uma vez que deixar a cargo do Estado tal incumbência traria mais prejuízos do que benefícios, pois não estaria a formar jovens que pudessem ter o discernimento da necessidade de competição e, assim, tornarem-se mais aptos ao sistema.

Spencer classifica em ordem hierárquica de importância as atividades que constituem a vida do homem e que, desse modo, devem ser priorizadas na escolha dos conteúdos de ensino. Define, então, quais são as atividades por ordem de importância e por conseguinte qual a prioridade deve ser dada pela educação, conforme exposto no quadro a seguir.

Quadro 1
Ordem de atividades na vida dos homens por grau de importância

O autor também alega que é função e objetivo da educação e das instituições escolares ocuparem-se dessas atividades, para que contribuam “diretamente para a conservação própria; aquela que para ela contribua indiretamente; aquela que concorre para a conservação da família; aquela que concorre para o bom cumprimento dos deveres do cidadão; aquela, finalmente, que concorre para os diversos prazeres da vida” (Spencer, 1888SPENCER, H. Educação - Intellectual, Moral e Physica. Trad. Emygdio D’Oliveira. 2.ed. Porto: Casa Editora, 1888., p.17).

Na educação “Spencer representa a tendência científica” (Rosa, 1971ROSA, M. G. A História da Educação através dos textos. São Paulo: Cultrix, 1971., p.268), com a demonstração de que somente por meio da ciência a educação poderá atingir o pretendido, naquilo que se refere à utilidade para o alcance do progresso. Para Spencer, a ciência na educação é a resposta para os questionamentos sobre quais seriam os conteúdos de maior valor.

Spencer advoga pelas áreas de conhecimento que devem ser estudadas. Para a conservação da saúde, Fisiologia e Higiene. Para obter bons resultados no exercício do emprego, ciências que o propiciem uma educação profissional. Na educação dos filhos, ciências ligadas a princípios. Nas funções sociais, várias ciências devem ser estudadas, o mesmo deve ocorrer em relação à moral, bem como à Educação Física.

No que concerne às atividades artísticas e literárias, Spencer defende a importância das artes e da estética na vida dos homens. No entanto, essa importância não poderá sobrepor-se àquelas atividades mais essenciais para a conservação da vida e da saúde, uma vez que essas disciplinas consideradas como clássicas, apenas proporcionavam aos alunos uma vida de diversão, voltada ao lazer e sem utilidade efetiva, pelo que dessa forma também não deviam ocupar um lugar de destaque.

E aqui vemos nós mais distintamente o vício da nossa educação. Desejamos a flor, mas desprezamos a planta. Ansiosos da elegância esquecemos a substância. Enquanto que a nossa educação não nos fornece conhecimento algum para a conservação própria, enquanto que dá apenas os rudimentos da ciência que facilita os meios de ganhar a vida e deixa a maior parte deles para serem recolhidos mais tarde pela experiencia do mundo, enquanto que não faz a menor provisão para o desenvolvimento dos deveres da família, e enquanto para os deveres do cidadão fornece a comunicação de uma massa de fatos, a maior parte dos quais nada provam, e os restantes sem uma chave essencial; só é diligente no ensino do que diz respeito à elegância, à polidez das maneiras, ao brilho social. Prendas, belas artes, bela letras, e todas as coisas que, como dissemos, constituem as flores da civilização devem ser totalmente subordinadas à instrução e à disciplina daquilo em que se fundamenta a civilização. Assim como ocupam a parte do tempo vago da vida, assim, devem ocupar o tempo vago da educação. (Spencer, 1888SPENCER, H. Educação - Intellectual, Moral e Physica. Trad. Emygdio D’Oliveira. 2.ed. Porto: Casa Editora, 1888., p.63)

Desse modo, Spencer objeta que os estudos tradicionais devem ser uma preocupação secundária, pois a “questão importante é como viver [...] o saber que o indivíduo adquire através da experiência, sonda e ajuda a resolver seus problemas de vida; é superior ao saber dado pelas fontes tradicionais” (Rosa, 1971ROSA, M. G. A História da Educação através dos textos. São Paulo: Cultrix, 1971., p.270). Mas, para além do privilegiamento do ensino de ciências, dever-se-ia também inovar no que se refere aos métodos de ensino, pois a ciência ensinada nas escolas não encontraria a efetividade desejada em razão de métodos de ensino ineficientes e em dissonância com aquilo que era exigido pela sociedade.

A partir da filosofia da ciência de Spencer, a produção da experiência educativa foi imbuída pelo sentimento de que era sua função estabelecer uma organização plena entre os dois polos da formação - o ensino e a aprendizagem, segundo a hierarquia da formação intelectual, moral e física dos indivíduos, e conforme o princípio científico de utilidade e progresso expresso nas leis naturais recorrentes na psicologia, na economia, na higiene e em uma ética individualista, a fim de alcançar o organismo social. (Borges, 2018BORGES, B. G. Adeus, formação: o anti-Emílio anunciador do conceito de programa de vida. Uberlândia, 2018. Tese (Doutorado em Educação) - Faculdade de Educação, Universidade Federal de Uberlândia., p.83)

Spencer afirma sobre a necessidade de existir relação entre os diversos sistemas de educação e as condições sociais em que serão aplicados, pois, no ensino clássico, a metodologia de ensino dava-se por generalizações, conhecimentos de abstrações e não de vivência ou na experimentação. Nessa direção, mostrou-se um entusiasta do método intuitivo, com a argumentação de que ele deveria ser aplicado ao longo da vida escolar, pois a educação por meio da “lição de coisas” conduz o aluno a uma experiência concreta no lugar da abstração, dado que “quanto mais a ciência nos familiariza com a constituição das coisas, tanto mais vemos nelas uma inerente suficiência de virtudes” (Spencer, 1888, p.105).

As lições das coisas não só deviam ser fornecidas por uma maneira absolutamente diferente daquela por que o são agora, mas dever-se-iam estender a uma esfera de coisas mais larga e continuadas durante um período muito mais longo que o atual. Não se deveriam limitar aos objetos da casa, mas alcançar os que são relativos aos campos e alamedas, pedreiras e costas marítimas. Não deveriam terminar com a infância, mas continuar durante a adolescência, predispondo o estudante para as investigações naturalistas e para os trabalhos das ciências. Neste ponto, como nos outros, não temos mais que seguir o ensinamento da natureza. (Spencer, 1888SPENCER, H. Educação - Intellectual, Moral e Physica. Trad. Emygdio D’Oliveira. 2.ed. Porto: Casa Editora, 1888., p.138)

No âmbito da educação intelectual Spencer ressalta que para conseguir melhores resultados é necessário tornar o ensino uma atividade que produza satisfação ao aluno e não um encargo a ser suportado. Entre as mudanças para tornar a educação produtiva “a mais importante é o crescente desejo de tornar o estudo uma ocupação agradável e não enfadonha, desejo baseado na mais ou menos distinta percepção de que o trabalho intelectual que agrada à criança em cada ano de sua vida é precisamente aquele que mais convém à sua saúde e inversamente” (Spencer, 1888, p.102). Quanto ao aprendizado, para Spencer, ele é

[...] possível e ocorre quando há interesse nele, quando há demanda por parte do estudante. Para que o conhecimento possa gerar interesse, é preciso haver interlocução do que se apresenta, ou seja, é preciso que o conhecimento apresentado seja agradável e faça sentido para o estudante. Se o assunto é abstrato e não diz respeito à realidade das crianças, por certo, não haverá aprendizagem. Spencer afirma que esta educação equivocada faz do pupilo “um mero recipiente passivo das ideias dos outros” e não permite que ele seja senhor de si, que formule suas próprias ideias. (Mendonça, 2013MENDONÇA, S. Herbert Spencer e os princípios dirigentes da educação intelectual. In: REUNIÃO NACIONAL DA ANPED, 36. 2013, Goiânia., p.5)

Na abordagem da educação moral, Spencer é categórico ao defender a importância da participação dos pais na educação dos filhos, com os pais a terem a mesma educação dada a sua prole, pois somente assim teriam condições de repassar aos filhos valores morais necessários para a vida em sociedade e com vistas ao progresso.

No que se refere à Educação Física, Spencer esforçou-se em fazer notar “a urgência de uma adequada cultura corporal. Sendo o homem, em primeiro lugar um ser orgânico, sensível animal, a primeira condição de êxito no mundo é ser um bom animal” (Rosa, 1971ROSA, M. G. A História da Educação através dos textos. São Paulo: Cultrix, 1971., p.269), o que é coerente com a eleição dos conhecimentos mais úteis, tal qual posição hierárquica colocava aquelas ciências que se ocupavam da preservação da vida, portanto, o corpo físico, a fisiologia do ser humano merecia preocupação por parte da educação. Nessa busca pela capacidade física saudável é ressaltada a importância da alimentação adequada, do vestuário relacionado ao clima em que se vive etc. Para ele:

Pouca gente parece saber que há uma coisa chamada moralidade física. Geralmente as palavras e as ações dos homens supõe a ideia de que eles têm a liberdade de tratarem do corpo como lhes aprouver. Os males provocados pela desobediência aos ditames da Natureza, consideram-se eles como simples acidentes: não como efeitos de um procedimento mais ou menos vicioso. Posto que as más consequências infligidas sobre aqueles que nelas incorrem e sobre as gerações futuras sejam por vezes tão grandes como as que resultam de um crime, eles não pensam que são por forma alguma criminosos. O fato é que todas as infrações das leis da saúde são pecados físicos. Quando isto for visto por toda a gente, então, mas antes não dê certo, receberá a educação física da mocidade a atenção que ela merece. (Spencer, 1888SPENCER, H. Educação - Intellectual, Moral e Physica. Trad. Emygdio D’Oliveira. 2.ed. Porto: Casa Editora, 1888., p.308-9)

Considerações finais

A influência das ideias de Spencer foi notável, no que se refere à defesa do progresso como tônica da vida em sociedade no mundo histórico. Sua concepção de educação alcançou diversos países, bem como sua posição de restringir o papel do Estado encontrou adeptos. Se é difícil concordar com o radicalismo de suas ideias, também é preciso admitir que Spencer é portador de um caráter progressista que pode alcançar questões atuais, pois seu pensamento valorizava formas científicas de análise do mundo natural e histórico, com afastamento da compreensão do mundo ancorada em princípios metafísicos.

Esse posicionamento em favor da ciência disseminou-se, mas também sofreu oposição de setores da sociedade que vislumbraram perda de relevância, o que alcançou o século XXI, por meio da disseminação de ideias obscuras, nomeadamente o tradicionalismo, que radicaliza uma posição conservadora na qual a religiosidade ocupa o centro da vida social, o que demonstra a importância de posições que advogam pela importância da ciência.

A crítica de Spencer ao crescimento da abrangência do controle estatal sobre a sociedade e ao crescimento da burocracia como abertura à corrupção pode ser considerada excessiva, mas parece ter colaborado para prevenir a sociedade de um Estado que se afastasse do interesse social. Para além de Spencer, atualmente, a visão satisfatória do Estado, seja ele pequeno, seja grande, está relacionada a sua capacidade de estar a serviço do bem público (Sorj, 2017SORJ, B. O dilema brasileiro: entre o individualismo cívico e o personalismo transgressor. Journal of Democracy. v.6, n.2, p.97-117, 2017.).

Outro aspecto que merece atenção, mas não adesão, é o fato de Spencer propor que se priorizem conteúdos científicos nas escolas, em uma rígida hierarquia que secundarizaria os conhecimentos considerados de menor utilidade. Se há um exagero a evitar aqui, os resultados alcançados ao longo do tempo permitiram equilibrar a situação por meio da formulação de currículos que comportaram o estudo das ciências e de disciplinas tradicionais. Essa constatação ganha relevo atualmente, dado que há grupos organizados a advogar o afastamento da ciência e de práticas de saúde relacionadas à conservação da vida, sobretudo no que se refere à imunização por meio de vacinação em massa e de modo obrigatório.

Se é difícil concordar com a ideia de uma evolução necessária e contínua rumo ao progresso ininterrupto, sem o apontamento das contradições que o mundo histórico comporta, bem como de que a seleção por competência seja a base desse processo progressivo, pois há barreiras para que todos os indivíduos tornem-se competentes, parece importante salientar os esforços em democracias mais desenvolvidas de eliminar favorecimentos, que prejudicam a qualidade do atendimento à sociedade, para o que a seleção por competência foi um avanço. Também é salutar que se invista em equiparar o ponto de partida, com o estabelecimento de condições mais equânimes para a formação de indivíduos competentes, por meio do estabelecimento do equilíbrio entre a proximidade de condições e a igualdade de oportunidades.

Finalizamos com a reiteração da importância de se conhecer as ideias de Spencer, não na direção de nos tornarmos seguidores, mas, sim, para que se possa compreender suas ideias no contexto no qual elas foram formuladas e encontraram disseminação, bem como para poder relativizar suas proposições, a partir do reconhecimento das repercussões que houve ao longo do tempo, pois, nesse caso, há elementos importantes que podem favorecer ao combate esclarecido de posições retrógradas que têm ganhado lugar atualmente.

Referências

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Nota

  • 1
    Herbert Spencer nasceu em Derby, Inglaterra, em 1820, em uma família de defensores de John Wesley. Seu avô era diretor de escola e seu pai era um homem com ideias religiosas e sociais obstinadas. Teve sua educação negligenciada até os 13 anos, quando foi enviado para Bath, a fim de viver com seu tio, padre, pensador radical e antigo membro da Universidade de Cambridge. Em 1837, foi assistente de diretor de uma escola em Derby, de onde saiu para assistir e secretariar engenheiros vinculados à construção da Estrada de Ferro Londres-Birmigham. Depois, tornou-se secretário da seção de Derby do movimento sufragista e, em seguida, subeditor do jornal da organização (The Pilot). Em 1848, tornou-se subeditor do Economist, onde conheceu diversos intelectuais importantes. Em 1850, publicou “Estática social ou as condições da felicidade humana”. Em 1852, defendeu a teoria da evolução orgânica, em artigo intitulado “Hipóteses do desenvolvimento”, sete anos antes da publicação de A origem das espécies de Darwin. Em 1855, escreveu Os princípios da Psicologia, com sua psicologia evolucionista. Em 1861, reuniu quatro artigos anteriormente publicados em uma única obra Educação - intelectual, moral e física, que teve grande difusão e influenciou processos de renovação educacional em várias partes do mundo. Ainda na década de 1860, anunciou o “Sistema de Filosofia Sintética”, no qual publicou: Primeiros Princípios (1862); Princípios da Biologia (1864-1867); Princípios da Sociologia (1876-82-96); Ética (1879), Princípios da Ética (1892-1893). Em 1884, publicou O indivíduo contra o Estado, que também obteve grande difusão internacional. Em 1904, um ano após sua morte, teve publicada a obra Autobiografia (Batho, 2008; Japiassú; Marcondes, 1991).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    13 Maio 2022
  • Data do Fascículo
    May-Aug 2022

Histórico

  • Recebido
    11 Mar 2021
  • Aceito
    29 Jun 2021
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